DIREITOS HUMANOS E POLÍTICA
Origens e Formação dos Direitos Fundamentais no Brasil **
Aurélio Wander Bastos
Professor Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
e da Universidade Candido Mendes. Advogado. Doutor em Ciência Política
Introdução
Este artigo, não propriamente, analisa o grande dilema ideológico que
presidia a vida política brasileira, nos anos que antecederam e sucederam
1964, marco político referencial da história do Estado brasileiro moderno, mas
a implementação de políticas sobre direitos humanos, nos seus diferentes
matizes, num quadro de confronto traduzido nos projetos de democracia com
desenvolvimento e desenvolvimento com segurança (ou segurança com
desenvolvimento, para seus mais radicais defensores), para o Estado e a
sociedade. Neste contexto, as representações discursivas das propostas sobre
proteção dos direitos humanos dividiam-se basicamente entre a viabilização
dos projetos humanistas de políticas de democratização do Estado, inspiradas
nos tantos tratados internacionais sobre direitos humanos, e as ações de
fortalecimento do Estado autoritário em divergência com o Estado (formal) de
Direito.
Na verdade estas duas grandes vertentes de reconstrução do Estado,
evoluíram da Guerra Fria, sendo que os projetos de políticas de direitos
humanos expressavam o pensamento dos militantes políticos vinculados aos
movimentos de fortalecimento democrático e os projetos políticos de segurança
e desenvolvimento mais se inclinavam para a defesa das estruturas autoritárias
do Estado, como garantia contra os projetos políticos de influência socialista
(inclusive aqueles de compromissos internacionais). Neste contexto, como
veremos, os projetos políticos de direitos humanos vieram a sofrer muito mais
uma grande influência do liberalismo democrático, herdado das propostas
ideológicas do iluminismo, do que do pensamento socialista (ou social
democrático).
Estes projetos de origem liberal-individualista ou comprometidos com o
humanismo democrático mais expressavam as tendências das frações
ocidentais vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, cujo patrono referencial fora
F. D. Roosevelt, assim como muitas variantes das tantas frações
independentes das esquerdas dissidentes, e os projetos de segurança
nacional, todavia, mais traduziam propostas de modelos políticos fechados, na
verdade uma posição defensiva das tendências centralistas da fração soviética,
também vitoriosa na Segunda Guerra Mundial, cujo patrono referencial fora
Joseph Stalin, mas com grande penetração urbana no mundo subdesenvolvido.
Desta forma, como se verifica, os tratados internacionais foram elaborados a
partir da confluência de posições do liberalismo iluminista e do socialismo
democrático, assim como os projetos voltados para a questão de segurança
*
Texto originariamente preparado para palestra a ser proferida no dia 1 de setembro de 2010, em Manaus,
no Curso de Pós-Graduação em Segurança e Direitos Humanos oferecido em convênio com a Associação
da Academia de Polícia do Amazonas – ADEPOL / AM e a Universidade Nilton Lins.
nacional, na verdade, estavam numa linha de confronto entre os novos
autoritarismos, que sucederam a Segunda Guerra Mundial, em algumas
situações abertos ao Estado de direito e, em outras, comprometidos com
políticas ideológicas centralistas.
Finalmente, embora este artigo fique circunscrito à leitura dos tratados
influenciados pelo individualismo humanista, e em algumas situações às
proposições socialistas e democráticas, procuramos, também, indicar, as novas
linhas evolutivas dos direitos humanos, abertas à proteção dos direitos
coletivos e difusos e às questões existenciais da pessoa humana, que
fortalecem o princípio da dignidade humana como pressuposto das dimensões
interiores do homem.
1. Preliminares Históricas
A história brasileira está desde seus primórdios, marcada por posturas
contrárias à escravização da população indígena† e, também da própria mãode-obra negra. Estas atitudes, todavia, embora historicamente referenciais, não
tem qualquer conotação defensiva do moderno conceito de direitos humanos e
não traduzem políticas de Estado, mas iniciativas de grupos colonizadores
dissidentes da orientação metropolitana e, inclusive, como mais tarde ocorrera,
do próprio Estado imperial. Os nossos documentos históricos fundamentais,
todavia, sempre estiveram vinculados à questão da defesa dos direitos
individuais e do próprio Estado de Direito, pressupostos básicos das posturas
ideológicas futuras que vieram a presidir a questão da proteção dos direitos da
pessoa humana.
Não propriamente a proteção dos direitos da pessoa humana, na história
política brasileira, representaram uma exata tradução do conceito de direitos
humanos: o primeiro visivelmente deixa a perceber que a pessoa humana tem
direitos subjetivos imprescindíveis à proteção do Estado, e o segundo, mais
demonstra, em tese, o conceito de direitos humanos num amplo catálogo
tipológico. Isto não significa que uma situação se contraponha a outra, mas o
conceito de direitos da pessoa humana tem uma dimensão concreta e
pragmática mais visível, e o conceito de direitos humanos fica numa dimensão
filosófica mais aberta, que pode ser juridicamente traduzida, não apenas na
forma de um catálogo de situações protetivas, mas também remanescer como
um conceito de alcance extensivo a situações que possam não estar
juridicamente definidas.
Neste sentido, retomando as nossas observações, as primeiras
manifestações concretas, voltadas para a defesa dos direitos da pessoa
humana no Brasil, ocorreram, na prática, se não propriamente através de
organismos de Estado ‡ , essencialmente de personalidades políticas
†
Raposo Tavares (1598-1628): Em Busca do Ouro Vermelho e Manuel Beckman (1630-1685): O Império
Português Contra as Feridas Coloniais in Ramos, Fábio Pestana (e Marcus Vinicius de Moraes): Eles
Formaram o Brasil. São Paulo. Contexto, 2010. Ver também Fernandes Florestan. A Função Social da
Guerra na Sociedade Tupinambá. São Paulo. Pioneira. 1970 e Holanda, Sérgio Buarque. Caminhos e
Fronteiras. São Paulo. Cia. das Letras. 2001.
‡
A Assembléia Constituinte de 1823, que sucedeu a proclamação da independência de 1822, tinha uma
visível conotação contrária ao abuso do poder, preocupando-se com o Império Constitucional, o que
evidentemente resultou no seu fechamento, e viabilizou a constituição outorgada pelo Imperador, que
evoluiu numa linha conciliadora com aberturas jurídicas liberais. Interessantemente, esta Constituição não
tinha qualquer manifestação permissiva da escravidão, que, aliás, no Brasil, enquanto referencial jurídico,
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expressivas e de organizações civis, mais recentemente. Estas manifestações
ocorreram na defesa de vítimas da opressão escravagista, que se superpõe
aos movimentos federalista e republicano quando se destacaram as
personalidades que atuaram no processo abolicionista. Durante o período da
primeira República (interessantemente, o manifesto republicano de 1870,
lançado em São Paulo, embora se refira a liberdades democráticas e princípios
democráticos, não faz qualquer manifestação sobre a abolição da escravidão, o
que é explicável porque os republicanos não votaram a favor da Lei do Ventre
Livre, e, ao que se diz, inclusive, contra a Lei Áurea, e, também, nunca
admitiram o voto dos analfabetos), não temos exatos indicadores de
expressivos movimentos de dimensão política vinculados à questão dos
direitos da pessoa humana, nem mesmo na defesa dos direitos individuais,
resguardados na Constituição de 1891.
No ocaso da velha República, todavia, alguns movimentos adquiriram
maior expressão como frentes de lutas vinculadas ao combate à opressão rural
e oligárquica, e também, embora não expressamente conexos, à defesa do
direito de organização do proletariado urbano em processo de ascensão e
crescimento. Esta observação demonstra que a questão da proteção dos
direitos humanos não exatamente era uma questão política na primeira
República, assim como o seu reconhecimento, preliminarmente, não é um
diagnóstico sobre a exclusão de direitos (individuais) das populações rurais
oprimidas ou das populações proletárias urbanas, mas especificamente no que
se refere a questão urbana, estava tomando o caráter de uma luta de classes e
ideológica, mobilizada pelo ascendente Partido Comunista Brasileiro, criado em
1922.
Coincidentemente, neste período, destacou-se, como agente político
rebelado, o Capitão Luis Carlos Prestes, que, num primeiro momento,
percorreu o Brasil, na forma da Coluna, que veio a ser denominada pelo seu
próprio nome§, com o intuito de reconhecer os espaços territoriais da miséria e
remanesce como dispositivo das ordenações manuelinas / filipinas. A Constituição de 1824 aboliu as
penas cruéis, a tortura, a marcação com ferro quente, em brasa, no corpo do escravo, figuras comuns
modernamente como referencias da ação repressiva dos Direitos Humanos. Essa mesma Constituição
proibiu a pena de açoites, mas em seguida o Código Criminal de 1834 estabeleceu a pena de chibata, o
que resultou na rebelião comandada pelo marinheiro João Cândido Felisberto.
§
MEIRELLES, Domingos. As noites das grandes fogueiras: uma história da Coluna Prestes. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. Independentemente deste livro, a melhor cronologia sobre a
Coluna Prestes pode ser encontrada no livro de SILVA, Hélio e CARNEIRO, Maria Cecília
Ribas. A Marcha da Coluna Prestes 1923/1926. São Paulo, Editora Três Ltda. 1998, p. 7 e 15,
onde, inclusive, tem um qualificado arquivo fotográfico. Genericamente, os autores mostram a
evolução do movimento no contexto da crise política brasileira que evolui da presidência de
Arthur Bernardes, que tinha uma personalidade bastante diferente dos montanheses mineiros.
De qualquer forma, o livro oferece interessantes intervenções de Levi Carneiro sobre a
tentativa de se impedir a posse, no Rio de Janeiro, de Raul Fernandes, um episódio sempre
esquecido na história brasileira. Por outro lado, o livro estuda, também, as rebeliões do Sul do
Brasil, de onde, efetivamente, vieram, não apenas os homens, mas muitas das idéias que se
somaram ao modernismo do Rio/São Paulo para a construção de um novo Brasil. Na verdade
a Coluna Prestes não tinha uma clara ideologia e a sua própria posição contra as oligarquias
nem sempre está muito visível, apesar de que, a sua marcha pelo interior do Brasil
definitivamente levou-o a tomar consciência do quadro de miséria e opressão do povo do
interior do Brasil, o que aumentou a sua sensibilidade para aproximar-se do pensamento
marxista que o encaminhou para a militância no Partido Comunista do Brasil (Partido
Comunista Brasileiro, depois).
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da dominação oligárquica rural, que teve mais efeitos de reação militar às
oligarquias, do que propriamente de movimento político. O dirigente da Coluna
evoluiu, todavia, o que não aconteceu com todos os seus participantes, dos
deslocamentos de reconhecimento para posturas de natureza ideológica, o que
favoreceu os seus compromissos como militante político voltado para a
organização classista do operariado urbano.
A participação de Prestes, exceto nos nexos de grande expressão
política, não se destinavam à defesa do que modernamente se denominou
direitos humanos,como movimento protetivo e defensivo da dignidade humana,
que sucede à Segunda Guerra Mundial, mas a ações propositivas de
organização do operariado urbano destinado a enfrentar as classe sociais
dominantes. Neste sentido, e neste momento histórico, não podemos, como se
verifica, fazer uma exata correlação entre o incentivo às lutas de enfrentamento
classista e os movimentos em ascenção pela proteção dos direitos humanos,
muito embora seja impossível desconhecer que as lutas contra a opressão
classista não tenham na sua gênese a preocupação de resguardar a dignidade
humana numa dimensão mais social, mas de efeitos individuais.
De qualquer forma, do ponto de vista bibliográfico, a identificação teórica
deste período, muito se deve ao clássico trabalho de Vitor Nunes Leal,
intitulado Coronelismo, Enxada e Voto, um verdadeiro diagnóstico da vida
política na primeira República, que, muito traduzia, as condições de dominação
política e econômica dos trabalhadores no campo, tomando como ângulo de
análise as práticas fraudulentas dos processo eleitorais dos agentes do Poder
Executivo e Legislativo. Outros estudos existem sobre o tema, todavia, o que
nos importa aqui é apenas demonstrar a desconexão entre as garantias
individuais constitucionais e a miséria social da população campesina frente a
forma impositiva dos oligarcas.
Por outro lado, o operariado urbano, com o crescimento industrial,
reivindicava novos direitos de natureza trabalhista o que fortalecia as suas lutas
de organização, abrindo espaço para as propostas de bem estar social de
significativo alcance residual existencial e individual. Interessantemente,
todavia, a questão dos direitos humanos não cresce em função das
reivindicações do campesinato e do operariado, mas em função da repressão
de Estado (policial) àqueles movimentos de reivindicação trabalhista e
organização classista.
Neste sentido, do ponto de vista documental, o material mais expressivo
desta época que melhor traduz o sufocamento das incipientes lutas pelos
direitos humanos, se encontram nos processos que tramitaram no Tribunal de
Segurança Nacional - TSN, ** que avaliou judicialmente a repressão aos
insurgentes esquerdistas, vítimas de tortura, ameaças e agressões pelo
aparelho repressivo do Estado, a partir de 1935. Este movimento foi
coordenado pela Aliança Nacional Libertadora, e nos anos que se sucederam à
proclamação do Estado Novo, em 1937. Contudo, o movimento não tinha
qualquer proposta vinculada aos direitos humanos, mas os seus militantes
foram vítimas de agressão policial estatal aos seus direitos de sobrevivência
**
Este Tribunal, criado por Getúlio Vargas, após o fracasso da Constituição de 1934, e o
ascendente movimento operário, tinha uma natureza civil e foi instituído com a Carta de 1937,
com o objetivo de julgar crimes políticos, que evoluíram de posições políticas, não apenas antioligárquicas, mas de radical compromisso socialista.
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respeitosa mesmo nas áreas de prisão, o que deu origem incipiente à questão
da proteção da dignidade humana.
O episódio de relevo histórico exemplar foi a atuação do católico
humanista e jurista Sobral Pinto †† na defesa do líder comunista insurgente
Carlos Prestes‡‡, encarcerado pelo governo, após o movimento que veio a ser
denominado Intentona Comunista, dominante em quartéis do Rio de Janeiro e
Nordeste. Os atos e atitudes de F. H. Sobral Pinto, naquele momento articulado
com a resistência liberal, contribuíram decisivamente para denunciar as
precárias condições de prisão de Carlos Prestes, e seus companheiros, bem
como os excessos repressivos no tratamento a comunistas presos pelo
governo do Estado novo. §§
Esta especialíssima atuação de Sobral Pinto abriu os tantos e
sucessivos espaços para sua atuação na defesa dos direitos políticos de
ativistas encarcerados e constrangidos, o que nos permite afirmar que estes
atos, e atitudes se lhe consagraram como o precursor da defesa e da proteção
dos direitos humanos no Brasil, tendo, muito especialmente, consolidado sua
ação futura no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e no Conselho Federal
da OAB. *** A posição do ilustre advogado permitiu reconhecer que os direitos
humanos estão não propriamente vinculados ao que tradicionalmente
denominamos de direitos individuais, como observaremos, mas, à violação pelo
Estado da integridade interior da pessoa humana. É injustificável, neste
sentido, que, estando o cidadão cerceado nos seus atos, venha a sofrer ainda,
violações sucessivas e conseqüentes, como a tortura e os diferentes tipos de
humilhação. Na dimensão conceitual dos direitos humanos, mais grave que a
††
Heráclito Fontoura Sobral Pinto, nasceu em Barbacena, em 5 de novembro de 1893. Na
introdução de Ary Quintela, ao seu livro citado, observou que Sobral Pinto afirmava que "a paz
é o direito obedecido até as últimas conseqüências". O mesmo Sobral afirma que, como havia
apenas as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, estudou na Faculdade de Ciências
Jurídicas e Sociais que funcionava no Colégio Pedro II, na Rua Larga de São Joaquim,
transferida depois para a Escola de Comércio dos irmãos Mendes de Almeida, no velho Edifício
da Casa Real, na Praça XV de Novembro, "lá fiz o 1º e o 2º anos de Direito, quando os
professores compraram o prédio no Catete". As suas conclusões não fazem observações sobre
o bacharelado, mas esta escola, em 1915, se fundiu com a Faculdade Livre de Direito e criouse a Faculdade Nacional Direito, em 1915, oficializada em 1920. BASTOS, op. cit. p. 177.
‡‡
Carlos Prestes, viera a aderir após a Coluna ao Partido Comunista do Brasil, fundado em
1922, mesmo ano da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, que inaugurou o movimento
tenentista, onde estivera também envolvido, juntamente com os tenentes de futuro
compromisso político liberal Juarez Távora e Eduardo Gomes, que vieram a ser candidatos à
Presidência da República e deram sustentação militar à resistência liberal-democrática que
sucedeu aos anos do Estado novo (1937 / 45) e contribuíram para a promulgação da
Constituição de 18 de setembro de 1946
§§
Sobral Pinto praticou vários atos de defesa de Luis Carlos Prestes, dentre elas a carta à sua
irmã Natalina (11/01/37), e depois a Atarquiniu Ribeiro, Presidente do Conselho da OAB
(12/01/37), assim como aceitou a defesa de Harry Berger, que foi o ato pioneiro de tantos que
solicitavam autorização para penetrar na cela de Carlos Prestes, e tratamento digno a Harry
Berger, dirigidas ao presidente do Tribunal de Segurança Nacional - TSN, Raul Machado
(29/01/37). Produziu tantas outras cartas sobre temas e defesa destes presos políticos, que,
efetivamente, se concluíram com a apelação de Harry Berger (na verdade Arthur Ernest Ewert),
de 24 de maio de 1937 e de Luis Carlos Prestes, em 24 de julho de 1937. PINTO, F. H. Sobral.
Por que defendo os comunistas. Belo Horizonte. UCMG/Editora Comunicações 1979, páginas
introdutórias.
***
Bastos, Aurélio Wander. A OAB e o Estado de Direito no Brasil.. Lumen Júris / PqJuris, 2009.
5
injustiça é a iniqüidade, como especial forma de mutilar aquele que está
limitado pela ação policial nos seus próprios atos.
Neste período, o Conselho Federal da OAB, mesmo vinculado aos
órgãos de Estado, também denunciou se não incisivamente, abertamente, nas
reuniões do Conselho, e na imprensa, as violências de Estado, designando
representantes advogados para os serviços de defesa no TSN e outras
instâncias. Recém criada, a OAB ainda agia com muitas cautelas e mais estava
voltada para a sua organização interna. Neste episódio citado, todavia, não lhe
faltou disposição para se manifestar, o que se lhe coloca numa posição de
efetiva ação defensiva da pessoa humana, que, no tempo futuro, contribuirá
para marcar a sua posição na defesa dos direitos humanos.
Imediatamente ao fim da Segunda Guerra Mundial, que coincide com o
término do governo Getulista, que evoluiu da Revolução de 1930,
aprofundaram-se os debates sobre a constitucionalização do Estado brasileiro.
Dentre as tantas discussões significativas para a defesa e proteção dos direitos
da pessoa humana, evoluíram neste período os debates sobre o projeto de lei
no Congresso Nacional que modificava os estatutos da OAB, diminuindo os
seus vínculos com o Estado e abrindo os seus objetivos para a defesa dos
direitos de cidadania, e o projeto de criação do Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana – CDDPH, apresentado pelo Deputado liberal
Bilac Pinto†††.
Resguardadas as conquistas trabalhistas do período getulista, após
séculos de escravidão e injustiça social com as populações rurais, que
sobreviviam na mais visível indignidade, imposta, nos grandes latifúndios,
evoluíra Getúlio Vargas, no seu governo para políticas de proteção social, o
que não ocorreu com o campesinato rural. Preocupar-se, entretanto, com a
degradação das condições de vida de grande parte da população brasileira era
uma atitude ainda pouco difundida, mas com o advento dos grandes debates
parlamentares após o período que imediatamente sucedeu à Segunda Guerra
Mundial, o tema dos direitos humanos alcançou, não apenas as organizações
internacionais, na forma de tratados e convenções, mas também os debates na
Câmara dos Deputados e no Senado Federal após a Promulgação da
Constituição de 1946, e em muitas organizações da sociedade civil brasileira.
Genericamente, predominava a convicção, mesmo que embrionária, de
que todas as pessoas, mesmo as mais desafortunadas, deveriam ser tratadas
com respeito irrestrito, e a dignidade de todos, sem exceção, deveria ser
salvaguardada a todo custo. Este novo quadro político impôs a ampla
discussão dos documentos que vinham sendo produzidos internacionalmente
sobre a proteção aos direitos humanos, especialmente na Organização das
Nações Unidas-ONU e das Cartas que serão objeto deste artigo juntamente
com o texto do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana-CDDPH.
Finalmente, neste período, todavia, interpuseram-se muitas resistências
institucionais, não apenas permeadas pelos veios autoritários da vida civil, mas
também pela emergente doutrina de segurança nacional, defendida pela elite
militar de pós-guerra‡‡‡. Estes grupos, sendo que muitos deles padeciam de
†††
Badaró, Murilo. Bilac Pinto (Olavo Bilac Pereira Pinto): o homem que salvou a República. Rio de
Janeiro. Gryfus. Brasília, DF. Minc, 2010.
‡‡‡
Estes militares, em geral, orbitavam em torno da Escola Superior de Guerra, inspirada no
National War College, criada nos Estados Unidos em 1946, no governo Dutra, comandada
inicialmente por Cordeiro de Farias, defensora do alinhamento direto com os Estados Unidos
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significativa influência liberal, resistiam, todavia, à implementação de políticas
oficiais de proteção aos direitos humanos. Por outro lado, grupos também
liberais e conservadores politicamente mais abertos, e, inclusive, amplas
frações socialistas e trabalhistas, se sensibilizaram com as propostas das
políticas de defesa e proteção dos direitos humanos, como finalidade essencial
do Estado de Direito, o que viabilizou os espaços políticos para absorção
interna dos tratados internacionais sobre direitos humanos e para a
necessidade de se protegê-las institucionalmente no Brasil, o que viabilizou a
discussão do Projeto de Lei de criação do CDDPH.
2. Os Documentos sobre Direitos Humanos
2.1. Recuperação Histórica
A história universal da luta pela institucionalização dos direitos humanos
está marcada por vários documentos, e muitos deles foram o resultado e a
consagração de verdadeiras revoluções. A Declaração de Independência
Americana (1776) e a conseqüente proclamação de que todos os homens
foram criados iguais e que são titulares de direitos inalienáveis, estabelecendo,
que, dentre esses direitos, deve-se colocar, em primeiro plano, a vida, a
liberdade e a busca da felicidade, reverteu o epicentro dos direitos. Por outro
lado, a Déclaration des Droits de L’Homme et du Citoyen, votada pela
Assembléia Nacional da França revolucionária, que, ao dispor no seu artigo 1º,
que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, inaugurou a
era dos direitos dos homens. Estas declarações são evidentes provas
referenciais de que as declarações de direito dos cidadãos são reações
radicais aos documentos jurídicos do passado (Códigos, Ordenações e
Consolidações), presididos pela exclusiva definição dos direitos dos príncipes e
governantes, que impunham deveres aos súditos, procurando reconhecer e
definir o direito dos homens, onde as distinções sociais não podem fundar-se
em nada mais do que na utilidade comum §§§.
Historicamente anteriores, outros documentos igualmente relevantes
indicaram o despertar do homem para os seus direitos individuais, tais como: a
Magna Charta Libertatum (1215), imposta ao rei João Sem Terra; a Petition of
Rights (1628), exigida pelas comunas a Carlos I para o reconhecimento de
antigas liberdades nacionais; a Lei sobre o Habeas Corpus (1679) **** , que
na questão da Guerra Fria. Efetivamente, a denominada Guerra Fria coincide exatamente com
o período de implantação da Doutrina Truman, criada por Harry Truman, Vice de Franklin
Roosevelt, que faleceu em 1945. Criada em março de 1947, a Doutrina Truman rompia
abertamente com a União Soviética e transformava o comunismo, não apenas em inimigo
ideológico, mas também militar. Deste período, como mostramos, veio a cassação do Partido
Comunista Brasileiro pelo TSE e, posteriormente, a cassação dos deputados eleitos na
legenda, assim como, neste mesmo período, os Partidos Comunistas Francês e o Italiano
foram expulsos das coalizões governamentais, respectivamente, com o partido gaullista e com
a democracia cristã.
§§§
Anais da XII Conferência da Ordem dos Advogados do Brasil. A Profissão do Advogado e a
OAB na Sociedade Brasileira. 2 a 6 de outubro de 1988. Porto Alegre, p. 196.
****
Estes estudos sobre as eras e gerações do direito podem ser verificados em BOBBIO,
Norberto. A Era dos Direitos (edição ampliada). Rio de Janeiro: Campus, 1992.
7
garantia a liberdade física, o direito de ir, ficar e vir; o Bill of Rights (1689), que
limitava o poder real inglês; o Act Settlement (1701), que dispunha sobre o
consentimento prévio do Parlamento para as declarações de guerra, assim
como dispunha sobre o impedimento do rei para destituir magistrados. Estes
documentos precursores evoluíram na dimensão suficiente para gerarem, no
tempo histórico, as declarações revolucionárias da modernidade que se
transformaram nos tratados e leis contemporâneas sobre os direitos humanos.
††††
Os anos que sucederam a Revolução Francesa, todavia, é que
efetivamente marcaram os fundamentos e o desenvolvimento dos direitos de
primeira geração como naturais e inalienáveis, que, decisivamente, influíram na
legislação penal (e processual penal, mais tarde), procurando evidenciar
também o espaço e os limites das garantias individuais, e da legislação civil (e
processual civil, mais tarde) que procuraram demonstrar os espaços e limites
do direito de propriedade, uma esdrúxula figura no contexto destes direitos
imateriais. Estes movimentos de codificação recuperaram, em muitas
circunstâncias, o velho Direito romano, não tanto, ou quase muito, em razão
dos direitos individuais (pessoais), mas principalmente em razão do direito de
propriedade e sucessão‡‡‡‡. De qualquer forma, na composição dos códigos
estavam sempre presentes os novos paradigmas das declarações de direito,
que o tempo consolidaria nas constituições ou no direito político, e, também, no
Direito Constitucional.
No Brasil, este fenômeno não foi muito diferente; apesar da ação
interventiva e moderadora da Constituição Imperial de 1824, estes direitos
individuais, precursores da formatação conceitual dos direitos humanos,
estiveram sempre em destaque e proteção em nossas constituições, excetuado
os interregnos em que o Estado de Direito foi trespassado pelos movimentos
ou pelo estado de exceção. Em nosso estudo sobre As Eras do Direito no
Brasil §§§§ , procuramos mostrar que estes direitos de primeira geração,
imediatamente à Primeira Guerra, tomando em referência a formatação do
constitucionalismo de Weimar (Alemanha, 1919) ***** , iniciou sua etapa de
reconhecimento de direitos sociais, (reconhecidos direitos de segunda geração)
que, muito se aprofundaram, no Brasil e na Europa, com o advento dos anos
de 1930 e, inclusive, nos Estados Unidos, com as políticas de Welfare State,
††††
Fernando Henrique Cardoso, comentando lucidamente a obra citada de Norberto Bobbio,
observa que a licença moral que é dada aos poderosos era para que realizassem grandes
feitos ou grandes coisas, tema que perpassa a sua obra (A Arte Política), deixando antever que
nem ao menos estavam obrigados a cumprir a palavra e o pacto em que se empenhava.
CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: historia que vivi. Coord. Editorial: Ricardo A.
Setti. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006 p. 45-46.
‡‡‡‡
BASTOS, Aurélio Wander. Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1992.
§§§§
Ver BASTOS, Aurélio Wander. As Eras dos Direitos no Brasil.Revista da ACAT Associação Carioca de Advogados Trabalhistas, ano 1, nº1, (jan. jun.), 2006.
*****
A República de Weimar, proclamada imediatamente ao término da Segunda Guerra
Mundial, no contexto internacional do Tratado de Versailles, que consagrou a vitória dos
aliados (Inglaterra e França) contra a Alemanha, construiu o mais importante e pioneiro
documento constitucional de 2ª geração, que serviu de base aos direitos sociais consagrados
as demais Constituições modernas.
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iniciados em 1929, cuja maior expressão foi o New Deal, de F. D. Roosevelt,
abrindo novos espaços conceituais, que deram uma dimensão de direitos
humanos aos direitos individuais, cujos propósitos influíram nas políticas
institucionais brasileira futuras.
Esta virada deveu-se principalmente aos horrores da Segunda Guerra
mundial que abriu o conceito de direitos individuais para direitos humanos
como a fórmula possível de se alcançar não apenas os delitos praticados
arbitrariamente contra os cidadãos, mas, também os crimes de extermínio, o
genocídio e os crimes de guerra. Interessantemente, todavia, e desta
passagem extensiva que evoluem os direitos humanos para a proteção aos
direitos da personalidade, hoje reconhecidos em dimensão bastante extensiva.
2.1.1. A Carta das Nações Unidas
A Carta das Nações Unidas, nesta linha de ampliação da proteção dos
direitos humanos, ainda sem que vislumbrasse os direitos da personalidade,
aprovada, em Assembléia Geral das Nações, na cidade de São Francisco, em
26 de junho de 1945, no seu preâmbulo: (...) reafirma(r) a (nossa) fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana,
na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações,
grandes e pequenas; estabelece(r) as condições necessárias à manutenção da
justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes
do direito internacional; promove(r) o progresso social e melhores condições de
vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade.
Este documento, de inquestioná-vel força, imediatamente promulgado ao
término da Segunda Guerra Mundial, traduz, na plenitude possível, para as
circunstâncias dos tempos, um projeto de proteção aos direitos humanos que
extrapola aos estritos limites do individualismo racionalista, ambiente natural
dos direitos individuais, para alcançar visíveis aberturas com relação aos
direitos fundamentais apoiados no mais amplo conceito de liberdade. Esta
Carta marca, na história da humanidade, o momento referencial da mudança
de qualidade nas expectativas de redefinição dos poderes do Estado e dos
organismos internacionais alocados no novo contexto internacional, para evitar,
não apenas as violências contra os indivíduos, mas contra grupos humanos ou
indivíduos por razões políticas, raciais, religiosas ou ideológicas.
A Carta das Nações Unida dispõe, em cumprimento às dimensões de
sua grandeza, vários dispositivos, que, direta e explicitamente, se referem aos
direitos humanos como novo patamar protetivo do Estado e das próprias
perspectivas da ação afirmativa do cidadão. No reconhecimento desta nova
sistematização dos direitos, no artigo 1o, item 3, dispõe, que, à ONU compete:
realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando
o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para
todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Este artigo, realmente, abre uma nova dimensão na concepção de
Direito, fugindo do restrito racionalismo subjetivista, para tomar, como variável
conceptiva, situações objetivas, buscando proteção para os direitos humanos
nos níveis econômico, social e político, bem como relacionando direitos
humanos com liberdades fundamentais, sem qualquer distinção de raça, sexo,
língua ou religião. Esta mesma posição e orientação prevaleceu na redação
9
seguinte, artigo 13, alínea 1º, letra b: Fomentar a cooperação internacional no
domínio econômico, social, cultural, educacional e da saúde e favorecer o
pleno gozo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, por parte de
todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Como se verifica, a discussão sobre direitos humanos, na verdade,
evolui de duas linhas fundamentais que predefinem o direito e as
conseqüências punitivas de seu descumprimento: o apoio à proteção das
liberdades individuais fundamentais e a punição a qualquer discriminação de
raça, sexo, língua ou religião. Estas duas variáveis, combinadamente, se
superpõem ao tradicional papel do Estado de Direito como agente
intermediador de conflitos, o papel de autor - promotor da estabilidade social, e,
também, o papel de agente - promotor do bem-estar social. Este quadro, de
qualquer forma, permite antever a interveniência do estado na repressão aos
atos discriminatórios de qualquer espécie praticados, em qualquer situação, por
agentes do Estado, e por indivíduos isoladamente ou grupos sociais.
É claro que a discussão colocada neste patamar avança,
significativamente, no sentido de um novo conceito de direito aberto às
situações objetivas da vida, e, não apenas, intersubjetivas, sobrepondo-se ao
conceito subjetivista de proteção dos direitos naturais (racionais) individuais e
do direito positivo (escrito), imprescindível à proteção das ações do Estado
contra o próprio indivíduo. Nesta linha discursiva, o que se verifica, na
ampliação do conceito originário de direitos (fundamentais) individuais, é que o
Direito, enquanto ordem jurídica, precisa reconhecer que aquele que pode
fazer juridicamente, não pode faze-lo além dos limites de sua própria
competência, assim como a expectativa de direito não se realiza, apenas, em
função do princípio da isonomia, mas também em função do princípio da
equidade, onde se reconhece que os iguais tem direitos iguais e não podem
receber tratamento diferenciado.
Neste sentido, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, na
forma do art. 62, inciso II, tem funções e poderes para: (Poderá) fazer
recomendações destinadas a assegurar o respeito efectivo dos direitos do
homem e das liberdades fundamentais para todos, abrindo exatamente esta
dimensão objetiva do conceito de direitos humanos. O artigo 76 da Carta define
como finalidade básica da tutela promovida pelas Nações Unidas encorajar o
respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos,
sem distinção de raça, sexo, língua ou religião, e favorecer o reconhecimento
da interdependência de todos os povos. Nesta mesma linha, o artigo 55 da
Carta das Nações completa que estes pressupostos dos direitos humanos são,
na verdade, também, pressupostos do princípio da igualdade de direitos (das
nações) e da autodeterminação dos povos.
2.2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, de 10 de
dezembro de 1948†††††, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, alcançará,
†††††
Ver, sobre a influência dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos
no Brasil, especialmente, TRINDADE, Antonio Augusto. A Proteção Internacional dos Direitos
Humanos e o Brasil (1948/1997). 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 29 e
segs. Neste livro estão indicadas significativas contribuições de juristas brasileiros sobre a
criminalização de práticas com os direitos humanos, tais como Gilberto Amado (sobre
10
com maior precisão, a exata definição conceitual dos direitos humanos, muito
especialmente no seu preâmbulo, quando observa: que o reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo, (assim como) que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos
resultam em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que
o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de
crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.
Este texto introdutório, de qualquer forma, toma como referência
existencial do conceito de direitos humanos o conceito existencial de dignidade
da pessoa humana como direito inalienável e fundamento da liberdade, da
justiça e da paz, assim como reconhece que os atos de violência e barbárie
(praticados em qualquer circunstância, inclusive, pelo Estado) ferem a
consciência da humanidade. Este texto traz para o mundo jurídico uma nova
variável discursiva, até aquele momento desprezada pelas constituições, pelos
códigos e pelas leis: o conceito de preservação da dignidade da pessoa
humana como pressuposto constrangedor dos atos, inclusive repressivos de
Estado, ampliando o conceito de Estado de Direito, não apenas para evitar
eventuais conexões com os autoritarismos de fundamento normativo, mas
conecta-lo sempre com os seus imprescindíveis fundamentos democráticos.
Esta linha diretiva, aliás, confirmada no próprio preâmbulo da DUDH,
observa que é essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado
de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à
rebelião contra a tirania e a opressão (o Estado de exceção). Nesta última
observação, todavia, é que vamos identificar a imprescindibilidade da
democracia para o efetivo reconhecimento dos direitos humanos no Estado de
Direito. É exatamente a democracia como antinomia da tirania e da opressão
que torna possível a articulação combinada do Estado de Direito, como Estado
voltado para a garantia dos direitos individuais e a proteção dos direitos
humanos.
Para alcançar estes fins podemos identificar, nos dispositivos da DUDH,
as tendências que resguardam os direitos individuais clássicos, como o direito
à vida, o direito à liberdade e à segurança pessoal (direitos de primeira
geração), aos se acresceu no quotidiano da prática jurídica o direito de
propriedade, bem como, por outro lado, os direitos sociais, força remanescente
de Weimar e de outros documentos da mesma época. Estes documentos
estavam essencialmente preocupados com o trabalho e as condições humanas
de sobrevivência (direito de segunda geração) e, ainda, os direitos humanos,
que traduzem as novas inclinações jurídicas que sucedem à Segunda Guerra,
basicamente voltados para a proteção das liberdades fundamentais, assim
como, também, estão presentes, na Declaração, a proteção aos direitos
genocídio, 1953), mas, principalmente, o ex-presidente da OAB, Levi Carneiro (1949), à época
Consultor Jurídico do Itamarati, em resposta a circulares sobre os travaux préparatoires da
DUDH (1948), quando defendeu o estabelecimento de órgão judicial internacional autônomo,
específico, perante o qual os indivíduos possam recorrer contra os estados para garantia de
seus direitos (p. 34). Ver, ainda, LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um
diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 170 a 183 e
CARNEIRO, Levi. O Direito Internacional e a Democracia. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco,
1945, p. 106 a 196.
11
coletivos, enquanto dimensões extensivas dos direitos individuais, como
direitos homogêneos, embora menos evidentes e mais frágeis na redação do
texto. Naquele momento, todavia, estes direitos mais se evidenciavam como
direitos políticos do que, propriamente, como direitos civis (direitos de terceira
geração), enquanto novos direitos civis.
Assim podemos classificar na DUDH os direitos individuais, os direitos
existenciais, direitos sociais e direitos coletivos e defesas. No primeiro caso,
basicamente voltado para proteção dos direitos individuais clássicos,
encontramos os seguintes dispositivos: Toda pessoa tem direito à vida, à
liberdade e à segurança pessoal. (Artigo 3º) Todos são iguais perante a lei e
têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei (Artigo 7º). Toda
pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio
efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam
reconhecidos pela constituição ou pela lei. (Artigo 8º) Toda pessoa tem direito,
em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal
independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do
fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. (Artigo 10 § 1). Toda
pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em
outros países (Artigo 14). Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer
restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio
e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua
duração e sua dissolução. § 2º. A família é o núcleo natural e fundamental da
sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. (Artigo 16) § 1º.
Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. § 2º.
Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. (Artigo 17) Toda
pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; (Artigo
18)
No que se refere aos direitos existenciais de forte tendência para
reconhecer a proteção da dignidade humana, enquanto dimensão interior do
homem, a Carta os prioriza nos seguintes artigos: Todas as pessoas nascem
livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e
devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. (Artigo 1º).
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de
escravos serão proibidos em todas as suas formas. (Artigo 4º). Ninguém será
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante. (Artigo 5º). Todos têm direito a igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a
tal discriminação. (Artigo 7º). Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou
exilado. (Artigo 9º. § 1º). Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o
direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. (§ 2º) Ninguém
poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não
constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será
imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era
aplicável ao ato delituoso. (Artigo 11). Ninguém será sujeito a interferências na
sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a
ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei
contra tais interferências ou ataques. (Artigo 12, § 2º ou § 3º). A instrução será
orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do
12
fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais. (Artigo 26)
Os direitos sociais, que historicamente foram primeiro reconhecidos na
Alemanha (devido às conquistas, paradoxalmente, do período Bismarck, e,
posteriormente, com Weimar), mesmo antes do seu Código Civil de 1900 (em
processo diferenciado da França), que codificou os Direitos Civis em 1804 –
Cxbx Napoleón, tiveram também um vasto leque de proteção na DUDH da
perspectiva de proteção dos direitos políticos e da perspectiva de proteção do
trabalho. Dentre tantos, podemos selecionar os seguintes dispositivos: §1º
Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. (Artigo
20). § 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. § 1º.
Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente
ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. § 2 Toda pessoa
tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. § 3o A vontade do
povo será a base da autoridade do governo; (Artigo 21). Toda pessoa, como
membro da sociedade, tem direito à segurança-social (Artigo 22). §1º Toda
pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, (Artigo 23).
Resta, finalmente, concluir, que, nos anos que sucederam a 1948, a
proteção aos direitos humanos adquiriu novas dimensões, principalmente no
que se refere aos direitos existenciais e aos direitos coletivos e difusos. A
discussão pública desses direitos, neste sentido, foram uma marca referencial
na evolução à proteção dos direitos humanos no Brasil. Nesta linha, o Brasil
evoluiu numa posição pioneira à medida que viabilizou juridicamente a Ação
Civil Pública, em 1985, em si, um instrumento processual, mas de amplo
alcance no que se refere à proteção dos interesses humanos implícitos em
coisas de valor inestimável, como o meio ambiente, e bens de valor imemoriais,
como o patrimônio histórico ou bens referenciais da vida coletiva, como
patrimônio público e a moralidade administrativa.
Finalmente, a nossa preocupação final na linha conclusiva deste
trabalho é discutir a influência dos documentos internacionais que analisamos
no processo de criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana – CDDPH, na forma da Lei brasileira nº. 4.319, de 16 de março de
1964, sancionada pelo Presidente João Goulart, somente 15 dias antes do
movimento militar de 31 de março / 1º de abril de 1964, que promoveu o início
do encerramento do ciclo da Constituição de 1946, que fora marcada pela
paradoxal aliança entre os conservadores, militantes pessedistas e os
trabalhistas sindicalistas, quase que imediatamente após a inauguração da
nova capital federal brasileira – Brasília ‡‡‡‡‡ . De qualquer forma, outros
documentos legais de proteção aos direitos humanos no Brasil, direta ou
indiretamente, sofreram a influência dos documentos históricos da Carta da
ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, cujos
dispositivos influíram no projeto e nos debates parlamentares sobre o Conselho
dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH.
‡‡‡‡‡
A mudança da capital federal para Brasília foi fixada pela Lei nº. 3.273, de 1º de outubro
de 1957, e definia que a sua inauguração seria no dia 21 de abril de 1960. Ver sobre esta
questão amplo estudo desenvolvido sobre o tema e as resistências políticas à transferência,
inclusive do Conselho Federal da OAB, in Bastos, Aurélio Wander A Ordem dos Advogados e o
Estado de Direito no Brasil. Lúmen Júris / PqJuris. Rio de Janeiro. 2009.
13
3. A Criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH
O Projeto do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana –
CDDPH foi elaborado com base na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, após uma série de decisões tomadas pela Comissão de Direitos
Humanos da ONU, no biênio 1947/48, promulgada, pela Assembléia Geral da
ONU, em Nova York, no ano de 1948 e ambos documentos referenciais da
política internacional dos direitos humanos§§§§§na Declaração Americana dos
Direitos e Deveres Fundamentais do Homem, promulgada em Bogotá, em abril
de 1948 que especificamente não estudamos neste artigo. O CDDPH tinha
como objetivo fazer dos propósitos destes documentos, bem como do conteúdo
do seu próprio texto, as bases de uma efetiva política de defesa dos homens e
das mulheres contra as brutalidades do Estado e dos seus agentes públicos ou
pessoas privadas. O conjunto destes documentos representava, exatamente,
os novos parâmetros e novos paradigmas dos direitos humanos, gestados nas
assembléias e órgãos internacionais após a Segunda Guerra Mundial,
superando os estritos limites da proteção intersubjetiva dos direitos individuais
como exclusivo propósito do Estado de Direito.
O CDDPH foi criado pela Lei no 4.319, de 16 de março de 1964, como já
observamos, oriundo de projeto do então deputado udenista, de origem liberal
conservadora, Bilac Pinto, e sancionada pelo Presidente João Goulart. O texto
integral da Lei é o seguinte:
Art. 1º Fica criado no Ministério da Justiça e Negócios Interiores o
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Art. 2º O C.D.D.P.H.
será integrado pelos seguintes membros: Ministro da Justiça e Negócios
Interiores, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
Professor Catedrático de Direito Constitucional de uma das Faculdades
Federais, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Presidente da
Associação Brasileira de Educação, Líderes da Maioria e da Minoria, na
Câmara dos Deputados e no Senado. § 1º O Professor Catedrático de Direito
Constitucional será indicado pelos demais membros do Conselho em sua
primeira reunião. § 2º A Presidência do Conselho caberá ao Ministro da Justiça
e Negócios Interiores e o Vice-Presidente será eleito pela maioria dos membros
do Conselho. Art. 3º (...) Art 4º Compete ao Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana: 1º promover inquéritos, investigações e estudos acêrca da
eficácia das normas asseguradoras dos direitos da pessoa humana, inscritos
na Constituição Federal, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres
Fundamentais do Homem (Bogotá no ano de 1948) e na Declaração Universal
dos Direitos Humanos (Assembléia Geral da ONU, em Nova York, no ano de
1948); 2º promover a divulgação do conteúdo e da significação de cada um dos
direitos da pessoa humana mediante conferências e debates em universidades,
escolas, clubes, associações de classe e sindicatos e por meio da imprensa, do
§§§§§
A DUDH foi aprovada por 48 dos então 58 países membros da ONU, sendo que 8 se
abstiveram, 2 estavam ausentes e nenhum votou contra. O representante brasileiro, no
decorrer dos travaux préparatoires, foi Alceu Amoroso Lima, que especialmente se destacou
por singularizar o direito à educação e defender a necessidade de se assegurar a eficácia dos
direitos humanos. Ver, especialmente, ABRANCHES, C. A Dunshee de. Proteção Internacional
dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 13 e segs.
14
rádio, da televisão, do teatro, de livros e folhetos; 3º promover nas áreas que
apresentem maiores índices de violação dos direitos humanos: a) a realização
de inquéritos para investigar as suas causas e sugerir medidas tendentes a
assegurar a plenitude do gôzo daqueles direitos; b) campanha de
esclarecimento e divulgação; 4º promover inquéritos e investigações nas áreas
onde tenham ocorrido fraudes eleitorais de maiores proporções, para o fim de
sugerir as medidas capazes de escoimar de vícios os pleitos futuros; 5º
promover a realização de cursos diretos ou por correspondência que
concorram para o aperfeiçoamento dos serviços policiais, no que concerne ao
respeito dos direitos da pessoa humana; 6º promover entendimentos com os
governos dos Estados e Territórios cujas autoridades administrativas ou
policiais se revelem, no todo ou em parte, incapazes de assegurar a proteção
dos direitos da pessoa humana para o fim de cooperar com os mesmos na
reforma dos respectivos serviços e na melhor preparação profissional e cívica
dos elementos que os compõem; 7º promover entendimentos com os governos
estaduais e municipais e com a direção de entidades autárquicas e de serviços
autônomos, que estejam por motivos poIíticos, coagindo ou perseguindo seus
servidores, por qualquer meio, inclusive transferências, remoções e demissões,
a fim de que tais abusos de poder não se consumem ou sejam, afinal,
anulados; 8º recomendar ao Govêrno Federal e aos dos Estados e Territórios a
eliminação, do quadro dos seus serviços civis e militares, de todos os seus
agentes que se revelem reincidentes na prática de atos violadores dos diretos
da pessoa humana; 9º recomendar o aperfeiçoamento dos serviços de polícia
técnica dos Estados e Territórios de modo a possibilitar a comprovação da
autoria dos delitos por meio de provas indiciárias; 10. recomendar ao Govêrno
Federal a prestação de ajuda financeira aos Estados que não disponham de
recursos para a reorganização de seus serviços policiais, civis e militares, no
que concerne à preparação profissional e cívica dos seus integrantes, tendo
em vista a conciliação entre o exercício daquelas funções e o respeito aos
direitos da pessoa humana; 11. estudar e propor ao Poder Executivo a
organização de uma divisão ministerial, integrada também por órgãos
regionais, para a eficiente proteção dos direitos da pessoa humana; 12. estudar
o aperfeiçoamento da legislação administrativa, penal, civil, processual e
trabalhista, de modo a permitir a eficaz repressão das violações dos direitos da
pessoa humana por parte de particulares ou de servidores públicos; 13.
receber representações que contenham denúncias de violações dos direitos da
pessoa humana, apurar sua procedência e tomar providências capazes de
fazer cessar os abusos dos particulares ou das autoridades por êles
responsáveis. Art 5º O C.D D.P.H. cooperará com a Organização das Nações
Unidas no que concerne à iniciativa e à execução de medidas que visem a
assegurar o efetivo respeito dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais. Art 6º No exercício das atribuições que lhes são conferidas por
esta lei, poderão o C.D.D.P.H e as Comissões de Inquérito por êle instituídas
determinar as diligências que reputarem necessá-rias e tomar o depoimen-to
de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, inquirir
testemunhas, requisitar às repartições públicas, informações e documentos e
transportar-se aos lugares onde se fizer mister sua presença. Art 7º As
testemunhas serão intimadas de acôrdo com as normas estabelecidas no
Código de Processo Penal. Parágrafo único. Em caso de não comparecimento
de testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao Juiz
15
Criminal da localidade em que resida ou se encontre na forma do art. 218 do
Código de Processo Penal. Art 8º Constitui crime:I - Impedir ou tentar impedir,
mediante violência, ameaças ou assuadas, o regular funcionamento do
C.D.D.P.H. ou de Comissão de Inquérito por êle instituída ou o livre exercício
das atribuições de qualquer dos seus membros. Pena - a do art. 329 do Código
Penal. II - Fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade como testemunha,
perito, tradutor ou intérprete perante o C.D.D.P.H. ou Comissão de Inquérito
por êle instituída. Pena - a do art. 342 do Código Penal. Art 9º No Orçamento
da União será incluída, anualmente, a verba de Cr$10.000.000,00 (dez milhões
de cruzeiros), para atender às despesas de qualquer natureza do Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Art 10. A presente lei entrará em vigor
na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Brasília, em
16 de março de 1964; 143º da Independência e 76º da República.
Como se verifica, os dispositivos gerais desta Lei representaram um
significativo avanço na definição de políticas de enfrentamento aos atos e
violações dos direitos da pessoa humana com o objetivo de protegê-la, e
foram, essencialmente, inspirados na imprescindível necessidade de os povos
guardarem-se das violências dos governos autoritários que antecederam e
promoveram a Segunda Guerra Mundial. Os documentos internacionais neste
sentido, produzidos, ainda, sob os horrores da Segunda Guerra Mundial,
decisivamente influenciaram a lei brasileira que criou o CDDPH, especialmente
o inc. I do artigo 8º, visando a resguardar a sua imprescindível eficácia para
viabilizar as condições pacificas de convivência.
Neste contexto, independentemente de regras de conduta e prefixação
de competências, a Lei cria um catálogo das condutas criminosas,
procedimentos de apuração e sanções punitivas. Assim, por exemplo, na
preocupação extrema de resguardar sua própria funcionalidade, o supra
referido inciso dispõe que constitui crime impedir ou tentar impedir, mediante
violência, ameaça ou assuadas, o regular funcionamento do CDDPH ou de
Comissão de Inquérito por ele instituída ou o livre exercício das atribuições de
qualquer dos seus membros. Este dispositivo, como se pode verificar,
representava uma visível contra-ameaça a ações repressivas e violentas do
Estado, demonstrando a imprescindibilidade da organização democrática para
se implementar políticas efetivas de proteção dos direitos humanos.
Mais especificamente, retomando o nosso tema, é impossível
desconhecer, que desde o inicio da discussão do projeto na Câmara dos
Deputados, o propósito essencial era implementar uma política nacional de
direitos humanos, como resposta à curva ascendente do autoritarismo
institucional no Brasil, vinculado, sempre, às políticas de compressão dos
direitos humanos. Por outro lado, não podemos esquecer, até mesmo tendo em
vista a preocupação central de nosso trabalho, que as políticas de proteção aos
direitos humanos, não estão, tão somente, vinculadas ao cumprimento interno
das políticas internacionais de direitos humanos, assim como não podemos
desconhecer que, internamente, este foi um significativo esforço do
pensamento liberal-democrático no Brasil, em aliança com o pensamento
político ideológico da esquerda democrática.
Todavia, a natureza epistemológica desta Lei, que se enquadra na
evolução do pensamento de origem liberal-democrática, não coincidia com os
pressupostos das políticas de segurança nacional, emergente nos centros de
estudos e unidades comprometidas com o pensamento autoritário moderno,
16
profundamente permeado pelo anticomunismo e pela concepção teórica da
Guerra Fria. Politicamente, não há como desconhecer, por conseguinte, que
brotam da Segunda Guerra Mundial duas grandes variáveis, como inicialmente
observamos: os projetos de implementação de leis de proteção dos direitos
humanos, na linha defensiva dos autoritarismos, cujo símbolo marcante foi a
figura de Franklin Delano Roosevelt, que faleceu ao fim da Segunda Guerra
Mundial, já no seu quarto mandato de Presidente da República do Estados
Unidos da América, e os projetos de construção do Estado de segurança
nacional, mais sensíveis aos autoritarismos desenvolvimentistas, ou na palavra
de Célio Borja, aos governos autocráticos****** .
Esta situação dilemática, de qualquer forma, no curto prazo, colocou em
xeque o liberalismo jurídico, como epistemologia de um projeto de
desenvolvimento e, naquele momento histórico, no médio prazo, a própria
evolução do projeto reconstituinte, demonstrando a sua fragilidade política para
enfrentar o intervencionismo estatista-trabalhista, e, no quase imediato
fracasso do projeto de abertura econômica do governo revolucionário de
Castelo Branco, com o economista liberal Roberto Campos no Ministério da
Economia. O estatismo autoritário e desenvolvimentista dos militares,
colocados como rumos futuros do Brasil, estava posto entre estas duas
vertentes do intervencionismo: o intervencionismo comprometido com as
políticas de direitos sociais e reformas de base, e o intervencionismo
comprometido com as políticas de desenvolvimento com segurança, no
contexto conceptivo da Guerra Fria. Este modelo, na verdade, foi uma resposta
ao fracasso do seu projeto de fortalecimento das políticas de mercado;
sucumbiu ao mesmo estatismo desenvolvimentista, apoiado em políticas
autoritárias, que, em rapidíssimo prazo, evoluíram para práticas repressivas
aos direitos humanos.
Os sucessivos acontecimentos de relevância política, a violência
ostensiva contra a ordem jurídica ou, mais especialmente, contra os princípios
jurídicos clássicos, do Estado de Direito, e na proteção dos direitos individuais,
a evolução do autoritarismo político e da arbitrariedade policial, provocaram,
não uma sutil evolução da tradicional compreensão formal da ordem jurídica,
mas um visível e ostensivo reposicionamento político. Este reposicionamento
sobre os conceitos clássicos de Estado, sempre reconhecidos como ordem
formal e/ou ordem de exceção, independentemente de instaurar uma avaliação
jurídica e política sobre a relação entre Estado e ordem jurídica (escrita),
superpôs às ideologias mais abertas, sempre acompanhado dos ideais do
liberalismo jurídico, uma nova e verdadeira ideologia política, comprometida,
essencialmente, com a defesa dos direitos humanos, conforme a formatação
dos documentos internacionais e a Lei da Comissão de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana - CDDPH.
A questão dos direitos humanos, e da proteção e defesa do cidadão
contra os abusos do Estado (do poder) e da autoridade, de qualquer forma, já
estavam colocadas como a alternativa histórica da ação política nacional, na
falência do tradicional modelo liberal-formal, e como paradigma de uma nova
ordem democrática, que tivesse o suficiente fôlego, não apenas para garantir
******
Conferência promovida pelo ex Ministro da Justiça e comentada por Rosalina Corrêa de
Araújo, em Seminário realizado pela FIRJAN / IAB / UCAM intitulado Aspectos Atuais da
Constituição Brasileira, realizado em 29 de setembro de 2010, em homenagem ao Relator da
Constituinte Bernardo Cabral.
17
judicialmente a proteção dos direitos individuais, no clássico propósito liberal,
mas, muito especialmente, a abertura para as novas manifestações da
cidadania coletiva e difusa, sufocadas, no primarismo classista, pela ação
repressiva do Estado de segurança nacional, institucionalizado em 1968/69,
especialmen-te na forma da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outu-bro de
1969††††††.
Neste contexto político, rapidamente a questão dos direitos humanos
evoluiu para discursos e manifestações mais visíveis, inclusive porque a
proteção dos direitos humanos, não apenas se firmara como propósito
internacional, mas também, estava, agora, ratificado, desde a promulgação da
Lei no 4.319, de 16 de março de 1964, em tempo exatamente anterior ao golpe
militar. Todavia, independentemente das extremas dificuldades para o
funcionamento do CDDPH, em virtude da situação de excepcionalidade e
violência que presidiu as relações entre vencedores e vencidos, após o período
que sucedeu a 31 de março de 1964, a situação nunca demonstrou maior
estabilidade. O Decreto nº 63.681, de 22 de novembro de 1968, que regulava o
funcionamento do CDDPH, foi editado imediatamente antes do Ato Institucional
nº 5, de 13 de dezembro de 1968.
De qualquer forma, se, por um lado, o Decreto deu cumprimento, afinal,
à Lei no 4.319/64, provocou, se não inexplicavelmente, coincidentemente, a
onda repressiva que sucedeu ao 13 de dezembro, provocando uma
radicalização de todos os movimentos comprometidos com a instalação do
estado de direito, com a nova proposta democrática e com o socialismo.
Finalmente, o tema dos direitos humanos evoluiu, neste contexto, se não
apenas pelas próprias circunstâncias do fechamento autoritário do estado, pela
radicalização das propostas políticas alternativas.
Conclusão
A Constituição brasileira de 1988 não exatamente elegeu os Direitos
Humanos em seus títulos ou capítulos, preferindo, como procuramos
demonstrar neste artigo, definir os espaços de proteção dos direitos individuais
e dos direitos coletivos, bem como dos direitos sociais, como direitos e
garantias fundamentais, referindo-se apenas explicitamente à prevalência dos
Direitos Humanos nas relações internacionais. De qualquer forma, isto não
significa que os Direitos Humanos não sejam exatamente aquilo que a
Constituição denomina de direitos e garantias fundamentais, mas, como já
observamos, os direitos individuais e coletivos são manifestações tipológicas
dos Direitos Humanos. Da mesma forma, sem a explicitude necessária, até
††††††
Esta Emenda, na verdade, incorporou ao mutilado texto liberal da Constituição de 1967
os propósitos intervencionistas do Estado de Segurança Nacional, alterando a estrutura
essencial da Constituição, viabilizando, juridicamente, o esdrúxulo Estado (autoritário ou de
exceção) de direito que viabilizou o "famoso" golpe no golpe. A edição desta Emenda, em 17
de outubro de 1969, pela junta governativa (Augusto Rademaker, Aurélio Lyra Tavares e
Marcio Souza Melo) não foi, por conseguinte, nem ao menos, como as outras emendas
seguintes (27 ao todo), votada no Congresso Nacional. Com sua edição, todavia, cessaram os
atos adicionais (17 ao todo, sendo o último em 14 de outubro de 1969), o que não impediu a
sucessão de emendas de iniciativa do Presidente da República (inc. II, art. 47). A Emenda de
nº 1, de 17 de outubro de 1969 (DOU de 20/10/1969) republicada em 30 de outubro de 1969,
chegou a alterar quase todos os artigos da Constituição de 1967.
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porque essa linguagem não era de todo utilizada à época de sua promulgação,
deixou implícita a titulação da proteção dos direitos existenciais nos capítulos
sobre os direitos individuais, o que significa, todavia, que, se os direitos
existenciais não estão explicitamente tipificados, eles o estão como direitos
individuais.
Todavia, nos seus fundamentos preâmbulares, explicitamente dispõe
que os direitos sociais e individuais no Estado democrático apóiam-se numa
sociedade sem preconceitos, assim como a discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais será punida na forma da lei. Neste sentido, a
negação dos preconceitos, em qualquer das suas formas de ocorrência, e, a
manifestação da discriminação, em qualquer das suas formas de ação, na
Constituição, converteram-se nos fundamentos existenciais da dignidade da
pessoa humana, o que deixa em plano especialíssimo a proteção ao que temos
procurado denominar de direitos existenciais, que se manifestam sempre que a
autoridade ou qualquer cidadão violam a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assim como, e neste sentido a Constituição é bastante
incisiva, na condenação da tortura, origem da tipificação dos Direitos Humanos,
como prática iníqua e do racismo como manifestação combinada do
preconceito e da discriminação.
Neste sentido, a construção do catálogo de direitos fundamentais é um
processo evolutivo do conceito de Direitos Humanos, que, por sua vez evolui
do catálogo dos direitos individuais, que sugere a catalogação dos direitos
sociais coletivos e difusos e dos direitos existenciais. Assim, os Direitos
Humanos mais poderíamos classificar como gênero conceitual que preside três
catálogos de direitos que entre si se completam como direitos fundamentais
constitucionais: os direitos individuais, os direitos existenciais e os direitos
sociais coletivos e difusos, manifestações classificatórias diferenciadas dos
direitos humanos.
Historicamente, os direitos individuais primeiro se manifestaram como
direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade, sempre assentados no
princípio da igualdade de direitos. A esta amplíssima vertente dos direitos
individuais somou-se como direito individual o direito de propriedade, como
herança atávica das origens do direito moderno, que se beneficiou dos
institutos protetivos dos direitos individuais, não apenas na perspectiva das
formulações substantivas, mas também processuais.
Foi a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 1948 que viabilizaram novas situações protetivas dos
Direitos Humanos, que, não apenas, buscaram proteger direitos interiores ou
existenciais do homem, como também as dimensões protetivas alcançaram
espaços exteriores extensivos procurando proteger direitos de natureza social,
coletiva e difusa. No Brasil, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana - CDDPH, que evoluiu destes documentos, não propriamente explicita
as categorias indicadas nos documentos internacionais, mas não deixa de
manifestar que a ele concerne a iniciativa e a execução de medidas que visem
assegurar o efetivo respeito dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais.
Finalmente, a Constituição brasileira, promulgada vinte e quatro anos
depois da criação do CDDPH, e, vinte anos após as restrições que foram
impostas ao próprio Conselho, com a instalação do Estado de segurança
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nacional, evoluiu significativamente na definição dos direitos e garantias
fundamentais como manifestação constitucional dos Direitos Humanos.
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DIREITOS HUMANOS E POLÍTICA Origens e Formação dos Direitos