DIREITOS HUMANOS E POLÍTICA Origens e Formação dos Direitos Fundamentais no Brasil ** Aurélio Wander Bastos Professor Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Candido Mendes. Advogado. Doutor em Ciência Política Introdução Este artigo, não propriamente, analisa o grande dilema ideológico que presidia a vida política brasileira, nos anos que antecederam e sucederam 1964, marco político referencial da história do Estado brasileiro moderno, mas a implementação de políticas sobre direitos humanos, nos seus diferentes matizes, num quadro de confronto traduzido nos projetos de democracia com desenvolvimento e desenvolvimento com segurança (ou segurança com desenvolvimento, para seus mais radicais defensores), para o Estado e a sociedade. Neste contexto, as representações discursivas das propostas sobre proteção dos direitos humanos dividiam-se basicamente entre a viabilização dos projetos humanistas de políticas de democratização do Estado, inspiradas nos tantos tratados internacionais sobre direitos humanos, e as ações de fortalecimento do Estado autoritário em divergência com o Estado (formal) de Direito. Na verdade estas duas grandes vertentes de reconstrução do Estado, evoluíram da Guerra Fria, sendo que os projetos de políticas de direitos humanos expressavam o pensamento dos militantes políticos vinculados aos movimentos de fortalecimento democrático e os projetos políticos de segurança e desenvolvimento mais se inclinavam para a defesa das estruturas autoritárias do Estado, como garantia contra os projetos políticos de influência socialista (inclusive aqueles de compromissos internacionais). Neste contexto, como veremos, os projetos políticos de direitos humanos vieram a sofrer muito mais uma grande influência do liberalismo democrático, herdado das propostas ideológicas do iluminismo, do que do pensamento socialista (ou social democrático). Estes projetos de origem liberal-individualista ou comprometidos com o humanismo democrático mais expressavam as tendências das frações ocidentais vitoriosas na Segunda Guerra Mundial, cujo patrono referencial fora F. D. Roosevelt, assim como muitas variantes das tantas frações independentes das esquerdas dissidentes, e os projetos de segurança nacional, todavia, mais traduziam propostas de modelos políticos fechados, na verdade uma posição defensiva das tendências centralistas da fração soviética, também vitoriosa na Segunda Guerra Mundial, cujo patrono referencial fora Joseph Stalin, mas com grande penetração urbana no mundo subdesenvolvido. Desta forma, como se verifica, os tratados internacionais foram elaborados a partir da confluência de posições do liberalismo iluminista e do socialismo democrático, assim como os projetos voltados para a questão de segurança * Texto originariamente preparado para palestra a ser proferida no dia 1 de setembro de 2010, em Manaus, no Curso de Pós-Graduação em Segurança e Direitos Humanos oferecido em convênio com a Associação da Academia de Polícia do Amazonas – ADEPOL / AM e a Universidade Nilton Lins. nacional, na verdade, estavam numa linha de confronto entre os novos autoritarismos, que sucederam a Segunda Guerra Mundial, em algumas situações abertos ao Estado de direito e, em outras, comprometidos com políticas ideológicas centralistas. Finalmente, embora este artigo fique circunscrito à leitura dos tratados influenciados pelo individualismo humanista, e em algumas situações às proposições socialistas e democráticas, procuramos, também, indicar, as novas linhas evolutivas dos direitos humanos, abertas à proteção dos direitos coletivos e difusos e às questões existenciais da pessoa humana, que fortalecem o princípio da dignidade humana como pressuposto das dimensões interiores do homem. 1. Preliminares Históricas A história brasileira está desde seus primórdios, marcada por posturas contrárias à escravização da população indígena† e, também da própria mãode-obra negra. Estas atitudes, todavia, embora historicamente referenciais, não tem qualquer conotação defensiva do moderno conceito de direitos humanos e não traduzem políticas de Estado, mas iniciativas de grupos colonizadores dissidentes da orientação metropolitana e, inclusive, como mais tarde ocorrera, do próprio Estado imperial. Os nossos documentos históricos fundamentais, todavia, sempre estiveram vinculados à questão da defesa dos direitos individuais e do próprio Estado de Direito, pressupostos básicos das posturas ideológicas futuras que vieram a presidir a questão da proteção dos direitos da pessoa humana. Não propriamente a proteção dos direitos da pessoa humana, na história política brasileira, representaram uma exata tradução do conceito de direitos humanos: o primeiro visivelmente deixa a perceber que a pessoa humana tem direitos subjetivos imprescindíveis à proteção do Estado, e o segundo, mais demonstra, em tese, o conceito de direitos humanos num amplo catálogo tipológico. Isto não significa que uma situação se contraponha a outra, mas o conceito de direitos da pessoa humana tem uma dimensão concreta e pragmática mais visível, e o conceito de direitos humanos fica numa dimensão filosófica mais aberta, que pode ser juridicamente traduzida, não apenas na forma de um catálogo de situações protetivas, mas também remanescer como um conceito de alcance extensivo a situações que possam não estar juridicamente definidas. Neste sentido, retomando as nossas observações, as primeiras manifestações concretas, voltadas para a defesa dos direitos da pessoa humana no Brasil, ocorreram, na prática, se não propriamente através de organismos de Estado ‡ , essencialmente de personalidades políticas † Raposo Tavares (1598-1628): Em Busca do Ouro Vermelho e Manuel Beckman (1630-1685): O Império Português Contra as Feridas Coloniais in Ramos, Fábio Pestana (e Marcus Vinicius de Moraes): Eles Formaram o Brasil. São Paulo. Contexto, 2010. Ver também Fernandes Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. São Paulo. Pioneira. 1970 e Holanda, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. São Paulo. Cia. das Letras. 2001. ‡ A Assembléia Constituinte de 1823, que sucedeu a proclamação da independência de 1822, tinha uma visível conotação contrária ao abuso do poder, preocupando-se com o Império Constitucional, o que evidentemente resultou no seu fechamento, e viabilizou a constituição outorgada pelo Imperador, que evoluiu numa linha conciliadora com aberturas jurídicas liberais. Interessantemente, esta Constituição não tinha qualquer manifestação permissiva da escravidão, que, aliás, no Brasil, enquanto referencial jurídico, 2 expressivas e de organizações civis, mais recentemente. Estas manifestações ocorreram na defesa de vítimas da opressão escravagista, que se superpõe aos movimentos federalista e republicano quando se destacaram as personalidades que atuaram no processo abolicionista. Durante o período da primeira República (interessantemente, o manifesto republicano de 1870, lançado em São Paulo, embora se refira a liberdades democráticas e princípios democráticos, não faz qualquer manifestação sobre a abolição da escravidão, o que é explicável porque os republicanos não votaram a favor da Lei do Ventre Livre, e, ao que se diz, inclusive, contra a Lei Áurea, e, também, nunca admitiram o voto dos analfabetos), não temos exatos indicadores de expressivos movimentos de dimensão política vinculados à questão dos direitos da pessoa humana, nem mesmo na defesa dos direitos individuais, resguardados na Constituição de 1891. No ocaso da velha República, todavia, alguns movimentos adquiriram maior expressão como frentes de lutas vinculadas ao combate à opressão rural e oligárquica, e também, embora não expressamente conexos, à defesa do direito de organização do proletariado urbano em processo de ascensão e crescimento. Esta observação demonstra que a questão da proteção dos direitos humanos não exatamente era uma questão política na primeira República, assim como o seu reconhecimento, preliminarmente, não é um diagnóstico sobre a exclusão de direitos (individuais) das populações rurais oprimidas ou das populações proletárias urbanas, mas especificamente no que se refere a questão urbana, estava tomando o caráter de uma luta de classes e ideológica, mobilizada pelo ascendente Partido Comunista Brasileiro, criado em 1922. Coincidentemente, neste período, destacou-se, como agente político rebelado, o Capitão Luis Carlos Prestes, que, num primeiro momento, percorreu o Brasil, na forma da Coluna, que veio a ser denominada pelo seu próprio nome§, com o intuito de reconhecer os espaços territoriais da miséria e remanesce como dispositivo das ordenações manuelinas / filipinas. A Constituição de 1824 aboliu as penas cruéis, a tortura, a marcação com ferro quente, em brasa, no corpo do escravo, figuras comuns modernamente como referencias da ação repressiva dos Direitos Humanos. Essa mesma Constituição proibiu a pena de açoites, mas em seguida o Código Criminal de 1834 estabeleceu a pena de chibata, o que resultou na rebelião comandada pelo marinheiro João Cândido Felisberto. § MEIRELLES, Domingos. As noites das grandes fogueiras: uma história da Coluna Prestes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. Independentemente deste livro, a melhor cronologia sobre a Coluna Prestes pode ser encontrada no livro de SILVA, Hélio e CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. A Marcha da Coluna Prestes 1923/1926. São Paulo, Editora Três Ltda. 1998, p. 7 e 15, onde, inclusive, tem um qualificado arquivo fotográfico. Genericamente, os autores mostram a evolução do movimento no contexto da crise política brasileira que evolui da presidência de Arthur Bernardes, que tinha uma personalidade bastante diferente dos montanheses mineiros. De qualquer forma, o livro oferece interessantes intervenções de Levi Carneiro sobre a tentativa de se impedir a posse, no Rio de Janeiro, de Raul Fernandes, um episódio sempre esquecido na história brasileira. Por outro lado, o livro estuda, também, as rebeliões do Sul do Brasil, de onde, efetivamente, vieram, não apenas os homens, mas muitas das idéias que se somaram ao modernismo do Rio/São Paulo para a construção de um novo Brasil. Na verdade a Coluna Prestes não tinha uma clara ideologia e a sua própria posição contra as oligarquias nem sempre está muito visível, apesar de que, a sua marcha pelo interior do Brasil definitivamente levou-o a tomar consciência do quadro de miséria e opressão do povo do interior do Brasil, o que aumentou a sua sensibilidade para aproximar-se do pensamento marxista que o encaminhou para a militância no Partido Comunista do Brasil (Partido Comunista Brasileiro, depois). 3 da dominação oligárquica rural, que teve mais efeitos de reação militar às oligarquias, do que propriamente de movimento político. O dirigente da Coluna evoluiu, todavia, o que não aconteceu com todos os seus participantes, dos deslocamentos de reconhecimento para posturas de natureza ideológica, o que favoreceu os seus compromissos como militante político voltado para a organização classista do operariado urbano. A participação de Prestes, exceto nos nexos de grande expressão política, não se destinavam à defesa do que modernamente se denominou direitos humanos,como movimento protetivo e defensivo da dignidade humana, que sucede à Segunda Guerra Mundial, mas a ações propositivas de organização do operariado urbano destinado a enfrentar as classe sociais dominantes. Neste sentido, e neste momento histórico, não podemos, como se verifica, fazer uma exata correlação entre o incentivo às lutas de enfrentamento classista e os movimentos em ascenção pela proteção dos direitos humanos, muito embora seja impossível desconhecer que as lutas contra a opressão classista não tenham na sua gênese a preocupação de resguardar a dignidade humana numa dimensão mais social, mas de efeitos individuais. De qualquer forma, do ponto de vista bibliográfico, a identificação teórica deste período, muito se deve ao clássico trabalho de Vitor Nunes Leal, intitulado Coronelismo, Enxada e Voto, um verdadeiro diagnóstico da vida política na primeira República, que, muito traduzia, as condições de dominação política e econômica dos trabalhadores no campo, tomando como ângulo de análise as práticas fraudulentas dos processo eleitorais dos agentes do Poder Executivo e Legislativo. Outros estudos existem sobre o tema, todavia, o que nos importa aqui é apenas demonstrar a desconexão entre as garantias individuais constitucionais e a miséria social da população campesina frente a forma impositiva dos oligarcas. Por outro lado, o operariado urbano, com o crescimento industrial, reivindicava novos direitos de natureza trabalhista o que fortalecia as suas lutas de organização, abrindo espaço para as propostas de bem estar social de significativo alcance residual existencial e individual. Interessantemente, todavia, a questão dos direitos humanos não cresce em função das reivindicações do campesinato e do operariado, mas em função da repressão de Estado (policial) àqueles movimentos de reivindicação trabalhista e organização classista. Neste sentido, do ponto de vista documental, o material mais expressivo desta época que melhor traduz o sufocamento das incipientes lutas pelos direitos humanos, se encontram nos processos que tramitaram no Tribunal de Segurança Nacional - TSN, ** que avaliou judicialmente a repressão aos insurgentes esquerdistas, vítimas de tortura, ameaças e agressões pelo aparelho repressivo do Estado, a partir de 1935. Este movimento foi coordenado pela Aliança Nacional Libertadora, e nos anos que se sucederam à proclamação do Estado Novo, em 1937. Contudo, o movimento não tinha qualquer proposta vinculada aos direitos humanos, mas os seus militantes foram vítimas de agressão policial estatal aos seus direitos de sobrevivência ** Este Tribunal, criado por Getúlio Vargas, após o fracasso da Constituição de 1934, e o ascendente movimento operário, tinha uma natureza civil e foi instituído com a Carta de 1937, com o objetivo de julgar crimes políticos, que evoluíram de posições políticas, não apenas antioligárquicas, mas de radical compromisso socialista. 4 respeitosa mesmo nas áreas de prisão, o que deu origem incipiente à questão da proteção da dignidade humana. O episódio de relevo histórico exemplar foi a atuação do católico humanista e jurista Sobral Pinto †† na defesa do líder comunista insurgente Carlos Prestes‡‡, encarcerado pelo governo, após o movimento que veio a ser denominado Intentona Comunista, dominante em quartéis do Rio de Janeiro e Nordeste. Os atos e atitudes de F. H. Sobral Pinto, naquele momento articulado com a resistência liberal, contribuíram decisivamente para denunciar as precárias condições de prisão de Carlos Prestes, e seus companheiros, bem como os excessos repressivos no tratamento a comunistas presos pelo governo do Estado novo. §§ Esta especialíssima atuação de Sobral Pinto abriu os tantos e sucessivos espaços para sua atuação na defesa dos direitos políticos de ativistas encarcerados e constrangidos, o que nos permite afirmar que estes atos, e atitudes se lhe consagraram como o precursor da defesa e da proteção dos direitos humanos no Brasil, tendo, muito especialmente, consolidado sua ação futura no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e no Conselho Federal da OAB. *** A posição do ilustre advogado permitiu reconhecer que os direitos humanos estão não propriamente vinculados ao que tradicionalmente denominamos de direitos individuais, como observaremos, mas, à violação pelo Estado da integridade interior da pessoa humana. É injustificável, neste sentido, que, estando o cidadão cerceado nos seus atos, venha a sofrer ainda, violações sucessivas e conseqüentes, como a tortura e os diferentes tipos de humilhação. Na dimensão conceitual dos direitos humanos, mais grave que a †† Heráclito Fontoura Sobral Pinto, nasceu em Barbacena, em 5 de novembro de 1893. Na introdução de Ary Quintela, ao seu livro citado, observou que Sobral Pinto afirmava que "a paz é o direito obedecido até as últimas conseqüências". O mesmo Sobral afirma que, como havia apenas as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, estudou na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais que funcionava no Colégio Pedro II, na Rua Larga de São Joaquim, transferida depois para a Escola de Comércio dos irmãos Mendes de Almeida, no velho Edifício da Casa Real, na Praça XV de Novembro, "lá fiz o 1º e o 2º anos de Direito, quando os professores compraram o prédio no Catete". As suas conclusões não fazem observações sobre o bacharelado, mas esta escola, em 1915, se fundiu com a Faculdade Livre de Direito e criouse a Faculdade Nacional Direito, em 1915, oficializada em 1920. BASTOS, op. cit. p. 177. ‡‡ Carlos Prestes, viera a aderir após a Coluna ao Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922, mesmo ano da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, que inaugurou o movimento tenentista, onde estivera também envolvido, juntamente com os tenentes de futuro compromisso político liberal Juarez Távora e Eduardo Gomes, que vieram a ser candidatos à Presidência da República e deram sustentação militar à resistência liberal-democrática que sucedeu aos anos do Estado novo (1937 / 45) e contribuíram para a promulgação da Constituição de 18 de setembro de 1946 §§ Sobral Pinto praticou vários atos de defesa de Luis Carlos Prestes, dentre elas a carta à sua irmã Natalina (11/01/37), e depois a Atarquiniu Ribeiro, Presidente do Conselho da OAB (12/01/37), assim como aceitou a defesa de Harry Berger, que foi o ato pioneiro de tantos que solicitavam autorização para penetrar na cela de Carlos Prestes, e tratamento digno a Harry Berger, dirigidas ao presidente do Tribunal de Segurança Nacional - TSN, Raul Machado (29/01/37). Produziu tantas outras cartas sobre temas e defesa destes presos políticos, que, efetivamente, se concluíram com a apelação de Harry Berger (na verdade Arthur Ernest Ewert), de 24 de maio de 1937 e de Luis Carlos Prestes, em 24 de julho de 1937. PINTO, F. H. Sobral. Por que defendo os comunistas. Belo Horizonte. UCMG/Editora Comunicações 1979, páginas introdutórias. *** Bastos, Aurélio Wander. A OAB e o Estado de Direito no Brasil.. Lumen Júris / PqJuris, 2009. 5 injustiça é a iniqüidade, como especial forma de mutilar aquele que está limitado pela ação policial nos seus próprios atos. Neste período, o Conselho Federal da OAB, mesmo vinculado aos órgãos de Estado, também denunciou se não incisivamente, abertamente, nas reuniões do Conselho, e na imprensa, as violências de Estado, designando representantes advogados para os serviços de defesa no TSN e outras instâncias. Recém criada, a OAB ainda agia com muitas cautelas e mais estava voltada para a sua organização interna. Neste episódio citado, todavia, não lhe faltou disposição para se manifestar, o que se lhe coloca numa posição de efetiva ação defensiva da pessoa humana, que, no tempo futuro, contribuirá para marcar a sua posição na defesa dos direitos humanos. Imediatamente ao fim da Segunda Guerra Mundial, que coincide com o término do governo Getulista, que evoluiu da Revolução de 1930, aprofundaram-se os debates sobre a constitucionalização do Estado brasileiro. Dentre as tantas discussões significativas para a defesa e proteção dos direitos da pessoa humana, evoluíram neste período os debates sobre o projeto de lei no Congresso Nacional que modificava os estatutos da OAB, diminuindo os seus vínculos com o Estado e abrindo os seus objetivos para a defesa dos direitos de cidadania, e o projeto de criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH, apresentado pelo Deputado liberal Bilac Pinto†††. Resguardadas as conquistas trabalhistas do período getulista, após séculos de escravidão e injustiça social com as populações rurais, que sobreviviam na mais visível indignidade, imposta, nos grandes latifúndios, evoluíra Getúlio Vargas, no seu governo para políticas de proteção social, o que não ocorreu com o campesinato rural. Preocupar-se, entretanto, com a degradação das condições de vida de grande parte da população brasileira era uma atitude ainda pouco difundida, mas com o advento dos grandes debates parlamentares após o período que imediatamente sucedeu à Segunda Guerra Mundial, o tema dos direitos humanos alcançou, não apenas as organizações internacionais, na forma de tratados e convenções, mas também os debates na Câmara dos Deputados e no Senado Federal após a Promulgação da Constituição de 1946, e em muitas organizações da sociedade civil brasileira. Genericamente, predominava a convicção, mesmo que embrionária, de que todas as pessoas, mesmo as mais desafortunadas, deveriam ser tratadas com respeito irrestrito, e a dignidade de todos, sem exceção, deveria ser salvaguardada a todo custo. Este novo quadro político impôs a ampla discussão dos documentos que vinham sendo produzidos internacionalmente sobre a proteção aos direitos humanos, especialmente na Organização das Nações Unidas-ONU e das Cartas que serão objeto deste artigo juntamente com o texto do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana-CDDPH. Finalmente, neste período, todavia, interpuseram-se muitas resistências institucionais, não apenas permeadas pelos veios autoritários da vida civil, mas também pela emergente doutrina de segurança nacional, defendida pela elite militar de pós-guerra‡‡‡. Estes grupos, sendo que muitos deles padeciam de ††† Badaró, Murilo. Bilac Pinto (Olavo Bilac Pereira Pinto): o homem que salvou a República. Rio de Janeiro. Gryfus. Brasília, DF. Minc, 2010. ‡‡‡ Estes militares, em geral, orbitavam em torno da Escola Superior de Guerra, inspirada no National War College, criada nos Estados Unidos em 1946, no governo Dutra, comandada inicialmente por Cordeiro de Farias, defensora do alinhamento direto com os Estados Unidos 6 significativa influência liberal, resistiam, todavia, à implementação de políticas oficiais de proteção aos direitos humanos. Por outro lado, grupos também liberais e conservadores politicamente mais abertos, e, inclusive, amplas frações socialistas e trabalhistas, se sensibilizaram com as propostas das políticas de defesa e proteção dos direitos humanos, como finalidade essencial do Estado de Direito, o que viabilizou os espaços políticos para absorção interna dos tratados internacionais sobre direitos humanos e para a necessidade de se protegê-las institucionalmente no Brasil, o que viabilizou a discussão do Projeto de Lei de criação do CDDPH. 2. Os Documentos sobre Direitos Humanos 2.1. Recuperação Histórica A história universal da luta pela institucionalização dos direitos humanos está marcada por vários documentos, e muitos deles foram o resultado e a consagração de verdadeiras revoluções. A Declaração de Independência Americana (1776) e a conseqüente proclamação de que todos os homens foram criados iguais e que são titulares de direitos inalienáveis, estabelecendo, que, dentre esses direitos, deve-se colocar, em primeiro plano, a vida, a liberdade e a busca da felicidade, reverteu o epicentro dos direitos. Por outro lado, a Déclaration des Droits de L’Homme et du Citoyen, votada pela Assembléia Nacional da França revolucionária, que, ao dispor no seu artigo 1º, que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, inaugurou a era dos direitos dos homens. Estas declarações são evidentes provas referenciais de que as declarações de direito dos cidadãos são reações radicais aos documentos jurídicos do passado (Códigos, Ordenações e Consolidações), presididos pela exclusiva definição dos direitos dos príncipes e governantes, que impunham deveres aos súditos, procurando reconhecer e definir o direito dos homens, onde as distinções sociais não podem fundar-se em nada mais do que na utilidade comum §§§. Historicamente anteriores, outros documentos igualmente relevantes indicaram o despertar do homem para os seus direitos individuais, tais como: a Magna Charta Libertatum (1215), imposta ao rei João Sem Terra; a Petition of Rights (1628), exigida pelas comunas a Carlos I para o reconhecimento de antigas liberdades nacionais; a Lei sobre o Habeas Corpus (1679) **** , que na questão da Guerra Fria. Efetivamente, a denominada Guerra Fria coincide exatamente com o período de implantação da Doutrina Truman, criada por Harry Truman, Vice de Franklin Roosevelt, que faleceu em 1945. Criada em março de 1947, a Doutrina Truman rompia abertamente com a União Soviética e transformava o comunismo, não apenas em inimigo ideológico, mas também militar. Deste período, como mostramos, veio a cassação do Partido Comunista Brasileiro pelo TSE e, posteriormente, a cassação dos deputados eleitos na legenda, assim como, neste mesmo período, os Partidos Comunistas Francês e o Italiano foram expulsos das coalizões governamentais, respectivamente, com o partido gaullista e com a democracia cristã. §§§ Anais da XII Conferência da Ordem dos Advogados do Brasil. A Profissão do Advogado e a OAB na Sociedade Brasileira. 2 a 6 de outubro de 1988. Porto Alegre, p. 196. **** Estes estudos sobre as eras e gerações do direito podem ser verificados em BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos (edição ampliada). Rio de Janeiro: Campus, 1992. 7 garantia a liberdade física, o direito de ir, ficar e vir; o Bill of Rights (1689), que limitava o poder real inglês; o Act Settlement (1701), que dispunha sobre o consentimento prévio do Parlamento para as declarações de guerra, assim como dispunha sobre o impedimento do rei para destituir magistrados. Estes documentos precursores evoluíram na dimensão suficiente para gerarem, no tempo histórico, as declarações revolucionárias da modernidade que se transformaram nos tratados e leis contemporâneas sobre os direitos humanos. †††† Os anos que sucederam a Revolução Francesa, todavia, é que efetivamente marcaram os fundamentos e o desenvolvimento dos direitos de primeira geração como naturais e inalienáveis, que, decisivamente, influíram na legislação penal (e processual penal, mais tarde), procurando evidenciar também o espaço e os limites das garantias individuais, e da legislação civil (e processual civil, mais tarde) que procuraram demonstrar os espaços e limites do direito de propriedade, uma esdrúxula figura no contexto destes direitos imateriais. Estes movimentos de codificação recuperaram, em muitas circunstâncias, o velho Direito romano, não tanto, ou quase muito, em razão dos direitos individuais (pessoais), mas principalmente em razão do direito de propriedade e sucessão‡‡‡‡. De qualquer forma, na composição dos códigos estavam sempre presentes os novos paradigmas das declarações de direito, que o tempo consolidaria nas constituições ou no direito político, e, também, no Direito Constitucional. No Brasil, este fenômeno não foi muito diferente; apesar da ação interventiva e moderadora da Constituição Imperial de 1824, estes direitos individuais, precursores da formatação conceitual dos direitos humanos, estiveram sempre em destaque e proteção em nossas constituições, excetuado os interregnos em que o Estado de Direito foi trespassado pelos movimentos ou pelo estado de exceção. Em nosso estudo sobre As Eras do Direito no Brasil §§§§ , procuramos mostrar que estes direitos de primeira geração, imediatamente à Primeira Guerra, tomando em referência a formatação do constitucionalismo de Weimar (Alemanha, 1919) ***** , iniciou sua etapa de reconhecimento de direitos sociais, (reconhecidos direitos de segunda geração) que, muito se aprofundaram, no Brasil e na Europa, com o advento dos anos de 1930 e, inclusive, nos Estados Unidos, com as políticas de Welfare State, †††† Fernando Henrique Cardoso, comentando lucidamente a obra citada de Norberto Bobbio, observa que a licença moral que é dada aos poderosos era para que realizassem grandes feitos ou grandes coisas, tema que perpassa a sua obra (A Arte Política), deixando antever que nem ao menos estavam obrigados a cumprir a palavra e o pacto em que se empenhava. CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: historia que vivi. Coord. Editorial: Ricardo A. Setti. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006 p. 45-46. ‡‡‡‡ BASTOS, Aurélio Wander. Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1992. §§§§ Ver BASTOS, Aurélio Wander. As Eras dos Direitos no Brasil.Revista da ACAT Associação Carioca de Advogados Trabalhistas, ano 1, nº1, (jan. jun.), 2006. ***** A República de Weimar, proclamada imediatamente ao término da Segunda Guerra Mundial, no contexto internacional do Tratado de Versailles, que consagrou a vitória dos aliados (Inglaterra e França) contra a Alemanha, construiu o mais importante e pioneiro documento constitucional de 2ª geração, que serviu de base aos direitos sociais consagrados as demais Constituições modernas. 8 iniciados em 1929, cuja maior expressão foi o New Deal, de F. D. Roosevelt, abrindo novos espaços conceituais, que deram uma dimensão de direitos humanos aos direitos individuais, cujos propósitos influíram nas políticas institucionais brasileira futuras. Esta virada deveu-se principalmente aos horrores da Segunda Guerra mundial que abriu o conceito de direitos individuais para direitos humanos como a fórmula possível de se alcançar não apenas os delitos praticados arbitrariamente contra os cidadãos, mas, também os crimes de extermínio, o genocídio e os crimes de guerra. Interessantemente, todavia, e desta passagem extensiva que evoluem os direitos humanos para a proteção aos direitos da personalidade, hoje reconhecidos em dimensão bastante extensiva. 2.1.1. A Carta das Nações Unidas A Carta das Nações Unidas, nesta linha de ampliação da proteção dos direitos humanos, ainda sem que vislumbrasse os direitos da personalidade, aprovada, em Assembléia Geral das Nações, na cidade de São Francisco, em 26 de junho de 1945, no seu preâmbulo: (...) reafirma(r) a (nossa) fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; estabelece(r) as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional; promove(r) o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade. Este documento, de inquestioná-vel força, imediatamente promulgado ao término da Segunda Guerra Mundial, traduz, na plenitude possível, para as circunstâncias dos tempos, um projeto de proteção aos direitos humanos que extrapola aos estritos limites do individualismo racionalista, ambiente natural dos direitos individuais, para alcançar visíveis aberturas com relação aos direitos fundamentais apoiados no mais amplo conceito de liberdade. Esta Carta marca, na história da humanidade, o momento referencial da mudança de qualidade nas expectativas de redefinição dos poderes do Estado e dos organismos internacionais alocados no novo contexto internacional, para evitar, não apenas as violências contra os indivíduos, mas contra grupos humanos ou indivíduos por razões políticas, raciais, religiosas ou ideológicas. A Carta das Nações Unida dispõe, em cumprimento às dimensões de sua grandeza, vários dispositivos, que, direta e explicitamente, se referem aos direitos humanos como novo patamar protetivo do Estado e das próprias perspectivas da ação afirmativa do cidadão. No reconhecimento desta nova sistematização dos direitos, no artigo 1o, item 3, dispõe, que, à ONU compete: realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Este artigo, realmente, abre uma nova dimensão na concepção de Direito, fugindo do restrito racionalismo subjetivista, para tomar, como variável conceptiva, situações objetivas, buscando proteção para os direitos humanos nos níveis econômico, social e político, bem como relacionando direitos humanos com liberdades fundamentais, sem qualquer distinção de raça, sexo, língua ou religião. Esta mesma posição e orientação prevaleceu na redação 9 seguinte, artigo 13, alínea 1º, letra b: Fomentar a cooperação internacional no domínio econômico, social, cultural, educacional e da saúde e favorecer o pleno gozo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. Como se verifica, a discussão sobre direitos humanos, na verdade, evolui de duas linhas fundamentais que predefinem o direito e as conseqüências punitivas de seu descumprimento: o apoio à proteção das liberdades individuais fundamentais e a punição a qualquer discriminação de raça, sexo, língua ou religião. Estas duas variáveis, combinadamente, se superpõem ao tradicional papel do Estado de Direito como agente intermediador de conflitos, o papel de autor - promotor da estabilidade social, e, também, o papel de agente - promotor do bem-estar social. Este quadro, de qualquer forma, permite antever a interveniência do estado na repressão aos atos discriminatórios de qualquer espécie praticados, em qualquer situação, por agentes do Estado, e por indivíduos isoladamente ou grupos sociais. É claro que a discussão colocada neste patamar avança, significativamente, no sentido de um novo conceito de direito aberto às situações objetivas da vida, e, não apenas, intersubjetivas, sobrepondo-se ao conceito subjetivista de proteção dos direitos naturais (racionais) individuais e do direito positivo (escrito), imprescindível à proteção das ações do Estado contra o próprio indivíduo. Nesta linha discursiva, o que se verifica, na ampliação do conceito originário de direitos (fundamentais) individuais, é que o Direito, enquanto ordem jurídica, precisa reconhecer que aquele que pode fazer juridicamente, não pode faze-lo além dos limites de sua própria competência, assim como a expectativa de direito não se realiza, apenas, em função do princípio da isonomia, mas também em função do princípio da equidade, onde se reconhece que os iguais tem direitos iguais e não podem receber tratamento diferenciado. Neste sentido, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, na forma do art. 62, inciso II, tem funções e poderes para: (Poderá) fazer recomendações destinadas a assegurar o respeito efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, abrindo exatamente esta dimensão objetiva do conceito de direitos humanos. O artigo 76 da Carta define como finalidade básica da tutela promovida pelas Nações Unidas encorajar o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião, e favorecer o reconhecimento da interdependência de todos os povos. Nesta mesma linha, o artigo 55 da Carta das Nações completa que estes pressupostos dos direitos humanos são, na verdade, também, pressupostos do princípio da igualdade de direitos (das nações) e da autodeterminação dos povos. 2.2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos A Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, de 10 de dezembro de 1948†††††, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, alcançará, ††††† Ver, sobre a influência dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos no Brasil, especialmente, TRINDADE, Antonio Augusto. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948/1997). 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 29 e segs. Neste livro estão indicadas significativas contribuições de juristas brasileiros sobre a criminalização de práticas com os direitos humanos, tais como Gilberto Amado (sobre 10 com maior precisão, a exata definição conceitual dos direitos humanos, muito especialmente no seu preâmbulo, quando observa: que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, (assim como) que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultam em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Este texto introdutório, de qualquer forma, toma como referência existencial do conceito de direitos humanos o conceito existencial de dignidade da pessoa humana como direito inalienável e fundamento da liberdade, da justiça e da paz, assim como reconhece que os atos de violência e barbárie (praticados em qualquer circunstância, inclusive, pelo Estado) ferem a consciência da humanidade. Este texto traz para o mundo jurídico uma nova variável discursiva, até aquele momento desprezada pelas constituições, pelos códigos e pelas leis: o conceito de preservação da dignidade da pessoa humana como pressuposto constrangedor dos atos, inclusive repressivos de Estado, ampliando o conceito de Estado de Direito, não apenas para evitar eventuais conexões com os autoritarismos de fundamento normativo, mas conecta-lo sempre com os seus imprescindíveis fundamentos democráticos. Esta linha diretiva, aliás, confirmada no próprio preâmbulo da DUDH, observa que é essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão (o Estado de exceção). Nesta última observação, todavia, é que vamos identificar a imprescindibilidade da democracia para o efetivo reconhecimento dos direitos humanos no Estado de Direito. É exatamente a democracia como antinomia da tirania e da opressão que torna possível a articulação combinada do Estado de Direito, como Estado voltado para a garantia dos direitos individuais e a proteção dos direitos humanos. Para alcançar estes fins podemos identificar, nos dispositivos da DUDH, as tendências que resguardam os direitos individuais clássicos, como o direito à vida, o direito à liberdade e à segurança pessoal (direitos de primeira geração), aos se acresceu no quotidiano da prática jurídica o direito de propriedade, bem como, por outro lado, os direitos sociais, força remanescente de Weimar e de outros documentos da mesma época. Estes documentos estavam essencialmente preocupados com o trabalho e as condições humanas de sobrevivência (direito de segunda geração) e, ainda, os direitos humanos, que traduzem as novas inclinações jurídicas que sucedem à Segunda Guerra, basicamente voltados para a proteção das liberdades fundamentais, assim como, também, estão presentes, na Declaração, a proteção aos direitos genocídio, 1953), mas, principalmente, o ex-presidente da OAB, Levi Carneiro (1949), à época Consultor Jurídico do Itamarati, em resposta a circulares sobre os travaux préparatoires da DUDH (1948), quando defendeu o estabelecimento de órgão judicial internacional autônomo, específico, perante o qual os indivíduos possam recorrer contra os estados para garantia de seus direitos (p. 34). Ver, ainda, LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 170 a 183 e CARNEIRO, Levi. O Direito Internacional e a Democracia. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco, 1945, p. 106 a 196. 11 coletivos, enquanto dimensões extensivas dos direitos individuais, como direitos homogêneos, embora menos evidentes e mais frágeis na redação do texto. Naquele momento, todavia, estes direitos mais se evidenciavam como direitos políticos do que, propriamente, como direitos civis (direitos de terceira geração), enquanto novos direitos civis. Assim podemos classificar na DUDH os direitos individuais, os direitos existenciais, direitos sociais e direitos coletivos e defesas. No primeiro caso, basicamente voltado para proteção dos direitos individuais clássicos, encontramos os seguintes dispositivos: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. (Artigo 3º) Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei (Artigo 7º). Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. (Artigo 8º) Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. (Artigo 10 § 1). Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países (Artigo 14). Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. § 2º. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. (Artigo 16) § 1º. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. § 2º. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. (Artigo 17) Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; (Artigo 18) No que se refere aos direitos existenciais de forte tendência para reconhecer a proteção da dignidade humana, enquanto dimensão interior do homem, a Carta os prioriza nos seguintes artigos: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. (Artigo 1º). Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. (Artigo 4º). Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. (Artigo 5º). Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (Artigo 7º). Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. (Artigo 9º. § 1º). Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. (§ 2º) Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. (Artigo 11). Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. (Artigo 12, § 2º ou § 3º). A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do 12 fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. (Artigo 26) Os direitos sociais, que historicamente foram primeiro reconhecidos na Alemanha (devido às conquistas, paradoxalmente, do período Bismarck, e, posteriormente, com Weimar), mesmo antes do seu Código Civil de 1900 (em processo diferenciado da França), que codificou os Direitos Civis em 1804 – Cxbx Napoleón, tiveram também um vasto leque de proteção na DUDH da perspectiva de proteção dos direitos políticos e da perspectiva de proteção do trabalho. Dentre tantos, podemos selecionar os seguintes dispositivos: §1º Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. (Artigo 20). § 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. § 1º. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. § 2 Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. § 3o A vontade do povo será a base da autoridade do governo; (Artigo 21). Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança-social (Artigo 22). §1º Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, (Artigo 23). Resta, finalmente, concluir, que, nos anos que sucederam a 1948, a proteção aos direitos humanos adquiriu novas dimensões, principalmente no que se refere aos direitos existenciais e aos direitos coletivos e difusos. A discussão pública desses direitos, neste sentido, foram uma marca referencial na evolução à proteção dos direitos humanos no Brasil. Nesta linha, o Brasil evoluiu numa posição pioneira à medida que viabilizou juridicamente a Ação Civil Pública, em 1985, em si, um instrumento processual, mas de amplo alcance no que se refere à proteção dos interesses humanos implícitos em coisas de valor inestimável, como o meio ambiente, e bens de valor imemoriais, como o patrimônio histórico ou bens referenciais da vida coletiva, como patrimônio público e a moralidade administrativa. Finalmente, a nossa preocupação final na linha conclusiva deste trabalho é discutir a influência dos documentos internacionais que analisamos no processo de criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH, na forma da Lei brasileira nº. 4.319, de 16 de março de 1964, sancionada pelo Presidente João Goulart, somente 15 dias antes do movimento militar de 31 de março / 1º de abril de 1964, que promoveu o início do encerramento do ciclo da Constituição de 1946, que fora marcada pela paradoxal aliança entre os conservadores, militantes pessedistas e os trabalhistas sindicalistas, quase que imediatamente após a inauguração da nova capital federal brasileira – Brasília ‡‡‡‡‡ . De qualquer forma, outros documentos legais de proteção aos direitos humanos no Brasil, direta ou indiretamente, sofreram a influência dos documentos históricos da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, cujos dispositivos influíram no projeto e nos debates parlamentares sobre o Conselho dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH. ‡‡‡‡‡ A mudança da capital federal para Brasília foi fixada pela Lei nº. 3.273, de 1º de outubro de 1957, e definia que a sua inauguração seria no dia 21 de abril de 1960. Ver sobre esta questão amplo estudo desenvolvido sobre o tema e as resistências políticas à transferência, inclusive do Conselho Federal da OAB, in Bastos, Aurélio Wander A Ordem dos Advogados e o Estado de Direito no Brasil. Lúmen Júris / PqJuris. Rio de Janeiro. 2009. 13 3. A Criação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH O Projeto do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH foi elaborado com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos, após uma série de decisões tomadas pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, no biênio 1947/48, promulgada, pela Assembléia Geral da ONU, em Nova York, no ano de 1948 e ambos documentos referenciais da política internacional dos direitos humanos§§§§§na Declaração Americana dos Direitos e Deveres Fundamentais do Homem, promulgada em Bogotá, em abril de 1948 que especificamente não estudamos neste artigo. O CDDPH tinha como objetivo fazer dos propósitos destes documentos, bem como do conteúdo do seu próprio texto, as bases de uma efetiva política de defesa dos homens e das mulheres contra as brutalidades do Estado e dos seus agentes públicos ou pessoas privadas. O conjunto destes documentos representava, exatamente, os novos parâmetros e novos paradigmas dos direitos humanos, gestados nas assembléias e órgãos internacionais após a Segunda Guerra Mundial, superando os estritos limites da proteção intersubjetiva dos direitos individuais como exclusivo propósito do Estado de Direito. O CDDPH foi criado pela Lei no 4.319, de 16 de março de 1964, como já observamos, oriundo de projeto do então deputado udenista, de origem liberal conservadora, Bilac Pinto, e sancionada pelo Presidente João Goulart. O texto integral da Lei é o seguinte: Art. 1º Fica criado no Ministério da Justiça e Negócios Interiores o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Art. 2º O C.D.D.P.H. será integrado pelos seguintes membros: Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Catedrático de Direito Constitucional de uma das Faculdades Federais, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Presidente da Associação Brasileira de Educação, Líderes da Maioria e da Minoria, na Câmara dos Deputados e no Senado. § 1º O Professor Catedrático de Direito Constitucional será indicado pelos demais membros do Conselho em sua primeira reunião. § 2º A Presidência do Conselho caberá ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores e o Vice-Presidente será eleito pela maioria dos membros do Conselho. Art. 3º (...) Art 4º Compete ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana: 1º promover inquéritos, investigações e estudos acêrca da eficácia das normas asseguradoras dos direitos da pessoa humana, inscritos na Constituição Federal, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres Fundamentais do Homem (Bogotá no ano de 1948) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Assembléia Geral da ONU, em Nova York, no ano de 1948); 2º promover a divulgação do conteúdo e da significação de cada um dos direitos da pessoa humana mediante conferências e debates em universidades, escolas, clubes, associações de classe e sindicatos e por meio da imprensa, do §§§§§ A DUDH foi aprovada por 48 dos então 58 países membros da ONU, sendo que 8 se abstiveram, 2 estavam ausentes e nenhum votou contra. O representante brasileiro, no decorrer dos travaux préparatoires, foi Alceu Amoroso Lima, que especialmente se destacou por singularizar o direito à educação e defender a necessidade de se assegurar a eficácia dos direitos humanos. Ver, especialmente, ABRANCHES, C. A Dunshee de. Proteção Internacional dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 13 e segs. 14 rádio, da televisão, do teatro, de livros e folhetos; 3º promover nas áreas que apresentem maiores índices de violação dos direitos humanos: a) a realização de inquéritos para investigar as suas causas e sugerir medidas tendentes a assegurar a plenitude do gôzo daqueles direitos; b) campanha de esclarecimento e divulgação; 4º promover inquéritos e investigações nas áreas onde tenham ocorrido fraudes eleitorais de maiores proporções, para o fim de sugerir as medidas capazes de escoimar de vícios os pleitos futuros; 5º promover a realização de cursos diretos ou por correspondência que concorram para o aperfeiçoamento dos serviços policiais, no que concerne ao respeito dos direitos da pessoa humana; 6º promover entendimentos com os governos dos Estados e Territórios cujas autoridades administrativas ou policiais se revelem, no todo ou em parte, incapazes de assegurar a proteção dos direitos da pessoa humana para o fim de cooperar com os mesmos na reforma dos respectivos serviços e na melhor preparação profissional e cívica dos elementos que os compõem; 7º promover entendimentos com os governos estaduais e municipais e com a direção de entidades autárquicas e de serviços autônomos, que estejam por motivos poIíticos, coagindo ou perseguindo seus servidores, por qualquer meio, inclusive transferências, remoções e demissões, a fim de que tais abusos de poder não se consumem ou sejam, afinal, anulados; 8º recomendar ao Govêrno Federal e aos dos Estados e Territórios a eliminação, do quadro dos seus serviços civis e militares, de todos os seus agentes que se revelem reincidentes na prática de atos violadores dos diretos da pessoa humana; 9º recomendar o aperfeiçoamento dos serviços de polícia técnica dos Estados e Territórios de modo a possibilitar a comprovação da autoria dos delitos por meio de provas indiciárias; 10. recomendar ao Govêrno Federal a prestação de ajuda financeira aos Estados que não disponham de recursos para a reorganização de seus serviços policiais, civis e militares, no que concerne à preparação profissional e cívica dos seus integrantes, tendo em vista a conciliação entre o exercício daquelas funções e o respeito aos direitos da pessoa humana; 11. estudar e propor ao Poder Executivo a organização de uma divisão ministerial, integrada também por órgãos regionais, para a eficiente proteção dos direitos da pessoa humana; 12. estudar o aperfeiçoamento da legislação administrativa, penal, civil, processual e trabalhista, de modo a permitir a eficaz repressão das violações dos direitos da pessoa humana por parte de particulares ou de servidores públicos; 13. receber representações que contenham denúncias de violações dos direitos da pessoa humana, apurar sua procedência e tomar providências capazes de fazer cessar os abusos dos particulares ou das autoridades por êles responsáveis. Art 5º O C.D D.P.H. cooperará com a Organização das Nações Unidas no que concerne à iniciativa e à execução de medidas que visem a assegurar o efetivo respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Art 6º No exercício das atribuições que lhes são conferidas por esta lei, poderão o C.D.D.P.H e as Comissões de Inquérito por êle instituídas determinar as diligências que reputarem necessá-rias e tomar o depoimen-to de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, inquirir testemunhas, requisitar às repartições públicas, informações e documentos e transportar-se aos lugares onde se fizer mister sua presença. Art 7º As testemunhas serão intimadas de acôrdo com as normas estabelecidas no Código de Processo Penal. Parágrafo único. Em caso de não comparecimento de testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao Juiz 15 Criminal da localidade em que resida ou se encontre na forma do art. 218 do Código de Processo Penal. Art 8º Constitui crime:I - Impedir ou tentar impedir, mediante violência, ameaças ou assuadas, o regular funcionamento do C.D.D.P.H. ou de Comissão de Inquérito por êle instituída ou o livre exercício das atribuições de qualquer dos seus membros. Pena - a do art. 329 do Código Penal. II - Fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor ou intérprete perante o C.D.D.P.H. ou Comissão de Inquérito por êle instituída. Pena - a do art. 342 do Código Penal. Art 9º No Orçamento da União será incluída, anualmente, a verba de Cr$10.000.000,00 (dez milhões de cruzeiros), para atender às despesas de qualquer natureza do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Art 10. A presente lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Brasília, em 16 de março de 1964; 143º da Independência e 76º da República. Como se verifica, os dispositivos gerais desta Lei representaram um significativo avanço na definição de políticas de enfrentamento aos atos e violações dos direitos da pessoa humana com o objetivo de protegê-la, e foram, essencialmente, inspirados na imprescindível necessidade de os povos guardarem-se das violências dos governos autoritários que antecederam e promoveram a Segunda Guerra Mundial. Os documentos internacionais neste sentido, produzidos, ainda, sob os horrores da Segunda Guerra Mundial, decisivamente influenciaram a lei brasileira que criou o CDDPH, especialmente o inc. I do artigo 8º, visando a resguardar a sua imprescindível eficácia para viabilizar as condições pacificas de convivência. Neste contexto, independentemente de regras de conduta e prefixação de competências, a Lei cria um catálogo das condutas criminosas, procedimentos de apuração e sanções punitivas. Assim, por exemplo, na preocupação extrema de resguardar sua própria funcionalidade, o supra referido inciso dispõe que constitui crime impedir ou tentar impedir, mediante violência, ameaça ou assuadas, o regular funcionamento do CDDPH ou de Comissão de Inquérito por ele instituída ou o livre exercício das atribuições de qualquer dos seus membros. Este dispositivo, como se pode verificar, representava uma visível contra-ameaça a ações repressivas e violentas do Estado, demonstrando a imprescindibilidade da organização democrática para se implementar políticas efetivas de proteção dos direitos humanos. Mais especificamente, retomando o nosso tema, é impossível desconhecer, que desde o inicio da discussão do projeto na Câmara dos Deputados, o propósito essencial era implementar uma política nacional de direitos humanos, como resposta à curva ascendente do autoritarismo institucional no Brasil, vinculado, sempre, às políticas de compressão dos direitos humanos. Por outro lado, não podemos esquecer, até mesmo tendo em vista a preocupação central de nosso trabalho, que as políticas de proteção aos direitos humanos, não estão, tão somente, vinculadas ao cumprimento interno das políticas internacionais de direitos humanos, assim como não podemos desconhecer que, internamente, este foi um significativo esforço do pensamento liberal-democrático no Brasil, em aliança com o pensamento político ideológico da esquerda democrática. Todavia, a natureza epistemológica desta Lei, que se enquadra na evolução do pensamento de origem liberal-democrática, não coincidia com os pressupostos das políticas de segurança nacional, emergente nos centros de estudos e unidades comprometidas com o pensamento autoritário moderno, 16 profundamente permeado pelo anticomunismo e pela concepção teórica da Guerra Fria. Politicamente, não há como desconhecer, por conseguinte, que brotam da Segunda Guerra Mundial duas grandes variáveis, como inicialmente observamos: os projetos de implementação de leis de proteção dos direitos humanos, na linha defensiva dos autoritarismos, cujo símbolo marcante foi a figura de Franklin Delano Roosevelt, que faleceu ao fim da Segunda Guerra Mundial, já no seu quarto mandato de Presidente da República do Estados Unidos da América, e os projetos de construção do Estado de segurança nacional, mais sensíveis aos autoritarismos desenvolvimentistas, ou na palavra de Célio Borja, aos governos autocráticos****** . Esta situação dilemática, de qualquer forma, no curto prazo, colocou em xeque o liberalismo jurídico, como epistemologia de um projeto de desenvolvimento e, naquele momento histórico, no médio prazo, a própria evolução do projeto reconstituinte, demonstrando a sua fragilidade política para enfrentar o intervencionismo estatista-trabalhista, e, no quase imediato fracasso do projeto de abertura econômica do governo revolucionário de Castelo Branco, com o economista liberal Roberto Campos no Ministério da Economia. O estatismo autoritário e desenvolvimentista dos militares, colocados como rumos futuros do Brasil, estava posto entre estas duas vertentes do intervencionismo: o intervencionismo comprometido com as políticas de direitos sociais e reformas de base, e o intervencionismo comprometido com as políticas de desenvolvimento com segurança, no contexto conceptivo da Guerra Fria. Este modelo, na verdade, foi uma resposta ao fracasso do seu projeto de fortalecimento das políticas de mercado; sucumbiu ao mesmo estatismo desenvolvimentista, apoiado em políticas autoritárias, que, em rapidíssimo prazo, evoluíram para práticas repressivas aos direitos humanos. Os sucessivos acontecimentos de relevância política, a violência ostensiva contra a ordem jurídica ou, mais especialmente, contra os princípios jurídicos clássicos, do Estado de Direito, e na proteção dos direitos individuais, a evolução do autoritarismo político e da arbitrariedade policial, provocaram, não uma sutil evolução da tradicional compreensão formal da ordem jurídica, mas um visível e ostensivo reposicionamento político. Este reposicionamento sobre os conceitos clássicos de Estado, sempre reconhecidos como ordem formal e/ou ordem de exceção, independentemente de instaurar uma avaliação jurídica e política sobre a relação entre Estado e ordem jurídica (escrita), superpôs às ideologias mais abertas, sempre acompanhado dos ideais do liberalismo jurídico, uma nova e verdadeira ideologia política, comprometida, essencialmente, com a defesa dos direitos humanos, conforme a formatação dos documentos internacionais e a Lei da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH. A questão dos direitos humanos, e da proteção e defesa do cidadão contra os abusos do Estado (do poder) e da autoridade, de qualquer forma, já estavam colocadas como a alternativa histórica da ação política nacional, na falência do tradicional modelo liberal-formal, e como paradigma de uma nova ordem democrática, que tivesse o suficiente fôlego, não apenas para garantir ****** Conferência promovida pelo ex Ministro da Justiça e comentada por Rosalina Corrêa de Araújo, em Seminário realizado pela FIRJAN / IAB / UCAM intitulado Aspectos Atuais da Constituição Brasileira, realizado em 29 de setembro de 2010, em homenagem ao Relator da Constituinte Bernardo Cabral. 17 judicialmente a proteção dos direitos individuais, no clássico propósito liberal, mas, muito especialmente, a abertura para as novas manifestações da cidadania coletiva e difusa, sufocadas, no primarismo classista, pela ação repressiva do Estado de segurança nacional, institucionalizado em 1968/69, especialmen-te na forma da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outu-bro de 1969††††††. Neste contexto político, rapidamente a questão dos direitos humanos evoluiu para discursos e manifestações mais visíveis, inclusive porque a proteção dos direitos humanos, não apenas se firmara como propósito internacional, mas também, estava, agora, ratificado, desde a promulgação da Lei no 4.319, de 16 de março de 1964, em tempo exatamente anterior ao golpe militar. Todavia, independentemente das extremas dificuldades para o funcionamento do CDDPH, em virtude da situação de excepcionalidade e violência que presidiu as relações entre vencedores e vencidos, após o período que sucedeu a 31 de março de 1964, a situação nunca demonstrou maior estabilidade. O Decreto nº 63.681, de 22 de novembro de 1968, que regulava o funcionamento do CDDPH, foi editado imediatamente antes do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. De qualquer forma, se, por um lado, o Decreto deu cumprimento, afinal, à Lei no 4.319/64, provocou, se não inexplicavelmente, coincidentemente, a onda repressiva que sucedeu ao 13 de dezembro, provocando uma radicalização de todos os movimentos comprometidos com a instalação do estado de direito, com a nova proposta democrática e com o socialismo. Finalmente, o tema dos direitos humanos evoluiu, neste contexto, se não apenas pelas próprias circunstâncias do fechamento autoritário do estado, pela radicalização das propostas políticas alternativas. Conclusão A Constituição brasileira de 1988 não exatamente elegeu os Direitos Humanos em seus títulos ou capítulos, preferindo, como procuramos demonstrar neste artigo, definir os espaços de proteção dos direitos individuais e dos direitos coletivos, bem como dos direitos sociais, como direitos e garantias fundamentais, referindo-se apenas explicitamente à prevalência dos Direitos Humanos nas relações internacionais. De qualquer forma, isto não significa que os Direitos Humanos não sejam exatamente aquilo que a Constituição denomina de direitos e garantias fundamentais, mas, como já observamos, os direitos individuais e coletivos são manifestações tipológicas dos Direitos Humanos. Da mesma forma, sem a explicitude necessária, até †††††† Esta Emenda, na verdade, incorporou ao mutilado texto liberal da Constituição de 1967 os propósitos intervencionistas do Estado de Segurança Nacional, alterando a estrutura essencial da Constituição, viabilizando, juridicamente, o esdrúxulo Estado (autoritário ou de exceção) de direito que viabilizou o "famoso" golpe no golpe. A edição desta Emenda, em 17 de outubro de 1969, pela junta governativa (Augusto Rademaker, Aurélio Lyra Tavares e Marcio Souza Melo) não foi, por conseguinte, nem ao menos, como as outras emendas seguintes (27 ao todo), votada no Congresso Nacional. Com sua edição, todavia, cessaram os atos adicionais (17 ao todo, sendo o último em 14 de outubro de 1969), o que não impediu a sucessão de emendas de iniciativa do Presidente da República (inc. II, art. 47). A Emenda de nº 1, de 17 de outubro de 1969 (DOU de 20/10/1969) republicada em 30 de outubro de 1969, chegou a alterar quase todos os artigos da Constituição de 1967. 18 porque essa linguagem não era de todo utilizada à época de sua promulgação, deixou implícita a titulação da proteção dos direitos existenciais nos capítulos sobre os direitos individuais, o que significa, todavia, que, se os direitos existenciais não estão explicitamente tipificados, eles o estão como direitos individuais. Todavia, nos seus fundamentos preâmbulares, explicitamente dispõe que os direitos sociais e individuais no Estado democrático apóiam-se numa sociedade sem preconceitos, assim como a discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais será punida na forma da lei. Neste sentido, a negação dos preconceitos, em qualquer das suas formas de ocorrência, e, a manifestação da discriminação, em qualquer das suas formas de ação, na Constituição, converteram-se nos fundamentos existenciais da dignidade da pessoa humana, o que deixa em plano especialíssimo a proteção ao que temos procurado denominar de direitos existenciais, que se manifestam sempre que a autoridade ou qualquer cidadão violam a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assim como, e neste sentido a Constituição é bastante incisiva, na condenação da tortura, origem da tipificação dos Direitos Humanos, como prática iníqua e do racismo como manifestação combinada do preconceito e da discriminação. Neste sentido, a construção do catálogo de direitos fundamentais é um processo evolutivo do conceito de Direitos Humanos, que, por sua vez evolui do catálogo dos direitos individuais, que sugere a catalogação dos direitos sociais coletivos e difusos e dos direitos existenciais. Assim, os Direitos Humanos mais poderíamos classificar como gênero conceitual que preside três catálogos de direitos que entre si se completam como direitos fundamentais constitucionais: os direitos individuais, os direitos existenciais e os direitos sociais coletivos e difusos, manifestações classificatórias diferenciadas dos direitos humanos. Historicamente, os direitos individuais primeiro se manifestaram como direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade, sempre assentados no princípio da igualdade de direitos. A esta amplíssima vertente dos direitos individuais somou-se como direito individual o direito de propriedade, como herança atávica das origens do direito moderno, que se beneficiou dos institutos protetivos dos direitos individuais, não apenas na perspectiva das formulações substantivas, mas também processuais. Foi a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 que viabilizaram novas situações protetivas dos Direitos Humanos, que, não apenas, buscaram proteger direitos interiores ou existenciais do homem, como também as dimensões protetivas alcançaram espaços exteriores extensivos procurando proteger direitos de natureza social, coletiva e difusa. No Brasil, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH, que evoluiu destes documentos, não propriamente explicita as categorias indicadas nos documentos internacionais, mas não deixa de manifestar que a ele concerne a iniciativa e a execução de medidas que visem assegurar o efetivo respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Finalmente, a Constituição brasileira, promulgada vinte e quatro anos depois da criação do CDDPH, e, vinte anos após as restrições que foram impostas ao próprio Conselho, com a instalação do Estado de segurança 19 nacional, evoluiu significativamente na definição dos direitos e garantias fundamentais como manifestação constitucional dos Direitos Humanos. 20