1 UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PPGEC - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS CAROLINE LUANA LOTTERMANN PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO CONCEITUAL DE ELEMENTO E SUBSTÂNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL EM CIÊNCIAS NATURAIS ÍJUÍ/RS 2012 2 CAROLINE LUANA LOTTERMANN PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO CONCEITUAL DE ELEMENTO E SUBSTÂNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL EM CIÊNCIAS NATURAIS Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências. Orientadora: Prof. Dra. Lenir Basso Zanon IJUÍ/RS 2012 3 Catalogação na Publicação L844p Lottermann, Caroline Luana. Processos de significação conceitual de elemento e substância no ensino fundamental de ciências naturais / Caroline Luana Lottermann. – Ijuí, 2012. 115 f. ; il. ; 30 cm. Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí e Santa Rosa). Educação nas Ciências. “Orientadora: Lenir Basso Zanon”. 1. Ciências naturais. 2. Significação conceitual. 3. Significação conceitual - Elemento. 4. Significação conceitual – Substância. I. Zanon, Lenir Basso. II. Título. CDU : 371.3 53/59 Tania Maria Kalaitzis Lima CRB10 / 1561 4 ATA DA DEFESA FINAL 5 AGRADECIMENTOS A Deus que nos sustenta, guia, protege e fortalece nos momentos de dificuldade e desânimo, nas horas de alegria e tristeza, nas derrotas e conquistas. Aos meus pais Hilário Lottermann e Lisete Inês Kreutz Lottermann, base de minha formação e grandes incentivadores do estudo como possibilidade de crescimento pessoal e profissional e ao meu irmão Leonardo José Lotermann, meu companheiro desde a infância e grande amigo nas horas de alegria, de descontração, no trabalho e nos momentos de dificuldade. Não existem palavras suficientes para expressar minha gratidão pelo amor recebido, pelo incentivo e apoio nas horas mais difíceis e pela confiança depositada em mim, no meu trabalho e nos meus sonhos. Ao Romeu Nedel Hilgert, que me inspira e contagia com seu amor, agradeço pelo carinho, pelo constante apoio e incentivo, pelos momentos de alegria, angústias e sonhos compartilhados. A minha querida orientadora, professora e amiga Lenir Basso Zanon, por acreditar e apostar em mim e no meu trabalho, pela disponibilidade, pelas motivadoras orientações, pelo incentivo constante, por me possibilitar novos aprendizados, pelo carinho e amizade. Aos professores Otavio Aloisio Maldaner, Roque Ismael da Costa Gullich, Maria Cristina Pansera de Araújo e Neusa Maria John Scheid, pela disponibilidade na participação e na leitura atenciosa desta dissertação, com suas valiosas contribuições na Banca de Qualificação e/ou Defesa Final. Aos meus colegas da turma de 2010 do Curso de Mestrado em Educação nas Ciências e a todos os professores do PPG em Educação nas Ciências, que, de alguma forma, compartilharam comigo saberes, alegrias e incertezas. A escola e a todos os sujeitos de pesquisa, pela disponibilidade, confiança e aprendizados. A CAPES e a UNIJUÍ, pelo apoio financeiro e institucional. 6 Devemos ensinar Química para permitir que o cidadão possa interagir melhor com o mundo. Attico Chassot 7 RESUMO Este trabalho trata de processos de significação conceitual de elemento e substância no Ensino Fundamental, em Ciências Naturais, considerando dificuldades de aprendizagem apresentadas pelos estudantes na compreensão dos referidos conceitos, bem como, críticas à tradição curricular que se instituiu, na área, caracterizada por uma forte centralidade na perspectiva biológica de abordagem dos conceitos/conteúdos escolares. Os dois conceitos mencionados são conceitos estruturantes do pensamento químico e, assim, fundamentais à compreensão dos conteúdos do ensino escolar, na área. A pesquisa abrangeu uma análise de livros didáticos quanto a abordagens referentes aos dois conceitos. Ainda, o acompanhamento, gravação, transcrição e análise de aulas de Ciências Naturais, junto a uma turma de 8ª série, com foco nos processos de significação conceitual desses dois conceitos. Com base na vertente vigotskiana, a atenção se voltou para os processos de significação conceitual considerando a importância da apropriação e o uso da palavra e a interação entre os sujeitos como meios para a construção de conhecimentos produzidos intencionalmente na escola. Discussões e reflexões sobre o conhecimento escolar, na área, com base na vertente epistemológica bachelardiana, consideram a visão de alguns obstáculos epistemológicos que acompanham o ensino das ciências, que acabam por se caracterizar como entraves aos processos de aprendizagem com significação conceitual. Resultados indicam problemas nas abordagens de conceitos químicos ao longo do Ensino Fundamental apresentadas em livros didáticos referentes a simplificação dos conceitos, sem levar em conta os graus de complexificação dos mesmos, o que exige dos estudantes altos níveis de abstração. Nas aulas de Ciências Naturais acompanhadas, observouse a falta de problematização dos conhecimentos nas abordagens, por parte do professor, o que compromete a apropriação dos conceitos e a construção de aprendizagens sólidas e duradouras. O trabalho destaca a importância do aprendizado desses dois conceitos no Ensino Fundamental tanto para a formação geral dos estudantes, como Educação Básica voltada à cidadania responsável, quanto para o seguimento do fluxo da escolarização, como formação para o ensino superior e para o exercício de uma profissão. O trabalho defende o uso da palavra, com retomadas que favoreçam os processos de evolução conceitual, por meio de sistemáticos processos de produção de sentidos aos conceitos escolares. Indica para a necessidade de esforços dirigidos à melhoria da formação do professor de Ciências Naturais, em especial, no que se refere à potencialização de relações dinâmicas entre as abordagens dos conhecimentos escolares e a perspectiva da significação conceitual, por parte dos estudantes. Palavras-chave: Significação conceitual; elemento e substância; Ciências Naturais. 8 ABSTRACT The present work discusses the processes of conceptual signification of element and substance in the elementary school in Natural Sciences, considering the learning difficulties presented by the students in the comprehension of those concepts, as well as some criticism to the curricular tradition which is well established in this area and that is characterized by a strong centrality in the biologic perspective for the approach of the concepts/school contents. The two mentioned concepts are structuring conceptions of the chemistry thinking and, thus, they are fundamental to the comprehension of the contents of the school teaching in this area. This research comprises an analysis of workbooks regarding their approaches to the two concepts. Also, there was the attendance, recording, transcription and analysis of Sciences classes in an 8th grade group, focusing the processes of conceptual signification of those two concepts. Based on Vygotsky’s ideas, the attention was focused on the processes of conceptual signification considering the importance of appropriation and use of the word and the interaction between the subjects as means to the construction of knowledge intentionally produced in the school. Discussions and reflections about the school knowledge in the area, based on Bachelardian ideas, consider the view of some epistemological obstacles that come together with the teaching of Natural Sciences and that end up posing as barriers to the learning processes as conceptual signification. The results indicate problems in the approaches of Chemistry concepts throughout the elementary school presented in workbooks regarding the simplification of the concepts, without taking into account the levels of complexity of them, which demands from the students a high level of abstraction. In the Sciences classes attended, it was observed an absence of problematization of knowledge by the teacher in his approach, which affects the appropriation of the concepts and the construction of a solid and lifelong learning. This work highlights the importance of learning these two concepts in elementary school both to the general education of the students, as an elementary education concerned with a responsible citizenship, and to the continuation of the flow of learning, as education to the college and to the practice in the profession. This work is in favor of the use of the word, retaking ideas that support the processes of conceptual evolution, through systematic processes of production of sense to the school concepts. It indicates the need for efforts addressed to the improvement of the teacher education regarding the empowerment of dynamic relationships between the approaches of the school knowledge and the perspective of conceptual signification by the students. Key words: Conceptual signification, element and substance, Natural Sciences 9 LISTA DE SIGLAS UNIJUÍ: Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul PIBEX-UNIJUÍ: Programa Institucional de Bolsas de Extensão da Unijuí PIBIC-UNIJUÍ: Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Unijuí GIPEC-UNIJUÍ: Grupo Interdepartamental de Pesquisa sobre Educação em Ciências da Unijuí. PCN: Parâmetros Curriculares Nacionais PCN-CN: Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de Ciências Naturais PPP: Projeto Político Pedagógico CTSA: Ciência-Tecnologia-Sociedade-Ambiente LD1: Livro de Ciências Naturais de 5ª série de uma coleção que corresponde a uma organização tradicional da abordagem dos conteúdos LD2: Livro de Ciências Naturais de 6ª série de uma coleção que corresponde a uma organização tradicional da abordagem dos conteúdos LD3: Livro de Ciências Naturais de 7ª série de uma coleção que corresponde a uma organização tradicional da abordagem dos conteúdos LD4: Livro de Ciências Naturais de 8ª série de uma coleção que corresponde a uma organização tradicional da abordagem dos conteúdos LD5: Livro de Ciências da 5ª série de uma coleção que corresponde a uma organização inovadora do currículo de Ciências Naturais LD6: Livro de Ciências da 6ª série de uma coleção que corresponde a uma organização inovadora do currículo de Ciências Naturais LD7: Livro de Ciências da 7ª série de uma coleção que corresponde a uma organização inovadora do currículo de Ciências Naturais LD8: Livro de Ciências da 8ª série de uma coleção que corresponde a uma organização inovadora do currículo de Ciências Naturais A: Aluno (a) P: Professor (a) 10 LISTA DE IMAGENS Figura 1: Triangulação essencial ao conhecimento escolar de química ...................... p. 33 Figura 2: Produtores e consumidores .......................................................................... p. 59 Figura 3: Água pura e mistura ......................................................................................p. 64 Figura 4: Processo de destilação de uma mistura de água e barro ...............................p. 66 Figura 5: Eletrólise .......................................................................................................p. 67 Figura 6: Gás produzido na eletrólise ..........................................................................p. 68 Figura 7: Gás produzido na eletrólise ..........................................................................p. 69 Figura 8: Átomos e moléculas .....................................................................................p. 69 Figura 9: Representação da molécula de água ............................................................p. 71 Figura 10: Densidade ..................................................................................................p. 71 Figura 11: Moléculas e átomos ...................................................................................p. 73 Figura 12: Moléculas e átomos ...................................................................................p. 74 Figura 13: Diagrama esquemático de mudança dos estados físicos da água ..............p. 77 Figura 14: Constituição de alguns alimentos ..............................................................p. 78 Figura 15: Potabilidade da água .................................................................................p. 80 Figura 16: Constituição da água mineral ....................................................................p. 81 Figura 17: Metais presentes nos rejeitos industriais ...................................................p. 82 Figura 18: Substâncias e misturas ..............................................................................p. 84 Figura 19: Substâncias e misturas ..............................................................................p. 84 Figura 20: Tabela periódica dos elementos ................................................................p. 85 Figura 21: Transformação dos metais ........................................................................p. 86 Figura 22: Representação do experimento de Rutherford .........................................p.94 Figura 23: Representação do experimento de Rutherford .........................................p.94 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13 1. PROBLEMÁTICA, OBJETIVOS E ORGANIZAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA ........................................................................................................................ 17 1.1 Problemática e Objetivos da Pesquisa ................................................................... 17 1.2 Aspetos da Organização Metodológica da Pesquisa .............................................. 21 2. A QUÍMICA NO ENSINO FUNDAMENTAL DE CIÊNCIAS NATURAIS E A PERSPECTIVA DA SIGNIFICAÇÃO CONCEITUAL ................................................. 25 2.1 Um Olhar à Organização dos Conteúdos no Ensino de Ciências Naturais ............. 26 2.2 Formação de Conceitos pelo Uso e Ressignificação da Palavra ao longo da Escolarização ...................................................................................................................... 34 2.3 Uma Reflexão sobre a Especificidade do Conhecimento Escolar em Ciências Naturais ........................................................................................................................... 44 3. A INSERÇÃO DA QUÍMICA NO ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS: UM OLHAR SOBRE LIVROS DIDÁTICOS ......................................................................... 57 3.1 Abordagens de Conceitos Químicos em Livros Didáticos de Ciências Naturais do Ensino Fundamental ..................................................................................................... 57 3.1.1 A Fragmentação do Conhecimento Químico no Ensino de Ciências Naturais ........................................................................................................ 58 3.1.2 Interrelações de Conhecimentos no Ensino de Ciências Naturais ........ 75 3.2 A Importância da Palavra no Processo de Significação dos Conceitos Elemento e Substância em Ciências Naturais ......................................................................................... 88 4. ABORDAGENS DOS CONCEITOS ELEMENTO E SUBSTÂNCIA EM AULAS DE CIÊNCIAS NATURAIS DA 8ª SÉRIE ............................................................................ 92 12 5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................ 104 LIVROS DIDÁTICOS ....................................................................................................... 108 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 109 ANEXOS ........................................................................................................................... 112 13 INTRODUÇÃO As preocupações em relação à formação em Química ao longo do Ensino Fundamental já vêm de longo tempo e continuam aumentando na área de Educação Química (ZANON; PALHARINI, 1995), sendo recorrentes as críticas à tradição curricular que se instituiu historicamente na área de Ciências Naturais1, caracterizada por uma forte centralidade na perspectiva biológica de abordagem dos conceitos/conteúdos escolares. Segundo Lima e Aguiar Jr. (2000, com base em CLAXTON, 1991; FENSHAM, 1991; MILLAR, 1996) as preocupações e mudanças propostas nesse nível da escolarização são o resultado de um deslocamento na atenção do currículo e do papel da escola, de uma formação introdutória propedêutica de prosseguimento dos estudos em nível universitário, para um ensino dirigido a um conhecimento amplo das ciências a todos os sujeitos (LOTTERMANN; MALDANER; HAMES, 2009), em acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN; BRASIL, 1996). No que se refere ao desenvolvimento dos conteúdos e conceitos químicos nesse nível de ensino, as críticas dizem respeito, principalmente, à tradição que tem limitado a sua duração em apenas um semestre, na 8ª2 série, a qual tem sido reduzida ao ensino de Química e Física. As aulas de Ciências Naturais nesse nível da escolarização priorizam o estudo do meio ambiente (com foco voltado à compreensão dos fungos, dos animais, das plantas, das relações ecológicas) e do corpo humano, a partir de uma visão da disciplina escolar Biologia. Devido a isso, a abordagem dos conhecimentos químicos é limitada, sendo incipiente a compreensão de conceitos importantes e necessários ao entendimento de fenômenos que ocorrem nos próprios seres vivos, no ambiente e em situações que vivenciamos diariamente (KINALSKI; ZANON, 1997). 1 A expressão Ciências Naturais é usada (para designar o componente curricular em questão nesta dissertação) com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN-CN; BRASIL, 1998). 2 Esta dissertação levou em conta a organização do Ensino Fundamental com duração de 8 anos, considerando-se que no ano em que a pesquisa empírica foi desenvolvida, a 8ª série era a série final deste nível de ensino. 14 Por outro lado, a problemática na qual se insere esta pesquisa diz respeito à ampla crítica dirigida pela literatura da área à organização tradicional de ensino de Ciências, resumida a apresentação, de cunho livresco, de definições prontas, seguidas de exemplos e exercícios para ‘fixação’ por parte dos estudantes. Essa lógica de ensino em sala de aula caracteriza o mecanismo de transferência repetitiva de conhecimentos já prontos, pelo uso de definições (AGUIAR JR; LIMA; MARTINS, 2005). Com base nesses entendimentos, nossa atenção é direcionada ao desafio de compreender formas de contraposição ao ensino tradicional. A tendência a uma mera memorização de definições prontas usadas para resolver exercícios de fixação impossibilita a aprendizagem com significação de conceitos fundamentais ao pensamento químico. É o caso dos conceitos de Elemento3 e Substância, cuja compreensão ao longo do Ensino Fundamental é o objeto de estudo desta dissertação, como conceitos estruturantes do pensamento específico em Ciências Naturais. A compreensão do conceito de substância é de grande importância, pois ele é a chave na formação do pensamento químico sobre o mundo material (MALDANER, 2003, p. 3), da mesma forma o conceito de elemento desempenha papel de fundamental importância como mais um dos conceitos estruturantes do pensamento químico (OKI, 2002). Consideramos que os aprendizados desses dois conceitos no Ensino Fundamental são essenciais, tanto para a formação geral dos estudantes como Educação Básica que promova a cidadania responsável, quanto para o papel social da escolarização propedêutica, como formação preparatória ao ensino superior e à profissão. Não se trata de dimensões formativas separadas entre si, cabendo levar em conta que a “não-aprendizagem” pelos estudantes reverte na “não-aprendizagem” em outros contextos da educação (ensino médio e superior) e da vida na sociedade como um todo. Isso situa a finalidade da presente pesquisa, desenvolvida na perspectiva de avançar na compreensão da problemática referente ao ensino dos conceitos substância e elemento no Ensino Fundamental, tantas vezes abordados de maneira que não favorece sua compreensão conceitual. Não podem ser abordados de forma indiscriminada, como se fossem de entendimento simples. 3 As palavras substância e elemento aparecem em negrito na introdução para evidenciar o seu destaque ao longo de todo o texto desta dissertação, como palavras-chave da pesquisa desenvolvida. 15 Foi de preocupações inseridas nesse contexto problemático que a presente investigação se desdobrou, em busca de compreender implicações da organização do ensino dos dois conceitos mencionados no Ensino Fundamental. Os estudos escolares sobre os fenômenos e acontecimentos no âmbito dos seres vivos e do universo abrangem dimensões que não podem ser vistas nem mensuradas, sendo muitas vezes necessário o uso dos conceitos de elemento e substância como constituintes dos seres vivos. Assim, o ensino e a aprendizagem de Ciências Naturais só são possíveis devido à existência de conhecimentos científicos legitimados que, aceitos universalmente como válidos, possibilitam processos de recontextualização e ressignificação como saberes que permitem processos de ensinar e aprender na escola. Preocupa-nos, assim, a perspectiva da atribuição de sentidos a eles frente a uma concepção científica atrelada a sua visão como entidades teoricamente criadas, como linguagem repleta de signos associados a um e pensamento bastante específico, essencial ao conhecimento em Ciências Naturais. Para a compreensão dos processos de apropriação desses dois conceitos, um apoio teórico importante está em Freire (2002), com a visão de um processo dialógico de ensino, na interação com o outro. Igualmente, o referencial histórico-cultural, com a compreensão de que cada sujeito é socialmente construído, nas interações com os outros com os quais se desenvolve, de forma dialeticamente transformadora, ao mesmo tempo, de si próprio e do meio em que vive e atua (VIGOTSKI, 2008). É pelo uso da palavra que os sujeitos têm a possibilidade de interagir com o outro, apropriando-se de conceitos que lhe possibilitam conhecimentos para a compreensão e ação no mundo. Isso configura a importância de investigar a problemática que diz respeito à complexidade e dinamicidade dos processos de mediação de conhecimentos por meio dos livros didáticos e das atividades pedagógicas do professor, na perspectiva da ressignificação dos conceitos, no contexto escolar. A partir do pressuposto de que a apropriação dos conceitos por parte dos estudantes do Ensino Fundamental constitui-se num aspecto formativo básico e essencial à formação escolar, na área, o presente estudo foi organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo é apresentado o tema, a problemática, os objetivos e a organização do percurso metodológico da pesquisa. No segundo capítulo são feitas abordagens sobre a Química no Ensino Fundamental de Ciências Naturais na perspectiva da significação conceitual. Essa discussão inicia com um 16 olhar à organização dos conteúdos de Ciências Naturais, com foco nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de Ciências Naturais (PCN-CN). Ainda nesse capítulo, as abordagens tratam da inserção da Química no Ensino Fundamental com reflexões de cunho epistemológico e sobre a formação de conceitos pelo uso e ressignificação da palavra, ao longo da escolarização, com base no referencial histórico-cultural. Esse capítulo apresenta reflexões em torno do importante papel do professor como mediador das aprendizagens escolares em Ciências Naturais. No terceiro capítulo são apresentados e analisados os dados de pesquisa produzidos a partir da análise de livros didáticos de Ciências Naturais, que consideraram abordagens de conceitos químicos nesses materiais, como foco para o livro da 5ª série. O capítulo discute formas de abordagem de alguns conceitos em livros analisados, com foco nos conceitos elemento e substância. No quarto capítulo, são apresentados e analisados os dados de pesquisa produzidos a partir do acompanhamento de aulas de Ciências Naturais em uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental, com análise do desenvolvimento dos conceitos elemento e substância em aula, com foco nos processos de significação conceitual por parte dos estudantes. 17 1 PROBLEMÁTICA, OBJETIVOS E ORGANIZAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA Este capítulo trata do tema e da problemática da pesquisa, seus objetivos e o percurso metodológico percorrido até a produção e análise dos dados empíricos, iniciando com uma descrição sobre a origem do problema em estudo. 1.1 Problemática e Objetivos da Pesquisa As preocupações e reflexões sobre as abordagens de conceitos químicos no Ensino Fundamental, especialmente os conceitos de elemento e substância, partiram de estudos e discussões durante a realização do curso de Licenciatura em Química da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e durante a atuação como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX-UNIJUÍ), junto ao Projeto “Formação de Professores: Ações em âmbito Escolar”, no período de abril de 2007 a dezembro de 2008 e como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC-UNIJUÍ), junto ao Projeto de Pesquisa “O Conhecimento Químico Escolar Articulado aos Saberes Docentes: Implicações teórico/práticas na Escola de Nível Médio”, no ano de 2009. Os projetos, desenvolvidos no âmbito do Grupo Interdepartamental de Pesquisa sobre Educação em Ciências (Gipec-UNIJUÍ), permitiram reflexões acerca de novas propostas para o desenvolvimento de conceitos/conteúdos escolares no Ensino Fundamental e Médio. Quando do ingresso no Curso de Mestrado em Educação nas Ciências, o interesse direcionouse, em especial, para as abordagens de conteúdos/conceitos de Química no Ensino Fundamental, com foco nos processos de significação conceitual; direcionou-se para a perspectiva de uma formação escolar capaz de potencializar o desenvolvimento humano, por um conhecimento dinamicamente interrelacionado, que permita compreensões/ações 18 responsáveis como cidadão, seja na vida profissional ou na vida social vista como um todo (BRASIL, 2006). A partir de tal interesse, desde as origens, o olhar direcionado à realidade problemática do ensino de Química em aulas de Ciências Naturais partiu de críticas apontadas pela literatura (MALDANER e ZANON, 2004; LIMA e SILVA, 2007) à tradição consagrada, na qual o meio ambiente é estudado de forma fragmentada, como uma sucessão linear de conteúdos isolados: na 5ª série o ambiente tem sido estudado em seus componentes (ar, água, solo); na 6ª as características dos seres vivos; na 7ª o corpo humano e na 8ª série Física e Química. Tal padronização dos conteúdos de Ciências Naturais em cada série do Ensino Fundamental vem acompanhada de uma linearidade e fragmentação do conhecimento escolar que muito tem preocupado educadores e pesquisadores, na área. Cada tópico (o solo, a água e o ar; a anatomia e o funcionamento do corpo humano; os vegetais; os animais; as transformações físicas e químicas) passou a ser trabalhado em determinado espaço ou série, sem valorizar as relações dos conteúdos entre si e nem, tampouco, as relações com questões tecnológicas, sociais e ambientais ou mesmo com valores e hábitos culturais, em situações reais relacionadas a tais conteúdos. (MALDANER; ZANON, 2004, p. 45) Essa divisão da área das Ciências Naturais “dificulta o estabelecimento de relações e, portanto, a construção de modelos explicativos mais coerentes e consistentes” (LIMA; SILVA, 2007, p. 91). Frente a esse cenário problemático, a presente pesquisa foi organizada com a intenção de melhor compreender, especificamente, a realidade do ensino dos dois conceitos estruturantes do pensamento já mencionados - elemento e substância, em busca de avanços nas concepções e práticas de ensino escolar. Tendo como foco a compreensão dos processos de significação conceitual, consideramos o pressuposto expresso por Aguiar Jr, Lima e Martins (2005, p. 02) de que “a aprendizagem de conceitos é algo muito mais complexo do que o simples estabelecimento de definições consagradas em textos didáticos e em glossários”. Isso também justifica e situa a importância de compreender a complexidade dos processos de ensino e de aprendizagem de conceitos científicos em sala de aula, a exemplo de elemento e substância. Segundo os autores acima citados, trata-se de processos que requerem sistemáticas retomadas, de processos lentos e sempre inacabados, nos quais os conceitos são revistos e ampliados, em cada novo contexto de interação e formação. Os problemas de ensino e aprendizagem dos dois conceitos mencionados, em especial no Ensino Fundamental, relacionam-se com dificuldades dos educandos para produzirem 19 sentidos aos seus significados em coerência com a Ciência/Química. São conceitos ou modelos teóricos compreensivos que requerem elevados graus de abstração, em nível atômico-molecular. Para exemplificar tais graus de dificuldade, citamos, abaixo, dois excertos extraídos da Coleção de livros didáticos de Ciências Naturais “Construindo Consciências” (APEC, 2003), que se referem aos dois conceitos mencionados. - “[...] podemos dizer que a água contida em um copo é constituída de um grande número de partículas as quais chamamos moléculas. As moléculas de água, por sua vez, são formadas por um conjunto de átomos dos elementos químicos hidrogênio e oxigênio. Assim, podemos dizer que a água é um aglomerado de moléculas constituídas por átomos. Uma molécula de água é formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio e usamos representá-la pela fórmula química H2O”. (p. 26). - “Muitas substâncias podem ser formadas por arranjos diferentes de um mesmo elemento. O elemento químico oxigênio (O), por exemplo, pode formar tanto o gás oxigênio (O2) como o gás ozônio (O3). O mesmo elemento químico carbono que constitui o papel constitui também o açúcar.” (p. 19). Os excertos trazidos demonstram a nossa preocupação, no presente trabalho, no sentido de compreender abordagens dos conceitos que favoreçam a apropriação do conhecimento escolar por meio de aprendizados que não sejam apenas superficiais, por negligenciarem a perspectiva da significação conceitual. Queremos melhor entender as interrelações de conhecimento que fazem parte dos processos de compreensão escolar desses dois conceitos. Ela requer que sejam mobilizadas formas de pensamento com esforços na direção do pensamento teórico, com uma imaginação de partículas (estruturas) submicroscópicas como átomo, molécula. Criadas pela Química/Ciência, configuram-se em objetos teóricos essenciais aos estudos escolares sobre a matéria e os materiais que constituem tudo o que existe no mundo físico-químico-biológico. É nesse cenário problemático que nossas preocupações se voltam à complexidade das dificuldades de aprendizagem conceitual por parte dos estudantes do Ensino Fundamental. A partir da visão expressa por Rocha e Cavicchioli (2005, p. 29) de que elas se relacionam com a “ausência de referenciais que os ajudem nesse esforço de abstração”, nossa atenção se volta para a necessidade de compreender a complexidade das relações conceituais envolvidas na apropriação dos referidos conceitos. Em se tratando de uma aprendizagem que requer graus elevados de elaboração teórica, é importante levar em conta, o que referem autores como Driver et.al (1999, p. 39), que átomos, elétrons, moléculas, elementos, substâncias são objetos 20 de estudo culturalmente criados, sendo necessário entender que “o conhecimento científico é, por natureza, discursivo”. Nunca estamos sozinhos, pois carregamos conosco textos diferentes dos que escrevemos, palavras de outras pessoas com as quais interagimos (AGUIAR JR; LIMA; MARTINS, 2005). Dessa forma, a palavra assume um papel fundamental no processo de construção do conhecimento, como mediadora da compreensão dos conceitos pelos sujeitos, além de ser um dos principais agentes no processo de abstração e generalização. Isso faz com que a linguagem assuma um papel que vai além da simples comunicação, sendo constitutiva do desenvolvimento humano, pela formação com significação conceitual (VIGOTSKI, 2008). Assumindo esse entendimento de que os aprendizados dos conceitos são constitutivos do sujeito em desenvolvimento, por meio da educação escolar, defendemos que isso necessita ser levado em conta como condição fundamental de uma educação com/pela apropriação de novas formas de falar, pensar, agir e interagir no mundo (BRASIL, 2006). Em busca de compreender tais desafios associados com necessárias mudanças nas concepções e práticas de ensino de Ciências naturais, o objeto de investigação está focado nas abordagens dos conceitos elemento e substância, com atenção voltada aos processos de significação conceitual dos mesmos. Para tal estudo, o presente trabalho foi organizado com o objetivo de: investigar abordagens dos dois conceitos mencionados em livros didáticos e em aulas da 8ª série do Ensino Fundamental, no componente curricular de Ciências Naturais, com vistas a compreender como acontecem os processos de significação dos conceitos e como eles coparticipam na (re)construção do conhecimento escolar em Química. Os objetivos específicos são: analisar livros didáticos de Ciências Naturais quanto a abordagens dos conceitos elemento e substância no Ensino Fundamental; acompanhar e analisar aulas de Ciências Naturais junto a uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental, em uma escola da rede municipal, com vistas a compreender o desenvolvimento dos conceitos elemento e substância, com atenção aos processos de significação conceitual por parte dos estudantes. A atenção foi orientada para a compreensão de processos de interação em sala de aula, em especial, a formas de uso (verbalização) de linguagens e pensamentos envolvidos nas interlocuções, em abordagens dos conceitos em estudo (elemento químico e substância). Também, em abordagens de livros didáticos do Ensino Fundamental, na área. 21 No contexto da temática escolhida, buscamos, a partir da realização da pesquisa, respostas ao questionamento básico: quais abordagens dos conceitos elemento e substância estão presentes no ensino de Ciências Naturais das séries finais do Ensino Fundamental e como elas co-participam na (re)construção do conhecimento escolar de Química, considerando-se a perspectiva da significação conceitual? Partimos do pressuposto de que o uso da palavra (do conceito) elemento e substância ao longo de todo o Ensino Fundamental potencializa as aprendizagens em Ciências Naturais, pois a verbalização dos conceitos contribui para os processos de formação conceitual de forma sólida, permitindo aprendizagens significativas e duradouras. Para buscar respostas a essa questão, a atenção direcionou-se à potencialidade de abordagens em livros didáticos e em aulas de Ciências Naturais para promover processos de apropriação e uso dos conceitos mencionados. Foram considerados, durante as análises, aspectos como o uso de signos (em especial a própria palavra elemento químico e substância) em abordagens nos livros didáticos e nas aulas acompanhadas. A atenção se voltou para a retomada dos conceitos em contextos diversificados, com favorecimento das necessárias interrelações conceituais que requerem a produção de sentidos aos conceitos, dando ênfase a relações estabelecidas, na perspectiva da evolução da significação conceitual. Para tal, as análises consideraram aspectos específicos à modalidade de ensino acompanhada, como estratégias e recursos didáticos ou outras condições envolvidas. Houve um sistemático interesse em explicitar e compreender possíveis relações e contribuições para a melhoria do ensino escolar em Ciências, no sentido de propiciar o acesso pedagógico a um conhecimento bastante específico, que se constitua em novos entendimentos sobre situações vivenciais dos estudantes, numa perspectiva dialética, crítica e transformadora (FREIRE, 2002). 1.2 Aspetos da Organização Metodológica da Pesquisa Neste item, apresentamos a forma com que foi organizada metodologicamente a pesquisa, explicitando a natureza da investigação, as análises das aulas e livros didáticos, bem como os sujeitos envolvidos na pesquisa. Essa pesquisa, de natureza qualitativa (LÜDKE; ANDRÉ, 1986), abrange a análise de duas coleções de livros didáticos de Ciências Naturais de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental e de aulas de Ciências Naturais de uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental. 22 Para a produção dos dados de pesquisa referentes à investigação de livros didáticos de Ciências Naturais, foi abrangido um total de oito livros, com foco na 5ª série. Inicialmente foi realizada uma busca em bibliotecas de escolas e no âmbito do Gipec-UNIJUÍ com o objetivo de identificar e escolher coleções de livros didáticos de Ciências Naturais para posterior análise. Os livros didáticos analisados de uma das duas coleções foram referidos neste trabalho por LD1, LD2, LD3, LD4. Os da outra coleção foram referidos por LD5, LD6, LD7 e LD8. O critério de seleção da primeira coleção de livros didáticos levou em conta que este material didático é usado na escola em que foram feitos os registros das aulas de Ciências Naturais da turma da 8ª série. Essa coleção foi escolhida já que a professora de Ciências, que ministrava as aulas na turma utilizava o livro da 8ª série da referida coleção como base para a elaboração de suas aulas e discussão dos conceitos. A segunda coleção analisada foi escolhida pelo fato de apresentar uma proposta diferenciada de organização das abordagens dos conteúdos/conceitos escolares, se comparada aos livros didáticos tradicionais, disponibilizados pela maioria das editoras, indo ao encontro dos entendimentos com base nos quais está organizada essa dissertação. Esta análise teve como objetivo investigar abordagens de conteúdos quanto a relações com a significação dos conceitos de elemento e substância. Os procedimentos metodológicos de análise abrangeram leituras atenciosas dos livros didáticos que permitiram identificar excertos que apresentavam abordagens de alguma forma relacionadas ao ensino dos dois conceitos em estudo nesta dissertação. Alguns excertos foram citados (transcritos) e outros foram digitalizados, em especial, por serem apresentadas figuras que acompanhavam as abordagens, Em cada excerto há a identificação do livro e da respectiva página. Por exemplo, “LD1, p. 50” corresponde a um excerto que constava na página 50 do LD1. Optamos por analisar apenas livros didáticos da 5ª série, que, no ano em que a pesquisa empírica foi desenvolvida, marca a entrada dos estudantes no universo do ensino de Ciências Naturais, haja vista que nas próprias coleções de livros didáticos da área esta série é a inicial. Como a centralidade da nossa preocupação está na perspectiva das interrelações conceituais, a análise de livros didáticos da 5ª série foi feita com vistas a subsidiar o posterior acompanhamento e análise de aulas junto a uma turma de 8ª série, na área. Tanto nos livros didáticos quanto nas aulas, o foco da análise esteve voltado para as formas de abordagem de conteúdos relacionados com os conceitos elemento e substância, no Ensino Fundamental. Durante o acompanhamento das aulas, questionamo-nos sobre o desenvolvimento dos 23 conteúdos e conceitos, para o que, foi importante contar com a análise de livros didáticos de Ciências Naturais, ainda que limitada a 5ª série (em função do limite de tempo e espaço para a escrita dessa dissertação). No contexto da pesquisa, nossa reflexão se voltou para a relação entre as abordagens dos conceitos químicos apresentados nos LD da 5ª série e as abordagens dos conceitos químicos em sala de aula, na 8ª série. O acompanhamento e registro das aulas de Ciências Naturais foram realizados junto a uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental, durante o primeiro bimestre do ano letivo de 2011, período em que foram mais abordados os conceitos substância e elemento, foco desta pesquisa. Os registros das nove aulas foram feitos em diário de campo e por meio de gravação das falas dos sujeitos de pesquisa, em áudio. A escola na qual foram realizados os registros pertence à Rede Municipal de Ensino do município de Santa Rosa/RS. Trata-se de uma instituição tradicional da cidade, em funcionamento há mais de 50 anos. Atualmente, atende 389 crianças e jovens, na grande maioria de baixa renda, que residem nas proximidades da escola. O funcionamento da escola ocorre nos turnos da manhã e da tarde, com turmas que vão da pré-escola até a 8ª série do Ensino Fundamental. O corpo docente da escola é formado por trinta e cinco professores (as), contando ainda com sete funcionários, que trabalham na limpeza da escola, preparo da merenda escolar, secretaria e biblioteca. A escola conta com uma boa infraestrutura, com várias salas de aula, biblioteca, refeitório, secretaria, sala de professores, banheiros, ginásio de esportes e pátio. Tudo se encontra bem organizado, limpo, com lixeiras espalhada dentro da escola e no pátio, calçadas pintadas com sapatas e desenhos coloridos, tudo bem decorado, o que deixa o ambiente mais bonito e aconchegante. A turma de 8ª série acompanhada durante a realização da pesquisa era constituída de dezoito alunos, sendo nove meninos e nove meninas, que têm entre treze e quinze anos de idade. Apenas um deles era repetente. A professora de Ciências Naturais que ministrou as aulas acompanhadas e registradas tinha (em 2011) dezoito anos de experiência em sala de aula, atuando como professora da 8ª série há treze anos. Tem formação no curso de Ciências, tendo cursado duas habilitações: em Química e em Biologia. Também, realizou o Cursou de pós-graduação (especialização) em Educação Ambiental, concluída no ano de 2009. A professora atuava somente na escola mencionada, ministrando aulas no componente de Matemática para a 6ª série e de Ciências Naturais para a 8ª série. 24 Os sujeitos de pesquisa foram: uma professora de Ciências Naturais (que ministrou as aulas) e dezoito estudantes que frequentam a 8ª série do Ensino Fundamental, com observações na condição de pesquisador externo. Destacamos que a pesquisa atendeu os princípios da ética na pesquisa. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa da UNIJUÍ, sob o protocolo de nº 0133/2010 de 08/11/2010 (Anexo1), em acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 196/96, que normatiza pesquisas que envolvem seres humanos. Os sujeitos participantes – professora de Ciências Naturais e estudantes – após serem informados sobre a pesquisa, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo 2). Para preservar o anonimato e autoria dos sujeitos de pesquisa, foram usados letras e números, para indicar a aula de Ciências Naturais, o número da manifestação e o sujeito envolvido. Por exemplo: “Aula 5.7.A3” se refere a 5ª aula da turma, sendo a sétima manifestação verbalizada durante esta aula, pelo aluno número 3. Foram gravadas todas as aulas de Ciências Naturais da referida turma, durante o 1º bimestre de 2011. Após, as falas registradas (em áudio) foram transcritas e posteriormente foram procedidas sucessivas leituras atenciosas das transcrições, com vistas a verificar relações com a perspectiva da significação conceitual. Nesta dissertação foi procedida uma análise das primeiras cinco aulas acompanhadas e registradas, em função da limitação de espaço para a escrita do trabalho. Os procedimentos de análise consistiram em recortar turnos de fala correspondentes ao período inicial das aulas, com vistas a discuti-los de forma teoricamente fundamentada, em busca de respostas à questão de pesquisa, ou seja, com foco direcionado aos processos de significação dos conceitos elemento e substância. O capítulo que segue trata, precisamente, dessa perspectiva de ensino (a da significação conceitual, em Química, no Ensino Fundamental de Ciências Naturais). A discussão é centrada na importância da apropriação e do uso das ‘palavras da escola’ (a exemplo de elemento e substância) acompanhada de uma reflexão sobre a especificidade do conhecimento escolar em Ciências Naturais. 25 2 A QUÍMICA NO ENSINO FUNDAMENTAL DE CIÊNCIAS NATURAIS E A PERSPECTIVA DA SIGNIFICAÇÃO CONCEITUAL Este capítulo foi organizado com o objetivo de situar o entendimento dos processos de significação conceitual ao longo das 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental, em Ciências Naturais, com foco nos conceitos elemento e substância. Para isso, foram buscados fundamentos em duas vertentes teóricas: (i) no referencial histórico-cultural de Vigotski (2008), com abordagens sobre as interações sociais nos processos de ensino e aprendizagem, sobre o uso da palavra na significação dos conceitos, sobre a especificidade da mediação pelos livros didáticos e pelos professores do acesso ao conhecimento escolar; (ii) numa abordagem de cunho mais epistemológico sobre a diversidade dos conhecimentos que coparticipam dos processos de construção do conhecimento escolar, na perspectiva de uma pluralidade de relações de diálogo entre culturas diversificadas, com atenção focada nas duas esferas culturais mais amplas, a da ciência e a do cotidiano. As abordagens visam ao entendimento dos processos de reconstrução conceitual, com foco no acesso ao estilo de linguagem/pensamento específico da Química no ensino de Ciências Naturais. Essa forma de linguagem/pensamento específico à química constitui-se como conhecimento escolar, sendo assim, não é aprendido na rua, na comunidade, mas sim na escola. Tais abordagens estão voltadas também à importância dos conhecimentos como teorias que permitem entendimentos sobre situações reais, socialmente construídas nas interações entre sujeitos com vivências e formações diversificadas. Este capítulo está organizado em três subcapítulos. O primeiro traz um olhar sobre a organização dos conteúdos de Ciências Naturais no Ensino Fundamental propostos no âmbito dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de Ciências Naturais (PCN-CN). O segundo discute os processos de formação de conceitos pelo uso da palavra da palavra com ressignificação conceitual ao longo do período de escolarização. O terceiro discute a introdução da Química no ensino de Ciências Naturais a partir de um olhar epistemológico. 26 2.1 Um Olhar à Organização dos Conteúdos no Ensino de Ciências Naturais Para dar início a esta discussão sobre as abordagens de conceitos de Química no Ensino Fundamental optamos por apresentar alguns aspectos da organização dos conteúdos do ensino de Ciências Naturais por parte dos PCN-CN. Este documento, dirigido às escolas e aos educadores do país, norteia e busca conferir identidade às práticas de sala de aula, contribuindo no planejamento de um ensino articulado à formação da cidadania responsável, pelo acesso a conhecimentos escolares que requerem linguagens e pensamentos específicos. Propõem uma aprendizagem que se diferencia das propiciadas na vida cotidiana. Ao voltarmos o olhar a esse documento, procuramos identificar proposições referentes a organização dos conteúdos e conceitos das séries finais do Ensino Fundamental, na área Os PCN-CN defendem uma ampliação dos vínculos entre o que se aprende no interior do espaço escolar e fora da escola. Valorizam interações no âmbito da comunidade escolar em geral, de modo que o currículo seja desenvolvido articuladamente ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, em busca de melhorias da educação em cada escola do país. Ao mesmo tempo em que o currículo necessita levar em conta as diversidades culturais em contexto local, ou seja, contemplar peculiaridades e necessidades de cada região, exige-se que os estudantes tenham acesso aos conhecimentos historicamente produzidos na humanidade, em especial os das Ciências, como conhecimentos significativos que possibilitam novos entendimentos de situações da vivência a partir de conhecimentos significados na escola. De acordo com os PCN-CN, a educação tem um papel fundamental no desenvolvimento das pessoas e da sociedade, numa escola voltada para a formação de cidadãos. Nesse sentido os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem que o Ensino Fundamental contemple temas como: cidadania, direitos e deveres dos cidadãos, solidariedade, cooperação e respeito, com a pretensão de despertar nos estudantes um posicionamento crítico frente aos acontecimentos atuais, além de fazer com que eles conheçam diferentes características culturais do Brasil e aprendam a conviver com elas, numa perspectiva enriquecedora das vivências locais e globais, no país. Propõem, ainda, que o estudante compreenda e conheça seu próprio corpo, valorizando–o e mantendo hábitos saudáveis, pelo conhecimento propiciado na escola; que faça o uso da linguagem, que saiba utilizar diferentes fontes de informação e que compreenda, acima de tudo, que faz parte de um todo, atuando como agente transformador do meio ambiente e da sociedade em que vive, e na qual estabelece suas relações (BRASIL, 1998). 27 Nos PCN-CN os conteúdos são apresentados em quatro eixos temáticos (ou blocos temáticos), que são: Terra e Universo, Vida e Ambiente, Ser humano e Saúde, Tecnologia e Sociedade. Os conteúdos de Ciências Naturais foram agrupados nestes blocos temáticos para que os assuntos não sejam abordados isoladamente, de forma fragmentada (BRASIL, 1998). Sendo assim, de acordo com o documento, os conteúdos/conceitos da área são abordados de forma organizada, na medida em que estes 4 eixos temáticos perpassam o ensino ao longo das diferentes séries, com uma interligação dos conhecimentos escolares entre si e com os temas. Segundo o documento, o critério para a seleção dos conteúdos foi elencar aqueles que favorecessem a construção de uma visão de mundo capaz de promover relações entre os diferentes fenômenos da natureza (BRASIL, 1998). Assumimos que os conhecimentos de Ciências Naturais são relevantes socialmente para que os estudantes compreendam o seu cotidiano e as relações que nele se estabelecem, pela significação de conceitos na escola. Isso supõe uma visibilidade, ao longo do ensino no currículo escolar, das relações entre os conhecimentos científicos e as atitudes e valores a eles associados. A temática “Terra e Universo” busca abordar conceitos relacionados à presença do homem na terra, explicitando ainda como é e como funciona o universo, de onde viemos, a origem e evolução do planeta terra, também os planetas, o sol, as estrelas, a água, enfim, tudo o que existe no planeta (BRASIL, 1998). Nesse contexto de estudo, podem ser feitas diversas abordagens compreensivas sob o olhar da Química, com o uso de palavras/conceitos significados na escola, com os códigos de linguagem que lhes são próprios (simbologias). Os estudos sobre o planeta e o universo podem abranger conhecimentos e reflexões sobre o nosso planeta como uma realidade ou espaço transformado pela ação do homem, como a poluição das águas, dos solos, da atmosfera e também os processos de tratamento para despoluição dos ambientes, ou seja, contemplando conhecimentos associados com atitudes e valores referentes à produção e transformação dos materiais e da natureza. Não cabe a visão romântica de uma natureza “pura”, isenta de efeitos das transformações pela ação do homem, sendo importante desmistificar a visão da Química como algo “maléfico” ou “benéfico”. É ao uso dos conhecimentos das ciências, ou seja, não a elas em si, que estão associadas implicações para a vida na sociedade/ambiente. Vale destacar a importância da crescente valorização de um ensino de Ciências Naturais que contemple abordagens fundamentadas nas necessárias relações entre Ciência-Tecnologia-SociedadeAmbiente (CTSA) ou simplesmente Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS). Trata-se de um 28 ensino que oferece aos estudantes conhecimentos que lhes possibilitem participar de forma ativa na sociedade moderna, “no sentido da busca de alternativas de aplicações da ciência e tecnologia, dentro da visão de bem-estar social” (SANTOS & SCHNETZLER, 2003). Desta forma, podemos trazer à tona discussões que venham a contribuir para as abordagens dos conteúdos dentro dessa temática com o olhar voltado aos conhecimentos da área da Química, enfatizando alguns conceitos-chave, como os conceitos de elemento, substância, átomo, ligações químicas, que permitam um melhor entendimento sobre a terra e o universo no qual estamos inseridos. Quanto a este eixo temático, cabe refletir que nem sempre o Ensino Fundamental contempla estudos pertinentes. Por vezes, uma área de conhecimento deixa este conteúdo para a outra e, no final, o currículo acaba por negligenciar o acesso a compreensões importantes sobre o mundo em que vivemos. Na temática “Vida e Ambiente” os PCN-CN propõem que sejam ampliados conhecimentos sobre a diversidade da vida nos ambientes naturais e nos espaços transformados pelo homem, estudando ainda a dinâmica da natureza, e como emerge a vida em diferentes espaços, condições e tempos (BRASIL, 1998). Dentro dessa temática também podemos incluir diversos conteúdos da área de Ciências Naturais nos quais a Química é um conhecimento necessário às compreensões, desde o estudo dos diversos ecossistemas, com abordagens sobre o solo, a água, o ar, os seres vivos que vivem nesse ambiente. Nos estudos sobre o solo, a água e o ar a Química é imprescindível, principalmente quando do estudo da constituição, das propriedades e das transformações que podem ocorrer, sendo essencial o uso e ressignificação dos conceitos elemento e substância, como já referido. Também, nos estudos e discussões sobre os ciclos biogeoquímicos, conteúdo no qual a Química outra vez se faz presente e necessária para os entendimentos sobre as transformações envolvidas na biosfera, sempre interrelacionais. O eixo temático “Ser humano e Saúde” explora as questões relacionadas ao corpo humano como um todo, ao seu desenvolvimento e funcionamento, a sexualidade e reprodução, além de questões relacionadas à manutenção da saúde através de hábitos sadios. Os conhecimentos escolares, nesse eixo temático incluem conceitos relacionados à compreensão das transformações químicas (reações) que ocorrem em nosso organismo para que ele mantenha seu funcionamento. Também, a Química está incluída nas compreensões e discussões relacionadas aos alimentos, no que diz respeito a sua constituição e as diferentes formas de atuação no organismo, abordando os nutrientes encontrados em diferentes 29 alimentos e suas transformações, em sentido geral. Por exemplo, contempla estudos sobre reações enzimáticas. São estudos escolares que requerem conceitos, com o entendimento de que cada diferente alimento é uma mistura constituída por um conjunto de substâncias, as quais são constituídas por elementos químicos. Assim, cada eixo temático vai permitindo a compreensão da idéia de que um conjunto de átomos iguais (com mesma massa atômica) compõe determinado elemento químico. Também, a noção de que átomos ligados entre si formam diferentes substâncias, com diferentes propriedades e modos de ação no ambiente, incluindo os seres vivos. Por exemplo, as substâncias que constituem o ar, as águas, os alimentos, conferindo-lhes, neste caso, cor, sabor, aroma, entre outras características percebidas sensorialmente e que, também, cumprem com funções bastante específicas no nosso organismo e na saúde. Ainda nesse eixo temático, as questões relacionadas à saúde humana poderiam abranger relações com a poluição causada pelo homem ao lançar em ambientes inadequados substâncias tóxicas, como as embalagens de agrotóxicos não descartados corretamente, os resíduos gerados por indústrias. Até mesmo a noção de “alimento orgânico” ou as formas de tratamento da água, com atenção aos processos utilizados para a retirada de poluentes, com uso, também, de materiais e substâncias. A temática “Tecnologia e Sociedade” tem como conteúdos principais as transformações dos materiais e dos ciclos naturais em produtos necessários à sociedade, em que são enfocados os conhecimentos, os materiais e os instrumentos necessários para que estas transformações aconteçam. Esse eixo temático caracteriza principalmente as abordagens feitas em Ciências Naturais na 8ª série do Ensino Fundamental, ao abordar a constituição, as propriedades e as transformações pelas quais os materiais passam durante sua produção, ou ao entrar em contato com um ambiente em condições adversas, por exemplo. No entanto, esses estudos e discussões relacionados às propriedades, à constituição e às transformações pelas quais os materiais e substâncias podem passar, necessitam ser relacionados com as demais temáticas propostas nos PCN e nos diversos níveis de ensino, conforme se entende, neste trabalho e também indicado no referido documento. De acordo com os PCN, os trabalhos desenvolvidos em sala de aula a partir de temáticas e situações de vivência dos estudantes são muito mais significativos e produtivos quando comparados ao ensino tradicional, que segue à risca os conteúdos fragmentados estabelecidos em livros didáticos, simplesmente reproduzidos nos programas de ensino. Isto 30 ocorre porque os estudantes, cada vez mais, despertam o interesse em conhecer o que está a sua volta, assuntos relacionados ao seu dia-a-dia, buscando explicações para suas dúvidas. Porém, na maioria das vezes a escola não lhes dá essas explicações, porque se preocupa apenas em transmitir conhecimentos científicos, que são fundamentais, porém não suficientes, e que estão distantes da realidade dos estudantes. O ensino dos conhecimentos científicos é indispensável em sala de aula, já que são necessários para que todos tenham um conhecimento básico ao sair da escola, necessário á compreensão do meio. No entanto, os conhecimentos de caráter científico necessitam de uma abordagem diferenciada, na escola, que leve em conta tanto a complexidade conceitual quanto a relação com a realidade na qual os estudantes estão inseridos, considerando seus conhecimentos vivenciais, suas necessidades, interesses e dúvidas. Um exemplo clássico de tema que vem sendo objeto de discussão no ensino de Ciências Naturais é o da sexualidade. Sendo de interesse da maioria dos jovens, pode ser desenvolvido na escola como um tema articulador do desenvolvimento de conteúdos científicos em vários níveis de ensino e diferentes áreas de conhecimento, inclusive na Química. Isso também se relaciona com a perspectiva da significação conceitual, como ensino que contemple interrelações entre conhecimentos diversificados, sejam científicos ou cotidianos. Cabe registrar que os Temas Transversais propostos nos PCN-CN são: Tecnologia, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Pluralidade Cultural e Ética. Há uma abordagem compreensiva sobre cada um desses temas, cabendo a cada contexto escolar tanto a explicitação teórica da concepção do tema quanto a sua inserção ao longo do currículo escolar, com interrelações em sentido horizontal (entre as disciplinas/áreas do conhecimento) e vertical (entre as séries). Também cabe a cada escola decidir sobre outros possíveis temas transversais, por exemplo, moradia, segurança, violência, drogadição, entre outros. Consideramos importante essa perspectiva de que os temas permeiem os estudos em diferentes áreas de conhecimento e séries, articuladamente ao ensino dos conteúdos/conceitos, em contextos diversificados. Isso contribuiria para níveis crescentes de complexidade, buscando dar sentido a situações práticas, por meio de abordagens teóricas sobre elas, com e pela significação dos conceitos escolares. Em termos gerais, os PCN-CN constituem-se num subsídio muito importante, que contribui para a organização curricular da escola e da área de conhecimento. Apresentam 31 indicações para uma aprendizagem mais significativa por parte dos estudantes, fazendo com que estes compreendam os conceitos de uma forma mais interrelacionada, podendo associálos a transformações que ocorrem no seu corpo, em outros seres, fatos, fenômenos no ambiente, enfim, em todas as partes do mundo. Proporcionam aos educadores a oportunidade de melhoramento de suas práticas pedagógicas, fazendo com que reflitam suas atitudes em sala de aula, que repensem suas propostas, seus objetivos e as formas de abordagem dos conceitos e conteúdos no ensino. Cabe registrar que, no âmbito da UNIJUÍ, já na década de 1980, foram desenvolvidas propostas de reorganização curricular, na área, em busca de potencializar relações entre os conteúdos/conceitos, dando atenção para questões ambientais, tecnológicas, sociais, de valores, hábitos e situações reais, perpassando por todas as séries do ensino fundamental. Maldaner e Zanon (2004, p. 45-46) relatam sobre tentativas de mudança realizadas com vistas a romper o esquema tradicional de organização do ensino, na área de ensino em questão. Em nosso meio, professores de Ciências vivenciaram um processo de mudança cujo desafio foi o de inserir, nas práticas do ensino de Ciências, temas amplos de estudo trazidos da vivência social, que pudessem articular os aprendizados na escola. Importantes avanços foram então conseguidos, sobretudo os que permitiram dinamizar os processos de construção do conhecimento escolar, de modo a lhes conferir um maior grau de inter-relação, significação e relevância, além de estabelecer uma cultura de trabalho coletivo entre os profissionais da educação. A idéia de temas amplos tem sido utilizada, até hoje, por educadores que desejam superar a disciplinaridade, articular os conteúdos do ensino entre si e com contextos de vivência dos escolares. São inúmeras as experiências desenvolvidas dessa forma, ainda que diferençadas em sua concepção e organização. [grifos do autor] Essa ideia de um ensino organizado com base em temas amplos foi proposta e desenvolvida em salas de aula de inúmeras escolas, já no início da década de 1980, num antecedendo a proposição dos temas transversais (ou temas de relevância social) pelos PCNCN (final da década de 1990). Segue uma narrativa sobre tal organização do currículo do ensino de Ciências Naturais. A preocupação em organizar os processos de ensino e de aprendizagem em Ciências na forma de temas amplos orientou a reconstrução curricular nessa área em nosso meio e faz parte da história de muitos professores na região de atuação da Unijuí. Os temas amplos de estudo considerados na elaboração das Propostas Alternativas de Ensino de Ciências foram: alimentação, saúde, energia, universo e ambiente. Com base nesses temas, grupos organizados de professores dos sistemas se ensino e do então Departamento de Ciências da Fidene/Unijuí conceberam propostas de ensino de Ciências que até hoje são utilizadas por muitos educadores. Podemos dizer que, em alguns aspectos, tais processos históricos de mudança desenvolvidos em escolas da nossa região permitiram rupturas com a forma tradicional de organização dos conteúdos do ensino de Ciências, conforme ficou registrado nos próprios livros didáticos produzidos coletivamente e em publicações da época. (MALDANER; ZANON, 2004, p. 46 [grifos do autor]) 32 Contudo, nos dizeres dos mesmos autores acima citados, Uma avaliação mais rigorosa dessa experiência desenvolvida com base nos temas amplos mostra que a almejada ruptura com a forma linear e fragmentada de organização do currículo e da formação escolar não aconteceu. Ainda que de modo não totalmente estanque, cada tema ficou concentrado em determinado espaço curricular: alimentação na quarta série, energia na oitava, saúde na sétima. O tema ambiente não era intencionalmente contemplado nem na sétima e nem na oitava série, como era também o caso de outros temas. (MALDANER; ZANON, 2004, p. 47 [grifos do autor]) Entre as dificuldades para a concretização das mudanças pretendidas, a principal pode ser reportada a formação e as concepções dos professores da área. Segundo o relato de Maldaner e Zanon (2004, p. 47-48-49), Em contato com professores de Ciências das escolas percebe-se que há uma tendência de fixar esses temas por série. [...] A fragmentação e a linearidade continuam marcando o ensino de Ciências nas escolas e a formação dos professores de Ciências, em nosso meio e, praticamente, em todo o país. Percebemos o quanto os professores se mostram dependentes da organização curricular tradicional vigente, que classificamos como linear e fragmentada. [...] Os conteúdos do ensino, os novos conceitos e linguagens continuam pouco relacionados entre si e aos contextos sociais de vivência fora da escola, resultando em aprendizados superficiais e restritos, que não contribuem para o desenvolvimento das potencialidades humanas e sociais. Não cabe, aqui, tecer uma discussão mais alargada sobre a organização dos conteúdos do ensino de Ciências Naturais, quanto à organização baseada em temas e nos eixos temáticos. Nossa reflexão se volta à visão de que discursos veiculados pelas políticas públicas ou por grupos de pesquisa muitas vezes permanecem apenas como algo que “ficou no papel”, como se diz nos meios educacionais. Por exemplo, embora haja consensos em relação a indicações dos PCN-CN, no que diz respeito à proposição, no âmbito do currículo escolar como um todo, de uma organização curricular articulada com base em temas de relevância social, será que isso não “ficou apenas no papel”? Nesta dissertação, a reflexão sobre o ensino de Ciências Naturais desenvolvido nas escolas é direcionada, especificamente, para a especificidade do conhecimento escolar no campo da Química. Afinal, qual é a clareza, por parte da escola e do professor de Ciências sobre o objeto de estudo específico da Química? Ainda que, no Ensino Fundamental, as aulas são de Ciências Naturais, no seio desta área estão, também, os aprendizados de conteúdos/conceitos escolares de Química, por isso, ter ciência desse objeto de estudo é uma premissa essencial ao ensino, na área, sendo preocupante a tendência hegemônica que concebe a disciplina escolar Biologia como representativa da área. 33 Esta dissertação busca contribuições relativas a problemática acima expressa. Os próprios pressupostos e orientações dos documentos que compõem as políticas públicas têm dado atenção às diferentes disciplinas que integram a área de Ciências Naturais. Nesse sentido, o foco da nossa discussão está situado na necessidade de superar a fragmentação e linearidade dos conhecimentos ao longo do Ensino Fundamental, no que se refere aos conteúdos/conceitos fundamentais ao ensino de Química. O conhecimento escolar em Química supõe um objeto de conhecimento bastante específico. Usando os mesmos dizeres de Mortimer, Machado e Romanelli (2000, p. 176), vale reiterar que a Química tem como objetos centrais de investigação “os materiais e as substâncias, suas propriedades, sua constituição e suas transformações.”. O currículo escolar de Ciências Naturais necessita perpassar estudos sistematicamente interrelacionados que permitam aprendizados significativos e socialmente relevantes sobre esse objeto central, de forma sempre interrelacionada. Isso exige um currículo diferenciado que, de forma bastante diferente do tradicional, permita aos estudantes compreensões sobre os acontecimentos cotidianos, de forma que sejam usados conceitos químicos para a problematização crítica de situações-problema vivenciadas no dia-a-dia. As interrelações entre os focos de interesse e objetos de estudo da Química são representados pelos autores em uma triangulação, conforme segue: PROPRIEDADES Substâncias e Materiais CONSTITUIÇÃO TRANSFORMAÇÕES Figura 1: Triangulação essencial ao conhecimento escolar de Química. Fonte: Mortimer, Machado e Romanelli, (2000, p. 276) Conforme mencionado anteriormente, a Química tem como foco de estudo principal as substâncias e os materiais, bem como sua constituição, suas propriedades e suas transformações. A partir do triângulo, que representa os focos de interesse da Química, podem ser feitas algumas considerações em relação aos temas dos conteúdos destacados. Para os autores desse triângulo, o conhecimento 34 das substâncias e dos materiais diz respeito a suas propriedades, tais como dureza, ductibilidade, temperaturas de fusão e ebulição, solubilidade, densidade e outras passíveis de serem medidas e que possuem uma relação direta com o uso que se faz dos materiais. No sentido de compreender os comportamentos dos materiais alguns conhecimentos químicos são fundamentais: aqueles que envolvem os diversos modelos que constituem o mundo atômico-molecular, as propostas para conceber a organização e as interações entre átomos, íons e moléculas. Esses conhecimentos oferecem subsídios importantes para a compreensão, o planejamento, a execução das transformações dos materiais. Estabelecer interrelações entre esses três aspectos nos parece fundamental para que se possa compreender vários tópicos de conteúdo químico (MORTIMER, MACHADO E ROMANELLI, 2000, p. 276). Contudo, a problemática do ensino de conteúdos/conceitos de Química é bastante complexa, ainda mais se considerarmos o nível do Ensino Fundamental em Ciências Naturais. Neste trabalho, discute-se sobre abordagens dos conteúdos, em especial, quanto as interrelações entre conceitos que necessitam ser favorecidas ao longo do percurso da escolarização. O item que segue discute a complexidade dessa problemática, tendo como foco entendimentos sobre os processos de significação conceitual, com apoio no referencial histórico-cultural. 2.2 Formação de Conceitos pelo Uso e Ressignificação da Palavra ao longo da Escolarização Vigotski, psicólogo soviético, é reconhecido, hoje, por suas obras que trazem grandes contribuições para o estudo e para o entendimento dos processos de formação de conceitos, sobre o pensamento e a linguagem. Neste subcapítulo são apresentadas algumas contribuições desse autor para a compreensão do processo de formação de conceitos e sobre a importância da palavra no processo de significação conceitual, com o enfoque voltado para o ensino de Ciências Naturais no nível fundamental. Para iniciar as discussões em torno de como se dão os processos de significação conceitual, dando ênfase aos conceitos Químicos, em especial o de elemento e substância, que permeiam os estudos em Ciências Naturais, faz-se necessário abordar alguns aspectos do estudo experimental da formação de conceitos realizado por Vigotski a partir de investigações realizadas por outros pesquisadores, como Ach e Rimat, e que foram citadas na obra Pensamento e Linguagem. Estes autores usaram em suas pesquisas métodos tradicionais que 35 foram, de certa forma, criticados por Vigotski, pois separam a palavra do material da percepção, negligenciando e desconsiderando o papel desempenhado pela palavra (símbolo), na formação dos conceitos (VIGOTSKI, 2008). As investigações de Ach revelam que a formação de conceitos não é um processo mecânico e passivo, mas sim um processo criativo. Para ele um conceito surge e se configura no curso de operações complexas, voltadas à solução de problemas, sendo que para que haja o surgimento de um conceito é preciso muito mais do que condições externas favoráveis para a ligação entre a palavra e o objeto (VIGOTSKI, 2008). De acordo com o esquema de Ach a formação de conceitos não segue o modelo de uma cadeia associativa, em que um elo faz surgir o seguinte; trata-se de um processo orientado para um objetivo, uma série de operações que servem de passos em direção a um objetivo final. A memorização de palavras e a sua associação com os objetos não leva, por si só, à formação de conceitos; para que o processo se inicie, deve surgir um problema que só possa ser resolvido pela formação de novos conceitos. (VIGOTSKI, 2008, p. 68) A partir dessa afirmativa podemos refletir sobre os processos de significação conceitual na área de Ciências Naturais, no sentido de que a formação de conceitos não segue uma mera cadeia de associações, pensada por muitos, da mesma maneira em que a memorização de palavras não leva à formação de conceitos. Esta ainda é uma prática adotada por muitos professores, que imaginam que apenas com a memorização os estudantes são capazes de compreender e se apropriar dos conceitos abordados em sala de aula em Ciências Naturais. Mas como o próprio autor nos diz, para que a formação de conceitos se inicie é preciso que tenhamos um problema, que seja possível de ser resolvido pela formação de novos conceitos. Desta forma, a resolução de um problema gera a formação de conceitos, que, por conseguinte gera novos problemas, e que só serão resolvidos com a formação de novos conceitos, estabelecendo-se desta forma uma rede de conceitos que passam a ser formados. Vigotski (2008) salienta que o estudo de Ach demonstra que o processo de formação de conceitos nas crianças difere nos adolescentes e nos adultos não pelo modo como eles compreendem, mas sim pelo modo como suas mentes trabalham para isso. Baseado no estudo de Usnadze, afirma que enquanto os conceitos completamente formados aparecem relativamente tarde, as crianças começam cedo a utilizar palavras e a estabelecer, com a ajuda destas, uma compreensão mútua com os adultos e entre elas próprias. A partir dessa constatação, 36 ele conclui que as palavras exercem a função de conceitos e podem servir como meio de comunicação muito antes de atingir o nível de conceitos característico do pensamento plenamente desenvolvido (VIGOTSKI, 2008, p. 69). A esta colocação podemos relacionar muitas discussões feitas no âmbito do ensino de Ciências Naturais, principalmente, no que se referem ao uso de conceitos químicos, ou da palavra, já no Ensino Fundamental, a partir da 5ª série, em que os conceitos químicos já podem ser introduzidos nas discussões. Temos clareza de que os estudantes não se apropriam, nesse nível de ensino, dos conceitos verdadeiros, como os de elemento e substância. Como mencionado anteriormente, o processo de formação conceitual é complexo e é preciso muito mais do que a memorização e repetição de palavras. No entanto, com o uso da palavra elemento, substância, ou outras, as crianças nessa fase escolar já têm a capacidade de se comunicar com os adultos, de falar e estabelecer relações entre elas, mesmo que não com o significado conceitual pleno, para que posteriormente possam atingir o nível conceitual que caracteriza o pensamento desenvolvido com base no significado do conceito. O processo até a formação de conceitos, segundo Vigotski (2008), passa por uma trajetória que apresenta três fases distintas, as quais possuem diferentes estágios. A criança passa por todas essas fases e estágios durante o processo de formação conceitual. Para que possamos compreender todo esse processo, que culmina com a formação dos conceitos, é importante que façamos uma reflexão e uma retomada dessas fases, a partir da obra e das contribuições de Vigotski, autor que trabalha com a perspectiva histórico-cultural. É importante entender que não se trata de fases cronológicas ou próprias de faixas etárias. Toda criança passa por todas essas fases durante o seu processo de desenvolvimento até a formação conceitual, podendo ocorrer em faixas etárias diferentes, não obedecendo a ordem cronológica alguma. Em seu estudo experimental, Vigostski (2008) anuncia que a primeira fase na trajetória de formação dos conceitos é caracterizada pela formação de grupos de objetos, ou de palavras, de forma desorganizada, numa espécie de amontoado, em que estes nada tem em comum uns com os outros. A criança os faz a fim de solucionar um problema que encontra em seu dia-a-dia, ou para a resolução de alguma tarefa. A partir desses estudos experimentais realizados com crianças, pode-se perceber que os objetos são agrupados de forma completamente desorganizada, sem qualquer lógica ou relação entre si, no entanto, para a 37 criança eles se revelam como um significado ao signo, uma palavra artificial, que passam desta forma a ter relação no imaginário infantil (VIGOTSKI, 2008). Nesse primeiro estágio, o significado das palavras denota, para a criança, nada mais que um conglomerado vago e sincrético de objetos isolados que, de uma forma ou outra, aglutinaram-se numa imagem em sua mente. Devido à sua origem sincrética, essa imagem é extremamente instável (VIGOTSKI, 2008, p.74 [grifos do autor]). No entanto, por mais que a palavra represente para a criança apenas um aglomerado vago, de objetos isolados, ela permite a comunicação desse sujeito com o mundo, e com os demais sujeitos, possibilitando mútuo entendimento. A criança só é capaz de formar novos conceitos quando atinge certa “maturidade”, com aproximadamente 12 anos. Antes disso, ela trabalha com pseudoconceitos, mas que permitem, sem dificuldades, que se relacione e entenda o que os adultos têm a lhe dizer. Nesse sentido, Vigotsk afirma que muitas palavras têm, em parte, o mesmo significado tanto para os adultos quanto para as crianças, especialmente aquelas que se referem a objetos concretos, que fazem parte do dia-a-dia da criança (VIGOTSKI, 2008). Os significados que são atribuídos “a uma palavra por um adulto e por uma criança em geral ‘coincidem’, por assim dizer, no mesmo objeto concreto, e isso é suficiente para garantir a compreensão mútua.” (VIGOTSKI, 2008, p. 75). A partir dessa discussão podemos considerar inúmeros casos em que nos surpreendemos com a forma de expressão e a capacidade de entendimento, mesmo que de maneira superficial, de muitas crianças ao conversarem com adultos sobre assuntos que poderíamos julgar complexos para sua idade. Por mais que o entendimento entre ambos possa não ser completo, a interação lhes possibilita algumas compreensões e alguns entendimentos sobre o determinado assunto que está em pauta. É essa interação com o outro, a comunicação, que permite a criança novos entendimentos, e a formação de novos conceitos com o passar do tempo. O primeiro estágio no processo de formação dos amontoados sincréticos se caracteriza por uma manifestação do estágio de tentativa e erro (VIGOTSKI, 2008). Nesse estágio os grupos de objetos ou de palavras são criados ao acaso, na tentativa de acerto. Quando a escolha feita pela criança é colocada em prova, é questionada, ela facilmente substitui os grupos, muda os objetos ou as palavras de lugar, numa nova tentativa de acerto. 38 Nos anos iniciais e ainda nos anos finais do Ensino Fundamental, nos vemos em situações nas quais podemos dizer que a criança se encontra nesse estágio. Para ela os objetos, as palavras ou as frases não tem lógica alguma, ela não consegue estabelecer as relações entre os objetos/palavras, e quando é desafiada a realizar uma tarefa, ou algum exercício que requer o estabelecimento dessas relações a única alternativa que encontra é adotar a estratégia da tentativa e erro. Muitas vezes elas se dirigem ao professor e perguntam “É essa, né profe?” ou “É assim, né profe?”. Se fizermos qualquer pergunta, ou qualquer indagação em relação ao motivo de sua escolha, em alguns casos, a criança não nos fala nada, simplesmente pega a borracha e já começa a apagar, mesmo que a resposta esteja correta. Ela passa a buscar então outra alternativa, até que o problema seja solucionado, até conseguir “o acerto”. No segundo estágio do processo de formação dos amontoados, os objetos são organizados pela criança em função de sua disposição no espaço, ou seja, a partir da organização do campo visual da criança puramente sincrética. A imagem ou grupos sincréticos formam-se como resultado da contiguidade no tempo ou no espaço dos elementos isolados, ou pelo fato de serem inseridos em alguma outra relação mais complexa pela percepção imediata da criança (VIGOTSKI, 2008, p. 75 [grifos do autor]). Quanto ao terceiro estágio, a formação dos amontoados sincréticos se dá de forma mais complexa, em que os grupos são formados por elementos retirados de amontoados diferentes, que a criança já possui e que foram criados por ela anteriormente (VIGOTSKI, 2008). Esses grupos formados agora por elementos recombinados continuam sendo de natureza sincrética, são incoerentes e não possuem elos entre si. A única diferença desse estágio, se comparado aos demais, é que “ao tentar dar significado a uma nova palavra, a criança agora o faz por meio de uma operação que se processa em duas etapas.” (VIGOTSKI, 2008, p. 76). A segunda fase, considerada a mais importante na trajetória de formação do pensamento conceitual, abrange algumas variações de um tipo de pensamento, chamado por Vigotski (2008) de pensamento por complexos. Nessa forma de pensamento, os objetos isolados, organizados anteriormente de forma sincrética, passam a se associar na mente da criança em função de relações que de fato existem entre eles, não apenas pelas impressões subjetivas da criança (VIGOTSKI, 2008). Ou seja, ao contrário do que acontecia anteriormente, nessa fase ocorre a passagem para um nível mais elevado no processo de formação dos conceitos. Essa forma de pensamento já se constitui como um pensamento 39 objetivo, que apresenta coerência, por mais que não reflita as relações existentes entre a palavra ou os objetos da mesma forma que no pensamento conceitual. No pensamento por complexos as ligações são factuais e descobertas através da experiência. Vigotski (2008) define um complexo como sendo um agrupamento concreto de objetos unidos por ligações factuais. Uma vez que um complexo não é formado no plano do pensamento lógico abstrato, as ligações que o criam, assim como as que ele ajuda a criar, carecem de uma unidade lógica; podem ser de muitos tipos diferentes. Qualquer conexão factualmente presente pode levar à inclusão de um determinado elemento em um complexo. É esta a diferença principal entre um complexo e um conceito. Enquanto um conceito agrupa os objetos de acordo com um atributo, as ligações que unem os elementos de um complexo ao todo, e entre si, podem ser tão diversas quanto os contatos e as relações que de fato existem entre os elementos (VIGOTSKI, 2008, p. 77 [grifos do autor]). No ensino de Ciências Naturais abordam-se muitos conceitos que são, ou pelo menos deveriam ser compreendidos, e de fato significados por parte dos estudantes, em função de sua importância na compreensão de situações e fenômenos mais complexos, em níveis de ensino mais elevado. Já sabemos que esse processo de significação conceitual é complexo, e passa por vários níveis até atingir o ponto máximo, no qual o estudante formula e utiliza/verbaliza de forma plena os seus próprios conceitos. Na 8ª série do Ensino Fundamental os estudantes ainda assumem a forma de pensamento por complexos, e isso é claramente percebido se acompanharmos algumas aulas neste nível de ensino. Nesta fase ainda não apresentam clareza em relação a alguns conceitos básico da área da Química, como os de elemento e substância. Isso se deve também à sua formação anterior, pois desde a 5ª, 6ª e 7ª séries normalmente não ocorrem abordagens destes conceitos. Muitas vezes sequer é feito o uso da palavra elemento ou substância, que como mencionado anteriormente são fundamentais para o processo de formação dos conceitos. Nesse processo de desenvolvimento da criança, que culmina com a formação de conceitos, é importante considerar a necessidade de evolução do significado. Para Vigotski (2008) o processo de significação conceitual não ocorre de vez, ele é um processo complexo formado por idas e vindas, evoluções, ressignificações. Nesse sentido defendemos que o uso da palavra deve ser feito o mais cedo possível. Em Ciências Naturais, já na 5ª série ou até mesmo antes, é importante que o estudante faça uso das ‘palavras da escola’, a exemplo de elemento, substância, átomo, íon, massa atômica, entre outras que são características da linguagem das ciências. De acordo com a teoria de Vigotski (2008), o uso dessas palavras gera a necessidade de evolução do significado 40 das mesmas, sendo esse ampliado e ressignificado em contextos diversificados. Isso requer processos de produção de sentidos ao conceito, o que, por sua vez, só é possível em contextos. Em cada contexto, as interrelações envolvidas se modificam, permitindo, dessa forma, a produção de novos sentidos ao conceito. Além do mais, um conceito precisa de um longo tempo para ser compreendido. Sendo assim, as palavras necessitam ser usadas, fazer parte do vocabulário dos estudantes. Ao final da escolarização, espera-se que os estudantes tenham se apropriado do significado químico das palavras, como conceitos estruturantes do próprio ao conhecimento específico ao campo das Ciências Naturais. Os estudantes, na forma de pensamento por complexos, estabelecem uma diversidade infinita de relações entre os objetos, entre as palavras ou entre os conceitos, relações que muitas vezes não são compreendidas de forma pertinente, por parte dos professores. Um conceito, para ser de fato um conceito, apresenta atributos, uma região de fronteira que o delimita e que o diferencia dos demais conceitos. Por exemplo, o conceito substância está associado com um determinado conjunto de atributos criteriais que o caracterizam. Apresenta uma área de entendimento que o delimita e, assim, que o diferencia de outros conceitos, necessários de serem usados, como: elemento, átomo, ligação química, que possuem também, cada um, atributos específicos. Na forma de pensamento por complexos os estudantes não tem clareza disso. Esses atributos, para eles, ainda não existem, portanto, o que vale são as relações que eles imaginam existir e que para eles definem determinado fenômeno ou situação. A primeira variação da forma de pensamento por complexos é chamada de tipo associativo, na qual a criança agrupa objetos e/ou palavras baseando-se em qualquer relação existente entre eles. Essas relações existentes entre os objetos podem ser determinadas pela sua cor, forma, tamanho ou outro atributo que chame sua atenção. Nessa forma de pensamento, qualquer objeto ou palavra, que esteja no plano exterior do agrupamento pode ser incluído quando existir para a criança alguma associação entre ambos. Nesse estágio, é importante salientar que “a palavra deixa de ser o ‘nome próprio’ de um objeto isolado; torna-se o nome de família de um grupo de objetos relacionados entre si de muitas formas, exatamente como as relações dentro das famílias humanas são muitas e variadas.” (VIGOTSKI, 2008, p. 78). Ou seja, o nome antes dado a um único objeto passa a designar um grupo de objetos ou palavras que se assemelham e que para a criança estabelecem relações entre si. 41 Na segunda forma de pensamento por complexos, a criança grupa os objetos, faz as combinações a partir de observações concretas, semelhantes a coleções. Nesse tipo de pensamento, ao contrário do que acontecia no tipo associativo, a criança, no estudo experimental, não agrupa os objetos pelas suas semelhanças, mas sim pelas diferenças em relação ao objeto que tem tomado como referência. Ela passa a montar coleções de objetos diferentes uns dos outros, mas que se complementam, por exemplo, colher, xícara e pires, entre tantos outros (VIGOTSKI, 2008). Essa forma de pensamento, baseada no concreto, também é utilizada muitas vezes por nós, adultos, principalmente quando nos referimos a um conjunto de roupas ou louças. Não pensamos nestes conceitos de forma generalizada, mas sim a partir do objeto concreto (VIGOTSKI, 2008). O terceiro tipo de pensamento por complexos é chamado de complexo em cadeia. Nessa forma de pensamento, ocorre uma união “dinâmica e consecutiva de elos isolados numa única corrente, com a transmissão de significado de um elo para o outro.” (VIGOTSKI, 2008, p. 79). Os objetos agrupados podem não estabelecer qualquer relação uns com os outros, sendo que os critérios para a escolha de um triângulo da cor verde, depois, um quadrado vermelho, e assim por diante, são da criança. Vigotski (2008) aponta o pensamento por complexo em cadeia como sendo “a mais pura forma de pensamento por complexos.” (VIGOTSKI, 2008, p. 80 [grifos do autor]). Segundo o autor, o complexo associativo, anterior ao complexo em cadeia, apresenta um núcleo, que liga os objetos, já no complexo em cadeia esse núcleo não existe, fazendo com que aconteçam relações entre elementos isolados. Já o complexo difuso, quarto tipo de pensamento por complexos, é caracterizado “pela fluidez do próprio atributo que une os seus elementos” (VIGOTSKI, 2008, p. 81), ou seja, os agrupamentos de objetos formados pela criança são feitos a partir de imagens concretas que, por conexões indeterminadas, difusas. Segundo o autor, os complexos formados a partir deste tipo pensamento são indeterminados a ponto de não terem limites. Essa característica, “não ter limites” diferencia este tipo complexo de um conceito, que possui atributos únicos, que são somente seus; ele apresenta uma região que o delimita e o diferencia dos demais conceitos. No complexo difuso, assim como nos demais complexos, a criança não tem limites quanto à inclusão de novos objetos, novas palavras no grupo, ou família que organiza. 42 Para concluir a segunda fase no processo de formação dos conceitos, apresenta-se o último tipo de pensamento por complexos, que é o divisor de águas entre a forma de pensamento por complexos e o pensamento em sua forma mais desenvolvida, conceitual. Esse complexo é chamado de pseudoconceito, no qual, como o próprio nome já sugere, “a generalização formada na mente da criança, embora fenotipicamente semelhante ao conceito dos adultos, é psicologicamente muito diferente do conceito propriamente dito; em sua essência, é ainda um complexo.” (VIGOTSKI, 2008, p. 82). Ou seja, as generalizações que imaginamos que estejam sendo formadas por muitas crianças e jovens na educação básica, quando do desenvolvimento de conteúdos ou atividades em Ciências Naturais, ou nas mais diversas áreas do conhecimento, na verdade não passam de complexos, mas que se apresentam como indícios de que um conceito está em processo de construção. O autor salienta e enfatiza ainda a importância desse tipo de complexo no processo de formação dos conceitos, no sentido de que ele representa um elo de passagem entre o pensamento por complexos e a própria formação dos conceitos. Para Vigotski (2008), o pseudoconceito tem predominância sobre todos os outros complexos, isso no pensamento de criação em fase pré-escolar. Isso se justifica pelo fato de que na vida real os complexos que correspondem ao significado das palavras não são desenvolvidos espontaneamente pela criança: as linhas ao longo das quais um complexo se desenvolve são predeterminadas pelo significado que uma determinada palavra já possui na linguagem dos adultos (VIGOTSKI, 2008, p. 84 [grifos do autor]). Para encerrar as discussões em relação à 2ª fase no processo de formação de conceitos, afirma-se novamente a importância dos complexos como elos de união e de estabelecimento de relações entre os objetos, as palavras, até então desordenadas, criando desta forma uma base para posteriores generalizações. No entanto, os conceitos desenvolvidos pressupõem “algo além da unificação. Para formar esse conceito também é necessário abstrair, isolar elementos, e examinar os elementos abstratos separadamente da totalidade da experiência concreta de que fazem parte.” (VIGOTSKI, 2008, p. 95 [grifos do autor]). Isso se aplica à todos os conceitos, inclusive os da área de Ciências Naturais. Um conceito químico, como por exemplo, o de substância, é um conceito científico, mas para tal precisa estar “descolado” do contexto em que possa estar inserido. Esse conceito precisa ter seus elementos isolados e examinados de forma individual, fora da experiência real, concreta 43 de que faz parte. Por isso é que ouvimos falar que os conceitos científicos, para serem científicos devem ser descontextualizados. Outro aspecto de considerável relevância diz respeito à constatação apresentada por Vigotski (2008), baseada nos estudos experimentais de Usnadze, de que as palavras exercem a função de conceitos. Ele afirma que por mais que os conceitos completamente formados apareçam tarde a criança começa fazer o uso da palavra e estabelecer relações bem cedo, permitindo desta forma compreensões com os adultos e outras crianças. Desta forma, a palavra exerce a função de conceito por ser um meio que permite a comunicação antes mesmo de “atingir o nível de conceito característico do pensamento plenamente desenvolvido” (VIGOTSKI, 2008, p. 69). A terceira, e última fase no processo de formação conceitual é conhecida pelos conceitos potenciais, na qual a criança passa a agrupar os objetos e/ou palavras em função de um único atributo, não mais com base na diferença e sim na maior semelhança existente entre os objetos, contrário ao que era feito no pensamento por complexos. Os conceitos potenciais desempenham um papel fundamental e determinante no pensamento por complexos, já que a abstração também ocorre no processo de formação dos complexos (VIGOTSKI, 2008). Nesse processo de formação de conceitos, somente a combinação entre a fase mais avançada do pensamento por complexos e o domínio da abstração permitem “à criança progredir até a formação dos conceitos verdadeiros. Um conceito só aparece quando os traços abstraídos são sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o principal instrumento do pensamento.” (VIGOTSKI, 2008, p. 98). A partir das contribuições de Vigotski sobre o processo de formação conceitual, já apresentadas, podemos afirmar que esse percurso é significativamente longo e que obedece a um determinado tempo, que faz com que as potencialidades relacionadas ao pensamento se desenvolvam e evoluam, atingindo um estágio que caracteriza o pensamento conceitual. Cabe lembrar que um conceito não se forma pela interação das associações, “mas mediante uma operação intelectual em que todas as funções mentais elementares participam de uma combinação específica” (VIGOTSKI, 2008, p. 101). Essa operação intelectual é dirigida pelo uso da palavra como meio que permite “centrar ativamente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e simbolizá-los por meio de um signo” (VIGOTSKI, 2008, p. 101). 44 No ensino de Ciências Naturais é essencial que o professor compreenda que o caminho até a formação conceitual sólida passa por diversos estágio e fases. Nesse sentido cabe reforçar a importância do uso da palavra como meio que potencializa o desenvolvimento e permite a comunicação e compreensões entre os sujeitos, antes mesmo de atingir o nível característico do pensamento conceitual. É importante dar atenção ao tempo necessário por parte de cada sujeito, favorecendo o desenvolvimento sempre mais pleno de suas capacidades humanas, com condições de construir, expressar e transformar as próprias formas de linguagem/pensamento, ao longo da escolarização, que propicia aprendizados que se diferenciam sobremaneira dos propiciados pela vivência cotidiana. Isso situa a importância da discussão, no item que segue, sobre a especificidade do conhecimento escolar e a importância essencial do acesso pedagógico aos conhecimentos só possíveis de serem apreendidos por meio do ensino de Ciências Naturais. 2.3 Uma Reflexão sobre a Especificidade do Conhecimento Escolar em Ciências Naturais É no mundo da vida que as coisas acontecem. São incontáveis os fenômenos que são objetos de estudo e de produção de novos conhecimentos científicos, diariamente, sejam os relacionados com transformações que ocorrem na natureza e em nosso corpo, sejam os fenômenos criados nos laboratórios. A palavra fenômeno remete para reflexões no sentido de entendimentos que extrapolam a visão de fenômenos empíricos. Por um lado, os fenômenos em estudo na escola podem ser fenômenos observáveis pelas percepções sensoriais, ainda que pelo uso de equipamentos especializados que ampliam a capacidade dos nossos sentidos. Um exemplo é a observação da reprodução de um fungo por meio do microscópio. Por outro lado, é importante considerar que fenômenos em estudo podem ser, também, os fenômenos não observáveis diretamente, a exemplo da respiração celular, da fotossíntese, da replicação da molécula do DNA, que constitui os cromossomas. Por isso, é importante compreender os processos de produção e validação dos conhecimentos científicos e sua recontextualização pedagógica no ensino de Ciências Naturais, o qual nem seria possível sem a produção, anterior a ele, do conhecimento científico. É expressiva a quantidade de conhecimentos químicos de que os seres humanos fazem uso, seja para a síntese de novas substâncias, seja para a criação de novos medicamentos, entre tantos outros novos materiais. 45 No ensino de Ciências Naturais e de Química, assim como nas mais diversas áreas do conhecimento, as aprendizagens só são possíveis devido à existência de conhecimentos legitimados, de saberes e conceitos que permitem o ensinar e o aprender Ciências Naturais. Michael Young, em sua obra intitulada “Para que servem as escolas?” situa a escola como instituição que tem como finalidade específica a promoção e a aquisição do conhecimento universalmente construído, a transmissão cultural. Para o autor, a instituição escolar permite e capacita os jovens “a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles, não pode ser adquirido em casa ou em sua comunidade, e para os adultos, em seus locais de trabalho” (2007, p. 1294). Esse conhecimento, pelo qual a escola é responsável por transmitir, é apontado pelo autor como “conhecimento poderoso” e se refere àquilo que o conhecimento possibilita ao sujeito: o que ele pode fazer tendo acesso a esse conhecimento, no sentido de fornecer novas ideias e possibilidades de pensar e de agir no mundo (YOUNG, 2007). O “conhecimento poderoso” é o conhecimento de caráter escolar, especializado, específico, ou seja, é adquirido na escola: uma instituição que tem uma intenção específica, uma forma proposital, que é a de promover a aprendizagem de saberes específicos a cada área do conhecimento, além da aprendizagem de valores e atitudes, a partir de atividades desenvolvidas na instituição escolar. Ela tem a função de trabalhar com saberes historicamente construídos e aparece quando é preciso ensinar/aprender um saber científico, diferente daquele aprendido em casa, na comunidade ou na rua (SAVATER, 1998). Em diferentes épocas, a escola foi associada a diferentes papéis, como o de instituição responsável apenas pela “educação orientada para a formação da alma e o cultivo respeitoso dos valores morais e patrióticos” (SAVATER, 1998, p. 57), desconsiderando completamente a importância do ensino/aprendizagem de conhecimentos científicos. Em outro momento, desconsidera-se a importância da formação cívica, dos valores, da ética, da moral, que perdia seu espaço para o ensino dos conhecimentos científicos, especializados, da destreza e da técnica. A escola contemporânea passa a ter uma grande missão, que é a de possibilitar tanto a aprendizagem de conhecimentos específicos a cada área do conhecimento, quanto a aprendizagem de valores, atitudes e competências associadas com a cidadania responsável, isto é, pelo conhecimento com características conceituais, contextuais e interrelacionais. Indo além do aprendizado de técnicas específicas para se produzir ou manipular algo, eles são 46 imprescindíveis para que as pessoas se constituam como sujeitos éticos, responsáveis e preocupados não apenas consigo mesmo, mas com o bem comum (BRASIL, 2006). Na escola de nível fundamental e médio os conceitos químicos se incluem como uma ciência que possibilita aos estudantes aprendizados de caráter específico, oferecidos de forma intencional pela escola e que apresentam estreita relação com a formação dos cidadãos. Essa perspectiva de formação voltada a um desenvolvimento pleno do sujeito, preparando-o para o exercício da cidadania e para sua inserção no mercado do trabalho, é apontada por documentos oficiais brasileiros, como a Constituição Brasileira de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB Nº 9394, 1996) como principal função da educação básica no Brasil, ou seja, um ensino voltado à formação da cidadania (SANTOS & SCHNETZLER, 2003). No entanto, esses objetivos traçados pelos documentos oficiais acabam fazendo com que incorramos no erro de pensar a educação básica como mera forma de preparação para o ensino superior ou para o ingresso no mercado de trabalho. Porém sabemos que, no contexto social no qual nos inserimos, já não basta saber ler e escrever. Exige-se do cidadão muito mais do que o “domínio da leitura e da escrita, ou do conhecimento geral das áreas de ciências e humanidades estudadas no Ensino Fundamental. Para o cidadão moderno é necessário também o conhecimento específico das disciplinas científicas do nível médio” (SANTOS & SCHNETZLER, p. 46, 2003). Neste sentido, defendemos o aprendizado dos conhecimentos da Química no Ensino Fundamental de Ciências Naturais como possibilidade de desenvolvimento humano e de construção de um mundo melhor, pelo acesso a um “conhecimento poderoso”. A Química é essencial no aprendizado de conhecimentos específicos e daqueles necessários à formação de cidadãos, pois permite que os estudantes, pela ferramenta do conhecimento, saibam refletir sobre os fenômenos e acontecimentos do mundo da vida de forma mais crítica e consciente, numa perspectiva de “aprendizagem das ciências como processo de enculturação” (DRIVER et.al, 1999, p. 39 [grifo do autor]). A escola contemporânea até pode cumprir com outras missões, mas ela nunca abrirá mão de ensinar e educar, em qualquer que seja o nível de ensino, para além de apenas instruir, ela é responsável pela educação dos valores, pela educação da cidadania, articuladamente à inserção do estudante nos estudos superiores e na vida socioprofissional (GUILLOT, 2008). Assim, a instituição escolar tem uma grande missão e é cada vez mais responsável por mais dimensões do desenvolvimento humano, contudo, ela não pode nunca negligenciar 47 sua função imprescindível: a de possibilitar o acesso ao conhecimento escolar. Aos conteúdos cognitivos estão associadas outras dimensões formativas, nas quais se inclui o aprendizado dos conhecimentos químicos, que se associam com o desenvolvimento de habilidades para lidar com as ferramentas culturais específicas à forma química de entender e agir no mundo. E, por sua vez, um conjunto de habilidades associadas à apropriação de ferramentas culturais (conceitos, linguagens, modelos específicos) possibilita o desenvolvimento de competências, como a capacidade de articular, mobilizar e colocar em ação, também, valores aliados aos conhecimentos e capacidades necessários em situações vivenciais. (BRASIL 2006, p. 116). Para ampliar essa discussão sobre a especificidade do conhecimento escolar apresentamos a seguir algumas reflexões de caráter epistemológico com vistas a um entendimento sobre a diversidade dos conhecimentos que participam dos processos de ensino e aprendizagem de Ciências Naturais. Trata-se de uma abordagem e reflexão sobre a especificidade dos conhecimentos científicos, importantes de serem compreendidos em sua natureza, em seu modo de produção e validação, que se diferencia do conhecimento cotidiano. Para Chalmers (1993), baseado em Popper, a ciência e o conhecimento são construções humanas, que não podem ser vistas mediante percepções sensoriais, pelos sentidos humanos. O mesmo pensamento deve ser levado em conta quando consideramos as teorias, que são interpretadas como conjecturas ou como “suposições criadas livremente pelo intelecto humano no sentido de superar problemas encontrados [...] ou dar uma explicação adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo ou universo” (CHALMERS, 1993, p. 64). A partir das contribuições de Popper, cada vez mais se passou a admitir e a pensar a concepção de ciência como sendo uma construção humana, e não simplesmente como algo produzido ou percebido a partir dos sentidos humanos. Essa visão de ciência proposta por Popper se coloca como crítica à concepção baseada no empiricismo/indutivismo. No indutivismo a Ciência é considerada como conhecimento derivado dos dados da experiência, ou seja, a partir de dados experimentais. O conhecimento científico é um conhecimento que é provado, portanto, é considerado verdadeiro; as teorias são o resultado de experiências rigorosas feitas a partir da observação e da experimentação, já a ciência é baseada no que se pode tocar, ouvir ou ver (CHALMERS, 1993). Para o indutivista, a Ciência tem seu pontapé inicial no momento em que o pesquisador pratica o ato de observar. Os seguidores e defensores dessa concepção afirmam 48 que é na observação que se inicia o 'fazer ciência', no entanto, para isso “o observador científico deve ter órgãos sensitivos normais e inalterados e deve registrar fielmente o que puder ver, ouvir etc. em relação ao que está observando, e deve fazê-lo sem preconceitos” (CHALMERS, 1993, p. 24). Essa concepção empiricista/indutivista não se refere apenas à Ciência, “ao fazer ciência”, mas se relaciona também às questões que dizem respeito ao ensino, já que é na escola que grande parte das crianças e jovens tem acesso à educação e ao conhecimento, sendo essa instituição a ponte de ligação entre a ciência, o estudante e a realidade na qual ele está inserido. Na área de Ciências Naturais essa concepção de ensino ainda se mostra muito presente, principalmente em situações em que se busca uma explicação para tudo, sejam fenômenos, ou transformações. Essas explicações se baseiam naquilo que é visto pelos sentidos humanos, ou seja, explica-se algo a partir da visualização do acontecimento. No entanto, nem tudo o que existe no mundo pode ser visto. Usamos como exemplo o átomo, que sequer foi visto uma vez. Os elétrons, um elemento químico, enfim, tantas outras entidades que existem, mas que, no entanto nunca foram vistas. Aceitamos sua existência, por mais que jamais os tenhamos visto. Para o indutivista os sentidos são a base fundamental para se produzir conhecimento, já que tudo se faz e se explica pela experimentação e pela observação. As afirmações, resultantes desse trabalho experimental, formam a base a partir da qual devem derivar as leis e teorias que constituem o conhecimento científico, de acordo com eles. No mundo da ciência, dos laboratórios e das pesquisas essa concepção também é aplicada por apresenta alguns méritos, que para Chalmers (1993) se devem ao fato de a ciência empiricista/indutivista ter certo poder em dar explicações e em fazer previsões. Ainda apresenta confiabilidade e objetividade, o que para Chalmers supera outras formas de conhecimento. Essa objetividade da ciência indutivista deriva do fato de que tanto a observação como o raciocínio indutivo são eles mesmos objetivos. Proposições de observação podem ser averiguadas por qualquer observador pelo uso normal dos sentidos. Não é permitida a intrusão de nenhum elemento pessoal, subjetivo. A validade das proposições de observação, quando corretamente alcançada, não vai depender do gosto, da opinião, das esperanças ou expectativas do observador (CHALMERS, 1993, p. 34). Observamos que, o que o observador pensa, acredita ou desacredita sobre o objeto ou o fenômeno observado não deve ser considerado e é esse um dos fatores que faz da ciência tão 49 confiável, essa não interferência, o não questionamento, uma “aversão” a qualquer possibilidade de erro existente, em relação ao descoberto. No entanto, essa posição assumida pelo pesquisador indutivista pode tornar o conhecimento nem tão confiável, já que as hipóteses, variáveis ou possíveis erros não são considerados, os quais poderiam ser solucionados ou estudados. É sabido que existem diferentes concepções de ciência e de conhecimento científico, bem como visões distorcidas para ambos. Neste sentido são feitas referência a algumas visões distorcidas e/ou deformadas de ciência, apresentadas por Pérez et.al (2001). A primeira deformação refere-se à concepção denominada empírico-indutivista e ateórica, mencionada anteriormente, que destaca o papel ‘neutro’ da observação e da experimentação [...], esquecendo o papel essencial das hipóteses como orientadoras da investigação, assim como dos corpos coerentes de conhecimentos (teorias) disponíveis, que orientam todo o processo (PÉREZ et.al. 2001, p. 129). Outra deformação apresentada transmite uma visão rígida (exata, infalível...), representada pelo método científico, considerado “como um conjunto de etapas a seguir mecanicamente” (PÉREZ et.al. 2001, p. 129). A utilização do método científico caracteriza ainda o trabalho desenvolvido em muitas instituições escolares, especialmente no ensino de Ciências Naturais caracterizado pela exatidão e pelo rigor desse pretenso e poderoso método, como único válido. É pertinente destacar que, nas Ciências, a pesquisa sempre requer um método pertinente, seja nas pesquisas de cunho mais quantitativo seja mais qualitativo. No entanto, a demasiada crença na exatidão, no seguimento rigoroso de regras e procedimentos puramente mecânicos acaba condenando a pertinência do método. Não se trata, pois, de criticar o uso de um método científico. Ao contrário, trata-se de destacar a sua necessidade na pesquisa. Afinal, sem a existência e o uso de um método científico, não teríamos tido acesso aos inúmeros conhecimentos produzidos pelas ciências. O que criticamos é a falta de reflexões epistemológicas no âmbito da formação de professores e do ensino em Ciências Naturais. A mera preocupação em atingir a exatidão ainda toma o lugar de reflexões sobre como os conhecimentos foram produzidos, o que eles permitiram ao longo da história da humanidade, de que forma os conhecimentos de Ciências participam na compreensão do mundo e na atuação de forma consciente e socialmente responsável. 50 A terceira deformação está relacionada a uma visão aproblemática e ahistórica, a partir da qual são transmitidos conhecimentos já elaborados, prontos, deixando de mostrar os problemas que deram origem a esse conhecimento, a sua evolução e as dificuldades enfrentadas durante o percurso de construção do mesmo. De acordo com os autores, outra distorção é a que “consiste numa visão exclusivamente analítica, que destaca a necessária divisão parcelar dos estudos, o seu caráter limitado, simplificador” (PÉREZ et.al. 2001, p. 132). Já a quinta visão deformada trata do conhecimento e do desenvolvimento científico como algo acumulativo, que tem um crescimento linear. Na sexta visão deformada de ciência, os autores apontam a visão individualista e elitista que a ciência possui, na qual os “conhecimentos científicos aparecem como obras de gênios isolados, ignorando-se o papel do trabalho coletivo e cooperativo, dos intercâmbios entre equipes...” (PÉREZ et.al. 2001, p. 133). Por fim, é apresentada a última visão deformada, que transmite uma imagem descontextualizada, socialmente neutra da ciência: esquecem-se as complexas relações entre ciência, tecnologia, sociedade (CTS) e proporciona-se uma imagem deformada dos cientistas como seres “acima do bem e do mal”, fechados em torres de marfim e alheios à necessidade de fazer opções (PÉREZ et.al. 2001, p. 133 [grifos do autor]). As visões acima mencionadas não caracterizam apenas o ensino das Ciências Naturais, mas o ensino de diversas outras áreas do conhecimento. Tem-se nessa visão a impressão de que a ciência, a pesquisa e os cientistas fazem parte de outro mundo, um mundo à parte e distante do nosso. Isso se deve a concepções existentes principalmente nas sociedades menos favorecidas, que tratam o conhecimento e a ciência como sendo de acesso restrito, disponibilizado apenas para alguns privilegiados, e não como direito de todo cidadão. Nesse sentido o cientista também é considerado alguém fora de nosso alcance, dono de todas as verdades, aquele que não pode ser contrariado ou colocado em discussão. Como forma de superação à concepção empiricista e indutivista de ciência, e a fim de superar essas visões deformadas, Bachelard (1996) propõe discussões que tem como intenção a superação de algumas visões e concepções por ele consideradas equivocadas. Lopes (1996), baseando-se na obra de Bachelard, apresenta uma perspectiva que busca a valorização do erro, como forma de validação do conhecimento científico. Ela denuncia o empirismo e defende uma epistemologia histórica, na qual a ciência é “um objeto construído socialmente, cujos 51 critérios de cientificidade são coletivos e setoriais às diferentes Ciências” (LOPES, 1996, p. 251). De acordo com as concepções empírico-positivistas, o conhecimento é resultado da experiência, das observações realizadas com o uso dos sentidos, e “há um real dado em que a razão deve se apoiar” (LOPES, 1996, p. 258). No entanto, com algumas revelações de leis e teorias no campo das ciências essa concepção sofreu alguns abalos, e passou-se a compreender que existe uma distinção entre o real científico e o real dado, pois na ciência não trabalhamos com o que se encontra visível na homogeneidade panorâmica. Ao contrário, precisamos ultrapassar as aparências, pois o aparente é sempre fonte de enganos, de erros, e o conhecimento científico se estrutura através da superação desses erros, em um constante processo de ruptura com o que se pensava conhecido (LOPES, 1996, p. 259). Essa visão contradiz a concepção empiricista, baseada nas observações, criticando a ciência que se baseia apenas no que os sentidos são capazes de perceber. Como afirmado acima por Lopes (1996), na área de Ciências Naturais trabalhamos com estruturas, com modelos e com entidades que não podem ser vistas ou percebidas pelos seres humanos a olho nu. É preciso ultrapassar as barreiras do visível, das aparências e do observável para que consigamos compreender algumas situações e/ou transformações. Na educação básica isso também se faz muito necessário, principalmente quando nos referimos a alguns conceitos da área da Química, como por exemplo, o de Elemento, que não está no real dado, que não pode ser observado, já que é uma criação humana de natureza teórica e o fato de não poder ser visualizado acaba sendo sinônimo de não aprendizagem por parte de muitos estudantes. Essa dificuldade de compreensão de algumas entidades, pela não possibilidade de sua comprovação por meio de nossos sentidos, se dá pelo fato de que para o senso comum, a realidade objetiva é uma só: aquela que se apresenta aos sentidos; o real aparente faz parte do senso comum. Portanto, será essencialmente a partir do rompimento com esse conhecimento comum que se construirá o conhecimento científico (LOPES, 1996, p. 259). Em Ciências Naturais, citando especificamente conceitos da Química, as realidades de alguns objetos podem ser completamente diferentes. Para Lopes (1996, p. 259): a realidade de um objeto que se apresenta aos olhos, que pode ser tocado, que possui lugar e forma definidos, não é do mesmo nível de realidade de uma molécula, a qual constitui e é constituída pela teoria molecular a ela subjacente. 52 Portanto, não se pode dizer que um objeto que pode ser tocado e visto pertence ao mesmo nível de realidade de um átomo, de uma molécula ou de um elemento. Os objetos que podem ser tocados ou observados fazem parte de outra dimensão, a do real dado, e estão na natureza. Já os átomos, assim como outras entidades, fazem parte do real científico e são criações humanas. Esse real científico, que é objeto de construção de conhecimento nas Ciências, é realizado na relação entre sujeito e objeto, a qual é mediada pela técnica. Ao contrário da visão empírico/indutivista a ciência não descreve fenômenos, mas os produz, a partir de um processo instrumental e teórico, fazendo com que a Química “transforme-se em uma ciência elaborada sobre as bases de uma fenomenotécnica” (LOPES, 1996, p. 261). O uso da técnica, citada por Lopes (1996), desempenha um papel importante pois, muitos objetos de estudo em Ciências Naturais não podem ser percebidos pelos sentidos, mas com o emprego de ferramentas técnicas que qualifiquem e ampliem a percepção sensorial, muitos passam a ser compreendidos. Um exemplo disso é o conceito de elemento, que não pode ser visualizado através de nossos sentidos, no entanto, se fizermos uso de algumas ferramentas e de técnica sua presença pode ser percebida com maior facilidade. Outro exemplo que pode ser mencionado para explicitar a importância do uso da técnica e de ferramentas no ensino de Ciências Naturais é no processo de fabricação de sabão, que além de ser simples, é realizado pela maioria dos estudantes e de seus familiares em suas residências. Para se fabricar o sabão em casa, ou na escola (no laboratório de Ciências) podese fazer o uso dos mesmos materiais, das mesmas quantidades, da mesma receita, no entanto, em aula, o processo se dá de forma diferente, com outro significado, por mais que o sabão produzido seja o mesmo. Em sala de aula, quando realizado o experimento a fim de que os estudantes produzam sentidos, o processo de fabricação do sabão é discutido, não apenas com base no que os estudantes podem ver, mas sim no que acontece por trás do que é percebido a olho nu. Em sala de aula fazemos o uso da palavra, do significado, das teorias que vão estar em ação no momento em que se faz algo. Em contrapartida, em nossas residências, nos baseamos no conhecimento comum, empírico, no real dado. Com esse exemplo, mais uma vez percebe-se a grande diferença que existe entre o real científico e o real dado, e que 53 na medida em que o real científico se diferencia do real dado, o conhecimento comum, fundamentado no real dado, no empirismo das primeiras impressões, é contraditório com o conhecimento científico. O conhecimento comum lida com um mundo dado, constituído por fenômenos; o conhecimento científico trabalha com um mundo recomeçado, estruturado em uma fenomenotécnica (LOPES, 2007, p. 44). Essas relações entre o conceitual-teórico e as diferenciações entre o real científico e o real dado não são levadas em conta em sala de aula no ensino de Ciências Naturais e de Química. Não obstante em sala de aula, esses aspectos passam despercebidos também em muitos materiais utilizados como referências pelos professores, como os livros didáticos, em que em alguns casos observamos apenas o aparecimento de teorias ou então somente a empiria, em que tudo é real, visível, e se encontra na realidade do estudante. Neste sentido, defende-se que, a partir do Ensino Fundamental, estudantes e professores reflitam sobre a natureza das entidades químicas, dos conceitos, para que quando se refiram ao elemento e a substância saibam que estes não se situam no real dado, e sim no real científico, já que são construções humanas. Do contrário, se os estudantes não apresentarem clareza em relação a essas entidades, muitos correm o risco de ingressar no ensino superior, em um curso de licenciatura em Química ou Ciências Naturais, imaginando que tudo é real e está na natureza. Quando isso ocorre, aparecem os chamados obstáculos, apresentados por Bachelard (1996). Um dos obstáculos mencionados por Bachelard (1996) é o verbalismo, no qual se faz o uso de palavras, metáforas ou analogias com a intenção de explicar fenômenos e experimentos. Tudo é relacionado e comparado a uma determinada palavra ou expressão. Em sua obra intitulada “A formação do espírito científico”, Bachelard (1996) usa como exemplo a esponja que é usada como comparativo para explicar a maioria dos experimentos e fenômenos que eram testados na época. No verbalismo, uma única palavra ou uma única imagem constituem toda a explicação de uma determinada situação, o que se caracteriza como um obstáculo ao pensamento científico (BACHELARD, 1996). No ensino de Ciências Naturais e de Química, não são poucas as vezes em que fizemos o uso de imagens ou palavras, de caráter metafórico, a fim de simplificar e facilitar a aprendizagem dos estudantes. No entanto, não nos damos conta de que isso acaba por se tornar um grande obstáculo no processo de abstração, fazendo com que os educandos apresentem uma visão simplista da ciência e do conhecimento científico. Para Bachelard 54 (1996, p. 93) o acúmulo de imagens e de palavras não apropriadas “prejudica evidentemente a razão, no qual o lado concreto, apresentado sem prudência, impede a visão abstrata e nítida dos problemas reais”. Os conceitos químicos, em muitas situações, são concretizados ao extremo, como se enxergássemos tudo, ou como se tudo estivesse na natureza. Esquecemos que eles são de natureza teórica, uma construção humana, e que muitos conceitos não podem ser explicados de maneira tão simples assim. O átomo, a molécula, as ligações, os elementos e as substâncias, assim como tantos outros conceitos, são apresentados de forma bastante concreta, com o uso de analogias, comparações na intenção de facilitar a aprendizagem por parte dos estudantes, mas que acabam por descaracterizar a natureza do conceito, o que de fato cada um é e representa, impedindo a visão abstrata dos estudantes e professores, que ficam alienados às formas simplistas de ensino e aprendizagem dos mesmos. Quanto ao obstáculo verbalista, o autor afirma que “não se pode confinar com tanta facilidade as metáforas no reino da expressão. Por mais que se faça, as metáforas seduzem a razão. São imagens particulares e distantes que, insensivelmente, tornam-se esquemas gerais.” (BACHELARD, 1996, p. 97). Portanto, devemos ter cuidado com o uso das palavras, pois elas acabam por substituir o pensamento abstrato, criando visões e concepções errôneas dos conceitos não apenas da Química, mas das mais diversas áreas do conhecimento, e isto se torna um empecilho e um impedidor das aprendizagens. Outro obstáculo apontado por Bachelard (1996) é o realismo, no qual os modelos, as representações e até mesmo as palavras criadas pelo homem e pela ciência, são tomadas como “reais” pelos estudantes, ou seja, como se fizessem parte do real dado. Esse obstáculo está muito presente no cotidiano escolar, principalmente no que se refere ao uso de imagens e de modelos, que acabam sendo adotados como verdadeiros, ou seja, como se uma célula fosse igual a um ovo, ou como se um átomo fosse de fato semelhante a uma bola de bilhar. Já o substancialismo, é caracterizado pela tendência que temos de reunir em um único objeto as possibilidades mais diversas, características mais variadas, que podem até mesmo ser opostas (BULCÃO, 1981). De acordo com Bachelard, o obstáculo substancialista é constituído por intuições muito dispersas e até opostas. Por uma tendência quase natural, o espírito pré-científico condensa num objeto todos os conhecimentos em que esse objeto desempenha um papel, sem se preocupar com a hierarquia dos papéis empíricos. Atribui à substância qualidades diversas, tanto a qualidade 55 superficial como a qualidade profunda, tanto a qualidade manifesta como a qualidade oculta (BACHELARD, 1996, p. 121). No que diz respeito aos obstáculos epistemológicos apresentados acima, precisamos estar atentos, como professores, ao uso de palavras e imagens por parte dos estudantes, a fim de que consigamos evitar a ocorrência de tais obstáculos, ou ainda promover a ruptura dos mesmos, que acabam por impedir o desenvolvimento do pensamento científico e das aprendizagens significativas, fazendo com que os estudantes adotem posições e concepções equivocadas em relação à ciência, aos conceitos da área da Química, ao que é real e ao que é criado pelo homem, como os elementos e substâncias, conceitos importantíssimos e estruturantes do pensamento químico. Neste sentido, salientamos a importância das reflexões de cunho epistemológico por professores em formação inicial e por professores que já atuam no ensino de Ciências Naturais, a fim de romper com um pensamento de ciência que busca suas evidências e suas conclusões naquilo que é visível, palpável, somente no que está na natureza, ou que se acredita que esteja, desconsiderando por algumas vezes a participação do homem na produção do conhecimento e no “fazer ciência”. De acordo com Maldaner (2006, p. 100): A racionalidade não pode estar ausente do meio social, pois ela é uma construção que permite a interação humana e com o meio em nível de maior justiça e com a participação de todos. Ela permite desenvolver uma ciência mais consequente e mais coerente com as novas necessidades das pessoas, segundo uma lógica entre o que o conhecimento científico já pode realizar e aquilo que realmente é bom para o equilíbrio da vida no globo terrestre, o equilíbrio entre as nações e o bem-estar nas comunidades. É isso que devemos buscar a partir das reflexões epistemológicas, tanto na formação inicial dos professores quanto na formação continuada, a ruptura das visões equivocadas, dos obstáculos que impedem a aprendizagem, buscando uma visão que considere a racionalidade. Essa ruptura em relação às visões equivocadas possibilitará maior clareza na compreensão das entidades químicas, do real dado e do real criado, fazendo com que professores e estudantes passem a refletir e compreender que o “conhecimento é sobre o mundo concreto, refere-se a ele, o modifica e o cria e recria, num processo de produção intelectual mediado por objetos teóricos ou entidades teóricas” (MALDANER, 2006, p. 105), fornecidas pela ciência e que possibilitam a compreensão do mundo real, do que está na natureza. 56 Após as abordagens apresentadas neste capítulo, que se referiram à organização do currículo de Ciências Naturais, à importância do uso e ressignificação da palavra no processo de formação de conceitos ao longo da escolarização e a reflexão sobre o conhecimento escolar em Ciências Naturais, apresentamos uma análise e discussão sobre livros de Ciências Naturais das séries finais do Ensino Fundamental, com recorte na 5ª série, a fim de compreender a problemática que se refere à abordagem de conceitos químicos nesse nível de ensino. 57 3 A INSERÇÃO DA QUÍMICA NO ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS: UM OLHAR SOBRE LIVROS DIDÁTICOS Este capítulo foi elaborado com vistas a uma análise e discussão de alguns livros didáticos das séries finais do Ensino Fundamental, com recorte na 5ª série, em busca de uma compreensão fundamentada da problemática que diz respeito a abordagem de conteúdos e conceitos químicos neste nível de ensino, em especial, os conceitos elemento e substância. 3.1 Abordagens de Conceitos Químicos em Livros Didáticos de Ciências Naturais do Ensino Fundamental Com a finalidade de identificar e analisar abordagens dos conceitos de Química, especialmente os de elemento e substância, em livros didáticos de Ciências Naturais do Ensino Fundamental, realizou-se uma análise a duas coleções de livros didáticos de 5ª a 8ª série, de Ciências Naturais do Ensino Fundamental, conforme explicitado no item referente à organização metodológica da pesquisa. Os livros das duas coleções foram analisados quanto ao desenvolvimento dos conteúdos e conceitos de Química neste nível de ensino, com atenção à perspectiva da significação conceitual, sem deter a atenção a possíveis erros conceituais. Os livros designados por LD1, LD2, LD3 e LD4 referem-se, respectivamente, aos livros de Ciências Naturais das 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental de uma das coleções analisadas que, de um modo geral, corresponde a uma organização tradicional da abordagem dos conteúdos e conceitos, no sentido de uma fragmentação do conhecimento escolar. Os livros designados por LD5, LD6, LD7 e LD8 referem-se, respectivamente, aos livros de Ciências Naturais das 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental de uma das coleções analisadas que, de um modo geral, corresponde a uma organização inovadora do currículo de Ciências Naturais por apresentar abordagens dos conteúdos e conceitos de 58 Ciências Naturais articulados em estudos sobre temas da vivência social, numa perspectiva contextual e interrelacionada. Devido a restrição de espaço, neste trabalho, para a análises mais ampliadas dos livros didáticos, foi procedido um recorte, limitando-as a dois livros da 5ª série: LD1 e LD5, tratados nos subitens que seguem. 3.1.1 A Fragmentação do Conhecimento Químico no Ensino de Ciências Naturais Para uma visão geral das abordagens dos conteúdos e conceitos no LD1, cabe mencionar que ele apresenta cinco unidades principais, nas quais são apresentadas abordagens que partindo do universo como um todo, vão se direcionando ao planeta terra, a sua constituição como solo, água e ar e aos ecossistemas que integram a biosfera. Na unidade um, são feitas discussões direcionadas especificamente ao estudo do universo, sistema solar, galáxias, conquista do espaço, trazendo um pouco da mitologia e da ficção relacionadas às viagens espaciais, com os conhecimentos sobre o universo, os planetas. A unidade dois discute questões relacionadas ao planeta terra, como a origem da terra, da vida, a biosfera, os ecossistemas, o equilíbrio ecológico, cadeias alimentares e as relações estabelecidas entre os seres vivos no ecossistema. Na terceira unidade, são abordadas questões referentes ao solo como ecossistema. Nessa unidade, as discussões abrangem a forma e estrutura da terra, bem como os movimentos da crosta terrestre, como terremotos e vulcões. Os tipos de rochas e de solo e a origem do solo também são tratados nessa unidade, assim como a utilização e as formas de preparação do solo. A unidade quatro contempla os estudos relacionados à água na natureza, a sua poluição, o seu tratamento, a flutuação e a pressão. Já a quinta e última unidade do LD1 trata do ar, abordando a sua existência, ar e matéria, as camadas atmosféricas, pressão atmosférica, previsão do tempo. Nessa unidade há uma abordagem completamente diferenciada em relação às anteriores, no que se refere a um tratamento avançado de conteúdos de Química. Ao analisar o esquema geral dos conteúdos abordados no LD1, foi possível elencar alguns conteúdos que possibilitariam abordagens de conceitos químicos ao longo das diferentes unidades, não apenas ao final, com uso gradativo de palavras e fórmulas, ou seja, 59 com uso da linguagem química em todas as unidades. Isso seria possível no estudo do solo, da água, do ar, do universo, de forma que os estudantes pudessem ir desenvolvendo a noção de que tudo que existe no mundo é constituído de matéria e pode ser compreendido quanto a constituição como material sempre, por sua vez, constituído de substâncias. Vejamos algumas situações em que tal noção pode ser relacionada ao longo das abordagens propostas pelo material didático. Na 5ª série do Ensino Fundamental, no conteúdo referente às cadeias alimentares, uma das abordagens envolve o estudo dos seres vivos “produtores” e “consumidores”. Abaixo, apresentamos um fragmento que acompanha uma ilustração, conforme segue: Figura 2: Produtores e consumidores Fonte: LD1, 2004, p. 73 Não é propósito deste trabalho analisar as abordagens quanto a possíveis erros conceituais, contudo, cabe fazer a ressalva de que a explicação acima incorre num erro conceitual, talvez por uma confusão com a noção de respiração, a qual não teria qualquer inserção no contexto da abordagem citada. Em se tratando de uma abordagem sobre a 60 fotossíntese apenas, a explicação teria que abranger o entendimento de que há consumo de gás carbônico e produção de oxigênio (não o contrário, como expressa a figura). Cabe esclarecer que a edição do LD1 analisado corresponde àquela que estava sendo usada pela professora, na escola acompanhada. O excerto que acompanha a figura número 1 define o processo pelo qual as plantas produzem o seu alimento: a fotossíntese. O livro didático explica que essa capacidade de produção de alimento pela fotossíntese é que justifica o fato delas serem consideradas produtores dentro da cadeia alimentar, em coerência com o entendimento na área de Ciências Naturais. Observamos que, no excerto, há utilização dos nomes de substâncias essenciais à compreensão da fotossíntese: a água e o gás carbônico. No entanto, as abordagens vão sendo apresentadas sem a menção de que a água e o gás carbônico são duas diferentes substâncias. As fórmulas de cada uma dessas duas substâncias não são apresentadas. Na figura apresentada, assim como no trecho em que é explicitado o processo da fotossíntese, não consta a representação das substâncias envolvidas pelas respectivas fórmulas químicas: que CO2 representa a substância dióxido de carbono, ou gás carbônico e H 2O representa a substância água. Nesse contexto de estudo, bem com neste nível de ensino, abordagens com uso da linguagem química já poderiam ir sendo introduzidas. A palavra substância já poderia fazer parte das discussões e das conversas, sem a necessidade de uma definição formal, entendendo que os processos de significação requerem a produção de sentidos, os quais nunca são formações estáveis nem fossilizáveis, ao contrário, são mutáveis, encontram-se sempre em processo de transformação, assumindo novas características em cada diferente contexto em que eles são produzidos (VIGOTSKI, 2008). Dizer que a água e o gás carbônico são substâncias necessárias para que ocorra a fotossíntese e que o oxigênio é produzido nesse processo permite que o estudante vá produzindo sentidos ao conceito de substância. Ao ensinar as respectivas fórmulas químicas da água e do gás carbônico, seria possível e importante introduzir a primeira noção de substância, adentrando no importante entendimento (pensamento) de que a substância é constituída por elementos químicos e que cada uma delas corresponde a uma fórmula química, tendo uma representação química específica. Cada substância, além de ter um nome, tem uma fórmula que a representa quimicamente. A substância água tem uma fórmula, que é H2O. Já a substância dióxido de 61 carbono ou o gás carbônico é representado pela fórmula CO2. Cabe reiterar que as abordagens se relacionam com diferenças entre os conceitos de elemento e substância, enfatizando que, em coerência com o pensamento químico, cada elemento está associado à visão de um conjunto de átomos com mesmo número atômico e que cada substância abrange a visão de uma ou mais ligações químicas entre átomos de elementos químicos, que podem ser iguais ou diferentes entre si: substância simples ou composta. Nessas discussões sobre as fórmulas que representam as substâncias, é importante ressaltar que a fórmula é um instrumento importante para o entendimento de várias propriedades da substância, no entanto, deve-se ter clareza de que “a fórmula nada mais é que uma representação da substância” (MORTIMER, 1996, p. 21). Devemos fazer uso das fórmulas químicas apropriando-nos de toda a informação capaz de nos fornecer, mas tomando o cuidado de não confundir com a realidade da substância, que é muito mais complexa do que as letras do alfabeto e números permitem compreender. Outra linha de discussão que pode ser aqui trazida refere-se ao uso, já na 5ª série, de forma também gradativa, da tabela periódica dos elementos. A partir das representações químicas das substâncias envolvidas na fotossíntese ela poderia ser apresentada para os estudantes, de modo que eles pudessem visualizar a presença, na tabela, de símbolos como H, C, O, que se relacionam com as fórmulas das substâncias mencionadas. Poderia ser introduzida a noção inicial de que a substância H2O é formada pelos elementos hidrogênio (H) e oxigênio (O), a substância O2 é formada pelo elemento oxigênio (O), assim como a substância CO2 é formada pelos elementos carbono (C) e oxigênio (O). Os elementos químicos que constituem substâncias encontradas na natureza, assim como alguns elementos químicos artificiais produzidos em laboratórios por pesquisadores químicos, estão organizados em uma tabela, chamada de tabela periódica dos elementos. Entendemos que faz parte do ensino de Ciências Naturais, neste contexto de estudo, a introdução dessa ideia central à Química, de modo que os estudantes tenham uma primeira compreensão de que o pensamento químico exige o uso da palavra/conceito substância, o que requer um reconhecimento de fórmulas químicas, com “letras” que correspondem à representação química das substâncias. Tais letras correspondem aos elementos químicos que as constituem. Tal noção inicial não abrange nem requer necessariamente entendimentos sobre átomos, moléculas, ligações químicas. Discussões como essas são imprescindíveis ao entendimento de conteúdos como o da fotossíntese à luz das Ciências (Biologia, Física, Química) que integram a área de Ciências 62 Naturais. Os conceitos químicos, por sua vez, não podem ser excluídos de tais abordagens escolares. Na 5ª série os estudantes não atingirão uma significação conceitual mais avançada do conceito químico substância. Afinal, não é isso que entendemos ao defender uma abordagem química em nível inicial, nesta série. Mais que tudo, nos interessa que seja feito o uso da palavra que, segundo Vigostki (2008), já permitirá a produção de alguns sentidos aos conceitos nos contextos de estudo daquele nível de ensino. Além do mais, acreditamos que os processos de significação conceitual devem ser contextuais e interrelacionais, de modo que possam evoluir sistematicamente ao longo da escolarização. O que mais importa é o uso da palavra, nesse caso, elemento e substância, já que, de acordo com Vigotski (2008), o processo de significação conceitual não se dá de vez, e que é somente pelo uso da palavra que o estudante dá sentido ao conceito, que este evolui, até alcançar níveis mais elevados de complexidade, caracterizando um pensamento abstrato, de fato conceitual. Defendemos, com base nesse autor, que os estudantes façam uso das palavras e dos termos que pertencem a Química, de forma natural, mesmo sem compreenderem completamente seu significado, pois, por mais que usem essas palavras com um sentido singular, válido apenas para os contextos de interação mais próximos, sentidos já são atribuídos, o que contribui aprendizagens futuras de forma mais aprofundada, onde de fato conceitos passam a ser consolidados (ZANON; PALHARINI, 1995). Também na unidade que trata do solo, a Química tem grande envolvimento em se tratando principalmente da composição do mesmo. As abordagens iniciaram com a afirmação equivocada de que “as duas substâncias mais comuns na formação do solo são o quartzo e a argila” (LD1, 2004, p. 111). Quartzo e argila não são substâncias, no sentido conceitual restrito da química, e sim misturas de substâncias. A argila não possui fórmula química que a representa, ou características definidas, o que depende do tipo de solo e do ambiente do qual a ela é retirada. Já quando nos referimos a uma substância podemos dizer que suas propriedades, como ponto de fusão, ponto de ebulição, densidade, entre outras, se mantém iguais, seja qual for o ambiente em que estão. Em relação ao quartzo podemos dizer que também se refere a uma mistura de diversas substâncias. Erros conceituais como esse, ao afirmar que o quartzo e a argila são substâncias, acabam se tornando obstáculos no processo de aprendizagem em Ciências. Nós, professores de Ciências necessitamos saber lidar com esses problemas ao usarmos os livros didáticos, tendo a capacidade de refletir sobre o conteúdo desses materiais, usando-os sempre de forma crítica, nunca como veículos de verdades incontestáveis. Sobre as argilas, é preocupante a 63 carência de conhecimentos químicos por parte dos professores que atuam nessas séries (PEREIRA et.al. 1999), por isso é imprescindível que os cursos de licenciatura e também a formação continuada de professores contemple estudos que complementem os conhecimentos. Cabe a cada professor fazer buscas em fontes diversificadas e interagir coletivamente para avançar em suas compreensões. Um exemplo de leitura pertinente é o artigo Tirando as argilas do anonimato (PEREIRA et.al. 1999). Ainda na unidade sobre o solo, outra afirmação apresentada no livro, e que se relaciona à Química, é a de que “os solos próprios para a agricultura possuem diversos tipos de nutrientes, indispensáveis ao desenvolvimento das plantas.” (LD1, 2004, p. 122). Mas que nutrientes são esses que se encontram no solo? Mais adiante, quando o livro remete à prática da adubação, como forma de reposição dos nutrientes em solos empobrecidos, ele afirma que “dentre os elementos importantes para o desenvolvimento das plantas, três se destacam: o nitrogênio (N), o fósforo (P) e o potássio (K)” (LD1, 2004, p. 125 [grifos do autor]). A partir dessa afirmação os estudantes já podem ter uma noção da existência de alguns nutrientes que estão presentes no solo, como o nitrogênio, o fósforo e o potássio, no entanto, refletimos que poderiam também ser citados os outros nutrientes que constituem os diferentes tipos de solo existentes, por exemplo, discutir que um solo bastante úmido (lodo) contém altos teores de água (elementos H e O), diferentemente de um solo praticamente sem água, que os estudantes chamam de “torrão”. Isso poderia remeter à ideia da existência de outros elementos químicos na composição dos solos. Nessa abordagem, a análise permite perceber que foram usados os símbolos dos elementos (N, P, K). Isso já caracterizaria uma preocupação intencional de usar a linguagem da Química? Ao evidenciar o símbolo destes três elementos químicos, o livro apresenta uma nota localizada no canto superior direito da página, conforme segue: “O símbolo P usado para designar o fósforo vem da palavra latina phosphorus; o símbolo K, de potássio, vem de Kalium” (LD1, 2004, p. 125 [grifos do autor]). Nessa unidade, os elementos químicos não são abordados, apenas são mencionados os elementos correspondentes aos símbolos citados, de forma simplista e vaga, que permite quaisquer suposições em relação a ideia de elemento, dando margem a uma mera abreviação dos nomes em latim. Contudo, foi usada a palavra “elemento”. É uma palavra que, no contexto cotidiano, pode se referir a uma pessoa, considerando-a como um elemento num 64 determinado espaço; um objeto. Ou seja, a palavra elemento não foi discutida com uma intencionalidade voltada à compreensão química, como um elemento químico, como o que constitui as substâncias encontradas no solo, na água, que forma os nutrientes. Na unidade que trata da água na natureza, percebemos o uso da linguagem química, na forma de expressões, palavras e representações químicas, como ilustra a figura abaixo acompanhada de um excerto retirado do LD1, sobre a água da chuva. Figura 3: Água pura e mistura Fonte: LD1, 2004, p. 144 No excerto do LD1, acompanhado da figura, podemos observar a utilização da palavra “substâncias”, por duas vezes. Trata-se de um dos dois conceitos químicos em estudo nesta dissertação. Refere-se à explicação de que as águas, em situação real, apresentam, além da substância água, outras substâncias dissolvidas e que estas substâncias conferem a cada água características diferentes, como no exemplo da dissolução de sal ou açúcar em dois copos de água, o que conferirá sabores diferentes (doce ou salgado), devido à diferença das substâncias dissolvidas. Podemos refletir sobre o uso do termo “água pura”, utilizado para designar a água da chuva. Esse trecho considera que a pureza da água é determinada pela não existência de outras substâncias dissolvidas na água. Uma porção de água que não possui nenhuma outra 65 substância é considerada pura, já outra porção, que apresente outras substâncias dissolvidas é considerada como uma água não pura. No entanto, em nenhum momento é afirmado que a água é uma substância. Dessa forma o termo “pureza”, apresentado pelo livro didático implica em controvérsia. Sobre a pureza da água, em outro trecho do LD1 encontramos uma afirmação que diz que “na natureza não existe água pura, somente água sem mais nada dentro.” (LD1, 2004, p. 146) Esta afirmação dá margem a confusões. A ideia mais importante a considerar seria a de que as águas são misturas e que “água sem mais nada dentro” seria uma situação idealizada, já que nas águas podemos encontrar substâncias dissolvidas. No cotidiano por vezes se fala em “água pura”, no sentido de se tratar de uma “água natural”, por exemplo, a água de uma fonte límpida. Mesmo esta água contém outras substâncias, a exemplo do gás oxigênio ou um ou outro mineral. Uma “água mineral” é mais rica em minerais, porém, cada água mineral tem suas características próprias. Esse entendimento é essencial ao pensamento químico. Ele poderia ter sido associado à abordagem, logo após, sobre uma das formas de obtenção de “água pura”, referida como uma água sem qualquer substância dissolvida nela: a destilação. Contudo, não se trata da obtenção de “água pura”, mas sim de uma “água mais pura”, uma vez que a água destilada ainda não é um líquido 100% puro. De acordo com o livro, a destilação é o processo mais indicado para obtermos “água pura”. O processo “consiste em ferver a água, recolher os vapores que se desprendem e esfriálos, para que voltem ao estado líquido. Como os vapores são de água pura, a água que se recolhe é pura também.” (LD1, 2004, p. 146) Após essa afirmação é apresentada uma imagem que representa o processo de destilação, sendo mencionada a separação de uma mistura de água e barro. 66 Figura 4: Processo de destilação de uma mistura de água e barro Fonte: LD1, 2004, p. 146 A partir da visualização desta imagem, com a intervenção de professor de Ciências, os estudantes da 5ª série já conseguiriam compreender algumas formas pelas quais é possível separar uma mistura, como é o caso do exemplo da mistura de água e barro, separada pelo processo de destilação. Contudo, a simples apresentação da figura não seria suficiente para uma compreensão adequada do processo de separação. O uso de atividades experimentais no ensino de Ciências não é objeto de estudo do presente trabalho, porém, cabe considerar que se trata de uma atividade importante ao processo de significação conceitual de substância. O uso de materiais de laboratório sofisticados e até mesmo a presença de tais materiais na ilustração poderia ser um fator limitante do processo de ensino e aprendizagem, mas a escola e o professor podem organizar situações pertinentes que contribuem para o entendimento conceitual em questão. É importante que, já na 5ª série, a linguagem química seja usada, a começar pela palavra substância, que se constitui numa ferramenta específica e essencial ao pensamento químico, contanto que as abordagens não exijam níveis de abstração muito elevados, em que os estudantes não compreendam o que lhes está sendo ensinado. De acordo com Vigotski (2008), com uma idade inferior a 12 anos, os estudantes ainda não apresentam um amadurecimento suficiente para compreender de forma abstrata o que lhes é ensinado, portanto, as manifestações deles não passariam de uma mera repetição e reprodução da fala do professor, sem efetivos processos de significação conceitual. 67 Nesse sentido, é importante refletir sobre a abordagem no LD1 (2004, p. 151) sobre a composição da água pura, mencionando que, para analisar isso, é preciso decompor a água, ou seja, separar seus componentes. Para fazer isso o livro aborda a eletrólise. Figura 4: Eletrólise Fonte: LD1, 2004, p. 151 O que mais nos chama atenção na leitura desse trecho é a afirmação de que o processo de decomposição da água “é muito simples” (LD1, 2004, p. 151), referindo-se a eletrólise. Será tão simples para um estudante da 5ª série do Ensino Fundamental compreender a eletrólise? Se formos pensar de um modo geral, até mesmo um estudante da 8ª série, com um maior desenvolvimento, apresenta dificuldades em compreender a eletrólise conceitualmente. Que dirá um estudante da 5ª série. Afinal, entender a eletrólise, mesmo minimamente, não é tão simples assim. Nos próprios excertos que acompanham a figura há indícios da complexidade do entendimento, por exemplo, por que necessita a pilha, um meio ácido, etc. Para compreender de fato o que se observa nessa atividade prática é necessário mobilizar diversos conceitos químicos, de forma interrelacionada, contudo, um estudante da 5ª série ainda não apresenta um nível de desenvolvimento suficiente para se apropriar de tais conceitos, que requerem altos níveis de abstração, sendo importante discutir as abordagens que seguem, sobre a eletrólise. 68 Figura 6: Gás produzido na eletrólise Fonte: LD1, 2004, p. 152 É claro que o fato de se fazer o uso das palavras potencializa a construção de significados, no entanto é importante ter cautela quanto a “o que” ensinar e com que nível de compreensão conceitual. As abordagens apresentadas nas unidades anteriores do material didático não contemplam processos de significação de conceitos químicos, nem mesmo dos conceitos de substância e elemento químico. Ao final do livro, parece que se pretende “dizer tudo” de Química. No entanto, neste estágio da escolarização, o estudante não é capaz de compreender os fenômenos teóricos (não observáveis) envolvidos na explicação sobre o fenômeno observável (eletrólise). Indícios da complexidade conceitual abrangida podem ser percebidos, por exemplo, no entendimento da primeira frase que acompanha a figura 5, na menção de que um dos gases “é” o hidrogênio e o outro “é” o oxigênio, a partir da pretensa observação do dobro do volume. Nossa preocupação se volta para dificuldades, por parte do estudante, em estabelecer as necessárias interrelações conceituais no contexto em estudo. Também, nas abordagens que seguem: 69 Figura 7: Gás produzido na eletrólise Fonte: LD1, 2004, p. 153 É problemático supor que “com base no que acabou de ver”, o estudante da 5ª série entenderia que um dos gases, o hidrogênio, existiria em maior quantidade do que o outro. Não se trata de relações diretas nem simples, sendo problemático o entendimento conceitual sobre a formação da água, quando ainda não teria sido significado, nem minimamente, o conceito de elemento químico. É também problemático o entendimento do que seria um átomo, uma molécula. Figura 8: Átomos e moléculas Fonte: LD1, 2004, p. 153 70 É interessante a menção referente à representação dos átomos, em que o LD afirma que “podemos representar os átomos da forma que quisermos, pois será apenas uma representação e não um desenho do átomo” (LD1, 2004, p. 153). Isso denota a preocupação de deixar claro ao estudante que aquela é apenas uma representação, que o átomo poderia ter qualquer outra forma. Afinal, ninguém nunca conseguiu ver um átomo. Essa linha de discussão é fundamental no ensino de Ciências Naturais e já neste nível de ensino é importante que os alunos entendam que os conhecimentos científicos não se referem ao que pode ser visto, tocado, percebido pelos nossos sentidos. E que a ciência é uma produção do homem e sendo assim não se trata de estudar o que pode ser visto no mundo real. Na formação dos professores e no ensino de Ciências Naturais é essencial que sejam feitas reflexões de cunho epistemológico sobre os modos como os conhecimentos são entendidos e trabalhados nos LD e nas salas de aula. Ao mesmo tempo em que consideramos fundamental e defendemos a necessidade de abordagem de conceitos químicos, como elemento, substância, átomo, molécula, durante todo o Ensino Fundamental para que ocorram processos de significação conceitual em Ciências, questionamo-nos sobre a necessidade e a pertinência de abordar conceitos como os de átomo e molécula, com esse nível de complexidade, nesta série escolar. O processo de apropriação da linguagem química, como primeiro passo do processo de significação conceitual, poderia ter sido focalizado no uso inicial das palavras (conceitos) elemento e substância. O estudante até poderá expressar a opinião esperada em resposta a pergunta que consta ao final da Figura 8, no entanto, apenas como uma associação reproducionista, sem a compreensão química/teórica esperada. Há a explicação, no LD1, de que as substâncias são formadas por unidades muito pequenas, que não podemos ver e que essas unidades são diferentes. Por isso elas foram representadas de formas diferentes (cor e formato), conforme representado, justamente para evidenciar que existem diferenças entre elas. No entanto, essas abordagens nos fazem refletir sobre a pertinência de apresentar essas representações dos átomos. Ainda na abordagem sobre a constituição das substâncias, o LD1 trata da representação do oxigênio e do hidrogênio (como átomos que constituem a molécula de água, não como elementos) pelos símbolos O e H, respectivamente. 71 Figura 9: Representação da molécula de água Fonte: LD1, 2004, p. 154 Percebe-se essa preocupação em fazer uso dos símbolos, no entanto, a tabela periódica não é mencionada no LD1. O material didático em análise também trata do conceito de densidade. Compara as diferenças de pesos existentes entre volumes iguais de substâncias distintas, como no caso do óleo e da água. Neste caso afirma que a substância mais pesada é mais densa e que a menos pesada é menos densa, como pode ser visualizado na figura abaixo: Figura 10: Densidade Fonte: LD1, 2004, p. 196 72 Abordagens do conceito de densidade das substâncias, pela mesma argumentação relativa aos conceitos de átomo e molécula, não são pertinentes na 5ª série, com o nível de complexidade apresentado pelo livro didático, que sugeriu inclusive a resolução de cálculos de densidade. Essas abordagens com um nível de complexidade mais avançado são mais pertinentes à 8ª série do Ensino Fundamental, conforme consta na maioria dos livros didáticos. Defendemos que seja feito o uso das palavras sim, como meio de potencializar o processo de significação de conceitos de forma sólida, mas com um cuidado especial nas formas de abordagens e nos seus níveis de complexidade. Pela experiência vivenciada em sala de aula da 8ª série, percebemos a complexidade do ensino desses conceitos. É muito difícil para os estudantes estabelecerem relações entre a massa e o volume das substâncias, fazer os cálculos, compreender o que de fato representa a densidade de um material, ou de uma substância. Mortimer, Machado e Romanelli (2000) discutem sobre alguns problemas que ocorrem na introdução de conceitos no ensino médio e citam como exemplo o conceito de densidade. Neste contexto, trazemos algumas contribuições destes autores, ao falar da abordagem deste conceito já na 5ª série do Ensino Fundamental. De acordo com os autores, o conceito de densidade é introduzido na maioria dos livros didáticos do ensino médio seguindo uma única linha, que se baseia na apresentação da fórmula de densidade como d=m/v. Essa forma de abordagem do conceito é característica dos currículos tradicionais, nos quais os conceitos passam a ser “confundidos com definições, que o aluno passa a usar de maneira mecânica em problemas de tipos bem determinados” (MORTIMER, MACHADO e ROMANELLI, 2000, p. 274). Na maioria dos livros didáticos de Ensino Fundamental, que apresentam uma abordagem tradicional dos conceitos, as discussões sobre densidade também se apoiam em uma única linha, na apresentação da fórmula e na resolução de cálculos sobre a densidade de materiais e substâncias. Os exercícios sugeridos, na maioria das vezes, envolvem a aplicação direta dessa fórmula, nos quais os valores de duas das variáveis são fornecidos, bastando usar a fórmula para se encontrar o valor da terceira. Quando solicitamos ao aluno, que “aprendeu” densidade por esse processo, que explique o funcionamento dos densímetros, usados em postos de gasolina para determinar se o álcool vendido como combustível está dentro das especificações, descobrimos que, na maioria das vezes, ele não é capaz de reconhecer neste um problema que possa ser resolvido usando o “conceito” de densidade. Na verdade esse aluno não aprendeu um conceito mas apenas sua definição, já que um conceito implica ao mesmo tempo a relação com objetos e com outros conceitos. Aprender a usar a definição de densidade não implica na aprendizagem do conceito, uma vez que essa só será possível após a aplicação do conceito a diferentes fenômenos, nos quais as relações 73 entre densidade e outros conceitos vai se tornando explícita (MORTIMER, MACHADO e ROMANELLI, 2000, p. 274). Neste sentido, apontamos a necessidade de um currículo que não considere apenas as definições conceituais e teóricas dos conceitos químicos, mas que leve em conta os diferentes contextos e as situações vivenciais em que eles se aplicam e que permite compreendê-los. Salientamos também a complexidade que se instaura na compreensão do conceito de densidade, seja no ensino médio quanto na 8ª série do Ensino Fundamental, em que esse conceito já é introduzido em Ciências. Defendemos a necessidade de abordagens sobre esse conceito já na 5ª série do Ensino Fundamental, o que é sugerido pelo LD1. Provavelmente os estudantes, neste nível de ensino, não irão produzir um significado sólido para o conceito de densidade, que precisa da mobilização e o estabelecimento de relações com outros conceitos, dos quais os estudantes da 5ª série ainda não se apropriaram. No entanto, o uso da palavra se constitui como primeiro passo para o processo de significação conceitual. Com o uso sucessivo das palavras novos significados são construídos, os quais evoluem e são ressignificados na medida em que são aplicados em diferentes contextos de estudo. Essa ressignificação permite novas reflexões e a construção de sentidos aos conceitos, caracterizando uma forma de pensamento conceitual. Na última unidade do LD1, que trata do ar, há uma retomada dos conceitos de átomo e molécula, conforme segue: Figura 11: Moléculas e átomos Fonte: LD1, 2004, p. 214 74 Figura 12: Moléculas e átomos Fonte: LD1, 2004, p. 214 Outra vez, trata-se de uma abordagem em que não são usadas as palavras (conceitos) substância e elemento químico, o que referenda a linha de análise expressa anteriormente. O que queremos enfatizar na análise e discussão das abordagens no LD1 é a percepção de que, por um lado, as unidades iniciais negligenciam o uso da linguagem química, praticamente sem contemplar processos iniciais de significação conceitual, nem mesmo para os conceitos de elemento e substância. Por outro lado, no final do livro há abordagens que extrapolam níveis de abstração possíveis na 5ª série, adentrando em abordagens muito complexas sobre os conceitos de átomo, molécula, densidade, ainda sem abordagens com o uso das palavras (conceitos) elemento e substância. Percebe-se uma fragmentação do conhecimento escolar uma vez que, por exemplo, os estudos sobre o solo não contemplam aprendizados químicos, diferentemente dos estudos sobre a água e o ar. Além da fragmentação considera-se que algumas formas de abordagens não são pertinentes, seja pelo estágio de desenvolvimento dos estudantes, seja pela problemática da não significação dos conceitos elemento e substância, que são essenciais a estruturação do pensamento químico. Salientamos que abordagens desse tipo acabam por se tornar obstáculos no processo de aprendizagem e de significação de conceitos químicos em aulas de Ciências Naturais do Ensino Fundamental, referidos por Bachelard (1996) e mencionados anteriormente nessa dissertação como obstáculos epistemológicos. Alguns dos obstáculos epistemológicos, citados por Bachelard (1996), são: o realismo, o verbalismo, o substancialismo, o animismo entre outros. O substancialismo é um obstáculo bastante presente na literatura didática de Ciências Naturais, como uma crença já enraizada (OLIVEIRA, 1995). Está presente, frequentemente, nas definições do conceito de molécula, como sendo a menor parte da substância capaz de guardar suas propriedades”. A partir de definições desse tipo, a idéia transmitida ao estudante é a de que o constituinte isolado (molécula) contém em si os atributos do todo. Entretanto, como dizer que a molécula de água possui densidade, pressão de vapor, tensão superficial, pontos de 75 fusão e ebulição e etc? Tais propriedades pertencem ao conjunto, isto é, manifestamse nas relações que as moléculas mantêm entre si (OLIVEIRA, 1995, p. 09). Acreditamos que os estudantes, neste nível de ensino, ainda não sejam capazes de estabelecer relações entre conceitos que requerem níveis elevados de abstração. Na 5ª série, provavelmente, ainda não são construídos significados sólidos aos conceitos, em função da complexidade de muitas abordagens e do nível de desenvolvimento e maturidade de cada estudante. No entanto, mesmo crianças pequenas hoje podem ter acesso a redes de comunicação e informação e desenvolvem agilidade de pensamento e ação, cabendo à escola ampliar a apropriação e o uso das palavras como conceitos escolares, a exemplo de elemento e substância. Isso requer abordagens sistemáticas com retomadas e avanços conceituais, ao longo das aulas de Ciências Naturais. Quem sabe, ao final da escolarização, serão percebidas as evoluções e construções conceituais produzidas ao longo desse período de ensino. O item que segue, em continuidade a análise dos LD, trata de uma organização curricular que se diferencia da até aqui analisada, por contemplar interrelações de temas, conceitos, fenômenos, situações reais, no ensino de Ciências Naturais. 3.1.2 Interrelações de Conhecimentos no Ensino de Ciências Naturais O LD5 encontra-se organizado em 4 grandes unidades. Pela forma de organização dos conteúdos observada no sumário deste livro, percebemos que esse material apresenta uma proposta diferenciada, no sentido de uma organização inovadora do currículo de Ciências Naturais por apresentar abordagens dos conteúdos/conceitos de Ciências Naturais articulados a temas da vivência social, numa perspectiva contextual e interrelacionada. A primeira unidade trata dos ciclos da vida, com discussões sobre a vida de adolescente, a identidade dos jovens, as mudanças que acontecem nessa fase e como crescer com saúde. Ainda na unidade um, aborda-se o ciclo de vida de alguns animais e vegetais, além do estudo da água e seu ciclo, sua presença nos seres vivos, a falta de água, o acesso a agua tratada e a produção de água potável. Na unidade 2, é abordada a diversidade dos materiais, iniciando os estudos pela Química no cotidiano, substâncias e misturas, a Química dos medicamentos e alguns processos de separação de misturas. Logo após, são apresentados alguns materiais que nos rodeiam, enfatizando suas propriedades, ou seja, o que caracteriza e diferencia cada um deles. 76 Para encerrar o estudo da unidade 2 foram apresentadas algumas discussões sobre o ar e suas propriedades, e algumas das transformações que acontecem nos materiais. Na unidade 3 são trazidas algumas discussões sobre a diversidade da vida, apresentando as diferenças e semelhanças entre os seres vivos bem como sua classificação. Os vertebrados e invertebrados também são apresentados nesta unidade, a partir das discussões de suas principais características. Foram feitas ainda abordagens em relação ao reino das plantas, apresentando suas características gerais e os grupos nos quais elas se dividem. Microrganismos como fungos, bactérias, algas e protozoários também foram abordados nesta unidade. Na quarta e última unidade, o foco de estudo está centrado no planeta terra, com abordagens sobre o globo terrestre, as forças que atuam sobre ele, o formato da terra, o sol e os movimentos de rotação da terra. Esse livro didático de 5ª série, assim como o livro mencionado e analisado anteriormente, apresenta no decorrer de suas abordagens conceitos da Química, no entanto a abordagem destes conceitos é feita de forma diferenciada, já que a proposta do livro também se diferencia do LD1. Serão apresentadas nesse subcapítulo algumas considerações em relação às abordagens trazidas pelo LD5, comparando-as com as abordagens do LD1. Essa rápida descrição geral do LD5 já permite uma percepção sobre a diferença entre ele e o LD1 no que se refere às abordagens de conteúdos/conceitos de química e também a forma não fragmentada dessas abordagens ao longo do livro. Ambos tratam do universo, do meio ambiente, dos seres vivos, do ar, da água e do solo, no entanto as formas como os assuntos são abordados se diferenciam bastante. Tal diferença será explicitada e discutida a seguir. No LD5 uma das abordagens iniciais refere-se ao estudo da água, dos locais do globo terrestre onde existe água, da água nos seres vivos, dos problemas da falta da água em ambientes, o ciclo da água, etc. Nas abordagens sobre o ciclo da água, o LD apresenta algumas considerações afirmando que a água é transferida de um lugar para o outro continuamente e que ela faz parte da mistura que compõe o ar que respiramos. Além disso, ela faz parte da constituição dos organismos vivos, podendo ser encontrada em regiões da terra consideradas inacessíveis (LD5). O livro enfatiza mudanças envolvidas no ciclo da água, representadas na figura 13. 77 Figura 13: Diagrama esquemático de mudança dos estados físicos da água Fonte: LD5, 2003, p. 56 Após a imagem que representa o ciclo da água, consta uma explicação de forma detalhada sobre cada um dos oito processos que explicitam as mudanças pelas quais a água passa em relação aos diferentes estados físicos em que ela se apresenta. Vejamos duas explicações presentes no LD5: Processo1- Parte das geleiras e das calotas polares podem se tornar líquidas, desde que recebam energia solar suficiente. Nesse caso, dizemos que ocorreu a fusão do gelo. Fusão, portanto, é o nome dado à transformação de um material sólido em líquido. Processo 2- A água não precisa ferver para transformar-se em vapor. Isso pode acontecer em qualquer temperatura, por um processo chamado evaporação. A energia irradiada pelo Sol facilita a evaporação da água, que se transforma lentamente em vapor e se mistura ao ar da atmosfera. A velocidade da evaporação depende: - da quantidade de água que já se encontra misturada ao ar (umidade do ar); - da existência de ventos; - da temperatura do ambiente; - da extensão da superfície de água que está em contato com o ar. Percebemos que as abordagens referentes ao estudo da água, bem como o seu ciclo, se referem as suas propriedades e as transformações que ocorrem, no entanto, não são feitas referências à sua constituição. Ao referirmo-nos às propriedades, a constituição e as transformações que ocorrem em materiais e substâncias, estamos fazendo referência aos objetos de investigação da Química (MORTIMER; MACHADO; ROMANELLI, 2000). Os autores destacam que, para que o currículo de Ciências Naturais permita aos estudantes compreensões sobre o cotidiano, fazendo com que relacionem conceitos da Química com situações de sua vivência, de forma 78 que o currículo não se caracterize como tradicional, mas sim diferenciado, ele deve perpassar esses três pontos. Esses objetos de conhecimento, que são as propriedades, a constituição e as transformações de materiais e substâncias, e que caracterizam o ensino da Química como um todo se apresentam na forma de triangulação, interrelacionados uns com ou outros (MORTIMER, MACHADO E ROMANELLI, 2000). Na abordagem sobre o ciclo da água, feita no LD5, não percebemos a consideração dessas interrelações, desses aspectos que constituem a triangulação mencionada, que se referem às propriedades, à constituição e às transformações dos materiais e das substâncias. São evidenciados apenas dois deles, quando se refere às propriedades da água e às transformações que podem ocorrer. Mesmo que no LD5 não sejam considerados os aspectos que se referem à constituição da água, a abordagem de suas propriedades e transformações já permite entendimentos sobre a substância água em termos conceituais, o que já contribui para o processo de significação conceitual desta substância. Outro assunto tratado no LD5 refere-se aos cuidados que devemos ter com a alimentação. São citados então alguns alimentos que fazem parte de nossa dieta alimentar, bem como os nutrientes essenciais que os constituem, que são a água, sais minerais, açúcares, gorduras, vitaminas e proteínas. (LD5). A figura abaixo representa alguns dos alimentos que consumimos e os nutrientes que os constituem. Figura 14: Constituição de alguns alimentos Fonte: LD5, 2003, p. 24 Essa abordagem apresentada no LD5, sobre a constituição dos alimentos, por mais que não aborde explicitamente o conceito de elemento químico e substância, já faz o uso de 79 palavras que remetem as substâncias que lhes constituem. Percebemos que a abordagem dos conceitos químicos é feita com mais cautela, sem a necessidade de uma significação conceitual mais complexa, o que foi percebido na análise do LD1, em que os conceitos são apresentados de vez. Mesmo que as abordagens não contemplem, em um primeiro momento, a constituição e as propriedades das substâncias que constituem os alimentos em um nível atômicomolecular, a produção de sentidos já ocorre, portanto, novas compreensões sobre os alimentos já são produzidas pelos estudantes. Consideramos que durante essa abordagem a tabela periódica dos elementos já poderia ser apresentada, fazendo parte das discussões. Nesse contexto ela poderia ser utilizada para que os estudantes, a partir da imagem dos alimentos pudessem pesquisar quais dos nutrientes que constituem os referidos alimentos são encontrados na tabela periódica. Nesse caso, os estudantes encontrariam na tabela periódica o cálcio, o potássio, o fósforo e o ferro. Portanto, ele já teria condições de afirmar que estes são elementos químicos. Já os demais nutrientes como vitaminas, proteínas, gordura, não são encontrados na tabela periódica, portanto, não são elementos químicos. Alguns nutrientes não seriam encontrados na tabela periódica pelo fato de não serem elementos químicos, mas sim substâncias. As substâncias que encontramos nos alimentos indicados na figura são: lactose, açúcar, vitamina A, vitamina C, sacarose, glicose, Vitamina B12, amido, vitamina D, Vitamina B1 e B6. Destacamos que não há necessidade, ainda neste nível de ensino de explicitar em termos conceituais o que é uma substância e qual a sua constituição. A partir das discussões feitas acimas, sobre os nutrientes, que podem ser encontrados nos alimentos na forma de substância ou elemento químico, os estudantes já terão a capacidade de refletir sobre os referidos conceitos em situações de sua vivência, quando essas palavras forem usadas. Apontamos também a importância da abordagem sobre os alimentos pelo fato de ser um tema de importância vivencial, já que apresenta discussões sobre como se ter uma alimentação saudável, os cuidados com a alimentação, higiene do corpo, além de apresentar dados sobre a nutrição no Brasil. Além do mais, uma pessoa que se alimenta diariamente sem se indagar a respeito do valor nutricional das dietas, sem pensar adequadamente sobre os alimentos e sem usar ideias como a composição química da alimentação e a existência dos diversos nutrientes, não terá saberes relevantes, do ponto de vista do valor nutricional e da qualidade da alimentação (KINALSKI; ZANON, 1997, p. 18). 80 Destacamos também em outro trecho do livro a utilização do termo substância, quando da explicação de como é possível ter uma água de boa qualidade. Nessa explicação enfatiza-se que substâncias indesejadas presentes na água, as quais comprometem a potabilidade da mesma, só podem ser identificadas a partir de uma análise microscópica da amostra, ou seja, os componentes que fazem parte da mistura não podem ser vistos a olho nu. Neste sentido, compreendemos que os autores querem deixar claro que a transparência da água não é sinônimo de potabilidade e que as substâncias que constituem ou contaminam a água não podem ser vistas, como fica destacado no trecho retirado do livro didático. Figura 15: Potabilidade da água Fonte: LD5, 2003, p. 62 Neste trecho observamos também que, quando se discute sobre a constituição da água potável, não é feita uma abordagem sobre a constituição da substância em nível atômico molecular, mas sim da constituição da água potável, de componentes que estão presentes nela e que a constituem enquanto substância. Por mais que os componentes da água não sejam explicitados como sendo substâncias, já é evidente a preocupação das abordagens que tratam da sua constituição, mesmo que de forma superficial. 81 Destacamos para a importância de discussões que se refiram as substâncias, mesmo sem a sua definição em termos conceituais, pois o uso da palavra, sempre em um contexto específico, é capaz de produzir sentidos e entendimentos, que posteriormente, com a evolução das abordagens, passarão a ter um significado conceitual. Na abordagem sobre a constituição da água mineral são apresentados alguns rótulos de águas minerais, contendo informações sobre a sua composição química. A partir da observação dos dados desses rótulos sugere-se a resolução de alguns exercícios que se referem aos seus constituintes, como segue. Figura 16: Constituição da água mineral Fonte: LD5, 2003, p. 63 A partir da observação dos rótulos de água mineral apresentados pelo livro didático, percebemos a presença de elementos e substâncias que constituem a água mineral. Os elementos que fazem parte da constituição dessa água estão em sua forma iônica, como é o caso do sódio (Na+) e do cálcio (Ca+), sendo a sílica (SiO2) uma das substâncias que faz parte de sua constituição, indicada em um dos rótulos. Pela leitura dos exercícios propostos, percebe-se que o livro didático estimula a reflexão por parte dos estudantes sobre os conceitos de elemento e substância, já que para a 82 resolução dos exercícios é necessário que eles apresentem certa clareza em relação ao que seja um e outro. Para responder as questões, necessariamente as palavras vão ter que fazer parte das discussões e de seus pensamentos, por mais que não se tenha dito que a água é uma substância, mas sim uma mistura de diversas substâncias, e que a palavra substância não tenha sido conceituada no que se refere a sua constituição em nível atômico molecular. Ao fazer a interpretação dos rótulos de água mineral e ao responder os exercícios, o estudante faz uso do termo substância e assim já produz alguns sentidos ao conceito naquele contexto, sendo que as produções em nível conceitual, com um pensamento abstrato se dão mais tarde, após evoluções e ressignificações daquele conceito. Quando são discutidas as formas de produção de água potável é apresentado um quadro que indica a presença de metais pesados em rejeitos de indústrias que atuam em diversos ramos, como a indústria de papel e celulose, petroquímica, de fertilizantes, refinarias de petróleo e usinas siderúrgicas. Os metais pesados presentes são representados pelo seu nome, acompanhado do símbolo do elemento químico que os representam e que podem ser visualizados na imagem abaixo. Figura 17: Metais presentes nos rejeitos de indústrias Fonte: LD5, 2003, p. 64 A partir dos elementos que constituem substâncias que podem causar danos ao homem e ao ambiente (metais pesados), indicados nessa tabela, poderiam ter sido introduzidas discussões em torno do estudo da tabela periódica dos elementos, já que os metais pesados apresentados estão organizados na tabela periódica de forma que se encontram em um mesmo grande grupo, o grupo dos metais. Dentro deste contexto poderiam ser discutidas também questões relacionadas à representação química destes elementos, através do símbolo químico que representa cada um deles. O uso de um símbolo, para designar um elemento químico, representa uma forma de linguagem específica à Química. 83 Defendemos a importância da abordagem através do uso da tabela periódica, apresentando os elementos químicos e as substâncias já na 5ª série do Ensino Fundamental, pelo fato de que a formação de conceitos não se dá de vez, ou seja, é um processo longo, no qual a palavra precisa ser usada muitas vezes até que de fato adquira um significado conceitual para o estudante. Por mais que na 5ª série os estudantes não façam o uso da palavra com significado conceitual, ela tem um sentido dentro de determinado contexto em estudo. Com o passar do tempo e a partir de outras abordagens essas palavras passam a adquirir, em outros contextos, novos sentidos, que evoluem. Consideramos, de acordo com Vigotski (2008), que o conceito não é uma formação estável, cristalizada. Seu significado sempre evolui, fazendo com que os conceitos possibilitem aos sujeitos atingir níveis mais elevados de compreensão sobre situações e fenômenos em estudo. Dentro da unidade intitulada “A diversidade dos materiais”, são apresentadas discussões sobre as substâncias e misturas, procurando dar uma ideia destes dois conceitos. Vamos recordar que, anteriormente, quando do estudo dos alimentos e dos componentes que os constituíam, o conceito de substância já estava sendo introduzido, isso ao dizer que os diversos alimentos que ingerimos são constituídos por diferentes nutrientes, que podem se apresentar na forma de substâncias (sacarose) ou elementos (cálcio, ferro). No entanto, os termos elemento e substância não foram utilizados neste contexto para designar esses nutrientes. Com base nos escritos de Vigotski (2008), essas retomadas realizadas durante as diferentes unidades do livro didático, têm por finalidade promover a evolução dos conceitos, a partir de seu uso em diferentes contextos. Nesse processo são produzidos novos sentidos aos conceitos. Por mais que se discuta que poderiam ter sido introduzidas discussões sobre a tabela periódica dos elementos, buscando identificar os nutrientes que poderiam ser encontrados nela, para dessa forma diferenciá-los dos nutrientes que não seriam encontrados nela, pelo fato de serem substâncias, destacamos que agora, neste novo contexto, em que os autores discutem a diversidade dos materiais, percebemos a intencionalidade nas discussões sobre as substâncias, os elementos e as misturas. Ou seja, por mais que na discussão anterior a intenção não fosse quem sabe a de significar já esses conceitos, eles permeavam o estudo dos alimentos. Naquele contexto a sacarose não era definida como uma substância, mas sim como um nutriente que constituía um alimento. Já neste contexto, a sacarose é citada como sendo uma substância, pura e não uma mistura de substâncias, como o leite materno e o leite de vaca. 84 No trecho abaixo, podemos visualizar as discussões feitas pelos autores em torno das substâncias e misturas: Figura 18: Substâncias e misturas Fonte: LD5, 2003, p. 76 Figura 19: Substâncias e misturas Fonte: LD5, 2003, p. 77 Percebemos, portanto, que houve uma evolução no significado dos conceitos de substância e misturas neste contexto. No contexto anterior, no qual as discussões também se deram em torno dos alimentos, percebeu-se o uso das palavras, no entanto, elas não traziam um significado conceitual tão evidente, como no contexto atual, no qual os significados já evoluem. Mais adiante, ainda no estudo dos materiais, encontramos um capítulo que discute especificamente as propriedades dos materiais, evidenciando que os diferentes objetos e instrumentos que existem no mundo são formados por materiais diferentes, e que cada 85 material possui propriedades específicas, que os diferenciam uns dos outros, como ponto de fusão e ebulição. Nesse estudo dos materiais são evidenciados os metais, que dão origem a muitos dos objetos que utilizamos no dia-a-dia. São abordadas também algumas propriedades dos metais, como brilho, maleabilidade, ductibilidade, capacidade de condução de calor e eletricidade. Logo após são discutidas algumas questões específicas em relação a alguns dos metais mais utilizados pelo homem, como o ferro, alumínio, cobre, ouro, prata e mercúrio. Destacamos que, durante a abordagem das características e utilizações dos metais acima referidos, houve a preocupação em citar algumas características destes metais do ponto de vista da Química, principalmente, pelo fato de terem sido utilizados os símbolos químicos que representam os elementos quando se referiam ao ferro (Fe), ao alumínio (Al), ao cobre (Cu), e assim por diante. No entanto, evidenciamos que esses metais não poderiam ser compreendidos como substâncias, pelo fato de não serem feitas abordagens que dizem sobre quais compostos constituem. Durante essa abordagem sobre os metais foi apresentada a tabela periódica dos elementos, como sendo “um modo de organizar e apresentar os elementos químicos de acordo com suas propriedades. Esses elementos são representados por seu símbolo. Por exemplo, o símbolo do elemento ferro é Fe. O ouro é representado por Au, as duas primeiras letras de seu nome em latim” (LD5, 2003, p. 95). Após a explicitação do que é a tabela periódica, ela é representada no livro didático. Figura 20: Tabela periódica dos elementos Fonte: LD5, 2003, p. 95 86 Destacamos a importância de abordagens que procurem evidenciar algumas características dos materiais do ponto de vista da Química, bem como as abordagens sobre a tabela periódica dos elementos, já neste nível de ensino. Destacamos também que essa abordagem apresentada neste material didático apenas introduz o assunto referente a tabela periódica, não se preocupando com abordagens mais complexas neste momento, já que os estudantes que fazem uso desse material didático encontram-se na 5ª série, nível em que os conceitos químicos não precisam e não devem ser abordados de forma muito complexa, em função da capacidade de compreensão, ainda limitada, dos estudantes nesta série. No entanto, a Química, mesmo que de forma simples e simplificada, já passa a fazer parte das discussões dos estudantes, as palavras já são utilizadas, eles já pensam sobre isso, o que contribui para abordagens e significações que serão feitas, de fato, mais adiante. Outro momento que evidencia o uso da linguagem Química nas discussões sobre os materiais, se refere às transformações pelas quais passam os metais. Durante essa discussão, procura-se explicitar que em determinadas condições os metais podem sofrer transformações, principalmente o ferro, e que uma das transformações que ele pode sofrer é o enferrujamento, conhecido também por corrosão. O enferrujamento é um “processo que ocorre com o ferro quando ele é exposto ao ar e à umidade. No ar existem água e oxigênio. A umidade apresentase na forma de vapor de água. Oxigênio, água e ferro são substâncias que reagem entre si e produzem a ferrugem. Nos lugares onde a umidade do ar é alta, a corrosão do ferro ocorre mais rapidamente” (LD5, 2003, p. 127). Após as explicações sobre o que é o processo de corrosão e quais condições favorecem a ocorrência dessa transformação, são apresentadas duas equações químicas que representam a transformação. Figura 21: Transformação dos metais Fonte: LD5, 2003, p. 127 87 Evidenciamos a utilização das equações químicas para representar uma reação de transformação de um material, o ferro, mesmo que tenham sido utilizados apenas os nomes das substâncias, ao invés da fórmula que as representa. Destacamos, neste contexto, a importância do uso da linguagem Química. É sabido que a Química “utiliza uma linguagem própria para a representação do real e as transformações químicas, através de símbolos, fórmulas, convenções e códigos.” (BRASIL, 1999, p. 34). Isso faz com que uso da linguagem Química seja essencial e necessária às explicações dos fenômenos e transformações que ocorrem na natureza, no ensino de Ciências Naturais. Além de fundamental para o entendimento das transformações, que acontecem no mundo material, a linguagem Química também desempenha um papel importante em relação a compreensão dos conceitos por parte dos estudantes. De acordo com Roque e Silva (2008, p. 06) “a aprendizagem da química se caracteriza pela apropriação de uma linguagem específica e apropriada para a descrição dos fenômenos materiais”, ou seja, quando o estudante se apropria dessa linguagem é possível perceber que ele se apropriou de conceitos da área e passa a dispor de saberes que serão úteis ao entendimento de situações que ocorrem tanto em sala de aula quanto fora dela, em casa, sendo capaz de ampliar e aprofundar os entendimentos em relação a acontecimentos e fenômenos que vivencia. A representação a partir do uso de fórmulas químicas constitui-se uma das principais, senão a mais importante, das maneiras pela qual fazemos uso dessa linguagem Química, sendo estas consideradas um instrumento importante para explicar várias propriedades das substâncias (MORTIMER, 1996, p. 21). Para Machado (1999, p. 152) “a linguagem científica, e a linguagem química em especial, pode possibilitar aos sujeitos uma nova maneira de pensar/falar sobre o mundo. A linguagem científica possui características próprias, diferentes da linguagem comum”. Neste sentido buscamos destacar a importância do uso da linguagem Química no ensino de Ciências Naturais durante todo o percurso das séries finais do nível fundamental, não apenas na 8ª, último ano do Ensino Fundamental. Neste sentido, defendemos que o uso da linguagem Química, mesmo que de forma não tão aprofundada, ao longo de todo Ensino Fundamental, constitui-se um dos principais quesitos para a construção do pensamento químico e compreensão dos fenômenos que ocorrem em nosso mundo, além de ser um “instrumento privilegiado para a elaboração de 88 uma forma de pensar em Química” (MACHADO, 1999, p. 143). Quando essa linguagem é trabalhada em sala de aula de forma correta, com a significação de conceitos fundamentais, uso de representações químicas, entre outros, os estudantes passam a ver o mundo com outros olhos, pois é dada a eles a possibilidade de compreender as transformações que ocorrem nos materiais, substâncias, enfim, em tudo, a partir dos olhos das Ciências Naturais, ou seja, a partir dos conhecimentos da área que passam a fazer parte de sua vida e sobre os quais eles passam a ter o que falar e argumentar. Cabe reconsiderar a ideia de Vigotski (2008), de que é por meio da linguagem que o pensamento pode ser constituído e realizado. Nesse sentido “a linguagem não é apenas um veículo que transporta um conteúdo. [...] É fundamental ampliarmos nossa concepção de linguagem e considerar sua dimensão constitutiva de nossas formas de pensar e do processo de significação” (MACHADO, 2000, p. 40). 3.2 A Importância da Palavra no Processo de Significação dos Conceitos Elemento e Substância em Ciências Naturais Vimos que o percurso que leva à formação do pensamento conceitual é longo e passa por diversas fases e estágios. Nesse processo de construção e formação de conceitos precisamos considerar e pontuar a importância da palavra/conceito como primeiro requisito para a construção de caráter abstrato, considerando que a palavra (depois de muito ser utilizada) se torna um conceito, criando a própria função mental superior de representação abstrata. A importância da palavra nesse processo de significação conceitual é uma das afirmações fortemente defendidas por Vigotski (2008). Com base neste autor, é somente pelo uso da palavra, mediada sempre pelo outro, que ocorrem os processos de significação conceitual (VIGOTSKI, 2008). Neste sentido enfatizamos a importância do uso da palavra como instrumento de interação, que possibilita a constituição do pensamento químico, por meio do uso da linguagem específica da Química, como meio para a significação dos conceitos em Ciências Naturais, considerando neste caso os de elemento e substância. O currículo do ensino de Ciências Naturais, em geral, tem como foco a abordagem de conteúdos de Biologia, voltados quase que exclusivamente ao estudo dos seres vivos. Nesse contexto, percebe-se uma desvalorização das abordagens referentes aos conhecimentos de Química (KINALSKI; ZANON, 1997), que, por sua vez, têm sido limitados a 8ª série. 89 Conforme menção feita na introdução dessa dissertação, a educação em Ciências Naturais apresenta uma tradição, na qual o mundo natural é apresentado de forma fragmentada e linear. Essa mesma fragmentação e linearidade no ensino dos conteúdos, com uma separação entre a Biologia, a Física e a Química, está bastante presente nos livros didáticos disponibilizados para o ensino, com abordagens de conteúdos de Biologia nas 5ª a 7ª séries, enquanto a 8ª série limita-se aos estudos da Química e Física. Como refere Chassot (1992), é importante que o conhecimento químico permeie o ensino de Ciências Naturais, de 5ª a 8ª série, não se restringindo a um semestre isolado, no final do Ensino Fundamental, em que, em geral apenas são antecipados conteúdos do Ensino Médio. Defendemos que os conceitos químicos sejam abordados a partir da 5ª série do Ensino Fundamental, pois são necessários para o ensino dos próprios conteúdos tradicionalmente trabalhados nesta série, referentes ao ar, a água, ao solo, as relações ecológicas, fotossíntese, respiração, entre outros. Como ensinar esses conteúdos sem usar uma linguagem e um pensamento que permitam compreender a presença do gás oxigênio, do gás carbônico, da água e de tantas outras substâncias que constituem e conferem propriedades específicas aos materiais e transformações, no ambiente? Na fotossíntese não temos a presença de substâncias e a ocorrência de transformações? Uma enormidade de questões semelhantes a essas poderiam ser elencadas se considerarmos o conjunto dos conteúdos ensinados no decorrer das séries do Ensino Fundamental, em Ciências Naturais. Portanto, é necessário problematizar criticamente essa tradição na qual os conteúdos e conceitos de Química são vistos no currículo de Ciências Naturais como algo a parte. Essa visão pode ser associada à ampla realidade do ensino praticado nas escolas, sendo ainda poucos os professores de Ciências que a consideram inconcebível. É nesse cenário problemático que refletimos sobre a necessidade de inserção da Química ao longo do ensino de Ciências Naturais, mais especificamente, no que se refere aos conceitos de elemento e substância, fundamentais para o entendimento de grande parte das situações e fenômenos estudados neste nível de ensino. Dificilmente, no Ensino Fundamental, na área de Ciências Naturais, é possível ensinar algum conteúdo sem alguma compreensão dos dois conceitos mencionados. Temos claro que, neste nível de ensino, as elaborações em termos conceituais para elemento e substância ainda são limitadas, principalmente na 5ª e 6ª série, já que, baseado em Vigotski (2008), o estudante ainda não atingiu a maturidade necessária às compreensões de caráter conceitual, por isso, com nível de abstração. Neste sentido, defendemos a ideia do 90 mesmo autor de que, por mais que os estudantes não tenham ainda elaborado o significado conceitual dessas duas palavras/conceitos, o uso delas já é um meio que possibilita a comunicação e o entendimento entre os sujeitos. E, ao fazer uso das palavras, o sujeito vai atribuindo sentidos as mesmas, construindo, dessa forma, entendimentos que se modificam, evoluem, até que de fato sejam significadas de forma conceitual, portanto, abstrata. Já na 5ª série do Ensino Fundamental é abordada a existência de uma forma específica de representação das substâncias, através do uso da fórmula química, que na verdade representa os átomos dos elementos que constituem as substâncias, sendo esses elementos dispostos em uma tabela, que é conhecida como tabela periódica dos elementos. Apresentamos essas colocações para explicitar a importância do uso da palavra em Ciências Naturais, no sentido de que seu uso é importante no processo de evolução conceitual. Como mencionado, anteriormente, os estudantes neste nível de ensino certamente não saberão todo o significado da palavra elemento ou da palavra substância, no entanto já atribuem a elas um sentido, que está relacionado ao contexto em estudo. Mas, com o passar do tempo e com a utilização das palavras em diferentes momentos e contextos, o seu significado evolui para níveis mais complexos de significação, e assim, o conceito de fato passa a ser construído e significado. Portanto, para o significado de uma palavra evoluir é fundamental que se faça o uso da palavra (VIGOTSKI, 2008). Para Vigotski (2008), a criança, o jovem ou o adulto só tem acesso a novos conceitos pelo uso da palavra, considerando sempre que as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem o meio básico para dominá-las e dirigi-las. O signo mediador é incorporado à sua estrutura como uma parte indispensável, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formação de conceitos, esse signo é a palavra, que em princípio tem o papel de meio na formação de um conceito e, posteriormente, torna-se o seu símbolo (VIGOTSKI, 2008, p. 70). A palavra tem papel fundamental no processo de construção do conhecimento escolar, na mediação “da compreensão dos conceitos por parte dos sujeitos e principal agente de abstração e generalização. É nesse sentido que a linguagem assume um papel constitutivo na elaboração conceitual, e não apenas o papel comunicativo ou de instrumento” (MACHADO; MOURA, 1995, p. 27-28). Vigotski (2008, p. 69) contribui no entendimento da importância da palavra no processo de significação conceitual, ao afirmar que “as palavras exercem a função de 91 conceitos e podem servir como meio de comunicação muito antes de atingir o nível de conceitos característicos do pensamento plenamente desenvolvido”. Isso situa a importância de usar/significar termos em aulas de Ciências Naturais (elemento, substância, átomo, modelo atômico, entre outros), já que os processos de significação conceitual não se dão de vez, mas sim de forma lenta. É um processo complexo, que exige retomadas, recomeços, e que evolui. Nas aulas de Ciências Naturais, os processos de significação e formação de conceitos são complexos. O estudante realiza um longo percurso até que, de fato, consiga abstrair e construir conceitos que lhe permitam compreender situações e fenômenos vivenciados no cotidiano. E, para que essa construção conceitual aconteça de forma sólida e significativa, é necessário ter claro que: um conceito é mais do que a soma de certas conexões associativas formadas pela memória, é mais que um simples hábito mental; é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nível necessário. Em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalização. Mas os significados das palavras evoluem. Quando uma palavra nova é aprendida pela criança, o seu desenvolvimento mal começou: a palavra é primeiramente uma generalização do tipo mais primitivo; à medida que o intelecto da criança se desenvolve, é substituída por generalizações de um tipo cada vez mais elevado – processo este que acaba por levar à formação dos verdadeiros conceitos (VIGOTSKI, 2008, p. 104). É neste contexto que se defende e incentiva o uso intencional da palavra como instrumento fundamental e determinante nos/dos processos de significação conceitual. De acordo com palavras de Vigotski (2008), apresentadas no trecho acima, sem o uso da palavra, o processo de abstração e formação de um conceito não ocorre. É por isso que, nas aulas, cabe ao professor o papel essencial de usar palavras específicas da ciência e proporcionar aos estudantes momentos em que ele necessite usar as mesmas, para que possam produzir sentidos cada vez com maiores relações de complexidade, tornando-se conceitos. No próximo capítulo são apresentados e analisados os resultados de pesquisa produzidos a partir dos registros de aulas de Ciências Naturais acompanhadas em uma turma de 8ª série do Ensino Fundamental com foco principal nos processos de significação conceitual de elemento e substância. 92 4 ABORDAGENS DOS CONCEITOS ELEMENTO E SUBSTÂNCIA EM AULAS DE CIÊNCIAS NATURAIS DA 8ª SÉRIE Este capítulo apresenta e analisa resultados de pesquisa construídos a partir dos registros das aulas de Ciências Naturais junto à turma de 8ª série do Ensino Fundamental, com foco nos processos de significação dos conceitos elemento e substância. A partir do acompanhamento das nove aulas de Ciências Naturais, percebemos que a turma era bastante participativa nas aulas. Os estudantes procuram interagir com a professora e entre os colegas, fazendo perguntas e colocações. Em alguns momentos, mostravam-se um tanto agitados, mas logo se acalmam quando solicitados. Percebemos também que a professora ensinava com muita segurança e tranquilidade durante as abordagens dos conceitos e conteúdos em sala de aula. Isso pode se explicar pelo grande tempo de experiência, já que dedica muitos anos de sua profissão ao ensino de Ciências Naturais e Matemática no Ensino Fundamental (treze anos professora de Ciências da 8ª série). Durante o acompanhamento das aulas, chamou a atenção o fato de que a professora possui grande domínio sobre a classe, no sentido de manter um clima de disciplina e organização, sendo muito respeitada pelos estudantes na sala de aula. A professora prezava momentos de descontração, de conversa, no entanto, nos momentos destinados à explicação dos conteúdos, retomadas e resolução de exercícios era muito exigente, principalmente, no que dizia respeito ao silêncio em sala de aula e o respeito entre alunos e professor. Essa postura da professora, que exige dos estudantes respeito e empenho, mas permite momentos de diálogo e interação uns com os outros, é fundamental para que ocorram processos de significação conceitual, novas aprendizagens, pela interação com o outro, sendo que essa interação é mediada sempre pelo uso da palavra. A construção e análise dos resultados a partir dos registros das aulas limita-se a um recorte das primeiras aulas de Ciências Naturais acompanhadas, devido ao limite de tempo e 93 espaço disponível para a elaboração escrita da dissertação. O recorte das aulas de Ciências Naturais abrangeu o conteúdo “Misturas” e “Modelos Atômicos”, na 4ª e 5ª aulas. Este recorte foi escolhido pela sua relação com o tema desta dissertação, já no início do ano letivo. Na verdade estas foram as primeiras aulas de conteúdo, já que as aulas anteriores abrangeram outras atividades de integração, na escola. Cabe registrar que ricos materiais empíricos produzidos a partir dos registros serão objeto de continuidade e ampliação das análises, futuramente. A análise e discussão sobre os processos de significação conceitual de elemento e substância iniciam com a constatação de que as primeiras abordagens, na sala de aula acompanhada, foram no estudo dos diferentes “modelos atômicos” propostos por alguns químicos (Dalton, Thomson, Rutherford e outros), em diferentes contextos e tempos históricos. “Modelo atômico” também se constitui num conhecimento fundamental à compreensão do conhecimento químico e da própria evolução da Química como ciência, como construção humana, possibilitando a compreensão e significação de outros conceitos, relacionados à noção de átomo como partícula elementar e fundamental da matéria. Segue um breve relato da quarta e quinta aula de Ciências da turma de 8ª série, em que foi abordado o conteúdo “modelo atômico de Rutherford”, com reflexões a partir do diálogo dos sujeitos envolvidos, professora e estudantes, em relação ao ensino do assunto. A aula iniciou com a correção de atividades da aula anterior, que se referiam ao estudo sobre as misturas e os processos de separação das mesmas. As atividades haviam sido encaminhadas como tarefa para casa. Após a correção, a professora iniciou o estudo do átomo, questionando os estudantes sobre suas compreensões em relação à palavra “átomo”, se já haviam ouvido algo sobre o assunto. Após algumas manifestações dos estudantes, a professora mencionou os diferentes modelos que foram propostos para o átomo no decorrer da história e evolução da Química, iniciando pelos modelos propostos por Dalton e Thomson. Logo após, apresentou o modelo de Rutherford, tendo ilustrado com um desenho no quadro negro o experimento realizado pelo cientista (bombardeio a uma lâmina de ouro com partículas alfa). A ilustração e explicação aos estudantes foi feita a partir do livro didático de Ciências utilizado pela professora como suporte em suas aulas (diferente do livro dos estudantes). Segue um recorte obtido a partir do livro didático da professora (que faz parte da mesma coleção a qual pertence o LD4, analisado nesta dissertação) e um recorte obtido a partir do caderno de um dos estudantes, que copiou o que constava no quadro negro: 94 Figura 22: Representação do experimento de Rutherford Fonte: LD4, 2004, p. 61 Figura 23: Representação do Experimento de Rutherford Fonte: Caderno do aluno 1 A partir da ilustração, a professora explicou o conteúdo. Durante as falas, ela apontava para partes específicas do desenho, no quadro. Algumas falas, que constam em itálico no episódio, correspondem a trechos que ela lia diretamente no livro. Aula 4. 56. P: Ó gente, aqui no livro diz assim: (faz leitura do livro) “Entre 1909 e 1911, o lorde Ernest Rutherford realizou um experimento conhecido como ‘Experimento de Rutherford’: bombardeou uma lâmina finíssima de ouro com partículas positivas, chamadas partículas alfa”. Então, gente, ele bombardeou essa lâmina de ouro aqui com partículas positivas chamadas partículas alfa. Algumas passaram essa placa e vieram até a lâmina de sulfeto. Umas passaram, outras chegavam aqui e desviavam, pra um lado ou pra outro, mas daí ele pensou “tá e agora?”. Aqui ((no livro) diz assim: “A grande maioria das partículas atravessou a lâmina de ouro sem sofrer desvios em sua trajetória, embora algumas tenham retrocedido e outras sofrido desvios acentuados”. Então gente, algumas partículas atravessaram a lâmina, já outras sofreram desvios. Mas algumas retrocederam, voltaram e 95 algumas desviaram pros lados. Então o que ele descobriu? Aqui diz que “Com esse experimento, Rutherford tirou as seguintes conclusões: o átomo não é denso”. Como elas desviavam, né? Que o átomo possui uma região central onde estão concentradas as cargas positivas. Que ao redor do núcleo giram as cargas negativas. E aqui nada disso aparecia, nesse modelo aqui. Então, o que ele fez? Ele tentou mais. E encontrou outro modelo para o átomo: o modelo planetário, que seria como o sistema solar, dos planetas. No centro o núcleo, né, e ao redor, vamos tentar fazer aqui. ((Toca a campainha e a tarefa é adiada)). Na próxima aula eu retomo essa parte. A fala da professora nas duas primeiras linhas do turno apresentado remete para reflexões sobre a problemática da contextualização histórica do conhecimento escolar. Há menção ao período em que “realizou um experimento”. Após, consta: “o que ele descobriu”. É importante que, nos processos de significação conceitual, sejam produzidos sentidos ao conceito, em abordagens referentes à contextualização histórica do conhecimento químico, contudo: dessa forma? É necessário situar o contexto problemático, as implicações dos conhecimentos da época e as controvérsias associadas à proposição do modelo, evitando ideias simplistas como a de ‘descoberta’. Também é objeto de reflexão a penúltima frase: “Ele tentou mais. E encontrou outro modelo para o átomo: o modelo planetário”. O termo “encontrou” também dá margem a uma visão simplista e apriorística de conhecimento científico. A partir da explicação da professora, cabe questionar a (im)possibilidade de compreensão, pelos estudantes, do experimento e do modelo teórico proposto por Rutherford. Sem noção sobre as partículas alfa, por exemplo, como entenderiam o bombardeio da placa de ouro? A única referência de que são partículas que apresentam carga positiva, neste nível de ensino, provavelmente significa pouco para os estudantes. Cabe refletir sobre a importância da problematização dos conceitos, sejam os científicos ou os cotidianos, nas aulas de Ciências, para que elas não passem de um jogo de perguntas e respostas, em que o professor é um mero transmissor e o estudante um mero receptor de informações. Nessas aulas prevaleceu a imagem do professor repetidor. Em abordagens como essas, sem discussões e problematizações sobre os conhecimentos, os professores, de um modo geral, acabam despertando um movimento de pensamento no aluno não orientado para a compreensão conceitual dos objetos em estudo. Pelo contrário, acabam criando obstáculos 96 epistemológicos e pedagógicos que impedem ou dificultam as aprendizagens dos conceitos de Ciências Naturais (BACHELARD, 1996). Como demonstra o episódio que segue, na aula seguinte, a professora retoma o assunto da aula anterior e dá continuidade aos estudos sobre o modelo atômico de Rutherford: Aula 5.1. P: Nós paramos nos átomos né? Nas diferentes teorias. Qual foi a teoria que nós vimos na aula passada? Qual era a primeira, em forma de que? Aula 5. 2. A1: De bola Aula 5.3. P: Isso, como se fosse uma bola maciça. E o outro? Qual era o outro modelo? O de pudim de...? Aula 5.4. A2: Passas Aula 5.5. P: Como se fosse um pudim de passas, com cargas negativas dentro. Essas cargas negativas seriam as passas. O outro então seria o de Rutherford, com todas aquelas placas de chumbo, com lamina de ouro, que alguns feixes de partículas passavam, outros refletiam. (A seguir, a professora faz a leitura do livro). “A grande maioria das partículas atravessou a lâmina de ouro sem sofrer desvios em sua trajetória, embora algumas tenham retrocedido e outras sofrido desvios acentuados. Com esse experimento, Rutherford tirou as seguintes conclusões: O átomo não é denso e apresenta mais espaços vazios do que preenchidos”. O que é denso? Lembram que eu falei pra vocês? O que é denso é mais pesado. Lembram do exemplo da água, que é mais densa que o azeite? Lembram gente, que eu falei que algumas substâncias são mais densas que outras? Aula 5.6. A3: Eu não lembro. Aula 5.7. P: E o último gente, que modelo é? Em forma de planetas, lembram gente! O modelo planetário, onde o núcleo seria considerado o sol e ao redor os elétrons, que seriam o que? Aula 5.8. A4: Os planetas Aula 5.9. P: Então foi definido como modelo do sistema solar, no centro está o núcleo e ao redor do núcleo os elétrons, que tem carga? Aula 5.10. A5: Negativa Aula 5.11. P: Isso, negativa. Nessa região central, no núcleo do átomo, se encontram os prótons, que são s partículas positivas. Ao redor estão os elétrons. E essa parte aqui gente, entre o núcleo e os elétrons seria a eletrosfera, que é a região onde giram os elétrons. A professora retoma a explicação do experimento, sobre o bombardeamento da lâmina de ouro com partículas alfa, que algumas dessas partículas atravessaram a placa de ouro, enquanto outras não. Rutherford chegou a algumas conclusões em relação ao átomo, a partir da noção de que ele não é denso, com a noção da existência de espaços vazios. 97 São estabelecidas relações equivocadas entre a noção de densidade do átomo e dos materiais, como no caso da comparação entre a densidade da água e do azeite. O comentário sobre essa diferença de densidade e que as substâncias apresentam densidades diferentes não contribui para o entendimento da ‘densidade de elétrons’ dos átomos na lâmina de ouro. Podemos dizer que a abordagem do conteúdo no livro didático e na aula não é adequada por não permitir uma compreensão conceitual mediante estabelecimento de relações entre conceitos por parte dos estudantes. Que movimento de pensamento eles poderiam efetivamente vivenciar a partir das explicações? Os processos de significação conceitual em Ciências Naturais se concretizam somente quando fazemos uso da palavra, que representa uma das diversas formas de linguagem e de expressão existentes. A palavra é sempre mediada pelo outro, em um processo de interação entre os sujeitos. Contudo, as relações pedagógicas requerem diálogos de forma que os sujeitos possam produzir sentidos aos conceitos de forma coerente à forma científica/química de linguagem/pensamento. Que relações de diálogo os sujeitos vivenciam em salas de aula, ao se apropriarem das linguagens que necessitam ser adequadamente significadas? Um dos aspectos a analisar, neste episódio, é em relação ao uso de metáforas e analogias no ensino de Ciências Naturais, como foi o caso das explicações nesta aula. São comparações indevidas e que não contribuem na compreensão do conhecimento escolar. Em relação à aprendizagem dos conceitos da área de Ciências Naturais, cabe destacar que, “a aprendizagem de conceitos é algo muito mais complexo do que o simples estabelecimento de definições consagradas em textos didáticos e em glossários” (AGUIAR JR, LIMA E MARTINS; 2005, p. 02). Bachelard (1996, p. 93), ao discutir os obstáculos à apropriação dos conhecimentos científicos na escola, critica o uso indevido de recursos para ensinar, o que “prejudica evidentemente a razão, no qual o lado concreto, apresentado sem prudência, impede a visão abstrata e nítida dos problemas reais.” Esse autor recomenda cautela e vigilância no uso de comparações, imagens, ilustrações, que necessitam “ser entendidas como modelos de raciocínio, nunca reflexos do real” (BACHELARD, 1996, p. 46). Com base em alertas deste autor, cabe refletir sobre o risco de usar comparações indiscriminadas no ensino de Ciências Naturais, o que tende a acomodar o pensamento dos estudantes ao invés de orientar na direção da apropriação do conhecimento químico/científico na escola. 98 Destaca-se a importância de uma formação inicial e continuada de professores que contribua para romper com o pensamento de uma ciência que busca evidências e conclusões naquilo que é visível, palpável, no que está na natureza (ou que se acredita que esteja), desconsiderando a participação do homem na produção criadora do conhecimento como “fazer ciência” que contribui para transformar o mundo para melhor. Neste sentido, cabe reafirmar o papel essencial do professor, como responsável pela mediação de explicações adequadas sobre os conhecimentos escolares, com uma prática voltada sempre para a direção da construção do pensamento em nível teórico-conceitual, em coerência com as ciências; não na direção de, em nome de uma pretensa facilitação, abrir mão de levar em conta a complexidade e os graus de dificuldade de compreensão conceitual, inerentes aos processos de construção dos conhecimentos escolares, por parte dos educandos. Na aula anterior, antes do início das abordagens sobre o modelo atômico de Rutherford, a professora fez a correção dos exercícios referentes aos conteúdos de substância, elemento e misturas. Apresentamos algumas reflexões a partir do diálogo dos sujeitos envolvidos, professora e estudantes, em relação à correção das atividades que haviam sido encaminhadas. A correção dos exercícios foi feita a partir da leitura, em sequência, de cada uma das questões pelos estudantes. Aula 4.6.A1: Entre as substâncias a seguir, classifique em misturas homogêneas ou heterogêneas: Água + areia: é heterogênea. Aula 4.7. P: Heterogênea por que dá pra observar duas fases. Aula 4.8. A2: Azeite de soja + azeite de milho: homogênea Aula 4. 9.P: Isso, homogênea por que os dois são óleos. Aula 4.10.A1: Pó de ferro + enxofre: heterogênea Aula 4.11. A2: Pedra brita + serragem: heterogênea Aula 4.12. A3: Conceitue elemento químico em seu ponto de vista: é o conjunto de átomos iguais Aula 4.13.P: É o que? Um conjunto de átomos...? Aula 4.14. A: Iguais Aula 4.15.P: De elementos iguais. Certo! Próxima... Aula 4.16. A4: Cite um elemento químico que você conhece: o sabonete Aula 4.17. P: Elemento químico Aula 4.18. A4: Então? Aula 4.19. P: Mas tu sabe a fórmula dele? Aqui está pedindo um elemento químico que vocês já conhecem. Aqui poderia ser o hidrogênio, oxigênio, cloro, nitrogênio, lembram? Próxima pergunta. 99 Aula 4.20.A5: O ar é uma substancia pura? Não, o ar não é tão puro como pensamos, pois a fumaça dos carros polui o ar. Aula 4.21.P: Ele não é uma substância pura por que ele é uma mistura de vários gases, ou vários componentes químicos. Aula 4.22.A6: Quais os gases que são componentes do ar? Gás nitrogênio, gás carbônico, gás oxigênio. Aula 4.23. P: E outros né? Existem outros. A próxima... O episódio apresentado acima permite a percepção de que a correção dos exercícios feita pela professora e pelos estudantes não passa de um jogo de perguntas-respostas, em que os estudantes leem o que responderam e a professora apenas afirma o que foi lido, orientando para a leitura da próxima pergunta, sem que se faça a problematização do assunto. No turno 12, em um determinado momento da correção, o estudante faz a leitura de uma pergunta sobre o conceito de elemento químico. Ao responder que “é o conjunto de átomos iguais (Aula 4.12. A3)” a professora o questiona em relação a resposta dada, e afirma que é um conjunto de “elementos iguais. (Aula 4.15.P)”. Após essa breve manifestação da professora ela acrescenta: “Certo! Próxima... (Aula 4.15.P)”, referindo-se a leitura da próxima questão. Esse episódio suscita discussões sobre a falta de problematização e discussão com relação as atividades desenvolvidas em sala de aula, já que são poucos os momentos em que a professora problematiza, reforça os conceitos abordados, a exemplo da pergunta, no turno 16, que se referia ao conceito de elemento, que foi respondida pelo estudante de forma incorreta, corrigida pela professora, no entanto sem uma devida explicação e problematização. A professora apenas destaca a resposta correta, no entanto não discute com os estudantes o equívoco cometido pelo aluno e o porquê da resposta não estar correta. Os estudantes, durante a correção destas atividades estão respondendo aos questionamentos e isso é importante, porque eles estão verbalizando palavras na escola, mas, é preocupante a rapidez com que inúmeros conceitos são trazidos, sem um tempo adequado para que os processos de significação conceitual acompanhem efetivamente as falas dos sujeitos. Essa rapidez na abordagem das palavras faz do processo de ensino e aprendizagem uma repetição de palavras, como se fosse um papagaio. Nesse sentido, Vigotski (2008) alerta que essas palavras apenas repetidas são caracterizadas pelo vazio de significado conceitual, já que o processo de significação e formação de um conceito é complexo, e exige muito mais do que o estabelecimento de conexões associativas (VIGOTSKI, 2008). 100 Em sua obra Pensamento e Linguagem, Vigotski contribui para a reflexão sobre o que ele chama de “ensino direto” de conceitos, da mera repetição de palavras, sem qualquer reflexão, afirmando que: o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta o vácuo (VIGOTSKI, 2008, p. 104.). Muitas vezes, em aulas de Ciências Naturais, ao invés da atenção aos processos de significação conceitual em sala de aula, o ensino é proposto mediante exercícios para serem realizados em sala de aula e em casa. Isso pode contribuir para despertar nos estudantes o interesse e o hábito pelo estudo, além de auxiliar na significação conceitual dos mesmos. Contudo, é essencial que na formação e na prática dos professores haja uma devida atenção no sentido de não se descuidar da necessária mediação das explicações por parte do professor. Com base nas análises e discussões sobre o ensino de Ciências Naturais acompanhado, nesse contexto, argumentamos em defesa do incentivo ao uso intencional da palavra como instrumento fundamental e determinante nos/dos processos de significação conceitual. Isso, corroborando com as palavras de Vigotski (2008) de que, sem o uso da palavra, o processo de abstração e formação de um conceito não ocorre. Nesse sentido cabe lembrar que o responsável pelo processo de ensino e aprendizagem é o professor, ator e mediador essencial aos processos de apropriação dos conhecimentos escolares e do uso intencional das palavras, como objetos que possibilitam a construção de conceitos. A razão de ser das escolas se justifica, em sua essência, pela própria existência, nelas, dos professores. Quem faria o papel intransferível de mediar às aprendizagens da área de Ciências Naturais quando da não existência do professor? Com a falta do professor o ensino estaria certamente comprometido. Por outro lado, discutir a importância e a especificidade da função social do professor, implica discutir também o papel e a função social da instituição “escola” (YOUNG, 2007). Nela o professor está inserido com a função essencial, que é a de possibilitar aos estudantes o acesso a um conhecimento bastante específico, não possibilitado pela vivência cotidiana. A missão da escola, assumida como a de instruir, educar e formar os cidadãos, articuladamente à “socialização do conhecimento científico” (LOPES, 2007, p. 194) situa a 101 complexidade do papel social do profissional da educação, já que é ele o responsável por esse processo de mediação de aprendizados bastante específicos, em especial os dos conteúdos/conceitos das ciências. Isso, porque o elo entre os conhecimentos dos estudantes e os conhecimentos a serem ensinados nas aulas de Ciências Naturais está situado, sem dúvida, no professor. É a ele que cabe o papel de intermediar o acesso pedagógico, por parte dos estudantes, ao conhecimento científico, passando pelos portais dos processos de produção do conhecimento escolar (VIGOTSKI, 2008). É ao ser mediador de tais processos que o ser professor se concretiza, como possibilidade de ensino e aprendizagem escolar. Como refere Marques (2006, p. 111), é somente pela mediação docente em sala de aula que se “efetivam as aprendizagens formais e sistemáticas”, na medida em que o professor possibilita o acesso pedagógico aos conhecimentos produzidos pelas específicas áreas do saber. E é esse processo de interação com os estudantes que permite a construções de novos significados aos conceitos, com a significação de conhecimentos. Os processos de significação de novos conceitos, as novas aprendizagens, só se concretizam na mediação pelo outro, que, na escola, é feita de forma efetiva pelo professor; mediação pela palavra (signo) que representa e materializa os saberes, ou aquilo que se quer dizer/ensinar (VIGOTSKI, 2008). Ainda que limitada a poucos episódios de sala de aula, nossa análise destaca a importância do professor no processo de ensino e de aprendizagem para uma efetiva construção conceitual sólida. Consideramos a necessidade de uma formação inicial que possibilite ao docente a construção de conhecimentos sólidos sobre sua área de conhecimento, durante sua formação em um curso superior bem como a construção de conhecimentos pedagógicos, que lhe possibilitem entendimentos sobre o que é ser professor, sobre a sua função social e a reflexão sobre a prática docente. Quando apontamos as dificuldades enfrentadas pelos professores no processo de ensinar, que dizem respeito principalmente a sua dificuldade e falta de clareza em relação aos conceitos de sua área de formação, nesse caso conceitos da área de Ciências Naturais e de Química, não temos a intenção de criticar o trabalho e a atuação do professor, afinal, essas dificuldades são percebidas em muitas aulas de Ciências ministradas em nosso país. Nesse sentido, passamos a refletir sobre a ineficácia dos cursos de nível superior, que se caracterizam por um ensino seccionado e departamentalizado, em que os currículos estão transbordando de conteúdos meramente informativos, desatualizados e descontextualizados. 102 Apontamos a necessidade de uma formação do professor de Ciências Naturais não apenas no sentido dos conhecimentos específicos da área, mas sim de uma formação geral, que possibilite, além do crescimento profissional, o crescimento pessoal, oportunizando ainda ao docente a reflexão de sua prática diária. É nesse contexto que defendemos a formação do professor por área, ou seja, o professor de Ciências Naturais será formado em curso superior de Ciências, e sendo assim, sua formação abrangerá os diversos conceitos e conteúdos relacionados com o ensino das Ciências Naturais, que envolvem as áreas de Química, Física e Biologia. Outro aspecto de grande relevância diz respeito à capacidade que o professor em formação inicial e continuada deve ter de pesquisar, de buscar novas informações e conhecimentos. Conhecimentos estes que não devem se limitar aos expressos pelos livros didáticos, mas sim na busca em fontes atualizadas como internet e periódicos da área, buscando sempre uma relação com o contexto no qual os estudantes e a comunidade escolar estão inseridos. De acordo com Galiazzi (2003, p. 47), “a pesquisa não é o único caminho para o desenvolvimento profissional, mas é essencial para a construção da competência em qualquer prática profissional”, portanto cabe ressaltar que a pesquisa no contexto educacional não é importante apenas para os alunos em sala de aula, nem mesmo somente para o professor em formação continuada, mas também para o professor em formação inicial, que está na busca pela sua autonomia e pelo seu espaço no campo educacional. O profissional da educação que tem uma formação baseada na educação pela pesquisa, quando exercer sua profissão estará mais capacitado a produzir conhecimento sobre modos de avaliação, problemas de aprendizagem, metodologias de ensino, experimentação, uso de analogias e metáforas e sobre concepções alternativas, para dar apenas alguns exemplos de temas atuais de pesquisa. Estará também mais acostumado a dialogar com seus pares, a buscar interlocutores teóricos capazes e responder aos questionamentos que faz sobre sua atuação em sala de aula, a argumentar, participar na construção da proposta pedagógica da escola, mudando sua ação pouco reflexiva e de resistência passiva para um posicionamento crítico frente aos problemas que enfrenta no seu fazer profissional. (GALIAZZI, 2003, p. 56). Além da capacidade de reflexão sobre sua atuação e a capacidade de busca e pesquisa constante, o professor deve apresentar ciência da importância social de sua profissão, já que ser professor é mais do que simplesmente dar aulas, passar conteúdos, aplicar provas, corrigílas. Ser professor é buscar desvendar, elucidar e auxiliar na significação de conceitos desconhecidos até então pelos estudantes. Uma formação sólida do professor de Ciências 103 contribui muito para o processo de significação conceitual em Ciências Naturais, pelo seu domínio em relação aos conceitos da área e das estratégias necessárias ao ensinar e, também, pela compreensão das interações entre os sujeitos na sala de aula e da especificidade do conhecimento escolar. 104 5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Apresentar considerações finais acerca da temática que trata dos “Processos de significação conceitual de elemento e substância no Ensino Fundamental de Ciências naturais” além de ser um desafio pela complexidade que envolve o tema, é ter como pretensão encerrar uma discussão que necessita e possibilita muitas reflexões. É por esse motivo que apresentamos algumas considerações que evidenciam algumas conclusões de nossas reflexões ao longo da realização dessa pesquisa. A partir da análise feita nos livros didáticos de Ciências Naturais, percebemos limitações em relação as abordagem dos conceitos químicos. A simplificação excessiva na abordagem dos conceitos negligencia os graus de complexificação dos mesmos, pelos altos níveis de abstração e de interrelação conceitual requeridos. Abordagens indiscriminadas de conceitos, em níveis de complexidade muito elevados para o nível de ensino, comprometem a aprendizagem por parte dos estudantes, que ainda não presentam uma construção conceitual suficiente para compreendê-los no contexto em que foram abordados. Por outro lado, a área já dispõe de livros didáticos que representam avanços na organização dos conteúdos e conceitos, com uma proposta diferenciada, baseada em relações com temas da vivência dos estudantes, de forma interrelacional e contextual, em coerência com a perspectiva CTS. Neles, a abordagem de conceitos químicos, em especial elemento e substância, perpassa toda a coleção, ou seja, os conceitos químicos deveriam ser significados desde os livros didáticos da 5ª série até a 8ª série. Já, nas aulas de Ciências Naturais acompanhadas, observamos uma abordagem com carência de relações entre conhecimentos com significação conceitual, o que compromete a apropriação dos conceitos e a construção de aprendizagens sólidas e duradouras. A partir das análises e reflexões sobre as aulas de Ciências Naturais acompanhadas, podemos estabelecer algumas relações com os livros didáticos analisados. Emergiram alguns questionamentos que demandam a continuidade da investigação: será que as abordagens do 105 LD1 sobre os conteúdos/conceitos de química (questionadas no capítulo 3 desta dissertação) têm sido objetos de estudo nas aulas de Ciências da 5ª série, na escola? Ou seja: será que a professora que ministrava aulas de Ciências na 5ª série abordou os conceitos químicos, conforme consta no LD1? E na 6ª e 7ª séries, os conceitos teriam sido retomados/ampliados? Quais sentidos teriam sido produzidos ao longo das séries? Quais interrelações conceituais teriam sido vivenciadas e qual o nível de pensamento químico que elas teriam possibilitado? Que sentidos conceituais teriam sido possibilitados na 8ª série, por exemplo, sobre o conceito de ‘átomo’ tratado no LD1 (para a 5ª série), quando foram feitas novas abordagens de conceitos químicos? São questões que fazem refletir sobre as formas de abordagem dos conteúdos estudados em aula. A professora apresentava diversas questões, de forma rápida, envolvendo uma complexidade de relações conceituais. Sem muitas pausas, as respostas eram logo repetidas, ou por ela, ou por um ou outro estudante. Isso remete para a reflexão de que as dúvidas dos estudantes nem sempre são consideradas, quando a aula se caracteriza como mero jogo de perguntas e respostas prontas, não problematizadas. Esse estilo de interação em sala de aula, em que uma diversidade de conceitos é apresentada rapidamente, supõe que os estudantes já estivessem um tanto enculturados dos conceitos químicos; que tivessem uma noção já desenvolvida sobre o que é um átomo, uma substância, uma mistura, um elemento. Retomadas de conteúdos já estudados, com abordagens em novos contextos, na intenção de produzir sentidos aos conceitos: é isso que permite ampliar as compreensões e as reconstruções dos conhecimentos que os estudantes já teriam iniciado em anos anteriores. Nesse sentido, defendemos o uso intencional das palavras da escola, como no caso desta dissertação, da linguagem química ao longo de todas as séries finais do Ensino Fundamental, mesmo que os estudantes não consigam significar de fato os conceitos abordados, como por exemplo, na 5ª série, em que o nível de maturidade dos educandos ainda é insuficiente para compreenderem o que é um átomo, uma substância, um elemento, mas que, no entanto, já permite a produção de sentidos. Argumentamos em defesa da organização de abordagens conceituais tal como proposto pelo LD5, em que as abordagens dos conceitos químicos, de forma especial os de elemento e substância, estão presentes em todos os livros da coleção, perpassando todo o ensino de Ciências Naturais, com amplas interrelações e implicações. Já no LD1 essas 106 abordagens aparecem “de repente” com um pacote excessivo de teorizações, já no livro da 5ª série. A partir de um olhar à estrutura dos livros didáticos analisados e à forma com que os conceitos químicos são abordados ao longo dos capítulos e unidades, remetemos às aulas de Ciências Naturais acompanhadas na turma de 8ª série bem como ao modelo de aula da professora, que muito se parece com a proposta do LD1, coleção de livros utilizada na escola. Nesse sentido, argumentamos que o livro didático pode estar ditando o modelo de aula da professora, constituindo-a enquanto docente. Cabe salientar que esse fato constitui-se como sério problema, que provavelmente é enfrentado por muitas outras escolas espalhadas por todo o país. Não queremos aqui “propagandear” uma coleção de livros, nem sequer “descartar” a hipótese de uso de uma ou outra, no entanto queremos destacar que, provavelmente os estudantes que fazem uso da coleção a qual pertence o LD5 teriam vivenciado processos de reconstrução mais significativos, mais contextualizados e interrelacionais, do que os estudantes que tivessem utilizado o LD1. Isso, porque no LD5 a abordagem dos conceitos de elemento e substância perpassa todas as séries do Ensino Fundamental, possibilitando a construção de sentidos, em contextos e níveis de aprofundamento diversificados, o que permite re-entendimentos, evolução, até a significação conceitual propriamente dita. Já no LD1, as abordagens dos conceitos de elemento e substância se limitaram a 5ª e a 8ª série, tudo “de repente”, como um “pacote isolado”, fazendo com que os estudantes, ao chegarem na 8ª nem sequer recordem que já tinham estudado sobre átomo, elementos, substâncias. A análise das aulas leva em conta que cabe ao professor o papel essencial de usar palavras específicas à ciência de forma interrelacional, proporcionando aos estudantes interações em que necessitem usá-las, para que possam produzir sentidos cada vez com maiores relações de complexidade, tornando-se conceitos. Além da continuidade das análises das aulas de Ciências Naturais da turma acompanhada, nosso interesse se direciona, também, para futuras investigações com análise da própria prática, já que todas essas reflexões se relacionam com a atuação como professora de Ciências Naturais, em turma de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª série. 107 Discussões que também podem ser feitas relacionam-se à ampla hegemonia no país da visão equivocada de que os professores com formação em Biologia é que são os mais indicados para o ensino de Ciências Naturais, excluindo de certa forma professores de Química do ensino de Ciências Naturais. Cabe reiterar que os conceitos elemento e substância são estruturantes do pensamento químico escolar, são essenciais à compreensão dos conteúdos do ensino de Ciências Naturais, com importante potencial de contribuição ao entendimento do cotidiano. Desde o Ensino Fundamental, em qualquer aula, o professor não pode abrir mão do seu compromisso essencial de ser o mediador da aprendizagem de conhecimentos especializados. 108 LIVROS DIDÁTICOS VALLE, Cecília. Terra e universo, 5ª série. – 1. ed. – Curitiba: Positivo, 2004. (Coleção Ciências). VALLE, Cecília. Vida e ambiente, 6ª série. – 1. ed. – Curitiba: Positivo, 2004. (Coleção Ciências). VALLE, Cecília. Ser humano e saúde, 7ª série. – 1. ed. – Curitiba: Positivo, 2004. (Coleção Ciências). VALLE, Cecília. Tecnologia e sociedade, 8ª série. – 1. ed. – Curitiba: Positivo, 2004. (Coleção Ciências). APEC / Ação e Pesquisa em Educação em Ciências. Construindo consciências: Ciências, 5ª série. 2. São Paulo: Scipione, 2003. (Coleção Construindo consciências). APEC / Ação e Pesquisa em Educação em Ciências. Construindo consciências: Ciências, 6ª série. São Paulo: Scipione, 2003. (Coleção Construindo consciências). APEC / Ação e Pesquisa em Educação em Ciências. Construindo consciências: Ciências, 7ª série. São Paulo: Scipione, 2003. (Coleção Construindo consciências). APEC / Ação e Pesquisa em Educação em Ciências. Construindo consciências: Ciências, 8ª série. São Paulo: Scipione, 2003. (Coleção Construindo consciências). 109 REFERÊNCIAS AGUIAR JR, Orlando; LIMA, Maria Emília C. C.; MARTINS, Carmen C. A formação de conceitos científicos: reflexões a partir da produção de uma coleção de livros didáticos. Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, 2005. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. BRASIL, Ministério da Educação (MEC), Secretaria da Educação Básica (SEB). Parâmetros Curriculares Nacionais – Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental, Brasília: MEC/SEB, 1998. BRASIL, Ministério da Educação (MEC), Secretaria da Educação Média e Tecnológica (SEMTEC). Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio, Brasília: MEC/SEMTEC, 1999. BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias/ Secretaria de Educação Básica. V. 2, Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BULCÃO, Marly. O racionalismo da Ciência contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard. Rio de Janeiro: Antares, 1981. CHALMERS, Alan F. O que é Ciência Afinal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. CHASSOT, Attico Inácio. Para que (m) é útil nosso Ensino de Química. In: Espaços da Escola, Ijuí: UNIJUÍ, ano 2, n. 5, p. 43-51, Jul./Set. 1992. 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Química Nova na Escola, São Paulo, n. 2, p. 15-18, Nov. 1995. 112 ANEXOS 113 Anexo 1 114 115 Anexo 2 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Prezado (a) Senhor (a) Estamos desenvolvendo uma pesquisa cujo conceitual de Elemento e Substância em aulas Fundamental”. Trata-se de uma investigação que é Graduação - Mestrado em Educação nas Ciências da Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. título é “Processos de significação de Ciências da 8ª série do Ensino fruto de estudos no Programa de PósUniversidade Regional do Noroeste do A pesquisa tem como objetivo: investigar processos de ensino dos conceitos “Elemento” e “Substância” em aulas da oitava série do Ensino Fundamental, no componente de Ciências da Natureza, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cel. Raul Oliveira, com vistas a compreender como acontecem os processos de significação dos referidos conceitos e de como eles co-participam na (re)construção do conhecimento escolar em Química. A pesquisa se justifica pela importância que os conceitos “Elemento” e “Substância” assumem no ensino e no âmbito de discussões em contexto escolar e universitário, especificamente no que se refere a contribuições na área do ensino de Ciências e de Química. Nesta pesquisa a atenção estará orientada para a compreensão de processos de interação nas aulas, em especial, as formas de uso (verbalização) de linguagens e pensamentos envolvidos nas interlocuções, em abordagens sobre os conceitos/conteúdos em estudo (Elemento Químico e Substância). No contexto da temática escolhida, busca-se resposta ao questionamento básico: quais processos de significação dos conceitos “Elemento” e “Substância” são vivenciados em aulas acompanhadas e como eles co-participam na (re)construção do conhecimento escolar, em Química? Ao buscar respostas a essa questão, a atenção estará direcionada à potencialidade das abordagens e interações para promover processos significativos de apropriação e uso dos dois conceitos mencionados, na perspectiva do avanço de tais processos educativos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com produção de dados referentes a abordagens e interações com os sujeitos envolvidos no processo. Os sujeitos envolvidos na pesquisa são: estudantes da turma da 8ª série do Ensino Fundamental (aproximadamente 30 alunos), e a professora de Ciências da Natureza que ministra aulas nesta turma. Nesta pesquisa será realizado o acompanhamento das aulas de Ciências da Natureza na turma de 8ª série do Ensino Fundamental, durante aproximadamente um trimestre, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Cel. Raul Oliveira, com a gravação das aulas em áudio (a voz dos sujeitos, assim como suas conversas e discussões serão gravadas),para observar a abordagem dos conceitos “Elemento” e “Substância”. Nós, pesquisadoras, garantimos que o anonimato de seu (sua) filho (a) está garantido e que as informações registradas serão utilizadas apenas para fins científicos relacionados a este projeto de pesquisa. Todas as informações registradas estarão disponíveis com livre acesso por parte dos sujeitos de pesquisa e/ou seus responsáveis (pais e/ou responsáveis), podendo 116 ser realizadas modificações no seu conteúdo, se julgar necessário. Seu (sua) filho (a) tem liberdade para recusar-se a participar da pesquisa, ou desistir dela a qualquer momento sem que haja constrangimento, podendo ser atendidas possíveis solicitações de que informações sejam desconsideradas no estudo. Mesmo participando da pesquisa ele (a) poderá recusar-se a responder as perguntas ou a quaisquer outros procedimentos que suscitem possíveis constrangimentos, de qualquer natureza. Está garantido, também, que seu (sua) filho (a) não terá nenhum tipo de despesa financeira durante o desenvolvimento da pesquisa. Por outro lado, não será disponibilizado nenhum ganho financeiro. Eu, Caroline Luana Lottermann, bem como minha orientadora, Profa. Dra. Lenir Basso Zanon, assumimos toda e qualquer responsabilidade no decorrer da investigação. Garantimos que as informações registradas somente serão utilizadas para esta pesquisa, podendo os resultados serem publicados, com benefícios, em especial, para a melhoria da educação escolar. Se houver qualquer dúvida quanto à participação de seu (sua) filho (a) poderá solicitar esclarecimentos a qualquer uma de nós, nos endereços e telefones abaixo: Caroline Luana Lottermann (pesquisadora), residente no Lajeado Pessegueiro, Santa Rosa/RS. E-mail: [email protected] e telefone 55-9932-9635 (celular); Profa. Dra. Lenir Basso Zanon (orientadora), residente na Rua Dom Antônio Reis, nº 58, Bairro Elizabeth, Ijuí/RS, email [email protected]. Seus telefones 55-3332-4466 (residencial) e 55-99780081 (celular). Poderão ser solicitados, também, junto ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNIJUI Rua do Comércio, 3.000 - Prédio da Biblioteca - Caixa Postal 560 - Bairro Universitário Ijuí/RS CEP 98700-000. Fone/fax (55) 3332-0301, e-mail: [email protected] O presente documento foi assinado em duas vias de igual teor, ficando uma com o pai ou responsável e outra com o pesquisador responsável. Eu, ________________________________________________, CPF________________, ciente das informações recebidas concordo que meu (minha) filho (a) participe da pesquisa e autorizo a utilizar as informações registradas em aula e/ou os resultados alcançados. ___________________________________ Assinatura do pai ou seu responsável legal. ___________________________________ Caroline Luana Lottermann - Pesquisadora CPF: 018.408.040-17