DO MANUALISMO AO ENSINO JURÍDICO CRÍTICO
FROM “MANUALISMO” TO CRITICAL LEGAL EDUCATION
Guilherme Perez Cabral
RESUMO
Pretende-se, por meio do presente trabalho, colocar em discussão o ensino jurídico,
contrapondo duas perspectivas: a concepção tradicional, aqui denominado manualismo,
termo utilizado em alusão aos manuais – seu principal instrumento pedagógico, ao lado
dos códigos – e a concepção crítica, a qual implicaria uma superação das visões e
práticas “manualistas”. Adotam-se, como critérios para a distinção, as diferenças na
compreensão do processo ensino-aprendizagem e do fenômeno jurídico, as quais, por
sua vez, conduzem a um antagonismo paradigmático anterior, correspondente à forma
como se apreende o conhecimento e a realidade – traduzido por Edgar Morin na
diferenciação entre o paradigma da simplificação e o paradigma da complexidade.
PALAVRAS-CHAVES: ENSINO JURÍDICO; MANUALISMO; PERSPECTIVA
CRÍTICA; PENSAMENTO COMPLEXO
ABSTRACT
It is intended, with this article, to reflect about legal education, based on two contrasting
perspectives: the traditional one, here called manualismo, term used in reference to its
main teaching tool, alongside the codes, and the critical one, which is understood as a
solution of traditional visions and practices. It is used as criterion to distinguish these
perspectives differences in understanding of the teaching-learning process and the legal
phenomenon, which, in turn, lead to a previous paradigmatic antagonism, relating to the
way it is understand the knowledge and the reality – translated by Edgar Morin in the
differentiation between the simplification’s paradigm and the complexity’s paradigm.
KEYWORDS: LEGAL EDUCATION; CRITICAL PERSPECTIVE; COMPLEX
THOUGHT
Introdução
Pretende-se no presente trabalho refletir sobre o ensino jurídico, a partir de duas
perspectivas vinculadas à forma como se compreende duas questões fundamentais que
envolvem aludido tema: uma atinente à visão, uni ou multidimensional, que se adota
frente ao fenômeno jurídico; outra referente à concepção, uni ou bilateral, adotada frente
4516
ao processo de ensino-aprendizagem, seus objetivos e aos papéis dos educadores e dos
educandos.
Analisar-se-á, de um lado, a perspectiva tradicional, que se denominará manualista, em
referência ao seu principal instrumento de trabalho ao lado dos códigos, o manual; de
outro lado, a perspectiva que se denominará crítica, a qual se pretende uma superação
dos hábitos e práticas do manualismo.
Tal discussão remete, necessariamente, a um conflito anterior, mais profundo, acerca da
própria concepção de conhecimento e de realidade. Trata-se da dicotomia, trabalhada
por Edgar Morin, entre os paradigmas da simplificação e da complexidade.
O primeiro, sob égide do qual a ciência moderna tem progredido, busca revelar a ordem
perfeita e impecável do cosmos, sua leis necessárias e absolutas, e abarcar, dominar e
controlar a totalidade. Atua por meio das operações lógicas da disjunção e da redução,
produzindo uma visão mutiladora e unidimensional da realidade (MORIN, 1990, p. 16,
17 e 86).
Já o segundo, assumindo a realidade como algo ambivalente, complexo, "um tecido de
constituintes heterogêneos inseparavelmente associados", vale-se, no processo de
conhecimento, das operações de distinção, conjunção e implicação que permitem
"distinguir sem separar, associar sem identificar". Assume, ademais, o princípio
dialógico, pelo qual mantém a dualidade na unidade, associando termos ao mesmo
tempo complementares e antagônicos. Sabe, de qualquer forma, que não pode escapar
às incertezas, que nunca se terá o saber total (MORIN, 1990, p. 20, 21, 22, 100 e 101).
A perspectiva complexa reconhece que o homem está condenado a "um pensamento que
não tem nenhum fundamento absoluto na certeza" e que não pode evitar as
contradições. Assim, "a complexidade está lá onde não se pode vencer uma
contradição", a qual não significa necessariamente um erro, mas indicar, pelo contrário,
"o atingir de uma camada mais profunda da realidade que, justamente porque é
profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica" (MORIN, 1990, p. 93, 99 e 101).
A análise das perspectivas manualista e crítica do ensino jurídico, partindo do
reconhecimento da complexidade e da multidimensionalidade do homem e dos
contextos sociais exige, todavia, uma advertência inicial. Não pretende atingir uma
definição rigorosa das citadas perspectivas educacionais, dentro de fronteiras rígidas,
tampouco supõe que as características que se trabalhará a seguir encontram-se, de forma
rigorosa, em educadores modelos - plenamente "manualistas"/"tradicionais" ou, no
outro extremo, 100% progressistas, críticos.
Busca, apenas, com a presente reflexão, estimular o debate acerca do ensino jurídico,
descortinando, projetando, explicitando possibilidades de superação do autoritarismo,
do dogmatismo e da fragmentação do processo de ensino-aprendizagem
tradicionalmente praticado nas faculdades de direito.
Propõe, dessa forma, uma discussão que, partindo de debates e atividades em sala de
aula e de leituras efetuadas, referentes à disciplina "Metodologia do Ensino Superior" cursada no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade
4517
Metodista de Piracicaba - possa traduzir aprendizagens significativas adquiridas ao
longo processo educativo.
1. A perspectiva do manualismo
1.1. O paradigma da simplificação
Remete o manualismo a um enfoque da realidade, do conhecimento e da ciência jurídica
pautado no paradigma da simplificação.
Pretende "colocar ordem" no universo, controlá-lo, dominá-lo em sua totalidade,
afastando dele qualquer desordem. Ao mesmo tempo, não pode conceber, de forma
complementar, a unidade e a multiplicidade do real. Prescreve, assim, diante da
complexidade do realidade, uma disjunção, separado o que está ligado, e/ou uma
redução, unificando o que está disperso. Por meio da simplificação, a ciência consagrou
o objetivo de revelar a simplicidade, que estaria por detrás da aparente de desordem,
multiplicidade, confusão dos fenômenos (MORIN, 1990, p. 86 e 87).
Descartes foi o formulador do princípio da disjunção, como grande paradigma do
pensamento ocidental moderno, separando sujeito e objeto, e, em esferas próprias, a
filosofia e a pesquisa reflexiva, de um lado, e a ciência e a pesquisa objetiva de outro,
enfraquecendo a comunicação entre elas. Promoveu, ainda, uma dissociação que
atravessou todo o universo: razão/emoção; alma/corpo; existência/essência, etc.
(MORIN, 2007, p. 26).
A ciência simplista, no seu delírio pela coerência absoluta, gerou numa série de
"patologias": a hipersimplificação; a hiperespecialização, separando a ciência em
disciplinas fechadas sobre si mesmas, que fragmentam o real; o idealismo,
consubstanciado na possessão do real pela idéia; o doutrinarismo, estabelecendo teorias
fechadas e petrificadas, convencidas de sua verdade e invulneráveis a questionamentos
externas; e, finalmente, a racionalização, entendido como o querer encerrar a totalidade
do real num sistema coerente, afastando tudo o que o contradiz (MORIN, 1990, p.22, 23
e 102; MORIN, 2007, p. 22, 23 e 30) e que
se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução
ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação
de argumentos e à verificação empírica (MORIN, 2007, p. 23).
Nesse estágio pode-se incluir, no geral, a ciência jurídica e a prática de ensino que a
acompanha.
1.2. A perspectiva reduzida e fragmentária do direito
A redução operada pela mentalidade simplificadora leva à limitação do direito ao seu
aspecto lógico-formal. Analisa o direito sob a perspectiva interna, encerrando-o dentro
de um sistema lógico perfeito. Dessa maneira, promove uma racionalidade e uma
interpretação que assegure ao ordenamento jurídico os atributos da unidade, coerência
(omitindo contradições internas) e plenitude (afastando as lacunas, omissões).
4518
Com a finalidade de criar, a partir do direito posto, condições de decidibilidade, o jurista
produz uma ciência aplicada que se presta a confirmar a razão e a autoridade dos textos
legais, "que recebe os textos e procura racionalmente torná-los utilizáveis, gozadores de
autoridade e fundamento" (NOBRE, 2006, p. 78).
Age, tal como o jurista medieval em relação aos textos romanos (LIMA LOPES, 2002,
p. 128), de forma a inferir harmonia, coerência, unidade e uma razão objetiva dos textos
legais. Esses, no entanto, fruto histórico e político, são produzidos no contexto dos
conflitos e contradições sociais e, por isso, são contraditórios, conflituosos.
O desenvolvimento dessa racionalidade acaba, porém, rareando as relações entre o
direito e a filosofia, a história e a sociologia. Priva, dessa forma, a ciência de se
conhecer, de refletir sobre si mesma, de se questionar como instrumento de dominação
ou de emancipação.
Torna-se hegemônico um pensamento lógico-formal, normativista, que se afasta e
adquire autonomia da realidade histórico-social do qual emerge e da qual constitui
instrumental.
Ademais, sob o princípio da disjunção, ocorre a divisão do ordenamento em áreas
denominadas pelo nome do respectivo código: direito constitucional, direito civil,
direito processual civil, direito penal, etc.
Dessa forma, o direito é repartido em disciplinas hiperespecializadas, fechadas em si
mesmas, que não conversam entre si. Resta, então, produzido um conhecimento
fragmentado, que:
extrai um objeto de seu contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e as
intercomunicações com seu meio, introduz o objeto no setor conceitual abstrato que é o
da disciplina compartimentada, cujas fronteiras fragmentam arbitrariamente a
sistemicidade (relação da parte com o todo) e multidimensionalidade dos fenômenos
(MORIN, 2007, p. 41).
Emerge, enfim, uma ciência dogmática, idealista, racionalista e fragmentada que reduz
e fraciona a realidade complexa; que faz crer que o corte arbitrariamente operado sobre
o real, simplificado, é o próprio real; que retalha o tecido complexo das realidades
(MORIN, 1990, p. 17): "Uma construção que assume o caráter de realidade" (NOBRE,
2006, p. 77), deixando de lado, na sua compreensão, a presença do fenômeno social e
histórico.
A ciência jurídica, dessa forma, simplifica, reduz e compartimenta a si e ao mundo,
isolando o conhecimento e fazendo com que as grandes questões humanas desapareçam
frente aos problemas técnicos específicos (MORIN, 2007, p. 43). Afasta-se do
enfrentamento dos problemas fundamentais e globais com que se depara o homem e o
próprio direito, como produto das incertezas, contradições e possibilidades dos seres
humanos e do grupo social.
1.3. A concepção de ensino-aprendizagem
a) a perspectiva bancária
4519
Decretada a certeza e a ordem do direito simplificado, o papel do docente, convencido
de sua verdade, limita-se a transmitir ao aluno o conteúdo desse dogma e da razão que
lhe é própria, controlando, ao final, num momento único avaliativo, os resultados
obtidos pelos alunos.
Ao aluno cabe interiorizar a informação, tal como lhe é apresentado, "de maneira que as
ações habituais são a repetição do que se tem que aprender e o exercício, entendido
como cópia do modelo, até que seja capaz de automatizá-lo" (ZABALA, 1988).
O ensino é visto, assim, como a transmissão unilateral de conhecimentos, pelo docente
(sujeito do processo), e a aprendizagem a "reprodução de informação, sem mudanças,
como se tratasse de uma cópia na memória", no aluno, mero objeto do processo
(ZABALA, 1988).
Trata-se da educação bancária, em que o professor detentor do conhecimento ensina o
aluno, ignorante: "O educando recebe passivamente os conhecimentos, tornando-se um
depósito do educador. Educa-se para arquivar o que se deposita" (FREIRE, 1979, p. 38).
Por ser bancária privilegia os pólos predominantemente passivos do educando, o ler e o
ouvir, em prejuízo dos pólos eminentemente ativos - o falar e o escrever (GADOTTI,
FREIRE e GUIMARÃES, 2000, p. 119).
b) a perspectiva fragmentária e dogmática
Sendo o conteúdo fragmentário e restrito ao texto legal, compartimentado e dogmático
se torna o ensino jurídico. Opera por meio das disciplinas hiperespecializadas, fechadas
em si mesmas, com os limites dados pelo respectivo código.
Perde o caráter "jurídico" a discussão das questões sociais, históricas, filosóficas e
políticas do direito, que ficam limitadas a poucas e desvalorizadas disciplinas, tornadas
"perfumaria". Não se valoriza o olhar externo sobre o direito tampouco a complexidade
e a multidimensionalidade que disto deriva.
Acaba, dessa forma, o objeto do ensino jurídico, bancário, limitando a conteúdos de
informação - a transferência das informações, fatos, conceitos, princípios e teorias - e de
habilidades/procedimentos (MASETTO, 1997) próprios à ciência jurídica fragmentada
e reduzida a uma perspectiva lógica interna.
Desconsiderada a complexidade do homem, de seu mundo experimental (ZABALA,
1998), e do próprio objeto do conhecimento, entende-se a construção do conhecimento
jurídico linearmente: um acúmulo crescente de informações e habilidades, a partir do
"depósito" seqüencial (na seqüência dada pelo código), programado e fragmentado, por
meio de disciplinas dogmáticas, organizadas em forma de pré-requisitos umas às outras.
1.4. O manual como símbolo da perspectiva tradicional
Enfim, trata-se de um enfoque da ciência jurídica e do ensino que tem o manual como
seu grande símbolo.
4520
Primeiro, pelo fato de constituir esse o principal instrumento de ensino e pesquisa. O
processo didático-pedagógico manualista baseia-se na repetição bancária e parcelada
dos dogmas do texto da lei, interpretadas, de forma simplificada, pelos manuais.
Esses são entendido no sentido de obras doutrinárias, de caráter opiniático. Pouco
diferem umas das outras, consubstanciando-se, na maioria dos casos, as atuais, em
repetições, cópias, daquelas produzidas no passado, por autores consagrados: "os
manuais de hoje em dia não diferem dos manuais surgidos há 30 anos - aliás (...) os de
hoje são piores e mais rasos, por serem cópias dos antigos" (NOBRE, 2006, p. 60-61).
Segundo, pelo fato de sintetizar, na sua definição, a idéia básica do paradigma
simplificador. De fato, esse pretende ver alcançado, controlado e ensinado o
conhecimento da totalidade da realidade "que é manobrado ou acionado pelas mãos"
(FERREIRA, 1989, p. 415).
Proporciona o ensino da realidade que, ordenada e domesticada, cabe na palma de
nossas mãos.
2. A perspectiva crítica
2.1. O paradigma da complexidade
Complexo, como ensina Morin, significa "o que foi tecido junto", havendo, assim,
complexidade,
quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico,
o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido
interdependente entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o
todo e as partes, as partes entre si. A complexidade é a união entre a unidade e a
multiplicidade (MORIN, 2007, p. 38).
Assim, irrigado pelo reconhecimento da complexidade, o pensamento complexo, foge
aos determinismos, à busca pela ordem impecável e eterna do universo, própria da
lógica simplificadora.
Aspira, por outro lado, o conhecimento multidimensional, não-parcelar, não-redutor.
Sabe, porém, como ponto de partida, da impossibilidade do conhecimento do todo, da
dominação e controle total do real, pretendida pela mentalidade simplificadora
(MORIN, 1990, p. 08 a 10).
Busca, assim, um pensamento aberto, reflexivo, auto-crítico, apto à auto-reforma, que se
esforça por encontrar metapontos de vista (MORIN, 2007, p. 32). Preocupa-se em
distinguir, mas sem fragmentar, e em conjugar, mas sem reduzir, apreendendo, do real,
relações de ambivalência, e, portanto, ao mesmo tempo de implicação e separação.
É o pensamento que une e distingue, no lugar do pensamento que reduz e separa
(MORIN, 2007, p. 46). Ao invés, portanto, da redução e da disjunção, vale-se das
operações da distinção, conjunção e implicação:
4521
Juntai a causa e o efeito, e o efeito voltará sobre a causa, por retroação, o produto será
também produtor. Ides distinguir essas noções e ides juntá-las ao mesmo tempo. Ides
juntar o Uno e o Múltiplo, ides unir, mas o Uno não se dissolverá no Múltiplo e o
Múltiplo fará apesar de tudo parte do Uno (MORIN, 1990, p. 112).
Dessa forma, visa superar as patologias do doutrinarismo, da racionalização e do
idealismo.
2.2. A visão complexa e multidimensional do direito
O paradigma da complexidade conduz a uma visão complexa e multidimensional do
direito, a qual deve permear o ensino jurídico crítico.
A visão crítica deve reconhecer, no fenômeno jurídico, afastando a redução, a
multiplicidade dimensional. Isso implica na possibilidade e na necessidade de uma
reflexão tanto a partir de uma perspectiva lógico-formal, interna, como a partir de uma
perspectiva externa, como fenômeno social, histórico, econômico, filosófico e político.
Incumbe-lhe, portanto, além da leitura formal, deslocar-se deste "nível lógico interno
para o processo de conhecimento externo (sociológico-histórico-político), em cujo
espaço repensa e desmitifica a própria natureza da ordem legal reinante" (WOLKMER,
2006, p. 96).
Ressalta-se, porém, que a multiplicidade de leituras não pode levar à disjunção, própria
da simplificação. Ao distinguir diversas dimensões no direito não se pode isolá-los.
O enfoque crítico visualiza, ao mesmo tempo, a multiplicidade e a unidade do fenômeno
jurídico, compreendendo-o em sua complexidade, em sua lógica organizacional interna
e sob os pontos de vista histórico, sociológico, pedagógico, econômico e filosófico.
Apreende, ainda, a multiplicidade de interações, interferências nisso envolvidas.
Não voltando as costas ao contexto, ao global, inclui no "jurídico" a reflexão sobre os
pressupostos do direito, sobre as bases em que se assenta sua lógica, sobre sua origem
histórica. Considera, dessa forma, as relações materiais e os interesses que o
condicionam e o manipulam.
2.3. A concepção de ensino-aprendizagem
a) A aprendizagem e o conhecimento
Uma perspectiva crítica, pressupondo a complexidade, demanda um entendimento da
aprendizagem não como a cópia das informações no aluno receptor, mas como um
processo pessoal, idiossincrásico e significativo de mudanças.
A idéia de "processo", isto é, de marcha, de curso, de "ir adiante", já traz em si o que é
central na concepção aprendizagem: a mudança, a transformação.
Trata-se de uma transformação operada no sujeito, ao entrar em contato com o objeto e
com as experiências, ao incorporar, assimilar, tornar sua dada realidade (PAIVA, 2007).
4522
Diz-se que é pessoal pois, embora seja realizada no convívio, nas vivências sociais,
processa-se no indivíduo, em sua singularidade. Os tempos, as dificuldades, as
facilidades são diferentes para cada um.
Diz-se, em complementação, que é idiossincrásico, com base em três pontos: a) cada
indivíduo percebe e representa os acontecimentos e os objetos de forma única e pessoal;
b) o repertório individual condiciona e orienta a predisposição para a aprendizagem; e,
finalmente, c) o processo de aprendizagem está intimamente relacionado com o aspecto
emocional, afetivo dos educandos (FERRÃO, 2000, p. 73).
Reconhece-se, nesse sentido, a subjetividade do conhecimento, e, dessa forma, que a
mudança operada no educando, no processo de aprendizagem, não consiste numa
captação objetiva da realidade.
Com efeito, o sujeito aborda e capta os objetos de acordo com as vivências, que,
portanto, interferem, induzem o significado, para ele, do mundo. O homem pensa e
compreende a partir de suas experiências, de sua vida, que o condiciona, nada podendo
falar de um "existente objetivo", que o exclui, que o nega (PAIVA, 2007).
A própria etimologia dos termos indica a relação íntima entre sujeito e objeto. Sujeito
significa o que está posto sob, dando suporte ao que vem por cima; o alicerce, o
fundamento. Já objeto significa aquilo que está posto sobre, lançado diante de. Por
conseguinte, o objeto não está isolado, implica uma relação com o sujeito, "o que dá
existência" (PAIVA, 2005, p. 207-214).
O educando assimila, faz seu o outro, a experiência. E então, condicionado e guiado por
sua história, atribui-lhe significados: como afirma Paiva, "conhecemos os fatos
transformado em nós" (PAIVA, 2007).
Diz-se, finalmente, que é significativo pois permite uma permanente (re)construção de
significados dos objetos, vivências. Dessa forma, relacionando-se, interagindo-se
conhecimentos pré-existentes aos novos conhecimentos, a aprendizagem possibilita uma
mudança no significado da experiência (FERRÃO e RODRIGUES, 2000, p. 73 e 74).
Dessa forma, a perspectiva crítica, concebendo a subjetividade do conhecimento e da
aprendizagem, exige que se religue sujeito e objeto, reconhecendo, ao mesmo tempo,
com base no princípio dialógico, a associação desses dois elementos antagônicos mas
complementares.
Faz imprescindível, portanto, no processo de ensino-aprendizagem, a consideração
permanente das vivências, do mundo experimental, das expectativas dos educandos,
tomadas como ponto de partida (ZABALA, 1998).
Afasta, assim, porque irreal, impossível, qualquer possibilidade de uma aprendizagem
que seja uma cópia, no educando, da informação do educador. Nega, também,
veementemente, porque mutiladora da complexidade e da diversidade, qualquer
identificação da escola com uma linha de montagem fabril, cujo resultado "é a produção
rápida e controlada de objetos iguais", num sentido em que "A igualdade dos objetos
finais é a prova da qualidade do processo" (ALVES, 2001, p. 35 e 36).
4523
b) A "do-discência" e pesquisa
A partir da compreensão idiossincrásica, subjetiva, pessoal e significativa da
aprendizagem, adota-se a perspectiva de que ensinar não é transferir conhecimentos,
mas criar possibilidades para sua construção (FREIRE, 1996, p. 22).
Parte-se do pressuposto de que na educação tanto educador como educando devem ser
sujeitos do processo de (re)construção compartilhada do saber. Devem desenvolver, ao
mesmo tempo, papéis de docência, de discência e de pesquisa, vistas as três como
"indicotomizáveis" (FREIRE, 1996, p. 28).
Diante da complexidade do real, e, assim, da impossibilidade de tratamento total do
conteúdo pelo educador, deve este atuar como facilitador, provocador, estimulando a
autonomia, a curiosidade e a capacidade crítica do educando. Desse modo, possibilita a
criação, no ambiente de ensino-aprendizagem, de "condições em que aprender seja
criticamente possível" (FREIRE, 1996, p. 28).
O ensino, assim, pressupondo educadores e educandos criadores, instigadores, curiosos,
inquietos (FREIRE, 1996, p. 26), articulando-se em torno do princípio da atividade
mental dos educandos, e visando sua autonomia, passa a ser entendido como:
um processo de construção compartilhada de significados, orientados para a autonomia
do aluno, e que não opõe autonomia - como resultado de um processo - à ajuda
necessária que este processo exige, sem a qual dificilmente se poderia alcançar com
êxito a construção de significados que deveriam caracterizar a aprendizagem escolar
(ZABALA, 1998).
Nesse sentido, uma concepção inovadora no ensino do direito, em contraposição à
tradicional, seria aquela baseada numa relação horizontal, dialogal, crítica e ativa, na
qual tanto o educador como o educando são pesquisadores do direito e de seu
significado multidimensional.
Ao invés do manual adotado pelo professor - representando a verdade, a resposta
dogmática transmitida unilateralmente e previamente a qualquer investigação - a
pesquisa, a busca e a construção do saber, num contexto de troca e de diálogo (FREIRE,
1979, p. 68).
c) O ensino jurídico crítico
A visão complexa e multidimensional do direito harmoniza-se e exige um ensino
jurídico pertinente, no sentido empregado por Morin: um ensino que torna evidente o
contexto, o global, o multidimensional, e o complexo (MORIN, 2007, p. 36).
Nesse sentido, a perspectiva do ensino jurídico crítico deve, inicialmente compreender o
direito em sua multidimensionalidade. Deve, portanto, considerar as perspectivas
interna e externas do direito - incluindo-o na realidade complexa e contraditória do
homem e da vivência social.
Cabe-lhe, nesse sentido, valorizar a filosofia, a sociologia, a psicologia e a história do
direito, permitindo que educando e educador questionem e reflitam sobre o direito,
4524
como um todo e nos seus diversos sentidos. Isso inclui o estudo sobre sua formação,
pressupostos e papéis na sociedade e sobre os interesses aos quais se presta.
Reconhecendo as contradições do fenômeno jurídico, os conflitos que reflete, o ensino
jurídico crítico deve se afastar da pretensão e afirmação frenética da coerência, da
harmonia. Assim, a partir de uma reflexão profunda, no contexto acadêmico da
docência-discência-pesquisa, poderá mitigar e questionar a razão e a autoridade do texto
dogmático.
O docente deve, enfim, trazer para a sala de aula as grandes indagações e problemas
com que se depara o homem e o próprio direito - como a noção de vida, liberdade,
igualdade, justiça, moral, etc. - somando-os aos problemas técnicos específicos,
estimulando, assim, seu enfrentamento crítico pelos educandos.
Tal multidimensionalidade, destaca-se, não pode ser entendida de forma fragmentária.
Há, nesse sentido, a necessidade de religar o direito compartimentado pela disjunção
simplificadora.
Exige-se, portanto, que o ensino jurídico se afaste das disciplinas hiperespecializadas,
fechadas em si, denominadas pelo respectivo código. Essas implicam na equivocada
concepção limitadora do "conhecimento do todo ao conhecimento das partes, como se a
organização do todo não produzisse qualidades ou propriedades novas em relação às
partes consideradas isoladamente" (MORIN, 2007, p. 42).
Faz-se fundamental, assim, para o conhecimento do global, a formulação de metapontos
de vistas, sobre o conhecimento, a vida, o homem e o direito, que permeiem todo o
ensino, promovendo, então, a transdisciplinaridade.
Dessa forma, sob égide dos metapontos de vistas, eliminam-se as disciplinas estanques
e fragmentárias, presas às leis e aos códigos. Em seu lugar, emergem unidades de
formação multidimensionais, que devem trazer em si a concepção da complexidade e da
não linearidade do conhecimento e reconhecer a influência e a importância das
vivências, do mundo experimental do educando no processo de aprendizagem.
Tais unidades devem, nesse sentido, conferir importância aos enfoques transversais assim denominados porque passam por todas as unidades de formação e, ao mesmo
tempo, não pertencem a nenhuma delas (PERRENOUD, 2002, p. 29). Assim, podem
contribuir com várias competências, habilidades e atitudes, as quais, por sua vez, para
serem desenvolvidas no educando, dependem de várias unidades (PERRENOUD, 2002,
p. 25).
Além de ampliar o âmbito do conteúdo informacional e procedimental (habilidades) a
ser construído, o ensino jurídico crítico, acaba, ainda, valorizando o conteúdo atitudinal
(ZABALA, 1998; MASETTO, 1997). Esse implica em valores, princípios, de natureza
acadêmica, profissional e social, tais como a curiosidade científica, a busca crítica pelo
saber, a solidariedade, o respeito, a tolerância, a abertura ao diálogo, etc.
Considerações Finais
4525
A postura manualista e sua lógica simplicadora, vinculadas a uma concepção bancária
de ensino e um entendimento unidimensional e dogmático do direito, apresentam-se, em
suma, inadequadas diante da realidade de vida social, em que os problemas e as
questões a serem enfrentadas são cada vez mais transversais, multidimensionais e
globais (MORIN, 2007, p. 36).
Mostra-se indispensável uma a mudança radical paradigmática para que se superem, no
campo do ensino jurídico, "os estereótipos cognitivos, as idéias recebidas sem exame, as
crenças estúpidas não-contestadas, os absurdos triunfantes (...) que faz reinar em toda
parte os conformismos cognitivos e intelectuais" (MORIN, 2007, p. 27) - representadas,
aqui, pelos manuais.
Trata-se de mudança na direção da compreensão da complexidade, da
multidimensionalidade e da transdisciplinaridade, do direito e do ensino jurídico, e da
concepção bilateral do processo de ensino-aprendizagem, protagonizado por sujeitos da
história e do processo pedagógico.
Ansioso de promover uma inteligência geral, "apta a referir-se ao complexo, ao
contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global" (MORIN, 2007, p.
27), pretende-se, com a perspectiva crítica do ensino jurídico, para além do que a
formatação do "operador do direito", a formação do homem, cidadão e profissional,
autônomo e consciente de suas responsabilidades, comprometido com o destino do
mundo e da sociedade, e com o homem concreto (FREIRE, 1979, p. 25).
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A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO