UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
FACULDADE DE PSICOLOGIA
PRISCILA NASCIMENTO MARQUES
A CONDIÇÃO HUMANA EM CRIME E CASTIGO:
Análise psicossocial da construção da subjetividade tendo em vista as
emoções
Trabalho de Graduação Interdisciplinar
apresentado à Faculdade de Psicologia da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, para a
obtenção do grau de Bacharel em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Alex Moreira Carvalho
São Paulo
2005
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A CONDIÇÃO HUMANA EM CRIME E CASTIGO: Análise psicossocial da construção da
subjetividade tendo em vista as emoções.
Resumo
A proposta do presente trabalho consiste em elaborar uma análise de Raskólnikov, protagonista
da obra Crime e Castigo de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski. Dada a natureza do trabalho o
levantamento bibliográfico estendeu-se pelas áreas da filosofia, particularmente da estética,
critica literária, psicologia social, além de um levantamento sobre o momento histórico da
referida obra. Os principais autores estudados foram Aristóteles, Schiller, Vigotski, Sawaia,
Frank e Bakhtin. A partir dos estudos de Mikhail Bakhtin, no que se refere especialmente aos
conceitos de polifonia, idéia e personagem na obra daquele escritor, isto é, tomando a obra como
um grande diálogo, foram selecionados trechos do romance em que o protagonista, relacionandose com outros personagens, realiza um movimento de autoconsciência, de forma que, nessa
relação, sua subjetividade é desvelada. Assim, pela seleção e agrupamento de determinados
trechos, procurou-se constituir episódios, os quais foram, posteriormente, submetidos à análise.
Em cada episódio são destacadas duas “vozes”, a do protagonista e a de um outro personagem
com a qual o primeiro “dialoga”, e, nesse processo, sua subjetividade é desvelada. O presente
trabalho conta com sete episódios que têm como foco a relação entre o protagonista e as
seguintes personagens: Marmieládov, Razumíkhin, Lújin, Porfiri, Sônia e Svidrigáilov. No
sétimo episódio realizou-se uma análise do epílogo da obra. Por fim, observa-se que todo esse
processo de constituição de subjetividade é atravessado pelas contradições emocionais que
constituem o motor do romance, que com isso já aponta para uma crise do projeto racionalista de
sociedade e do indivíduo por ele inventado.
Palavras-chave: Psicologia Social, Psicologia da Arte, Emoção.
Abstract
The purpose of this essay is to elaborate an analysis of Raskólnikov, protagonist of the novel
Crime and punishment by Fyodor Mikhailovitch Dostoevsky. Due to the nature of the work e
bibliographical survey comprehends the areas of philosophy, particularly aesthetics, literary
criticism, social psychology and a research on relevant historical aspects of the moment the
novel was written. The main authors studied were Aristotle, Schiller, Vygotsky, Sawaia, Frank e
Bakhtin. Through the prism of Bakhtin’s concepts of polyphony, idea and the character in
Dostoevsky’s work, i.e. seeing the novel as a great dialogue, some extracts were selected in order
to show that the protagonist, in a relationship with other characters, makes a self-conscience
movement, in a way that, in this relationship, his subjectivity is unveiled. This essay has seven
episodes that show the relationship between Raskolnikov and Marmieladov, Razumikhin, Lujin,
Porfiri, Sonia and Svidrigailov. The seventh episode brings an analysis of the epilogue. Finally,
we can conclude that the novel indicates a crisis of the rationalist project of society, as well as a
crisis of the individual created by this project.
Keywords: Social Psychology, Art Psychology, Emotion.
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Parecer do Orientador
O trabalho de Graduação Interdisciplinar de Priscila Nascimento Marques
constitui-se como um exemplo de pesquisa que alia rigor teórico-metodológico e abertura às
novas possibilidades de pensar a construção da subjetividade no campo da Psicologia. Com
efeito, a autora delimita claramente seu problema de investigação, a partir de uma revisão bem
feita da literatura existente, e, ao mesmo tempo, questiona e se posiciona a respeito de uma das
mais instigantes questões no âmbito da Psicologia Social: as relações, sempre complexas, entre
Arte e Psicologia. Marques não sucumbiu à tentação fácil de reduzir a Arte à Psicologia, ao
mesmo tempo em que não perdeu de vista as possibilidades desta última para ampliar a
compreensão do fenômeno estético. Assim, recorreu a um referencial teórico que toma a Arte
como ponto de partida da análise, no caso deste trabalho, da obra de Fiódor Dostoiévski
(composta por autores como Schiller, 1989, Bakhtin, 1997 e Candido, 2004, por exemplo),
relacionando-o com uma perspectiva em Psicologia Social que toma a subjetividade como
construção ético-política (composta por autores como Lane, 2001, Sawaia, 2001 e 2004, entre
outros). O ponto de articulação teórica entre Arte e Psicologia foi Vigotski (2001), uma vez que o
psicólogo russo, sempre avesso a reducionismos, elaborou uma defesa intransigente da Arte
como linguagem específica e autônoma e pensou as possibilidades da Psicologia a partir desta
premissa. Deste modo, a escolha do referencial teórico foi compatível com os pressupostos da
autora.
A metodologia do trabalho, assim como as interpretações realizadas, estão
claramente relacionadas com a postura teórica adotada por Marques, o que implicou em uma
consideração acerca da literatura de Dostoievski situada no tempo e no espaço histórico no qual
foi produzida. Neste sentido, a questão da subjetividade emergiu, também ela, como construção
histórica e como processo pelo qual o sofrimento é parte de uma condição humana que, como tal,
não separa as esferas da ética, da política e da estética, como bem queria o autor de Crime e
Castigo. Neste sentido, as categorias de análise tomadas pela autora – consciência, emoção,
sofrimento ético-político, entre outras –, surgem como adequadas para situar as vicissitudes do
Homem Moderno.
Os resultados apresentados são frutos de uma interpretação rigorosa do texto de
Dostoiévski e, assim, estão compatíveis com o ponto de partida teórico da autora. Com efeito, por
um lado, as ambigüidades e contradições da subjetividade moderna são reveladas de forma tal
que deixam sempre abertas outras possibilidades de interpretação, o que é adequado para uma
abordagem psicológica da Arte. Por outro, deixam claros os processos de tomada de consciência
e as mazelas pelos quais as relações eu-outro, sempre forjadas na história, se fazem.
Assim, recomendo com entusiasmo a indicação do trabalho para concorrer ao
prêmio Silvia Lane, não só pelas razões já apresentadas, mas também porque ele demonstra a
natureza séria e acadêmica com a qual as pesquisas na Graduação são conduzidas por alunos e
professores do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Cabe lembrar ainda
que a autora apresentou seu trabalho na Universidade de São Paulo e foi aceita para cursar o
mestrado em Línguas Orientais.
Atenciosamente,
Prof. Dr. Alex Moreira Carvalho
São Paulo, 14 de fevereiro de 2007.
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“Enquanto aqui a luxuriosa imaginação devasta
as penosas plantações do entendimento, mais além
o espírito de abstração extingue o fogo ao pé do qual
se poderia aquecer o coração e acender a fantasia”
Friedrich Schiller
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Sumário
Introdução...................................................................................................................... 06
Primeira Parte................................................................... ...........................................
11
Capítulo I – A questão da Arte............................................................................... 13
Capítulo II – A Arte e a Psicologia........................................................................
28
Capítulo III – Considerações acerca da literatura de Dostoievski e do
40
Niilismo de seu tempo......................................................................
Segunda Parte................................................................................................................ 54
“O canalha do homem se habitua a tudo” – Raskólnikov e Marmieládov........... 59
“Isso é porque ando muito doente [...] saro, e... não vou me torturar” –
Raskólnikov e Razumíkhin.................................................................................
66
“Nós cortamos o cordão umbilical com o passado de forma irreversível” –
72
Raskólnikov e Piotr Pietróvitch Lújin.................................................................
“Quem entre nós na Rússia hoje não se considera um Napoleão?” –
Raskólnikov e Porfiri..........................................................................................
77
84
“Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o sofrimento
humano” – Raskólnikov e Sônia.........................................................................
“Há um Schiller perturbando a todo instante dentro do senhor” –
Raskólnikov e Svidrigáilov.................................................................................
91
“Agora ele não resolveria nada de modo consciente; apenas sentia”.................. 97
Considerações Finais..................................................................................................... 105
Referências bibliográficas............................................................................................
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110
INTRODUÇÃO
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“Pode acontecer então que voltar atrás seja uma
maneira de seguir adiante: lembrar os modernistas do
século XIX talvez nos dê a visão e a coragem para criar
os modernistas do século XIX”.
Marshall Berman
A questão das relações entre Arte e conhecimento tem sido analisada por pensadores tais
como Friedrich Schiller (1759-1805), o qual confere à criação artística um papel importante na
transição que o homem realiza do estado da necessidade pra o estado da liberdade, de forma que
a educação do sentimento faz com que o indivíduo chegue ao conhecimento aperfeiçoado pela
via do sensível. Nesse sentido o impulso lúdico é um conceito-chave, pois encerra em si a
superação das contingências promovidas pela razão e pela sensação (Schiller, 1991).
As aproximações entre Psicologia e Arte, mais especificamente a literatura, não são
infreqüentes1 e revelam algumas afinidades entre essas duas áreas, como, por exemplo, o fato de
tanto o artista quanto o estudioso de psicologia muitas vezes produzirem suas obras a partir de
suas reflexões sobre a realidade que os cerca. Dessa maneira, embora os procedimentos utilizados
possam ser diferentes, eles acabam por se aproximar quanto ao caráter reflexivo que permeia suas
práticas e que constitui, nos dois casos, práxis.
Numa perspectiva materialista histórica e dialética o escritor e suas obras são
representantes do contexto histórico e social em que se inserem, expressando na construção do
estilo, da narrativa e dos personagens, determinadas condições da sociedade, da filosofia e da
cultura de seu tempo. Sob a ótica da Psicologia Sócio-histórica é possível pensar numa
aproximação ainda mais consistente entre as reflexões do escritor e as do psicólogo, uma vez que
esta se alicerça na idéia de que a subjetividade é construída num processo dialético e histórico em
que o indivíduo produz o meio social, tanto quanto é produzido por ele (Lane, 1984: 10/9). Além
1
Haja vista as produções de Frayze-Pereira (1994), Dante Moreira Leite (2002) e Vigotski (2001), os quais servirão
para fundamentação desse trabalho.
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disso, ao considerarmos o escritor como parte do contexto, pode-se dizer ainda que ele também
interage nesse processo. Tomando as palavras de Victor Serge (1989), quando este cita uma
expressão russa em Literatura e Revolução, é possível afirmar inclusive que “o escritor é um
organizador do psíquico” (1989: 34).
A maioria dos teóricos que fundamentarão esse trabalho trata da questão das relações
entre o artista e seu contexto em algum momento. É possível citar Aristóteles, o qual, em Poética
(1998), defende que, se por um lado o historiador trata do particular, o artista, por outro, trata do
universal; ou mesmo Leite (2002), quando este se refere ao fato da arte expressar, além de
condições sociais, uma condição humana, válida em situações muito diversas.
Tendo em vista uma possibilidade de aproximação entre Arte e Psicologia, esse trabalho
toma por objetivo geral realizar uma reflexão sobre o fenômeno artístico, a ser executada na
primeira parte do texto. A partir da obra Crime e Castigo de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski
(1821-1881), especialmente o protagonista Raskolnikóv, objetiva-se, mais especificamente, a
realização de uma análise da constituição da subjetividade deste, a partir de um olhar sobre a
modernidade da segunda metade do século XIX e de conceitos da psicologia social,
especialmente a questão das emoções.
Constitui pilar do presente texto o estudo das emoções, que fudamentar-se-á nas idéias
desenvolvidas principalmente por Liev S. Vigotski e Bader B. Sawaia. O primeiro, retomando o
conceito de catarse de Aristóteles, auxiliará na discussão a respeito das propriedades da obra de
arte que propiciam esse efeito e a segunda contribuirá com suas reflexões, que se apóiam nas
idéias desse mesmo autor russo e de Espinosa, sobre a constituição psicossocial das emoções.
O desenvolvimento do trabalho estará organizado em duas partes, sendo que a primeira
delas será dividida em três capítulos. O primeiro deles concentra-se numa reflexão sobre os
conceitos de Arte, estética e a função da arte, apoiada nas idéias de Friedrich Schiller (1991),
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Antonio Candido (2004), Benedito Nunes (2002), Frayze-Pereira (1994), Duarte Jr. (2003), e do
poeta russo Joseph Brodsky (1987). O segundo trará a associação de aspectos da arte com
conceitos da Psicologia e estará fundamentada nas idéias de Dante Moreira Leite (2002), Liev S.
(2001) e Bader Sawaia (1995; 2000; 2001; 2004).
No terceiro capítulo serão feitas algumas considerações sobre Dostoiévski e sua produção,
para as quais contar-se-á com os trabalhos desenvolvidos por Joseph Frank (1992) e Mikhail
Bakhtin (1997). Ainda nesse capítulo serão feitos comentários a respeito do contexto histórico no
qual Crime e castigo foi escrito, particularmente no que se refere ao niilismo que caracterizava o
clima ideológico da Rússia do século XIX. A segunda parte concentrar-se-á na análise
psicossocial do personagem Raskolnikóv da obra Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski que se
será realizada a partir do referencial teórico desenvolvido na primeira parte.
A relevância dessa temática se deve à possibilidade de contribuir com a produção que
vem sendo realizada na área da Psicologia ao englobar aspectos do contexto histórico e da
construção da subjetividade do período estudado. A investigação de aspectos da modernidade,
momento de crise do indivíduo e do projeto político-social que estabelece as bases para a
cidadania do século XX, tem importância também nas discussões sobre a atualidade, uma vez que
o projeto racionalista, inaugurado por este momento, é fundamental para o entendimento das
produções de subjetividade da sociedade atual. Embora esse aspecto não seja o propósito central
desse trabalho, ele representa uma possibilidade de aprofundamento que poderá vir a ser tratada
em futuras pesquisas.
Além disso, a inclusão da literatura também configura um aspecto relevante, pois essa
modalidade artística acessa com antecedência e reflete as condições político-econômica-sociais
de um determinado momento histórico.
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Quanto à relevância social o trabalho pretende contribuir para a reflexão sobre o processo
exclusão/inclusão mediado pelo modo de produção da sociedade e do indivíduo nela inserido,
promovendo questionamentos desse modo de produção, analisando suas conseqüências e
buscando elementos para refletir sobre a frágil vivência da cidadania na contemporaneidade com
base nas questões do individualismo, da banalização do outro e do esfriamento das emoções.
Considerando a estrutura social da Rússia do século XX e o fato do estudo centrar-se
numa obra desse momento, pode-se pensar numa aproximação com o contexto da modernização
brasileira, uma vez que, tanto naquele quanto nesse país pode-se falar de um modernismo do
subdesenvolvimento (Berman, 1986: 39), já que ambos precisam tanto lidar com suas
peculiaridades quanto atender ao anseio de desenvolvimento contínuo estabelecido pela ordem
capitalista. Assim, também os cidadãos desses dois países podem ser comparados em termos da
vivência do sofrimento ético-político imposto por esta ordem (Sawaia, 2004: 104).
O movimento de relacionar São Paulo do século XIX com Petersburgo czarista tem sido
expresso por recentes trabalhos: na literatura, com a publicação de Zero de Alexandre Plosk
(2004), no teatro com a encenação do grupo Teatroendoscopia e no cinema com a produção de
Nina de Heitor Dhalia (2004), todos inspirados em Crime e Castigo, conforme indica uma
matéria do jornal O Estado de São Paulo de agosto de 2004, escrita por Antônio Gonçalves
Filho.
Em última instância, pode-se acrescentar ainda uma finalidade a este trabalho: o resgate e
apropriação da tradição moderna, conforme proposto por Berman (vide epígrafe), como condição
para criar o presente.
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PRIMEIRA PARTE
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Esta primeira parte será dividida em três capítulos, sendo que no Capítulo I discorrer-se-á
a respeito do conceito de Arte, no que se refere à sua natureza, suas relações com a Estética e sua
função. Tem-se com isso o intuito de explorar o campo a ser estudado, apresentando pressupostos
que nortearão a análise do fenômeno artístico, nesse caso, Crime e Castigo. Os teóricos
escolhidos para essa fundamentação foram Aristóteles (1998), Friedrich Schiller (1991), Joseph
Brodsky (1987) e Antonio Candido (2004).
No Capítulo II os conceitos apresentados anteriormente serão articulados aos da
Psicologia, visando uma aproximação das duas áreas e abordando temáticas dessa ciência as
quais fundamentarão a análise posterior. Para a construção desse capítulo mostraram-se preciosas
as contribuições de Dante Moreira Leite (2002), Liev S. Vigotski (2001) e Bader B. Sawaia
(1995; 2000; 2001; 2004).
O Capítulo III tratará da literatura de Fiódor Milkhailovitch Dostoiévski, por meio da
retomada de trabalhos de autores que se dedicaram ao estudo da produção artística desse escritor,
de maneira que se possibilite um contato com as áreas que já deram início à construção de
conhecimento a respeito da produção do escritor russo. Nesse caso, serviram de base os estudos
de Joseph Frank (1992) e Mikhail Bakhtin (1997), os quais contribuem no sentido fornecer
subsídios da crítica literária para um olhar sobre Dostoiévski e Crime e castigo que não exclua o
caráter artístico produção a ser analisada. Além disso, esse capítulo contará com observações
sobre o contexto sóciopolítico da Rússia do século XIX, principalmente na década de 60. Um
breve histórico sobre a nova geração incipiente nesse período e as ideologias de caráter
revolucionário e niilista que tanto a marcou será de grande importância para a compreensão do
clima ideológico presente em Crime e castigo.
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Capítulo I – A Questão da Arte
“A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que dou às coisas em troca do agrado que me dão”.
Alberto Caeiro
“If what distinguishes us from other members of the
animal kingdom is speech, then literature – and poetry
in particular, being the highest form of locution – is,
to put it bluntly, the goal of our species”.
Joseph Brodsky2
A tentativa de definir Arte traz em si uma dificuldade considerável, especialmente se
levarmos em conta as modificações que esse conceito já sofreu no decurso da história humana
bem como a amplitude e variedade das práticas consideradas artísticas. Essa última característica
é fundamental, uma vez que segundo Dufrenne (apud Frayze-Pereira, 1994: 16) qualquer
definição de Arte que se procure fazer não deve contrariar o movimento de autocontestação e de
invenção que origina a arte e a torna literalmente inapreensível.
Para uma compreensão mais abrangente da natureza da Arte é imprescindível que se leve
em conta a historicidade do conceito em questão, dada a variedade de acepções que este tem em
função de diferentes momentos históricos e correntes filosóficas; por essa razão faz-se necessário
que se apresente nesse capítulo um breve histórico da filosofia da arte, o qual contará a produção
de Benedito Nunes (2002), para quem a Arte passa a ser objeto de reflexão filosófica na tradição
grega, segundo a qual o Belo pode ser compreendido de três maneiras: estética, moral e
espiritual, sendo que todas têm por função provocar um prazer moderado, promover a harmonia,
o equilíbrio e afastar os vícios.
2
“Se o que nos distingue dos outros membros do Reino Animal é a fala, então a Literatura – e a poesia em particular,
sendo a forma mais alta de locução – é, para ser preciso, o objetivo da nossa espécie” (Brodsky, 1987, tradução
nossa). Retirado do discurso proferido pelo escritor ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 8 de Dezembro de
1987.
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Na concepção grega a beleza é a exteriorização da perfeição almejada pelo homem através
do exercício das virtudes e do conhecimento verdadeiro3. Aristóteles, por exemplo, enaltece a
função prática da Arte no que se refere ao atendimento de necessidades humanas e enfatiza o
objetivo catártico daquela pelo estudo das formas pelas quais ela deve auxiliar na busca do
equilíbrio e da verdade.
Nesse momento faz-se necessário um aprofundamento nas questões originadas no
pensamento aristotélico, interrompendo temporariamente a breve descrição das passagens
históricas, pois, posteriormente (Capítulo II) esses conceitos, em especial o de catarse, serão
retomados por Vigotski.
Assim, serão levantados os principais pontos trabalhados por Aristóteles em sua obra
Poética (1998), na qual o filósofo enuncia que toda arte poética é imitação, e esta ação se
encontra intrinsecamente relacionada à humanidade, pois é através dela que o homem apreende
as primeiras noções (1998: 107). As diferentes modalidades artísticas decorrem dos diversos
objetos e meios de sua execução. Na comédia, por exemplo, imitam-se homens piores quanto ao
ridículo e ao defeito, ou seja, trata de uma torpeza anódina e inocente (1998: 109). A tragédia, por
sua vez, se propõe à imitação de homens superiores, representando ações possíveis segundo
verossimilhança e necessidade, de forma que o poeta diferencia-se do historiador, pois trata do
universal, ao passo que o último trata do particular. Destarte, pode-se definir a tragédia como
sendo
[...] a imitação de uma acção de caráter elevado, completa e de certa extensão, em
linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas
diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas
3
A questão da moral, da verdade e da ética associada ao conceito de beleza é muito significativa na discussão que se
pretende fazer sobre a produção de Dostoiévski, visto que essas temáticas são fundamentais nos romances e no
pensamento dostoievskiano e a própria estrutura do romance polifônico, ao privilegiar a abertura para “vozes
diversas” pode ser entendida como uma forma de ética e justiça.
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mediante actores, e que, suscitando terror e piedade, tem por efeito a purificação
dessas emoções. (Aristóteles, 1998: 110)
[...] e estas emoções se manifestam principalmente quando se nos deparam acções
paradoxais, e, perante casos semelhantes, maior é o espanto que ante os feitos do
acaso da fortuna. (Aristóteles, 1998: 117)
A catarse, ou purificação 4, refere-se, segundo o dicionário Houaiss, à “purificação do
espírito do espectador através da purgação de suas paixões, especialmente dos sentimentos de
terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico” e, ainda nessa
referência encontra-se a etimologia do termo, o qual provém do grego kátharsis e significa
“purificação, purgação; mênstruo; alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral”.
Em seu comentário a respeito do conceito de catarse explorado por Aristóteles, Eudoro de
Sousa (1998: 99-101) trata das divergências a respeito desse conceito e defende que ele não pode
ser compreendido como expurgação de sentimentos, visto que, dessa forma seriam eliminados os
efeitos que a obra suscita. Sousa admite como sendo mais fiel à compreensão de catarse a idéia
de purificação. Assim, ao suscitar piedade e terror, a tragédia provoca no espectador atração e
repulsão, levando a um equilíbrio e a uma distância ótima que promove o conhecimento. A
função catártica é, portanto, além de estética, gnósica, ou seja, faz-se presente a tese pedagógica
de que o espetáculo tem por finalidade o aprendizado de alguma noção. É essencial, entretanto,
que fique que claro a natureza desse aprendizado não se encontra em processos intelectuais, isto
é, trata-se antes de um processo relacionado ao sofrimento e a estados de ânimos.
A tragédia possui como elementos qualitativos a peripécia, o reconhecimento e a
catástrofe. A primeira tem por definição a “mutação dos sucessos no contrário, efectuada do
modo como dissemos; e esta inversão deve produzir-se, também o dissemos, verossímil e
4
Na tradução de Abrão (1999) tem-se o termo catarse em lugar de purificação.
- 15 -
necessariamente” (Aristóteles, 1998: 118). É no reconhecimento que se dá o efeito catártico, pois
este consiste na
[...] passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das
personagens [...] A mais bela de todas as forma de reconhecimento é a que se dá
juntamente com a peripécia, como, por exemplo, no Édipo [...] que melhor
corresponde à essência do mito e da acção, porque o reconhecimento com
peripécia suscitará terror e piedade, e nós mostrámos que a tragédia é imitação de
acções que despertam tais sentimentos. E demais, a boa ou má fortuna resultam
naturalmente de tais acções. (Aristóteles, 1998: 118).
A catástrofe, por sua vez, é uma ação nociva e dolorosa, como, por exemplo, as mortes e
os ferimentos.
No capítulo XIII Aristóteles (1198: 120) trata do herói trágico, o qual “não se distingue
muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado,
mas por força de algum erro; e esse há-de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e
fortuna” e suscitam piedade pelo infeliz que o é sem merecer, e terror por sua desventura.
A atitude do herói pode ser qualificada em três tipos, sendo o pior dos casos aquele em
que o herói se propõe a agir e não age. Melhor que este caso é aquele em que o herói age
ignorando e que, posteriormente, vem a conhecer o caráter de sua ação. Contudo, atitude
realmente superior refere-se àquela em que o herói deixa de provocar um mal, pois reconhece sua
natureza. (Aristóteles, 1998: 122).
Por outro lado “para conhecer se bem ou mal falou ou agiu uma personagem, importa que
a palavra ou acto não sejam exclusivamente considerados na sua elevação ou baixeza; é preciso
também observar o indivíduo que agiu ou falou, e a quem, quando, como e para que, se para
obter maior bem ou para evitar mal maior” (Aristóteles, 1998: 144). Assim, o absurdo deve ser
considerado, pois “na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não
- 16 -
persuade [...] às vezes, irracional parece o que o não é, pois verossimilmente acontecem coisas
que inverossimilmente parecem” (Aristóteles, 1998: 145-6).
O Poema da Purificação5 do poeta modernista brasileiro Carlos Drummond de Andrade
(2000) transcrito a seguir traz em si as principais questões discutidas na Poética, tangenciando os
conceitos de peripécia, reconhecimento e catarse:
Poema da Purificação
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.
As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.
Retomando o panorama histórico sobre as idéias desenvolvidas pela filosofia da arte temse que os pensadores cristãos, por sua vez, diminuem a importância da Arte, uma vez que esta é
uma produção mundana, voltada ao atendimento das necessidades empíricas do homem, e
estranha ao culto do divino.
É no Renascimento que se encontra uma reaproximação da ciência e da verdade com a
Arte, sendo esta última, conforme Denis Diderot (apud Nunes, 2002: 44), uma produção de
formas que busca traduzir não somente o real como também o possível, configurando-se, assim,
como uma associação entre práxis e imaginação6. A introdução deste elemento foi ampliada por
5
Publicado no livro Sentimento do Mundo (2000).
Destaca-se aí a introdução de elementos da subjetividade no momento do Renascimento em que o conceito de
imaginação é incorporado à concepção de produção artística. Tais elementos serão posteriormente base do
movimento artístico do Romantismo, e são o próprio objeto de estudo da Psicologia.
6
- 17 -
pensadores como Rousseau, o qual se referia à necessidade de recuperação da afetividade, ou da
“ordem do coração” como queria Pascal. Nesse momento é criada a Estética, disciplina fundada
no século XVIII por Baumgarten, que propõe uma análise do Belo, enquanto perfeição do
conhecimento sensível. De modo amplo, Duarte Júnior (2003: 8) define a estética como sendo
“qualquer conjunto de idéias (filosóficas) com o qual se procede a uma análise, investigação ou
especulação a respeito da arte e da beleza”.
O surgimento da estética como campo especifico de reflexão sobre o Belo abre espaço
para se falar da Arte como forma de conhecimento, tanto para o artista quanto para aquele que a
contempla. Tal acepção adquire contornos mais precisos com Kant, filósofo responsável por dar
maior autonomia ao gosto estético, pois o conhecimento proporcionado pela Arte não é
considerado por ele como sendo inferior ou restrito às categorias do Entendimento. Assim, o
gosto estético não pode ser reduzido nem ao conhecimento lógico-científico (razão pura), nem à
razão determinadora da moral (razão prática), desempenhando uma “função mediadora entre os
opostos, um elo entre a natureza e a liberdade, entre o entendimento e a razão, entre a
determinação causal e moral” (Rosenfeld, 1991:19).
A partir dos postulados kantianos a respeito das diversas funções mentais, o artista e
filósofo Friedrich Schiller (1759-1805) desenvolve suas idéias ao mostrar o dinamismo das
relações entre essas funções e acrescenta o conceito de impulso lúdico, cuja função é conciliar
matéria (realidade) e forma (atuação do indivíduo sobre a matéria), realizando, assim, o jogo
estético, através do qual o homem se aproxima da aparência em sua plenitude, e, por conseguinte,
de si mesmo (Nunes, 2002:58; Rosenfeld, 1991:22). Nos parágrafos seguintes serão abordados os
principais aspectos das idéias desse autor.7
7
A importância dada a Friedrich Schiller no presente trabalho deve-se ao fato deste filósofo ter retomado os
fundamentos da filosofia grega, por exemplo, a questão da moral e da ética, a busca do conhecimento verdadeiro e o
- 18 -
A discussão sobre as relações entre esses âmbitos (natural x moral) é ampliada por
Schiller em suas Cartas sobre a educação estética da humanidade (1991), nas quais trata, entre
outros conceitos, do Estado Natural e do Estado Moral (Schiller, Carta III: 39-42). O primeiro
deles é marcado pela falta de liberdade, ou seja, o homem encontra-se em meio à natureza sem
que possa decidir a esse respeito a partir de sua racionalidade. Assim, trata-se de um Estado
imposto regido por forças e não por leis, e que posteriormente será negado pela razão, pelo
confronto entre o ideal (e moralmente necessário) e o natural.
Da mesma maneira há a oposição entre o homem físico (real) e o moral (problemático), o
qual alude à filosofia de Kant, uma vez que o homem moral é aquele que se guia pelo imperativo
categórico. Visto isso, o que o homem faz é
[...] não se bastar com o que dele a Natureza fez, mas ser capaz de refazer com a
razão e regressivamente os passos que ela antecipa, transformar a obra da
necessidade em obra de sua livre escolha e elevar a determinação física à
determinação moral. (Schiller, Carta III: 39)
Contudo, essa superação do natural (homem físico) não dever ocorrer pela sobreposição
deste pelas leis da moral. O homem dever incorporar seus impulsos fazendo com que eles “[...]
concordem suficientemente com sua razão para fornecer-lhe uma legislação universal” (Schiller,
Carta IV). Há que se conciliar a multiplicidade inerente à natureza com a tendência à unificação
da razão, pela instauração de um Estado que respeite não só o caráter objetivo e genérico, como
também o subjetivo e específico de cada indivíduo possibilitando a transição do Estado da
necessidade para o Estado da liberdade.
exercício da virtude, conciliando-os com a filosofia de Kant, de maneira a trazer uma contribuição consistente e
valiosa para as posteriores discussões (cf. nota 3). Além disso, segundo Carpeaux (1987: 1669), Schiller exerceu em
Dostoiévski influências, tanto no que se refere aos aspectos formais quanto ideológicos.
- 19 -
Em sua crítica à incipiente modernidade e a fragmentação do indivíduo acompanhada pela
segmentação científica, Schiller remete à condição grega na qual o indivíduo podia elevar-se à
totalidade e não havia uma separação rigorosa entre sentidos e espírito, ao contrário, privilegiavase a unidade interior da natureza humana. De modo bastante poético aborda as características
dessa “cisão moderna” quando diz que “enquanto aqui a luxuriosa imaginação devasta as penosas
plantações do entendimento, mais além o espírito de abstração extingue o fogo ao pé do qual se
poderia aquecer o coração e acender a fantasia” (Schiller, Carta VI: 52).
Diante dessa conjuntura, Schiller propõe o caminho da educação do sentimento que leve o
indivíduo ao conhecimento aperfeiçoado pela via do sensível, ressaltando a idéia de que “o
caminho para a cabeça precisa ser aberto pelo coração” (Schiller, Carta XVIII: 52).
Schiller (Carta IX: 63) anuncia que o instrumento mais apropriado para a concretização
dessa tarefa de enobrecer o caráter está nas belas-artes que devem ser guiadas por modelos
imortais. A idéia da existência de modelos atemporais suscita a questão da relação da arte com
determinado Zeitgeist, a qual é entendida pelo autor como inevitável. Alerta, entretanto, para o
fato de que aquela não pode restringir-se a esse, ou seja, não deve ser sua criatura, com o que o
autor russo Joseph Brodsky (1987) concorda, ao abordar mais especificamente as relações entre o
escritor e o Estado, no trecho do discurso citado a seguir.
The real danger for a writer is not so much the possibility (and often the certainty)
of persecution on the part of the state, as it is the possibility of finding oneself
mesmerized by the state’s features, which, whether monstrous or undergoing
changes for the better, are always temporary.8
8
“O verdadeiro perigo para um escritor não é tanto a possibilidade (e freqüentemente a certeza) de perseguição pelo
Estado, mas sim a possibilidade de encontrar-se mesmerizado pelas características do Estado, que, mesmo que
promovam mudanças monstruosas ou sofridas para o melhor, são sempre temporárias” (Brodsky, 1987, tradução
nossa). Retirado do discurso proferido pelo autor ao receber o prêmio Nobel (cf. nota 2).
- 20 -
Para Schiller, o artista deve servir aos seus contemporâneos naquilo que precisam, embora
muitas vezes isso não seja expresso. Tal atividade só é viável, pois a Arte é capaz de conjugar o
necessário e o possível em busca do ideal ao conciliar os aspectos objetivos e subjetivos. Assim,
o filósofo aponta para a capacidade que a Arte tem em acessar a subjetividade, explicitando essa
idéia ao dizer que:
Não pode ainda a verdade lançar sua luz triunfante à profundeza dos corações, e já
a força poética lhe apreende os raios, fazendo brilhar os cumes da humanidade
quando a úmida noite ainda pousa sobre os vales. (Schiller, Carta IX: 65)
Tomando a primeira epígrafe deste capítulo como ponto de reflexão, conclui-se que a
beleza é um conceito que se refere ao indivíduo que a produziu, ou seja, não é uma qualidade
inerente aos objetos, mas sim dependente da relação que aquele estabelece com este. Indo mais
adiante Schiller (Carta X: 72) afirma que a beleza liga-se à condição da humanidade, e que seu
conceito puro e irrefutável deve ser alcançado pela descoberta do que é absoluto e permanente,
por um caminho transcendental.
Em conformidade com as duas leis que exercem seus apelos sobre o homem (a da
natureza sensível e a racional), ele possui dois tipos de impulso, quais sejam o impulso sensível e
o impulso formal (Schiller, Carta XII: 76-79). O primeiro deles leva o homem a experimentar o
presente, limita-o no tempo e torna-o matéria. O impulso formal parte da natureza racional e visa
libertar e harmonizar o homem, fazendo agir nele o sujeito puro e tornando-o espécie.
A tarefa de estabelecer os limites desses impulsos é de responsabilidade da cultura, que,
dessa forma, deve “primeiramente, resguardar a sensibilidade das intervenções da liberdade”,
bem como “defender a personalidade contra as forças da sensação” (Schiller, Carta XIII: 79-85).
Tal empreitada é levada a cabo por meio da educação das faculdades sensível e racional, para que
- 21 -
não haja subordinação de uma à outra, e que, ao invés de conquistar uniformidade, se conquiste
harmonia. Essa conquista é que leva o indivíduo a experimentar a humanidade no sentido mais
pleno e pressupõe um novo impulso, o impulso lúdico, o qual supera a contingência das duas
tendências anteriores, pois, na medida em que “despe as leis da razão de sua imposição moral, irá
conciliá-las ao interesse dos sentidos” (Schiller, Carta XIV: 87).
O objeto desse impulso é a forma viva (associação dos objetos dos impulsos sensível e
formal: vida e forma, respectivamente), mais comumente conhecida como beleza, sobre a qual
Schiller acrescenta que,
Enquanto apenas pensamos sua figura, ela é inerte, mera abstração; enquanto
apenas sentimos sua vida, ela é informe, simples impressão. Somente quando a
forma vive em nossa sensação e sua vida se forma em nosso entendimento ele é
configuração viva, e isto será sempre o caso quando o julgarmos belo. (Schiller,
Carta XV: 89)
Para estabelecer-se essa relação com o belo o homem deve jogar, pois “o homem joga
somente quando é homem no pleno sentido da palavra” e, assim, pode encontrar-se em estado de
repouso e movimento máximos, fazendo surgir uma comoção para a qual não há conceito ou
nome (Schiller, Carta XV: 92-94). Em Kant esse estado é caracterizado como desinteressado, isto
é, a experiência estética é marcada pela satisfação desinteressada e contemplativa proporcionada
pelo contato com a forma, sem que esse processo seja atravessado por conceitos explícitos, mas
sim caracterizado por um jogo harmônico entre as funções mentais (Rosenfeld, 1991:21).
Essas características do impulso lúdico, que leva o homem a jogar, permitem que ele
exerça sua humanidade de modo mais genuíno, bem como promove nele sua liberdade – que não
é entendida por Schiller como a ausência de leis, mas sua harmonia (Schiller, Carta XVIII: 101102) – “pois tão logo os dois impulsos fundamentais e opostos ajam nele, perdem ambos sua
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coação, [e] a contraposição de duas necessidades origina a liberdade” (Schiller, Carta XIX: 108).
Essa configuração constitui o estado estético, caracterizado por uma determinabilidade real e
ativa, que permite uma afinação, na qual o “espírito não é coagido nem física nem moralmente,
embora seja ativo nos dois domínios” (Schiller, Carta XX: 110).
Ao possibilitar esse estado, a beleza pode ser considerada nossa segunda criadora,
Pois embora apenas torne possível a humanidade, confiando à nossa vontade livre
a medida de sua realização, ela é semelhante à nossa criadora original, a natureza,
que também nada nos deu mais que a aptidão para a humanidade, faculdade cujo
uso, contudo, ficou dependente da decisão de nossa própria vontade.” (Schiller,
Carta XXI: 113)
Schiller acrescenta ainda que a forma pressupõe a liberdade estética, pois “nada é tão
oposto ao conceito de beleza quanto dar ao espírito uma certa tendência” (Carta XXII: 118). Uma
vez em estado estético, o homem coloca o mundo para fora de si e o contempla, “os raios
dispersos da consciência se conjugam e a imagem do infinito, a forma, se reflete em fundo
perecível” (Carta XXV: 131). A conjunção das duas tendências a priori opostas é alcançada,
portanto, na forma e no exercício do direito humano da arte da aparência, ou seja, no reino
imaterial da imaginação.
Para Schiller, ao preocupar-se com a aparência desde tempos mais remotos de sua
história, o homem vai apontando para uma ampliação da humanidade em direção à cultura,
rompendo com o círculo animal. Merleau-Ponty (apud Frayze-Pereira, 1994: 19) exemplifica
esse movimento ao referir-se ao ato de vestir, que, se por um lado relaciona-se com a proteção do
frio, por outro “[...] torna-se o ato de enfeite ou, ainda, o do pudor, e revela uma nova atitude para
consigo mesmo e para com o outro”. Assim, a beleza, enquanto objeto e estado subjetivo,
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“brotará onde o homem fale consigo mesmo, ao recolher-se quieto à sua cabana, e fale a toda
gente ao sair dela” (Schiller, Carta XXVI: 135).
Por fim, em sua última carta, Schiller fala de um reino da aparência estética, no qual é
possível realizar o ideal de igualdade, já que
Na medida em que o gosto reina e estende o domínio da bela aparência, impedemse quaisquer privilégios ou mesmo domínios exclusivos [...] A voz severa da
necessidade, do dever, é forçada a modificar o seu tom condenatório, justificado
somente pela resistência e passa a honrar a dócil natureza com sua nobre
confiança. O gosto conduz o conhecimento para fora dos mistérios da ciência e o
traz para o céu aberto do senso comum, transformando a propriedade das escolas
em bem comum a toda a sociedade humana. (Schiller, Carta XXVII: 149-150)
O crítico literário brasileiro Antonio Candido de Mello e Souza converge em diversos
pontos com o filósofo alemão. Ao defender a tese de que a literatura é um direito humano
universal, Antonio Candido (2004: 137-139) define esta modalidade artística como sendo uma
manifestação universal dos homens de todos os tempos, uma espécie de fabulação que se faz
presente de diversas maneiras em todos os seres humanos, independentemente de formação
educacional e/ou classe social.
A ênfase dada por Candido à literatura é atribuída em razão da humanização que ela
desempenha. Essa função, compreendida enquanto algo para cujo desenvolvimento a literatura
contribui, é definida pelo autor como sendo:
[...] o processo que confirma aqueles traços que reputamos essenciais, como o
exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo,
o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o
senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do
humor. (Candido, 2004: 144)
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Ao tema da função da literatura, Duarte Jr. (2003) acrescenta que não é possível pensar a
arte com tendo uma utilidade, ao menos no que se refere ao mundo prático. Por outro lado, no
campo do sensível ela “serve para despertar em nós a consciência e a vivência de aspectos do
nosso sentir, com relação ao mundo” (2003: 55).
A compreensão desta afirmativa passa pela questão da relação entre a literatura e a
sociedade, a respeito da qual Candido (2004: 138) diz que “[...] a literatura confirma e nega,
propõe e denuncia, apóia e combate, fortalecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemas”. Dessa maneira, seu papel não é normatizador, mas o de transcender as normas
estabelecidas.
Com relação à natureza da literatura, o autor distingue três faces: 1) uma construção de
objetos autônomos com estrutura e significado; 2) uma forma de expressão de sentimentos e
visão de mundo; 3) uma forma de conhecimento. O primeiro desses pontos refere-se à maneira
pela qual se dá a construção literária, ou seja, a forma segundo a qual as palavras são articuladas.
É a forma o critério que define a qualidade da produção (enquanto literária ou não) e permite o
escritor comunicar-se com o espírito do leitor levando-o a organizar-se e, em seguida, organizar o
mundo. Essas formas existem para comunicar uma determinada mensagem, contudo essas
mensagens dependem das formas para serem expressas. Sobre esse assunto Duarte Jr. (2003: 52)
diz: “na arte não existe um ‘conteúdo’ que possa ser expresso (identicamente) de várias maneiras:
a forma é o próprio conteúdo”.
Destarte, não é possível dissociar o par forma-conteúdo, cuja função na literatura é
precisamente a superação do caos, por meio de um arranjo especial de palavras. Essa função
relaciona-se diretamente com o segundo e o terceiro aspectos da literatura, uma vez que esse
arranjo produzido pelo artista “permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção
para o da forma construída” (Candido 2004: 143) e consiste numa modalidade de conhecimento
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que se processa consciente e inconscientemente. Os níveis de conhecimento intencionais
(conscientes), que satisfazem a necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade,
contribuem para uma tomada de posição em face deles. Trata-se, nesse caso, da “literatura
social”, que o autor insiste ser um tipo de manifestação e não um critério universal de avaliação
da função da literatura, enfatizando que a finalidade da arte não pode se encontrar alheia ao plano
estético.
Cândido (2004: 146) cita o exemplo do romance humanitário e social do século XIX
como sendo um marco na inserção da temática da miséria e do tratamento digno do pobre,
constituindo uma resposta do artista desse momento ao impacto da industrialização, trazendo à
tona a questão dos direitos humanos. Esse tipo de abordagem tornou escritores, tanto do
Romantismo quanto do Naturalismo, inspiradores de atitudes e idéias políticas, ainda que essas
escolas literárias não tenham sido impulsionadas por tais idéias. Sobre essa questão, Candido, ao
citar o exemplo do francês Émile Zola, fala de uma “força política latente” de alguns textos
literários.
A discussão sobre relação entre a literatura e os direitos humanos é ampliada quando
Antonio Candido se refere à organização da sociedade com base na igualdade de direitos como
sendo um pré-requisito para que as produções literárias possam circular entre seus membros e
seja possível haver a intercomunicação entre as criações ditas populares e as eruditas. Assim
sendo, não se pretende uma uniformização estética, mas sim a igualdade de oportunidades de
comunicação, ou seja, de “fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os
níveis” (Candido, 2004: 158).
Pode-se pensar inclusive que, numa sociedade notadamente desigual, como a brasileira, o
acesso aos grandes clássicos é, em si mesmo, uma estratégia para redução das diferenças, uma
vez que essas obras têm um “poder universal”. Em outras palavras, a experiência estética por eles
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possibilitada independe de classes sociais, já que ela “deixa o cotidiano ‘em suspenso’” (Duarte
Jr. 2003: 44). Assim, a luta pelos direitos humanos, que, conforme explicitado, inclui o acesso à
literatura, é uma luta contra a espoliação do homem.
Para concluir essas reflexões a respeito da arte, da estética e de suas relações com a
humanidade/humanização, é possível trazer as palavras de Brodsky (1987), do discurso já citado,
quando ele diz que a experiência estética é sempre privada e se estabelece como uma forma de
defesa contra a escravidão, ou seja, como afirmação da liberdade humana, uma vez que, quanto
mais substancial for a experiência estética de um indivíduo, mais livre ele será. O autor afirma
ainda que “o ser humano é uma criatura estética antes de ser ética” (Brodsky, 1987, tradução
nossa), pois o instinto estético faz com que ele perceba quem ele é e de que precisa.
Visto isso conclui-se, com a frase citada na segunda epígrafe deste texto, que o
desenvolvimento da espécie humana é produto da arte, e não o contrário, e, dessa forma, a
literatura constitui o objetivo maior dessa espécie. Tal afirmação encontra uma ligação intrínseca
tanto com as idéias de Schiller a respeito da importância de uma educação estética, quanto com a
defesa de Candido da literatura enquanto direito humano universal, e, além disso, possibilita que
se pense a arte como um dos pilares fundamentais da discussão sobre o ser humano9.
9
Nota-se aí que, a importância da arte no presente trabalho não se deve exclusivamente ao fato de ter por objeto uma
obra artística, mas também pela relevância da arte enquanto modalidade de expressão que se encontra fortemente
associada à condição humana.
- 27 -
Capítulo II – A Arte e a Psicologia
Dadas as considerações acerca da questão da arte feitas no Capítulo I, nas quais foram
destacados alguns pontos de vista considerados relevantes para o presente estudo, especialmente
as idéias de Aristóteles (1998), do artista e filósofo alemão Friedrich Schiller (1991) e do crítico
brasileiro Antonio Candido (2004), é possível aventurar-se nas possibilidades de associar essas
idéias com o campo da Psicologia.
Essa tarefa não é nova, uma vez que para realizá-la aqui, pode-se contar com o apoio de
autores como João Francisco Duarte Júnior (1991), João Frayze-Pereira (1994), Dante Moreira
Leite (2002) e Liev Vigotski (2001).
Dante Moreira Leite, em sua obra Psicologia e Literatura (2002), discorre a respeito das
ciências que já tangenciaram seus estudos com a questão da arte, e, de maneira bastante
ponderada, aponta para os riscos de fazê-lo, especialmente quando a sociologia e a psicologia,
por exemplo, reduzem a arte a superestruturas dependentes de determinadas infra-estruturas, ou
seja, “observa-se a tendência de pensar na arte não como tal, mas como alguma coisa, de que ela
seria, apenas, uma forma mais complexa ou disfarçada” (Leite, 2002:21-3).
Em contrapartida, é necessário que se leve em conta a existência de uma intersecção entre
as diversas áreas com a Arte, sem que isso se refira à sobreposição de um âmbito ao outro ou
mesmo uma identificação direta entre eles.
Se é errado pensar na literatura em razão de alguma outra coisa – política,
psicologia, sociologia, filosofia –, não se deve esquecer que, freqüentemente, a
literatura pretende atingir esses domínios. [...] A obra de arte maior sempre inclui
uma visão de mundo que, embora possa ser discutida ou negada, faz parte
integrante de seu sentido, [...] embora a “verdade artística” não possa ser
identificada á verdade científica ou à filosófica, também não pode ser ignorada ou
considerada aspecto secundário. (Leite, 2002: 26)
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Quanto às contribuições que a psicologia pode fazer ao estudo das obras literárias o autor
cita Daiches (apud Leite, 2002: 27) quando este diz que “toda crítica é provisória, parcial e
oblíqua”, tornando, portanto, necessária a combinação e contribuição de diversas perspectivas.
Sendo assim, o crítico literário deve redimir-se do posto onipotente daquele que detém as únicas
verdades válidas para o estudo do fenômeno artístico em questão.
Tendo em vista a possibilidade e até a necessidade da psicologia ocupar um lugar nesse
campo, levanta-se a questão sobre o tipo de conhecimento que será utilizado, ou seja, até que
ponto a psicologia do senso comum pode contribuir satisfatoriamente, ou se há a necessidade de
lançar mão de conceitos científicos dessa área.
A resolução dessa questão passa pela problemática da falta de sistematização de conceitos
e de critérios de verificação característica da psicologia do senso comum. Assim, uma perspectiva
de análise eficaz, que esteja à altura da obra estudada, não pode prescindir da sistematização
científica. Embora essa seja uma tendência que ganha maior força após o romantismo, sua origem
remonta à idéias de Platão, com sua explicação da inspiração, e de Aristóteles e sua teoria da
catarse.
Leite aborda, ainda, a questão da freqüente oposição que se faz entre “adequação
psicológica” e “realidade social”, sobre a qual afirma que Dostoiévski, entre outros grandes
autores, “foram homens de seu tempo e de seu grupo; todavia nesse tempo e nesse grupo
descobriram e revelaram dramas permanentes de nosso espírito e de nossa carne” (2002:31). Essa
última afirmativa constitui o cerne da justificativa da necessidade de se fazer uma análise na
perspectiva psicológica, além da sociológica.
- 29 -
Essas reflexões remetem à proposição de Roberto Scharwz10 de que os romances são mais
do que documentos históricos, a qual é explicitada e sintetizada pelas seguintes palavras de Leite:
[...] se a arte se reduzisse aos seus aspectos sociais, teria apenas o sentido de luta,
no momento de seu aparecimento, ou de documentário, depois da superação das
contradições em que nasceu. Se continua viva como obra de arte, isso se deve,
entre outras coisas, ao fato de exprimir, além das condições sociais em que
apareceu, uma condição humana, válida em situações muito diversas. (2002:32)
Semelhante linha de raciocínio apresenta Liev Semionovitch Vigotski (1896-1936) em
sua obra Psicologia da arte (2001), na qual o autor realiza um estudo aprofundado sobre o âmbito
psicológico da arte ao defender, apoiando-se nas palavras de Volket, que “a psicologia deve ser
tomada como fundamento da estética” (apud Vigotski, 2001:08), a qual é considerada pelo autor
como a psicologia do prazer estético e da criação artística.
Ficam delimitados os âmbitos da sociologia e da psicologia no estudo do fenômeno
artístico, à medida que
A natureza do homem faz com que ele possa ter gostos e conceitos estéticos. As
condições que o cercam determinam a transformação dessa possibilidade em
realidade, por elas se explica que determinado homem social (isto é, dada
sociedade, dado povo, dada classe) tenha justamente esses e não outros gostos e
conceitos estéticos...” (Pliekhánov apud Vigotski, 2001:10)
Assim, inclusive o conceito de ideologia é atravessado pela psicologia, uma vez que,
ainda segundo o autor citado, todas as ideologias têm sua raiz na psicologia de uma dada época.
10
Retirado da conferência Machado de Assis nacional e internacional feita pelo crítico no Encontro Internacional
Estética e Política realizado em abril de 2005. Ao abordar a recepção da obra de Machado de Assis no Brasil e em
outros países, faz uma discussão interessante a respeito dos aspectos da obra desse autor que remetem às
especificidades brasileiras, e, por outro lado, às características da cultura clássica ocidental. Para o crítico, bem como
para Dante Moreira Leite, a genialidade de um autor reside na capacidade que este tem de abordar o segundo na
perspectiva do primeiro, isto é, de encontrar nas determinações sociais sua força, aproximando-se da necessidade
social para fazer sentido num âmbito universal. Esse mesmo traço é distintivo também de Dostoiévski, que, segundo
Carpeaux (1987: 1669), “é o mais russo dos russos; por isso, ou apesar disso, não importa, é ele o mais universal dos
russos”.
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Dessa forma, o psiquismo funciona como mecanismo mediador através do qual são criadas
determinadas ideologias, tornando essencial, para o enfoque materialista histórico, que seja
incorporado o estudo da ação psicofísica sobre a arte.
É particularmente importante que se restrinja, no estudo da psicologia da arte, o âmbito do
fenômeno artístico, enquanto uma forma de ideologia peculiar ligada a um campo singular do
psiquismo humano. Destarte, o estudo sociológico – que tem por objeto de estudo a ideologia em
si – não supre completamente as necessidades inerentes a esse estudo. Assim, a perspectiva da
psicologia social mostra-se preciosa, visto que tem por meta o estudo do “próprio psiquismo
social e não a ideologia” (Vigotski, 2001:13), ou seja, o processo de construção dela pela
atividade desse psiquismo.
Nessa abordagem parte-se do pressuposto que “no movimento mais íntimo e pessoal do
pensamento, do sentimento, etc., o psiquismo de um indivíduo particular seja efetivamente social
e socialmente condicionado” (Vigotski, 2001: 14), o qual pode ser exemplificado pela figura do
fabulador e do grande poeta, já que neles, “sempre podemos encontrar a presença de ambos os
momentos – da autoria individual e da tradição literária” (Vigotski, 2001:16).
São três os enfoques teóricos que permeiam o estudo da psicologia da arte, quais sejam: a
percepção, o sentimento e a imaginação. O sentimento pode ser consumido de três formas,
segundo Orchanki (apud Vigotski, 2001:252): como representação motora; como descarga
interna que constitui a base da associação das representações; e a transformação de parte dessa
energia viva para o estado latente pela representação. Spencer trata da lei do menor esforço,
referindo-se à tendência universal do trabalho intelectual. Contudo, essa lei, segundo Vigostki,
mostra-se inaplicável à forma artística, pois
- 31 -
No que se refere à arte, aqui domina exatamente a lei inversa do dispêndio e gasto
de descarga de energia nervosa, e nós sabemos que quanto maiores são esse
dispêndio e essa descarga tanto maior é a comoção causada pela arte. Se
lembrarmos o fato elementar de que todo o sentimento é um dispêndio de energia
espiritual e a arte está forçosamente ligada à excitação do complexo jogo de
sentimentos, veremos imediatamente que a arte viola a lei do menor esforço e em
seu efeito mais imediato e na construção da forma artística subordina-se
exatamente uma lei oposta. A nossa reação estética se nos revela antes de tudo não
como uma reação que economiza mas como uma reação que destrói a nossa
energia nervosa, lembrando mais uma explosão do que uma economia de
centavos. (Vigotski, 200; 257, grifo nosso).
É importante nesse ponto fazer uma distinção entre os dois tipos de emoção, conforme a
adotada por Müller-Freinfels (apud Vigotski, 2001: 262): a co-emoção, suscitada no espectador
pelos sentimentos do personagem e a emoção, que se refere ao sentimento do próprio espectador
e que são as mais comumente vividas no teatro.
A distinção entre a emoção estética e outras, provocadas por estímulos não-estéticos,
constitui um problema crucial para a psicologia da arte. Tomando a distinção proposta
anteriormente por Orchanki, uma primeira diferenciação pode ser feita na constatação de que as
emoções promovidas pela arte não se manifestam em ações externas, assim, “toda obra literária
visa suscitar certas emoções, que, entretanto não podem expressar-se diretamente pela ação da
emoção” (Hennequin apud Vigotski, 2001: 267).
Além disso, esses sentimentos têm por característica a conservação de uma força
excepcional constituindo-se como “emoções inteligentes [que] em vez de se manifestarem de
punhos cerrados e tremendo, resolvem-se principalmente em imagens da fantasia” (Vigotski,
2001: 267). No caso da tragédia, que, conforme visto anteriormente em Aristóteles e sua Poética
(vide Capítulo I), deve suscitar sentimentos opostos – terror e piedade – e que, leva o espectador
a operar pelo principio da antítese, movendo simultaneamente para lados opostos, observa-se
claramente a retenção das emoções na manifestação externa (Vigotski, 2001: 269), graças a qual
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o valor do herói é elevado, assim como o sentimento de auto-estima do próprio espectador, que,
pelo sofrimento, vivencia a humanidade de modo mais intenso (Vigotski, 2001: 263).
Essa “contradição emocional, [que] suscita séries de sentimentos opostos entre si e
provoca seu curto-circuito e destruição” (Vigotski, 2001: 269) é o efeito da obra de arte, isto é, a
catarse. A oposição de sentimentos, e o conseqüente efeito catártico, se dá pelo indissociável par
forma e conteúdo, isto é, a divergência interior entre forma e conteúdo, na qual esse será
destruído por aquela. Por conseguinte,
[...] O verdadeiro segredo da arte do mestre consiste em destruir o conteúdo pela
forma; e quanto mais magnificente, ambicioso e sedutor é o conteúdo em si,
quanto mais seu efeito o coloca em primeiro plano, ou quanto mais o espectador
tende a deixar-se levar pelo conteúdo, tanto maior é o triunfo da arte, que desloca
o conteúdo e estabelece seu domínio sobre ele. (Schiller apud Vigotski, 2001:
272)
A reação estética, portanto, requer essa divergência interna na obra a qual provocará
emoções que serão vivenciadas com força e realidade, sem, contudo, manifestar-se em seu
aspecto motor externo, isto é, fazendo com que se unifique sentimento e fantasia (Vigotski, 2001:
272).
Para exemplificar o modo pelo qual ocorre a catarse, Vigotski (2001: 274) explora o caso
da poesia, com ênfase no efeito do ritmo, o qual é descrito pela divergência entre a medida e as
palavras, ou seja, entre as propriedades fonéticas naturais do material verbal e o metro como lei
ideal. A interação entre esses dois elementos constitui o princípio construtivo, assim, a
construção da arte poética é dinâmica, e tal pressuposto refuta a idéia de que a forma determina o
conteúdo ao eleger o ritmo como fator construtivo da poesia.
A construção da obra depende da capacidade do artista em superar as propriedades
naturais do material, fazendo com que surja o inesperado. Com base nessa condição, Vigotski
- 33 -
(2001: 287) lembra que Puchkin diferencia dois tipos de obra de arte: o aerostato e o aeroplano, o
primeiro mais leve que o ar e o segundo mais pesado. A verdadeira obra assemelha-se ao
aeroplano, pois
ela escolhe como material sempre a matéria mais pesada que o ar, ou seja, algo
que desde o início, em função de suas próprias qualidades, é como se contrariasse
o vôo e não lhe permitisse desenvolver-se. Essa propriedade, esse peso do
material está sempre contrariando o vôo, sendo sempre arrastada para baixo, e só a
partir da superação dessa oposição é que surge o verdadeiro vôo [...] quando
vemos com nossos próprios olhos que a superação do material é mais pesada que
o ar, então experimentamos a verdadeira alegria do vôo, aquela ascensão que
propicia a catarse da arte. (Vigotski, 2001: 287)
Assim o traço distintivo da arte é o campo do imotivado, o fator surpreendente, presente
nas personagens de Shakespeare, as quais tomam atitudes que não lhe são próprias, ou nas
metáforas11 de Tolstói que, por meio das quais provoca um estranhamento, ou mesmo no caso do
detalhe supérfluo de Gógol.
O herói, visto por esse princípio construtivo, é sempre dinâmico, pois seu caráter sofre
modificações, as quais são o próprio motor da ação desenvolvida no romance. As atitudes desse
herói ocorrem em dois planos, um baixo e um elevado, e tem sempre por base um luta, seja na
tragédia, na comédia ou na farsa. Na primeira o herói luta contra leis absolutas recorrendo ao
máximo da força, na segunda contra leis sociais e na terceira contra leis fisiológicas (Vigotski,
2001: 292). A essa conclusão remetem também os personagens do filme Melinda e Melinda de
Woody Allen quando se referem a lágrimas de sofrimento e de alegria, pois, apesar dos contextos
serem diversos (tragédia e comédia), as lágrimas se fazem presentes em ambas.
11
Para exemplificar essa característica vale lembrar que a professora Aurora Fornoni Bernardini, ao ministrar o curso
Literatura Russa no Centro Universitário Maria Antonia em São Paulo, denomina um de seus módulos de “Tolstói e
o estranhamento da metáfora”.
- 34 -
Embora no filme as lágrimas refiram-se à situação dos personagens, o mesmo pode ser
dito sobre o espectador, no que se refere ao efeito catártico, pois nessa reação entrelaçam-se os
motivos irreais, o imotivado, o surpreendente, que é interpretado pelo espectador em termos
psicológicos, produzindo a contradição resolvida pela catarse e configurando o dispêndio de
energia, a comoção provocados pela arte, conforme dito anteriormente.
A partir, principalmente, das idéias de Vigotski e Espinosa (1632-1677), Bader Burihan
Sawaia tem desenvolvido a questão da afetividade, tomando-a como categoria analíticovalorativa de crítica social e epistemológica que objetiva a superação das dualidades – mente X
corpo, por exemplo – as quais têm tão fortemente marcado a história das Ciências Humanas
(Sawaia, 2000: 14).
O prisma sob o qual essa autora concebe a afetividade aproxima-se das idéias de Vigotski
e de Espinosa, pois, diferentemente do pensamento cartesiano, ela não é entendida como sendo
oposta à razão, provocadora de erros e desvios, devendo por isso ser controlada e anulada, mas
como inerente à condição humana. Dessa forma, “a recuperação do afeto só é ato de superação e
de crítica epistemológica se for na contramão da ênfase em seu caráter de negatividade, de
anomia inquietante que perturba a razão e, portanto de variável a ser adestrada” (Sawaia, 2001).
Além disso, a importância do estudo dessa categoria deve-se à peculiaridade de reunir
valores estéticos, éticos e ciência, e ter como lócus a intersecção entre o singular e o coletivo, ou
seja, trata-se de “um fenômeno privado, mas cuja gênese e conseqüência são sociais” (Sawaia,
2001), constituindo “um ponto onde se cruzam todos os outros, um ponto de transmutação do
social e do psicológico, que permite, nas análises das questões sociais, pensar o homem ‘a priori’,
sem negar sua condição sóciohistórica ou enaltecer o voluntarismo e o livre-arbitrio” (Sawaia,
2000: 6).
- 35 -
Dessa concepção decorre a qualificação da afetividade de ético-política, tornando
explicita a dimensão social dessa categoria, como atitude (inter)subjetiva, e desvelando o caráter
humano da ética. Alguns dos pressupostos mais importantes de Espinosa, dos quais Sawaia lança
mão, são A) a preocupação com o homem (mais do que com a origem da sociedade); B) a
importância do desejo de ser feliz; C) os afetos como raiz da ética, a qual passa a ser concebida,
então, como ontológica, ou seja, nem contingente, nem transcendente (2001).
Sob esse ponto de vista,
Ética só pode ser experimentada se for sentida como felicidade e não como
conformismo a imposição de fora e a alegria é ética, porque aumenta o único
fundamento da virtude que é a capacidade de ação em prol da expansão do próprio
ser, o que, em outras palavras, é a liberdade. (Sawaia, 2001)
É essencial ressaltar ainda que na concepção espinosiana a necessidade não se encontra
oposta à liberdade e tampouco à historicidade, isto é, para ser livre o homem abrirá mão de suas
necessidades mais básicas ou de seus afetos, “para ser ético não é necessário superar os instintos
e as necessidades, dobrando-se a imperativos mais fortes, ao contrário, é ouvindo-os e sentindoos adequadamente, pois toda necessidade responde ao desejo de não se deixar escravizar”
(Sawaia, 2000: 17).
Apesar da distância secular que separa Schiller de Espinosa, o filósofo alemão trata dessa
questão de modo similar ao abordar a necessidade de se criar um Estado que respeite não só o
caráter objetivo e genérico, como também o subjetivo e especifico de cada indivíduo para que
seja possível a transição do Estado da necessidade para o Estado da liberdade. A aproximação
dessas idéias leva à conclusão de que o que Schiller defende é a criação de um Estado ético (vide
Capítulo I do presente trabalho).
- 36 -
A liberdade adquire nessa perspectiva um significado particular, pois não se trata da
“desobediência a uma autoridade transcendente, mas a obediência à necessidade imanente da
natureza divina” (Abrão, 1999: 218), a qual se pensa o próprio indivíduo como produtor de suas
próprias ações e não estando submetido a uma entidade transcendente.
Tendo em vista essa concepção, Espinosa opõe-se radicalmente ao estado de servidão,
sugerindo que a maneira de escapar desse estado completamente é pela via do conhecimento,
“por meio da razão livre, da alegria de pensar sem submissão a qualquer poder constituído e pela
decisão de afastar tudo quanto nos causa medo e tristeza. Dessa forma Espinosa relaciona
autonomia e alegria de viver, intelecto e afeto, físico e psíquico” (Sawaia, 2000: 18). Percebe-se
que o filósofo não se refere ao conhecimento puramente intelectual, mas sim a um conhecimento
cujas bases estão assentadas na afetividade.
Nesse aspecto a teoria desenvolvida por Vigostski faz-se relevante, uma vez que nela a
emoção é considerada pelo seu papel fundamental na constituição das funções psicológicas
superiores, dos motivos das ações humanas, dos critérios de avaliação do bom e do ruim, da
criatividade e da liberdade (Sawaia, 2001).
O significado, por exemplo, enquanto mediador da conversão do social em subjetivo, não
é monolítico, pois, uma vez que o processo de subjetivação ocorre, ele adquire um caráter pessoal
e instável, além do significado estável que possui objetivamente. Assim, o pensamento possui em
sua base uma tendência afetiva e volitiva que pode, pela interação com o social, movê-lo em
direção a liberdade ou à submissão (Sawaia, 2001).
Vigotski aponta como meta a emancipação, ou seja, que o homem “não só pare de
arrastar-se diante dos deuses, czares e do capital, mas também [seja capaz] de elevar os instintos
à altura da consciência para torná-los transparentes” (Sawaia, 2001).
- 37 -
Com base nessas considerações Sawaia propõe como objeto de estudo para a Psicologia o
“sofrimento ou mal-estar, psicossocial” (1995: 50), o qual consiste na diminuição da potência de
agir em prol do bem comum, que gera ações contra as necessidades coletivas e,
conseqüentemente, individuais. A autora, citando Agnes Heller, faz uma distinção entre dor e
sofrimento, pois esse último refere-se a dor mediada pelas injustiças sociais, e, com isso, elege a
dialética exclusão-inclusão como um dos pilares para que se compreenda esse sofrimento.
Visto isso, Sawaia define o sofrimento como sendo ético-político e esclarece que este
refere-se
Às múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes
formas [...] retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em
cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de
ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da
sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da
desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da
maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de cada época,
de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto. (Sawaia,
2004: 104-5)
O contraponto do sofrimento ético-político é a felicidade pública, na qual uma vitória é
considerada no âmbito da emancipação de si e do outro, se apresentado como uma conquista da
cidadania. Esse conceito extrapola o individualismo e abre-se à humanidade. Dessa maneira, é
possível estabelecer a diferenciação entre compaixão e piedade, segundo Hannah Arendt (apud
Sawaia, 2004: 105), pois se por um lado a última constitui um sentimento que encontra em si
próprio sua finalidade, a primeira refere-se a uma espécie de sentimento que leva o indivíduo à
ação social com o propósito de emancipação e não servidão.
A expressão dialética exclusão-inclusão, anteriormente citada, ressalta o fato de essas
duas instâncias (exclusão e inclusão) não serem categorias em si mesmas, mas formadoras de um
- 38 -
par indissociável que existe dialeticamente, ou seja, como conceito-processo, o qual “não indica
essencialidade, mas movimento, e só adquire sentido quando recheado de vida pulsante nos
diferentes contextos históricos” (Sawaia, 2004: 109).
Retomando novamente Espinosa, Sawaia (1995: 111) elucida o conceito de potência de
ação, como sendo o direito de se afirmar e se expandir, e que é pressuposto para o exercício da
liberdade. O oposto dela é a potencia de padecer, a qual gera servidão e na qual as afecções do
corpo são sentidas como se fossem externas. Para que haja a potencialização, é crucial que se
desenvolvam valores éticos universais baseados no principio da humanidade, o que inclui
necessariamente a esfera das emoções e na necessidade de se estar com outro ser humano.
Dessa forma, a relevância da introdução do estudo da afetividade na questão da exclusão
refere-se à necessidade de se “colocar a felicidade como critério de definição de cidadania e do
cuidado que a sociedade e o Estado têm para com o seu cidadão” (Sawaia, 2004: 116).
No que diz respeito, mais especificamente, à problemática desse trabalho, considerar as
emoções significa incorporar uma dimensão basilar da condição humana, essencial na
compreensão do fenômeno artístico, conforme apontam as idéias de Leite (2002), Vigotski
(2001) e Schiller (1991). É importante ressaltar, ainda, que os estudos de Sawaia (1995; 2000;
2001; 2004) trazem à luz o prisma através do qual a afetividade será compreendida, isto é, a sua
valorização como fenômeno ético-político que atua dialeticamente como algo que funda as
relações sociais e, concomitantemente, é fundado por elas.
Deve-se acrescer à relevância citada anteriormente o caráter da afetividade que é
potencialmente propulsor de transformações (sociais e pessoais) e que é essencial na constituição
de uma ética que não resulte em submissão e servidão, mas que, ao contrário, possibilite a
emancipação do homem, e, dessa forma, permita a conciliação entre o ser estético – condição
primeira da humanidade, segundo Brodsky (1987) – e o ser ético.
- 39 -
Capitulo III – Considerações acerca da literatura de Dostoiévski e do Niilismo de seu tempo
“Entendida corretamente, a forma não formaliza
um conteúdo já encontrado e acabado, mas permite,
pela primeira vez, percebê-lo e encontrá-lo.”
Bakhtin
“Com um realismo pleno, descobrir o homem no homem...
Chamam-me de psicólogo: não é verdade,
sou apenas um realista no mais alto sentido, ou seja,
retrato todas as profundezas da alma humana.”
Dostoiévski12
“A psicologia de Crime e castigo é a ruína da impecável
ciência do encadeamento dos pensamentos e das ações que
sustenta a tragédia clássica”
Jacques Rancière
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski nasceu em 1821 em Moscou, e tornou-se um dos
maiores ícones da literatura mundial. Sua produção pode ser incluída na escola realista russa, da
qual também faz parte Leon Tolstói, Gógol, entre outros. Contudo, a denominação “realista”
mostra-se incapaz de explicitar as peculiaridades desses escritores. Diferenciando Gógol de
Dostoiévski, Bernardini diz que
[...] em Gógol o realismo de fundo acaba desembocando no fantástico, enquanto
que em Dostoiévski ele se insere por caminhos tortuosos que obedecem às linhas
de um grande desenho que estrutura suas obras: o desvendamento de tensões ou
dramas (individuais, sociais) e a generalização concludente, ou seja, a crença
numa noção de justiça universal ou na utopia da justificação definitiva do homem.
(Bernardini, 2004)
Dadas essas peculiaridades poder-se-ia dizer, então, que Dostoiévski expressa um
realismo psicológico e social. Entretanto, ainda assim, estar-se-ia restringindo a especificidade de
12
Biografia, cartas e notas no caderno de notas de Dostoiévski (citado por Bakhtin 1997: 60).
- 40 -
Dostoiévski na literatura russa e mundial, uma vez que Ivan Turgueniev também se constituiu em
um grande nome do realismo psicológico.
Dessa forma, para uma compreensão de Dostoiévski per se se faz necessário que se
adentre seu universo ideológico e literário. Para tanto, lançar-se-á mão da contribuição de autores
que se dedicaram a essa tarefa, tais como Mikhail Bakhtin e Joseph Frank13. Inicialmente será
feita uma incursão no primeiro aspecto, ou seja, na questão ideológica.
Dostoiévski era fundador de um grupo14 que se aproximava da corrente eslavista, czarista
e cristã, porém, isso não deve levar a visões reducionistas a respeito de sua obra, e, de fato, essas
características são, muitas vezes, ignoradas por aqueles que insistem em fazer uma interpretação
social humanitária, de cunho revolucionário de suas obras. Todavia, como nos alerta Carpeaux,
“o credo e os valores literários, em Dostoiévski, são absolutamente inseparáveis. Não
apreciaremos bem estes sem compreender aquele” (1987: 1666), pois são justamente os
confrontos ideológicos que marcam seus romances. Os personagens são colocados em condições
extremas, tendo de enfrentar grandiosas problemáticas (Direito humano X Graça divina;
Liberdade X Anarquia; Estado X Igreja; Pecado X Redenção) e vêem-se impelidos a tomar
decisões também extremas (Carpeaux, 1987: 1669).
Tais problemáticas têm como palco a Rússia do século XIX, cenário no qual convivem e
confrontam-se “personagens infernais e celestes” divididos por “ódios fratricidas” (Carpeaux,
1987: 1667), povoado por humilhados e ofendidos, “pobres rapazinhos e mocinhas indefesas”
(Dostoiévski apud Frank, 2003: 89) que se tornam radicais niilistas por sua pureza de coração, e
13
Deve-se ressaltar que o presente texto não tem finalidades crítico-literárias. O que se pretende é, a partir das
contribuições dos autores citados, realizar uma breve contextualização do universo literário e ideológico de
Dostoiévski, que permita e enriqueça a posterior análise.
14
Trata-se do grupo Pótchviennitchestvo (de pótchva, que significa solo), cuja ressalva em relação ao movimento
eslavista propriamente dito está no fato desse idealizar a Rússia antes de Pedro o Grande (Gomide, 2005)– czar que
promoveu uma modernização “forçada” do país tendo em vista os modelos ocidentais (Berman, 2003: 201).
- 41 -
que são, segundo Dostoiévski, os prediletos de Deus. Dessa concepção decorrem seu eslavismo e
religiosidade.
O leitmotiv de Dostoiévski é a confluência e embate de idéias que caracteriza a Rússia dos
“filhos contra os pais”15, e não a apologia de uma idéia pessoal. Ademais, “o que lhe interessa é o
homem em si, com suas angústias e suas esperanças. Sobretudo o homem que se encontra
naquele estado intermediário entre a loucura e a lucidez, sofrendo por não saber distinguí-las”
(Novo Conhecer, v. VII: 1637). É crucial em sua obra a consciência interior, “que permite a cada
homem vislumbrar no íntimo o certo e o errado, ou sua ‘lei moral interior’” (Bernardini, 2004).
Para viabilizar esse intuito de explicitar confrontos ideológicos, Dostoiévski construiu
uma forma original de romance, denominada por Bakhtin (1997) de romance polifônico.
Destarte, os universos ideológico e literário de Dostoiévski-artista não podem ser tratados
separadamente, já que como se nota, o interesse pela temática da consciência interior, do
indivíduo em si, o leva a construir uma forma que privilegie tais preocupações16.
O romance polifônico é marcado pela presença de um herói cuja voz é plenivalente e cuja
consciência é eqüipolente, ou seja, a voz e a consciência do personagem são autônomas,
marcando “o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a
voz do próprio autor no romance comum. A voz do herói sobre si mesmo é tão plena como a
palavra comum do autor” (Bakhtin, 1997: 5), assim, tem-se que os personagens dostoiévskianos
são dotados de uma independência interior (Bakhtin, 1997: 11).
A unidade da construção do romance está acima de seu estilo pessoal, e caracteriza-se por
ser poliestilísticas e polienfáticas, ou seja, entrecruzam-se estilos e ênfases, muitas vezes
15
Referência ao confronto entre os representantes da década de 40 e aqueles da nova geração de 1860 na Rússia,
descrito por Lampert em Sons against fathers (1965).
16
Concluí-se daí a maestria de Dostoiévski- artista, pois conforme Duarte Jr., na proposição anteriormente citada, “a
forma é o próprio conteúdo”. Bakhtin corrobora com essa visão ao afirmar que “esse dom especial de ouvir e
entender todas as vozes de uma vez e simultaneamente [...] que permitiu Dostoiévski criar o romance polifônico”
(1997: 31)
- 42 -
contraditórias entre si (Bakhtin, 1997: 14). A presença de uma multiplicidade de posições
ideológicas e uma extrema heterogeneidade faz com que o diálogo seja peça chave na narrativa
dostoievskiana. A forma do diálogo assume, na perspectiva de Bakhtin, o posto de “expressão
literária da liberdade filosófica” (Zelinski apud Frank, 1992: 21)17,
o romance polifônico é inteiramente dialógico. Há relações dialógicas entre todos
os elementos da estrutura romanesca. [...] ele [Dostoiévski] construiu o todo
romanesco como um ‘grande diálogo’. No interior desse ‘grande diálogo’ ecoam,
iluminando-o e condensando-o, os diálogos composicionalmente expressos das
personagens; por último, o diálogo se adentra no interior, em cada palavra do
romance, tornando-o bivocal, penetrando em cada gesto, em cada movimento
mímico da face do herói, tornando-o intermitente e convulso. (Bakhtin, 1997: 42,
grifo do autor)
Deve se atentar para o fato de que esse diálogo não pode ser expresso nos termos da
dialética (tese-antítese-síntese), uma vez que a síntese indicaria um formato monológico (não
polifônico), a formação de um espírito uno. Nesse sentido seu romance assemelha-se á tragédia
(Bakhtin, 1997: 26).
A multiplicidade ideológica e o caráter contraditório presentes em sua obra advêm da
própria realidade social russa e são artisticamente representadas por Dostoiévski na sua
simultaneidade, pois, para ele, “interpretar o mundo implica em pensar todos os seus conteúdos
como simultâneos e atinar-lhes as inter-relações em um corte temporal” (Bakhtin, 1997: 28,
grifo do autor). Para tanto, Dostoiévski cria duplos de seus personagens, convertendo a
contradição de um indivíduo em dois, e, assim, dramatiza essa contradição, mostrando que “cada
idéia dos heróis [...] vive em tensão na fronteira com a idéia de outros, com a consciência de
outros. É a seu modo episódica e inseparável do homem” (Bakhtin, 1997: 32-3). O todo do
romance dostoievskiano pode, dessa forma, ser expresso nos termos citados abaixo:
17
F. F. Zelínski é um classicista russo-polonês que exerceu grande influência sobre Bakhtin, juntamente com Martin
Buber, especialmente no que se refere à questão do diálogo (Frank, 1992: 19-35).
- 43 -
Seu mundo é o mundo de uma multiplicidade de psicologias que existem
objetivamente e estão em interação, fato que, na interpretação dos processos
psicológicos, exclui o subjetivismo ou o solipsismo, tão próprio da decadência
burguesa (Kirpótin apud Bakhtin, 1997: 38)
A personagem em Dostoiévski é desvelada, bem como o mundo que a circunda, sob o
prisma de sua própria consciência (ou de seu processo de autoconsciência), fato que constitui a
estrutura polifônica, já que, feito dessa maneira, a “voz” do autor deixa de ter papel central na
obra, e, por conseguinte, “o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma,
[é] a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre o seu mundo” (Bakhtin, 1997: 47).
Assim,
tem-se
que
“Dostoiévski
procurava
uma
personagem
que
fosse
predominantemente um ser tomando consciência, uma personagem que tivesse toda vida
concentrada na pura função de tomar consciência de si mesma e do mundo” (Bakhtin, 1997: 4950), o qual mostra-se, por isso, fortemente marcado por uma inconclusibilidade e uma precária
infinitude de sua autoconsciência, sobre as quais o autor não exerce uma função
“monologizadora”, ou seja, ele não conclui ou tipifica a personagem, mas “constrói a palavra do
herói sobre si mesmo e sobre o mundo. A personagem dostoievskiana não é uma imagem
objetiva, mas um discurso pleno, uma voz pura; não o vemos nem o ouvimos.” (Bakhtin, 1997:
53, grifo do autor).
Diante dessas premissas pode-se concluir a recusa de Dostoiévski em colocar o ser
humano no lugar de objeto do conhecimento18 (nesse caso, do conhecimento do autor), pois, “no
homem sempre há algo, algo que só ele mesmo pode descobrir no ato livre da autoconsciência e
18
Daí sua atitude negativa em relação à psicologia, conforme aponta a epígrafe deste capítulo, pois Dostoiévski “via
nela uma coisificação da alma do homem, que o humilha, despreza-lhe a liberdade, a inconclusibilidade e aquela
especial falta de definição e conclusão que é o objeto principal de representação no próprio romancista; sempre
retrata o homem no limiar da última decisão, no momento da crise e reviravolta incompleta – e não-predeterminada
de sua alma” (Bahktin, 1997: 61, grifo do autor).
- 44 -
do discurso, algo que não está sujeito a uma definição à revelia, exteriorizante” (Bakhtin, 1997:
58, grifo do autor), e, o enfoque dialógico permite que esse desvelar da própria consciência se dê
por meio do diálogo consigo mesmo e com o outro.
Ante a esse enfoque o papel do autor não pode, de forma alguma, ser ocultado. Ao
contrário, o autor deve comunicar-se com as consciências alheias de modo dialógico, isto é, sem
reificá-las. Assim, “a atividade de Dostoiévski-autor se manifesta no fato de levar cada um dos
pontos de vista em debate a atingir a força e profundidade máximas, [...] revelar e desenvolver
todas as possibilidades semânticas jacentes naquele ponto de vista” (Bakhtin, 1997: 69). Tal
compreensão se distingue daquela feita por Frank a esse respeito, quanto este comenta as idéias
de Bakhtin, uma vez que para o autor americano a influência das crenças pessoais de Dostoiévski
é maior do que se costuma reconhecer. Se por um lado Frank vai ao encontro do alerta de
Carpeaux (citado neste capítulo), por outro, a afirmação de Bakhtin se mostra fidedigna, à medida
que, os romances dostoievskianos são, de fato, um palco de grandiosos embates ideológicos, ou
de um diálogo russo e universal como queria Bakhtin (1997: 90), sem que o autor se incline a um
formato monológico.
Assim, o próprio herói converte-se em ideólogo (não o autor, como o seria no modelo
monológico, no qual uma idéia só pode ser negada ou afirmada), e o autor representa sua idéia
conservando-lhe sua plenivalência, ou seja, sem descolar a idéia do homem, pois “a verdade
sobre o mundo [...] é inseparável da verdade do indivíduo” (Bakhtin, 1997: 77). Além disso, a
idéia é “interindividual e intersubjetiva”, é um “acontecimento vivo”, na medida em que dialoga
com o outro. Dessa forma, ao criar o mundo da polifonia, que é o mundo das consciências que se
elucidam mutuamente,
- 45 -
Dostoiévski superou o solipsismo. Não reservou para si a consciência idealista,
mas para todos os seus heróis, e não a reservou para uns, mas para todos. Ao invés
da atitude do “eu” que é consciente e julga em relação ao mundo, ele colocou no
centro da sua arte o problema das inter-relações entre esses “eu” que são
conscientes e julgam. (Bakhtin, 1997: 100)
Dostoiévski foi capaz de, como poucos, “auscultar sua época como um grande diálogo, de
captar nela não só vozes isoladas, mas, antes de tudo, as relações dialógicas entre as vozes, a
interação dialógica entre elas.” (Bakhtin, 1997: 89, grifo do autor), de maneira que uma
investigação sobre a “realidade auscultada” em determinada obra, auxilia na compreensão da
mesma. Segue-se, então, um breve panorama de alguns personagens e ideologias relevantes no
contexto sóciopolítico da Rússia do século XIX, especialmente daquelas mais crucias na
compreensão do “diálogo” presente em Crime e castigo.
Tal contexto era fortemente marcado pelo autoritarismo e a opressão do regime czarista, o
qual procurava realizar uma modernização do país (modernismo do subdesenvolvimento), que
tivesse grandiosa amplitude, e fizesse com que Petersburgo se tornasse uma “janela para a
Europa”. Contudo, não fazia parte das reformas a transformação das bases daquela sociedade
(com a escravidão sendo mantida até 1860, por exemplo). Com essa modernização imposta e a
prisão de muitos que apoiavam a monarquia russa, e, à medida que a população se dava conta que
as modificações representavam uma promessa enganosa, algumas manifestações populares
começaram a serem sentidas já em 1825, com o movimento dos dezembristas (Berman, 1986:
201-6).
Todavia, a Rússia do “grande diálogo”, artisticamente representado nos romances de
Dostoiévski, tem seu clímax na década de 60 do século XIX, e é este contexto que se reflete em
- 46 -
Crime e castigo (1866). Nessa década surgem os raznotchintsy19, os quais adotavam uma postura
positivista e acrítica em relação aos conhecimentos racionais e científicos e que constituíram o
grupo dos radicais niilistas. Este grupo era formado por representantes históricos e literários,
sendo que, dentre os primeiros destacaram-se Nikolai Tchernichévski (1828-1889), Nikolai
Dobroliúbov (1836-1861) e Dmítri Píssarev (1840-1868), quanto aos ícones literários tem-se
Bazárov, do romance Pais e filhos, e o próprio Raskólnikov de Crime e castigo.
O termo niilismo – do latim nihil (nada) – possui inúmeras acepções, e encontra suas
raízes históricas na Rússia do século XIX. Segundo o dicionário Houaiss trata-se, entre outras
definições, de uma “ideologia de um grupo revolucionário russo da segunda metade do século
XIX, militante em prol da destruição das instituições políticas e sociais, para abrir caminho a uma
nova sociedade, e favorável ao emprego de medidas extremas, inclusive terrorismo e
assassínios”.
Num sentido mais abrangente, tem-se que o niilismo se refere a um estado, “uma situação
de desnorteamento provocado pela falta de referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais
que representavam uma resposta aos porquês e, como tais, iluminavam a caminhada humana”
(Volpi, 1999: 8), sendo assim, trata-se de uma corrente cuja origem pode ser situada
historicamente, mas que extrapola os limites temporais e geográficos, chegando a refletir-se
como um mal-estar até os dias atuais.
A severidade do pensamento niilista está diretamente correlacionada à situação de
opressão vivida pelo povo russo naquele momento. O texto de Sergei Nechaev, Catechism of a
revolutionist (Catecismo revolucionário) de 1869 – para o qual se acredita que Mikhail Bakunin
19
Intelectuais de origem não nobre, que se orgulhavam de sua falta de requinte social, elegância e desprezavam as
instituições e crenças existentes, opondo-se à tradição da “velha russa” (alicerçada no campesinato e no
cristianismo). Tratava-se dos “novos homens” segundo Berman (1986) ou “the outsiders” segundo Lampert (1965:
81).
- 47 -
teve contribuição – exemplifica o teor do pensamento desses radicais niilistas ao determinar os
princípios segundo os quais um revolucionário deve se orientar. Assim descreve Nechaev um
revolucionário:
The revolutionist is a person doomed. He has no personal interests, no business
affairs, no emotions, no attachments, no property, and no name. Everything in
him is wholly absorbed in the single thought and the single passion for revolution
[…] He is merciless toward the state and toward the whole formal social structure
of educated society; and he can expect no mercy from them. Between him and
them there exists, declared or concealed, a relentless and irreconcilable war to the
death. He must accustom himself to torture. (Nechaev)20
A corrente de pensamento niilista está fundamentalmente relacionada a duas áreas: a
filosofia e à literatura, sendo o principal teórico do primeiro o alemão Friedrich Nietzsche e do
segundo Dostoiévski. O romance Pais e filhos de Turgueniev é, em geral, tomado como marco na
popularização do termo, pois seu enredo consiste no conflito entre a geração dos “pais”, que
defendia ideais humanistas tradicionais e outra, a dos “filhos”, os “novos homens”, que, por sua
vez defendiam um materialismo rebelde e desprovido de ilusões e atacavam os valores de
religião, metafísica e estética tradicional. Junto a esses se tem Bazárov, protagonista do romance
(Volpi, 1999: 11; 37).
Quanto aos representantes históricos do niilismo de 1960, Nikolai Tchernichévski é
considerado o mentor do movimento (Volpi, 1999:38). Propagou o conceito de “egoísmo
racional”, fundamentado pelas idéias de Jeremy Bentham e de J. S. Mill, os quais colocavam a
utilidade como critério supremo da moral (Frank, 2003: 108), e defendeu que
20
“O revolucionário é uma pessoa amaldiçoada. Ele não tem interesses pessoais, negócios, emoções, apego,
propriedade, ou nome. Tudo nele é totalmente absorvido unicamente pelo pensamento e paixão pela revolução [...]
Ele não tem misericórdia pelo Estado e por toda estrutura formal da sociedade educada, e ele não pode esperar
misericórdia dela. Entre eles existe, de forma declarada ou escamoteada, uma continua e irreconciliável guerra até a
morte.”
(Nechaev,
tradução
nossa).
Texto
retirado
do
site:
http://darkwing.uoregon.edu/~kimball/Nqv.catechism.thm.htm (16/08/2005).
- 48 -
A natureza humana era ‘egotística’ e os homens preferiam o que lhes fosse mais
vantajoso; a noção de auto-sacrifício era uma tolice perniciosa; mas com o uso da
razão, os homens aprenderiam que sua maior vantagem consistia em identificar
seus interesses pessoais com a felicidade máxima do maior número de pessoas.
(Frank, 1992: 141)
Dmítri Píssarev leva ainda mais ao extremo a orientação da negação total com sua famosa
frase: “batam à direita e à esquerda, nenhum dano há de vir disso e nenhum dano virá [...] o que
resistir ao choque merece ser conservado; o que voar em pedaços é lixo” (Píssarev apud Frank,
2003: 111). Seu pensamento aprofundou a primazia da realização pessoal e emancipação do
indivíduo, as quais somente encontram apropriada expressão nos termos do egoísmo fundado na
moral utilitária.
Era um entusiasta do cientificismo e contrário aos sistemas filosóficos, em particular
aqueles calcados no platonismo. Defendia um certo pragmatismo, “queria que o homem se
interessasse pelo mundo a sua volta pela observação e racionalidade, que se concentrasse
somente nos elementos práticos da vida, e resgatar o homem do culto doentio da melancolia
(Weltchmerz) platônica” (Lampert, 1965: 297, tradução nossa).
Alguns dos populares axiomas de apologia ao cientificismo de Píssarev estão, por
exemplo, nas idéias de que um sapo dissecado possa ser a salvação e renovação do povo russo ou
de que “a vida consiste em estímulo, resposta e racionalização” (Píssarev apud Lampert, 1965:
301, tradução nossa). A popularidade que a ciência adquiriu junto ao povo russo é um ponto
tocado por Dostoiévski em Crime e castigo na passagem em que Razumíkhin fala de certos textos
que descreve como sendo “uns livrinhos de ciências naturais – e como se esgotam. Só os títulos,
o que não valem! Tu mesmo sempre afirmaste que eu sou pateta; juro meu irmão, que há gente
mais pateta que eu!” (Dostoiévski, 2001: 126).
- 49 -
Quanto à questão da moral, Píssarev opunha-se fortemente à idéia de uma moral válida
universalmente. Seus pressupostos, por outro lado, estão resumidos por Lampert nas seguintes
idéias:
The ‘self’ or ego, unreal though it may have appeared to Pisarev as a metaphysical
entity, was the ultimate measure of moral as of any other experience [...] egotism
[...] denoted the ‘emancipation of the human person’ or ‘the absence of all moral
constraint’ (Lampert, 1965: 304)
[...]
he influenced his contemporaries above all by his serach for a new man, whose
moral and intellectual attitudes rather than reflected principles would lead to
spontaneous morality and who would therefore serve as a model. (Lampert, 1965:
317, grifo nosso)21
De modo geral, o que era defendido era que o ser humano não deve limitar-se por
qualquer regra exterior a si mesmo, ou seja, a todo tipo de moral e/ou dogmas, e deve sair do
obscurantismo, característico do povo russo, segundo o autor, por meio do esclarecimento
(enlightenment) que a ciência promove.
Quando do lançamento de Pais e filhos de Turguéniev, em 1862, os radicais se
envolveram numa discussão, denominada por Dostoiévski de “O cisma [Raskol] entre os
Niilistas”. A esse respeito Píssarev posiciona-se, em um artigo de 1862, sobre o protagonista do
romance, Bazárov, lançando as sementes do que será em Crime e castigo a teoria de Raskólnikov
sobre os homens extraordinários, superiores às “massas” (Frank, 2003: 111), e compõe um elogio
aos aspectos que caracterizaram Raskólnikov, isto é:
21
“O ‘self’ ou ego, ainda que tenha parecido irreal para Píssarev enquanto entidade metafísica, era a última medida
tanto da moral quanto de qualquer outra experiência [...] o egoísmo [...] denotava a ‘emancipação do ser humano’ ou
a ausência de todo tipo de limitação moral.” (Lampert, 1964: 304, tradução nossa)
“Ele influenciou seus contemporâneos, sobretudo por sua busca pelo novo homem, cujas atitudes morais e
intelectuais ao invés de refletirem princípios deveriam levar à moralidade espontânea e o qual, por isso, serve de
modelo.” (Lampert, 1965: 317, grifo e tradução e grifo nosso)
- 50 -
A crença de que ele pode passar por cima dos ditames da consciência; a convicção
de que não permitiria ser afetado por qualquer “regulador moral”; o desprezo que
sentia por aquela porção da humanidade que aceitava com placidez o destino do
qual a elite formada pelas “outras pessoas” está lutando para libertar-se; a pouca
disposição a sacrificar o presente em prol do futuro. (Frank, 2003: 117)
Assim, conforme Frank, “foram os possíveis efeitos morais dessa metamorfose da
ideologia radical que Dostoiévski pintou em Crime e castigo; e, se quisermos compreender as
idéias e o comportamento de Raskólnikov [...] é ao artigo de Píssarev que devemos recorrer antes
de qualquer coisa” (Frank, 2003:112).
Partindo das mesmas associações, Lampert aproxima definitivamente o próprio Píssarev
de Raskólnikov ao enunciar que:
Pisarev and Raskólnikov alike lived in the mania of human solitude, asserting
their ego and defying society; both made themselves by their isolation not more
but less human; both were haunted by the call ‘Cain, where is thy brother Abel?’;
and both reflected a society that had lost its bearings and threatened to
desintegrate.” (Lampert, 1965: 338)22
Semelhante ideário alicerçado na noção de individualismo só pode ter-se constituído de
fato na modernidade, pois este é o período no qual surge a noção de indivíduo, fruto do advento
do capitalismo e das correntes filosóficas em voga (Liberalismo, Iluminismo e Romantismo).
Tem-se nesse período que o indivíduo “vai assumindo uma nova condição: a de ser sujeito de seu
próprio futuro, ou seja, ele, individualmente, vai lutar, conquistar, dispor para mudar suas
condições atuais em vista de novas e melhores” (Carvalho; Bonatto, 2000: 78). O “novo homem”
russo constitui-se tal qual essa prerrogativa permitiu, e a ela somou-se um expressivo caráter
radical.
22
“Píssarev e Raskólnikov, similarmente, viviam na obsessão da solidão humana, reafirmando seus egos e
desafiando a sociedade; ambos tornaram-se, em função do isolamento, não mais, porém menos humanos; ambos
eram atormentados pelo chamado: ‘Cain, onde está vosso irmão Abel?’; e ambos refletiam uma sociedade que
perdera seu norte e estava prestes a desintegrar.” (Lampert, 1965: 338, tradução nossa)
- 51 -
Em sua carreira como jornalista, Dostoiévski freqüentemente polemizava com esses
radicais, sempre atentando para a irracionalidade presente no cerne dessas idéias, expondo a
contradição desse pensamento uma vez que esse é justamente o momento em que a racionalidade
é eleita como mote, especialmente quando esta é associada ao egoísmo.
Apesar de não se colocar ao lado dos niilistas em sua posição ideológica, Dostoiévski
defendia o direito que eles possuíam de expressarem-se livremente, o que vai ao encontro de seu
apreço pelo diálogo. E reconhecia neles as características motivacionais de um russo típico, ou
seja, seu impulso moral, seu entusiasmo pelo bem e pela pureza de coração e sua necessidade de
expressar-se de maneira socialmente construtiva (Frank, 2003: 91-2), representando esse ideal,
especialmente na personagem do socialista utópico Lebeziátnikov, de Crime e castigo.
A relevância dessa temática e seus ecos na obra de Dostoiévski podem ser expressos pelas
palavras de Volpi (1999), quando este diz que:
É na obra de Dostoiévski que o cenário do niilismo se abre de par em par, com
toda a amplidão e profundidade. Escritor universal que influenciaria não só a
Rússia, mas toda a literatura européia, Dostoiévski, nos perfis e nas situações
existenciais de seus romances [...] corporifica intuições e temas filosóficos que
antecipam experiências marcantes do pensamento do século XIX, com destaque
para o ateísmo e o niilismo. Em seus livros, o fenômeno da dissolução de valores,
vivido como uma crise que corrói a alma russa, descortina-se visivelmente em
todas as suas nefastas conseqüências, até no crime e na perversão. (Volpi, 1999:
41)
Em Crime e castigo, as vozes dessas gerações são ouvidas e dialogam entre si,
especialmente em torno do protagonista Raskólnikov, como indica Frank
Em Crime e castigo [Dostoiévski] adotaria os questionamentos esporádicos destes
representantes empobrecidos da juventude instruída, que lutavam
desesperadamente para manter a cabeça fora da água em meio aos esplendores
imperiais de Petersburgo, e erguê-los-ia ao nível de um confronto trágico entre o
- 52 -
desejo do homem de mudar o mundo para melhor e os velhos imperativos morais
da fé cristã. (Frank, 2003: 122)
Para atingir esse objetivo Raskólnikov, representando todos os jovens da tradição radical
niilista russa, personifica integralmente o projeto racionalista do século XIX. O assassinato da
velha usurária cometido por Raskólnikov, o assassinato de um falsário de dinheiro e de seu criado
cometido pelo estudante A. M. Danílov em 1866 (Frank, 2003: 81), o atentado ao czar Alexandre
II, ocorrido em 1866, perpetrado por Dmítri Karakózov, um “russo puro”23, também no ano de
1866 (Frank, 2003: 84), são exemplos reais e ficcionais de como um indivíduo, acometido de
uma “intoxicação ideológica” (Frank, 2003: 145), cumpre enredos verdadeiramente trágicos.
Desse modo, o que se tem em Crime e castigo é, como vem sido dito nesse capítulo, um
constante confronto de posições ideológicas, ou seja, de posições subjetivas frente à realidade.
Semelhante conflito, explicitado no romance de Dostoiévski, leva o leitor a testemunhar,
conforme aponta Rancière (2001, vide epígrafe), a ruína do encadeamento racional de idéias, ou,
nesse caso, do racionalismo do século XIX.
23
O termo “russo puro” foi utilizado por Dmítri Karakózov diante do próprio czar Alexandre II, ao ser questionado
por este sobre sua nacionalidade. Tal questionamento foi feito em função de uma total desconfiança de que alguém
que não fosse estrangeiro pudesse atentar contra a vida do imperador. A semelhança com a historia de Raskolnokov
não se limita ao caráter criminoso de seu ato, mas também de suas condições socioeconômicas, uma vez que Dmítri
também era ex-estudante, tendo sido expulso da universidade por não poder pagar mensalidades (Frank, 2003: 84).
- 53 -
SEGUNDA PARTE
- 54 -
Dadas as considerações teóricas que fundamentam o presente trabalho realizadas na
Primeira Parte, faz-se necessária a explicitação dos procedimentos que serão adotados para a
consecução da análise, à qual é dedicada essa Segunda Parte, bem como dos pressupostos que
nortearão essas escolhas metodológicas. O enfoque aqui escolhido para permear a compreensão
do romance Crime e castigo enquanto obra de arte é atravessado pela idéia de tragédia e catarse
discutidas por Aristóteles, ou seja, entende-se que a obra de arte relaciona-se diretamente com as
emoções, uma vez que as suscita e, com isso, promove a “passagem do ignorar ao conhecer”
(Aristóteles, 1998: 118), ou, como queria Schiller, leva o indivíduo ao conhecimento
aperfeiçoado pela via do sensível. Destarte, a obra de arte, enquanto forma viva (Schiller, Carta
XV: 89), não é puramente objeto das sensações ou do cogito, mas algo produzido por ambos,
tanto pela vida quanto pela forma.
Partindo dessas premissas essenciais, a indissociabilidade do par forma-conteúdo, e,
assim, a especificidade do fenômeno artístico não será negligenciada na escolha do enfoque e
procedimentos de análise, isto é, trabalhar-se-á com o fenômeno artístico respeitando suas
propriedades intrínsecas. Dois autores se constituem como referência dentro dessa perspectiva:
Vigotski com sua psicologia da arte e Bakhtin, o qual destrinchou as propriedades do romance
dostoievskiano e elencou suas características fundamentais. Ambos se diferenciam de outros
autores da corrente marxista, pois vão além das formas genéricas, que se limitam à aplicação de
categorias como estrutura e superestrutura, as quais levam a uma interpretação mecânica da
consciência, da linguagem, da ideologia e, conseqüentemente da arte (Ponzio, 1998: 58).
Como se sabe o conceito de romance polifônico é chave na interpretação que Bakhtin faz
da produção de Dostoiévski. As principais idéias que permeiam esse conceito são o diálogo e o
(processo de) autoconsciência. A primeira idéia, crucial na polifonia, aponta para uma
pluralidade de vozes (eqüipolentes e plenivalentes) que se entrecruzam e interagem entre si e
- 55 -
consigo mesma, de tal forma que o romance se constitui num grande diálogo entre os
personagens e no interior das mesmas.
Corrobora com essa visão a idéia de Vigotski de que, dado o princípio construtivo que se
refere ao fato da obra de arte poder extrapolar os limites do esperado, o herói configura-se em
alguém dinâmico, que sofre modificações de caráter ao longo da trama.
Esse modo de construir as personagens e suas idéias promove o processo de tomada de
consciência de si mesmo, dos outros e do mundo. Tal processo se dá por meio do diálogo,
conforme Bakhtin explicita na seguinte passagem:
[o todo dramático] não se constrói como o todo de uma consciência que assumiu,
em forma objetificada, outras consciências, mas como o todo da interação entre
várias consciências dentre as quais nenhuma se converteu definitivamente em
objeto da outra. Essa interação não dá ao contemplador a base para a objetivação
de todo um evento segundo o tipo monológico comum (em termos de enredo,
líricos ou cognitivos), mas faz dele um participante. O romance não só nega
qualquer base sólida fora da ruptura dialogal a uma terceira consciência
monologicamente abrangente como, ao contrário, tudo nele se constrói de maneira
a levar ao impasse, a oposição dialógica. (Bakhtin, 1997: 17)
Assim, não se pode aplicar a essa concepção à dialética hegeliana, que leva à formação de
um ponto de vista absoluto, formado pela superação da oposição de uma tese e uma antítese. Um
signo só poderá ser compreendido se for levado em conta os contextos comunicativos concretos,
a interação social e seu nexo com determinados valores e perspectivas ideológicas, ou seja, “la
comprensión del signo es una comprensión activa, por el hecho de que requiere uma respuesta,
una toma de posición, nace de una relación dialógica y provoca uma relación dialógica: vive
como respuesta a um diálogo”24 (Ponzio, 1998: 189).
24
“A compreensão do signo é uma compreensão ativa, pelo fato de que requer uma resposta, uma tomada de posição,
nasce de uma relação dialógica e provoca uma relação dialógica: vive como resposta a um diálogo” (tradução nossa).
- 56 -
Este trabalho objetiva enfocar a personagem central de Crime e castigo, o ex-estudante
Ródion Romanovitch Raskólnikov, e, para tanto, se faz necessário atentar para a forma pela qual
o personagem é apresentado no romance, dada a perspectiva polifônica. É fundamental ter em
mente que, na construção do romance, Dostoiévski privilegia a consciência e a autoconsciência
da personagem, a qual “focaliza a si mesma de todos os pontos de vista possíveis” (Bakhtin,
1997: 48).
Portanto, a presente análise terá como foco o processo de tomada de consciência, já que “a
personagem de Dostoiévski é toda uma autoconsciência” (Bakhtin, 1997: 50). Esse processo se
dá de maneira dialógica e polifônica, uma vez que existem várias vozes e elas dialogam entre si
em busca de uma verdade. Entretanto, a verdade objetivada não é uma assunção monológica,
derivada da consciência do autor, trata-se, contudo, da “verdade da própria consciência do herói”
(Bakhtin, 1997: 55). Em Crime e castigo, conforme aponta Bakhtin,
[...] nada [...] permanece exterior à consciência de Raskólnikov; tudo está em
oposição a essa consciência e nela refletido em forma de diálogo. Todas as
possíveis apreciações e os pontos de vista sobre sua personalidade, o seu caráter,
as suas idéias e atitudes são levadas à sua consciência e a ela dirigidas nos
diálogos com Porfiri, Sônia, Svidrigáilov, Dúnia e outros. Todas as visões de
mundo dos outros se cruzam com a sua visão. Tudo que vê e observa [...] é
inserido no diálogo, responde às suas perguntas, coloca-lhe novas perguntas,
provoca-o, discute com ele ou confirma suas idéias. (Bakhtin, 1997: 76)
Os outros personagens farão parte da análise enquanto duplos de Raskólnikov, ou seja,
representantes de facetas de sua própria personalidade, que aparecem em sua consciência como
que para mostrar-lhe sua própria multiplicidade e inconclusibilidade, e auxiliando-o, dessa forma,
no seu processo de tomada de consciência de si, dos outros e do mundo.
Em linhas gerais, a análise será fundamentada por todo referencial composto na Primeira
Parte, com destaque para os conceitos desenvolvidos por Bakhtin, particularmente a questão da
- 57 -
polifonia, do diálogo (da oposição dialógica) e do processo de autoconsciência. Serão feitos
recortes de trechos de Crime e castigo e, pelo agrupamento alguns deles, procurou-se construir
episódios que enfocassem o protagonista Raskólnikov na sua relação com os outros personagens.
Nos episódios foram destacadas duas “vozes”, a do protagonista e a de um outro
personagem com a qual o primeiro “dialoga”, e, a partir deles serão analisadas as questões
(contradições, ideologias, etc) que aquele diálogo suscita no processo de autoconsciência da
personagem, tendo em vista a questão das emoções, consideradas, conforme o referencial de
Bader B. Sawaia (exposto no Capitulo II), como aspecto crucial nesse desenvolvimento e de
forma que, nesse processo, sua subjetividade seja desvelada. Seguem-se os sete episódios que
formam a presente análise.
- 58 -
“O canalha do homem se habitua a tudo”25 – Raskólnikov e Marmieládov
Raskólnikov (Ródia) recebe de sua mãe (Pulkhéria Alieksándrovna) uma carta, na qual
esta o coloca a par do que vinha acontecendo com ela e sua irmã Avdótia Románovna (Dúnia)
nos últimos meses. Conta que Dúnia estava trabalhando na casa da família de Mafra Pietróvna,
esposa de Svidrigáilov, o qual se apaixonou por Dúnia e propôs-lhe casamento. Mafra Pietróvna,
compreendendo que a proposta havia partido de Dúnia, expulsa-a do emprego e difama-a por
toda vizinhança. Ao descobrir que havia sido seu próprio marido o autor das investidas, Mafra
ocupou-se de restabelecer a honra de Dúnia.
Após esses acontecimentos, um parente distante de Mafra, Piotr Pietróvitch Lújin, pede a
mão de Dúnia em casamento e o pedido é aceito. Na carta, Pulkhéria assim descreve o
pretendente de sua filha:
É um homem confiável e abastado, tem dois empregos e já possui capital. É
verdade que já está com quarenta e cinco anos, mas é de aparência bem simpática
e ainda pode agradar às mulheres, além de ser bastante respeitável e decente, só
que um pouco sorumbático e com um toque de arrogância. Mas isso pode ser mera
impressão produzida à primeira vista. (p. 51)26
Complementa, falando sobre a relação entre o casal:
É claro que não existem grandes amores das partes dela e dele [...] a própria Dúnia
me disse que confia em si mesma; que não há porque preocupar-se com isso, que
pode suportar muita coisa com a condição de que as relações posteriores venham a
ser honestas e justas. (p. 51)
25
Raskólnikov em Crime e castigo (Primeira Parte, Capítulo II: 43)
As páginas colocadas entre parênteses referem-se à obra Crime e castigo, conforme edição de 2001 com tradução
de Paulo Bezerra.
26
- 59 -
Descreve em detalhes as vantagens de tal união para todos os membros da família,
acrescentando ainda que, depois da notícia do casamento “até meu [de Pulkhéria] crédito
aumentou” (p. 54). Tornando explícitas as questões materiais que motivaram a decisão pelo
matrimônio. Por fim Pulkhéria diz: “Ama a tua irmã Dúnia, Ródia; ama do jeito que ela te ama, e
fica sabendo que ela te ama infinitamente, mais do que a si mesma. Ela é um anjo, e tu, Ródia, tu
és tudo para nós – toda nossa esperança e toda a certeza” (p. 54).
Essa devoção da mãe e da irmã por Raskólnikov pesa sobre ele como um fardo, o fardo do
sacrifício que elas fazem por ele. Posteriormente à leitura da carta, ao refletir sobre seu conteúdo
que o atormentava, Raskólnikov associa o sacrifício que a mãe e a irmã se propõem a fazer com
aquele de Sônia, filha do um ex-funcionário público Marmieládov, o qual conhecera no dia
anterior numa taberna.
Imerso numa condição miserável, Marmieládov abandona seu emprego e começa a gastar
todo o dinheiro que tinha em bebida. Uma vez que não havia qualquer fonte de renda, e a esposa
tísica de Marmieládov não possuía condições de trabalhar, Sônia termina por prostituir-se em
nome de garantir minimamente a sobrevivência de seus familiares.
Ao se dar conta da semelhança da situação em que se encontra com aquela de
Marmieládov, Raskólnikov retoma as palavras deste, as quais foram proferidas na ocasião do
encontro entre eles no botequim:
“Compreende, será que compreende, meu caro senhor, o que significa não se ter
mais para onde ir? – lembrou-se num átimo da pergunta feita ontem por
Marmieládov -, porque é preciso que toda pessoa possa ir ao menos a algum
lugar...”
Súbito ele estremeceu: uma idéia, também da véspera, novamente passou-lhe
como um raio pela cabeça. Mas ele não estremeceu porque essa idéia lhe passou.
Ora ele sabia, ele pressentia que ela lhe “passaria como um raio” e já esperava;
aliás, essa idéia não era inteiramente da véspera. Mas a diferença estava em que
um mês atrás e ainda ontem mesmo ela era apenas um sonho, mas agora... agora
parecia de repente não como um sonho mas num aspecto novo, ameaçador e
- 60 -
inteiramente desconhecido, e de repente ele mesmo tomou consciência disso...
Teve um estalo, e um escurecimento de vista. (p. 61)
As palavras de Marmieládov, às quais Raskólnikov recorre, parecem representar com
precisão as emoções suscitadas em ambos pelas condições em que vivem, pelo sentimento de
fracasso de ver-se sem saída. Aqui se tem o ex-estudante mais próximo do bêbado, especialmente
no que se refere aos aspectos de sua condição material, marcada pela pobreza, e à degradada
condição psíquica, atravessada pelo sentimento de inferioridade e impotência que marca a atitude
de ambos os personagens frente à realidade.
A deflagração dessa miserável condição humana tem profundos efeitos na subjetividade,
os quais foram estudados por Sawaia, quando a autora desenvolve o conceito de sofrimento éticopolitico. Considerando o contexto sóciopolítico da Rússia czarista do século XIX, é possível
encontrar, ao menos em partes, as origens desse sofrimento. Marmieládov, em uma contundente
fala, toca nessa questão:
Na pobreza o senhor ainda preserva a nobreza dos sentimentos inatos, já na
miséria ninguém o consegue, e nunca. (p. 30)
Dessa forma, o encontro anterior com Marmieládov leva o protagonista a entrar em
contato com essas emoções e elas refletem na sua subjetividade de modo particular, o qual é
determinado pela diferença de posturas ideológicas de cada um.
Assim, tais sentimentos culminam em Ródia, não na bebedeira ou mesmo na esperança de
que no Juízo Final receba o perdão divino, como ocorria com Marmieládov, mas naquela idéia27,
que passa feito um raio, que surge como um aspecto novo, ameaçador e inteiramente
27
Referente ao crime que planejava cometer contra a usurária Alíena Ivanovna.
- 61 -
desconhecido. Uma idéia que antes era sonho, mas que agora, ao viver esse sofrimento, passa a
adquirir possibilidades de se realizar materialmente, e a constitui-se como uma saída.
O que se vê nessa passagem, em que a idéia de cometer o assassinato ganha força, é o
acasalamento entre a condição do sofrimento ético-político, com os ideais largamente difundidos
na Rússia, ou seja, os ideais niilistas dos raznotchintsy, os quais defendem a supremacia da razão
e propõem a sobreposição do individualismo sobre qualquer tipo de projeto coletivista. A força
desse ideário, bem como os conflitos e contradições que ele provoca em Raskólnikov serão vistos
com mais detalhes em outros momentos.
A passagem que se segue explicita de alguma forma como Raskólnikov chega a essa
idéia, ou seja, como o egoísmo atinge status de solução para os dramas que vive. Enquanto
perambulava pelos bulevares de São Petersburgo, num momento em que travava num intenso
diálogo consigo mesmo sobre as questões que a carta enviada por sua mãe fizera emergir,
Raskólnikov avista uma moça jovem (de aproximadamente quinze anos) embriagada e que
andava cambaleante e trajada de modo esquisito. Percebe que um senhor de uns trinta anos
olhava a menina e aguardava que ele se fosse para aproximar-se dela “com certos objetivos”.
Indignado com a cena que via, Raskólnikov decide aproximar-se desse homem e dizer-lhe: “Ei,
você aí, Svidrigáilov! O que é que está querendo?” (p. 63).
Numa espécie de ato falho, Raskólnikov chama o desconhecido de Svidrigáilov, e indica
o que estava, de fato, enxergando naquela cena, ou seja, aquela moça remetia-o à própria irmã,
indefesa e inconsciente dos próprios atos, submetida ao homem mais velho que irá desonrá-la.
Diante disso, Raskólnikov pede ajuda a um policial e oferece vinte copeques para chamar um
cocheiro que levasse a garota de volta para sua casa. Diz ao policial:
- 62 -
-- Ah, que vergonha está se espalhando pelo mundo, meu Deus! Tão verde e já
bêbada! Pregaram uma peça nela, vê-se! Veja o vestidinho rasgado... Ah, quanta
depravação anda por aí!... Vai ver que é do meio nobre, e pobre desse jeito... Hoje
tem muitas assim. Pelo visto parece gente delicada, porque é como uma senhorita
– e tornou-se a curvar-se sobre ela [...] o principal – insistia Raskólnikov – é
arranjar um jeito de não deixar ela para esse patife! Porque ele ainda vai conseguir
desonrá-la! Está na cara o que ele está querendo; que patife, não arreda o pé! (p.
64)
Até que a certa altura a situação tem o seguinte desfecho:
Num instante alguma coisa pareceu picar Raskólnikov; num abrir e fechar de
olhos ficou meio transtornado.
-- Ei, escute! – gritou atrás do bigodudo [policial]
O outro olhou para trás.
-- Deixe pra lá! O que o senhor tem com isso? Deixe que ele se divirta (apontou
para o almofadinha) [senhor que observava a menina]. O que é que o senhor tem
com isso?
[...]
“Levou meus vinte copeques – pronunciou com raiva Raskólnikov, depois de ficar
só. [...] Por que eu me meti a ajudar? Eu mesmo não estou precisando de ajuda?
Tenho eu o direito de ajudar? Que eles se engulam vivos – o que é que eu tenho
com isso? E como me atrevi a dar aqueles vinte copeques? Por acaso eram meus?
(p. 65)
Esse trecho apresenta uma dicotomia importante na experiência de Raskólnikov, isto é,
altruísmo x egoísmo. Ainda que, a princípio, busque uma atitude altruísta, posteriormente conclui
a inutilidade da mesma, e tal conclusão chega a uma forma aprofundada e radical que culmina
num cinismo para com o outro.
Uma situação muito semelhante a essa ocorrera no dia anterior quando Raskólnikov
acompanhava Marmieládov de volta a sua casa e, ao ir embora, resolve colocar algumas moedas
na janela.
Ao sair Raskólnikov teve tempo de enfiar a mão no bolso, juntar as moedas de
cobre que haviam sobrado do rublo trocado na taberna e colocá-las na janelinha
sem ser notado. Depois, já na escada, caiu em si e quis voltar.
- 63 -
“Que asneira foi essa que acabei de fazer? – pensou. – Ora, eles têm a Sônia, ao
passo que eu mesmo estou precisando”. Mas depois de refletir que já não era
possível reaver o dinheiro e que, apesar de tudo, ele não o faria mesmo, pôs de
lado o assunto e foi para casa. “Ora, Sônia precisa de cremes também – continuou,
rua afora com um riso sarcástico. – Essa pureza custa dinheiro... Hum! Sim, mas
pode ser que Sónietchka fique hoje a nenhum, porque o risco é um só, a caçada
ao bicho vermelho... a extração do ouro... e então eles todos vão ficar na pindaíba
amanhã, mesmo sem o meu dinheiro... Que coisa, hein Sônia! Entretanto, que
tesouro eles conseguiram achar! E estão aproveitando! E olhem que aproveitam
mesmo! E se habituaram. Choram, mas se habituaram. O canalha do homem se
habitua a tudo!” (p. 43)
Esse episódio mostra a maneira pela qual Raskólnikov lida com a precariedade da
situação em que os outros vivem, a qual é muito semelhante à sua própria, em termos do
sofrimento ético-político que suscita. Quanto à postura de Marmieládov, temos que o exfuncionário público entende que somente o juízo final e o perdão divino poderão vir a atuar nessa
situação. Raskólnikov, por sua vez, adota o egoísmo e o cinismo para pautar sua atitude, contudo,
a essência dessas duas posturas é muito semelhante, ou seja, ambos recusam-se a realizar seus
projetos coletivamente, negam o que Sawaia conceitua como felicidade pública, a qual tem em
vista a emancipação dos membros de um coletivo. A intersecção dessas posturas pode ser
apreendida pela última frase citada “o canalha do homem se habitua a tudo”. Assim, nota-se que
as duas personagens realizam uma distinção entre eu x outro, sendo que, no caso de Raskólnikov
esse outro é visto como alguém a ser combatido, pois estará inevitavelmente no caminho da
realização pessoal.
Não obstante, imediatamente após elaborar esse raciocínio acerca do er humano,
Raskólnikov reconsidera sua afirmação com uma nova formulação:
-- Bem, e se eu estiver equivocado [...] se de fato o homem em geral, todo o
gênero, isto é, o gênero humano, não for canalha? Quer dizer que tudo o mais são
preconceitos, simples temores estimulados, e que não existem obstáculos de
nenhuma espécie, e que é assim que deve ser”... (p. 43)
- 64 -
Esse momento explicita o tipo de personagem que Dostoiévski constrói, ou seja, alguém
que esta num processo de autoconsciência, que transita entre posições ideológica distintas, sem,
contudo, manifestar-se definitivamente em prol de nenhuma delas, ou seja, trata-se de um
personagem cujo caráter é dinâmico. Essas transformações de caráter são apontadas por Vigotski
quando o autor trata da obra de arte “aeroplano” (vide Capítulo II do presente trabalho), isto é,
aquela obra que supera o material que lhe é peculiar por meio do imotivado, de um fator
surpreendente.
Ao tratar dessa questão Vigotski faz uma referência a Raskólnikov ao dizer que há sempre
uma contradição interna nos romances de Dostoiévski, conforme se percebe na construção de
personagens como assassinos que filosofam. Essa contradição interna fica evidente nessa
passagem, em que o protagonista formula uma hipótese, para desmenti-la logo em seguida.
- 65 -
“Isso é porque ando muito doente [...] saro, e... não vou me torturar” – Raskólnikov e
Razhumíkin28
Uma vez que a obra trata da história de um ex-estudante que decide cometer um
assassinato, é imprescindível que se analise a cena em que o crime é cometido, bem como seus
desdobramentos.
No capítulo imediatamente anterior àquele em que a referida cena é narrada, tem-se a
interpolação de um acontecimento ocorrido anteriormente, que elucida o momento em que a idéia
de realizar o ato criminoso nasce. Após ir pela primeira vez à casa da usurária Aliena Ivánovna
para empenhar um anel, Raskólnikov entrou numa taberna onde ouve a conversa entre um
estudante e um oficial sobre a mesma velha usurária. O estudante detalhava o caráter malévolo e
caprichoso de Aliena, bem como as injustiças que esta cometia contra a irmã caçula Lisavieta, a
qual trabalhava como empregada da irmã em condições de extrema exploração. A certa altura da
conversa, o estudante diz:
[...] Eu mataria e saquearia aquela velha maldita e lhe garanto que sem nenhum
remorso – acrescentou o estudante com fervor.
O oficial voltou a gargalhar, mas Raskólnikov estremeceu. Como aquilo era
estranho. (p. 80)
Em seguida o estudante modifica o que havia dito.
[...] é claro que eu estava brincando, mas preste atenção: por um lado é uma
velhota tola, absurda, insignificante, má, doente, que não é útil a ninguém e, ao
contrário, prejudica a todos, que não sabe para que vive e amanhã morre de morte
natural. Está entendendo? Está entendendo? [...] Por outro lado, forças jovens,
frescas, sucumbem em vão por falta de apoio [...] Mate-a e tome-lhe o dinheiro,
para com sua ajuda dedicar-se depois a servir a toda a humanidade e a uma causa
28
Raskólnikov em Crime e Castigo (Segunda Parte, Capítulo II: 124).
- 66 -
comum: o que você acha, esse crime ínfimo não seria atenuado por milhares de
boas ações? [..] ora, isso é uma questão de aritmética. (p. 80)
Essa passagem evidencia um forte conteúdo radical e niilista por parte do estudante, e
explicita toda uma lógica que irá ser o cerne das questões morais que perpassam a obra.
Demonstra como, para esses radicais, toda a problemática social da pobreza e miséria se resume a
uma questão de aritmética, ou seja, tem-se a aplicação do racionalismo à vida humana. Logo após
o término da conversa, os efeitos que ela terá sobre Raskólnikov são anunciados:
Aquela insignificante conversa de botequim teve uma influência excepcional
sobre ele no posterior desenvolvimento do caso: como se ali tivesse mesmo
havido alguma predestinação, um sinal... (p. 81)
A partir de então Raskólnikov toma sua decisão: matará a velha usurária a machadadas e
roubará seu dinheiro e pertences. Tinha consciência de que existe uma grande dificuldade em
ocultar um crime desse tipo, uma vez que o próprio criminoso, em geral, sofre de um abatimento
da vontade e da razão e é tomado por uma imprudência infantil, “segundo sua convicção, ocorre
que esse eclipse da razão e esse abatimento da vontade se apossam do homem como uma doença”
(p. 85). Embora sem saber se a etiologia da doença precede ou é posterior ao crime, resolve que
[...] no caso dele essas reviravoltas mórbidas não poderiam acontecer, que a razão
e a vontade permaneceriam nele, inalienáveis, durante todo o tempo da execução
do plano, pelo único motivo de que o que ele planejara “não era crime”29... (85)
29
As aspas são colocadas, pois o narrador traz uma fala do próprio Raskólnikov, sobre a qual o leitor, até então, não
tem conhecimento. O contexto e justificativa dessa afirmação serão apresentados posteriormente ao momento do
crime, quando Raskólnikov conversa com o juiz de instrução Porfiri Pietróvitch (vide episódio “Quem entre nós na
Rússia não se considera hoje um Napoleão?” – Raskólnikov e Porfiri). Entretanto pode-se inferir que essa resolução
tem relações, ao menos em partes, com a argumentação do jovem da taberna, que defende que um crime dessa
natureza seria atenuado por boas ações que o sucedesse. É importante atentar, contudo, para o fato de que
Raskólnikov admite que tal ato não tem caráter criminoso, concluindo, assim, algo que não está explícito na tese do
estudante da taberna.
- 67 -
Apesar disso, Raskólnikov titubeava:
E mesmo se algum dia acontecesse de tudo já ter sido examinado e decidido por
ele até o último ponto e de forma definitiva, e já não restassem mais quaisquer
dúvidas, mesmo assim, parece, ele acabaria renunciando a tudo como ao absurdo,
monstruoso e impossível. (p. 84)
Até mesmo minutos antes do crime, já face a face com Aliena,
Ele percebeu que estava ficando desnorteado, que estava quase apavorado, tão
apavorado que, parece, continuasse ela (Aliena Ivánovna) mais meio minuto
olhando daquele jeito, sem dizer uma única palavra, e ele fugiria dela correndo.
(p. 90)
Ainda que hesitante em boa parte da cena, Raskólnikov, “mal se dando conta de si” (p.
91), por fim assassina com um machado a velha usurária, sendo, nesse momento, arrebatado por
uma repentina força. Em seguida, enquanto saía correndo do quarto, Lisavieta (irmã de Aliena)
adentra o apartamento. Tomado por desespero ao encará-la, Raskólnikov repete o ato homicida
contra ela. Após sentir-se tomado por grande pavor, “pouco a pouco começou a dominá-lo um
certo alheamento, uma espécie de meditação: por minutos era como se ele perdesse a consciência
ou, melhor dizendo, esquecesse o principal e se apegasse a minúcias” (p. 94), ou seja, somente
por uma tentativa de “perder a consciência”, uma tentativa de anular as próprias emoções, as
quais interferem diretamente na consciência que se tem das coisas, Raskólnikov procura desligarse do principal, isto é, do crime. Ao ver-se apavorado diante do que fez, a “estratégia” adotada
por ele consistiu num esfriamento de suas emoções, pois, parece que se levasse-as em conta, não
conseguiria suportar a situação.
Raskólnikov levou alguns objetos da velha e seguiu em direção à sua casa. Permaneceu
deitado sem dormir, mas sem conseguir elaborar qualquer pensamento a respeito do acontecido,
- 68 -
conseguia apenas preocupar-se com a razão que o abandonava. Somente aos poucos foi
recobrando em sua memória os acontecimentos. Na tentativa de evitar que fosse descoberto
esconde as provas embaixo de uma pedra, num lugar deserto.
Posteriormente, num diálogo consigo mesmo, questiona-se a respeito dos motivos que o
levou aos atos criminosos, que constituem o “ponto central” (p. 123) em torno do qual giram seus
pensamentos.
E se tudo isso tiver sido realmente feito de forma consciente e não como tolice, se
você tinha realmente um objetivo definido e firme, então como é que até agora
não deu sequer uma olhada na bolsa e não sabe o que lhe coube, por que motivo
assumiu todos esses sofrimentos e se meteu conscientemente numa coisa tão vil,
infame, sórdida? [...] isso é porque ando muito doente – finalmente resolveu de
modo lúgubre –, eu mesmo atormentei e torturei a mim mesmo, e pessoalmente
não sei o que estou fazendo... E ontem, e há três dias, e todo esse tempo me
torturando... Saro, e... não vou me torturar... e se não sarar inteiramente? Meu
Deus! Como tudo isso é absurdo para mim!... (p. 124)
Raskólnikov vê-se transtornado ao perceber o quão paradoxais têm sido suas ações, e seus
pensamentos expressam o quão restrita é a sua consciência a respeito dos motivos que o
conduziram ao crime. O primeiro ponto de contradição fundamenta-se no fato do criminoso ter
previamente justificado seus atos por sua precária condição socioeconômica. Contudo, o fato de
ter se livrado dos objetos furtados demonstra a inconsistência dessa tese. A seguir da ocorrência
desses pensamentos, Raskólnikov mostra, por meio de sensações, uma pista desse ponto central
enigmático:
Uma sensação nova e insuperável o dominava cada vez mais quase a cada minuto:
era uma repulsa infinita, quase física, persistente, raivosa, odiosa a tudo o que
encontrava e o cercava. Achava nojentos todos os transeuntes com que cruzava –
eram nojentos seus rostos, seu andar, seus movimentos. Simplesmente cuspiria em
alguém, morderia, parecia, se alguém começasse a conversar com ele... (p. 124)
- 69 -
Aí aparece, mais consistentemente, um sentimento de desprezo pela humanidade, um nojo
que o separava das outras pessoas. Apesar disso, ainda não fica claro na consciência de
Raskólnikov uma associação de tais sentimentos com o crime cometido. Após isso o protagonista
dirige-se à casa de Razumíkhin, a única pessoa que poderia dizer-se que teve algum tipo de
relacionamento com Raskólnikov quando este ainda freqüentava a universidade. Ao chegar à
porta do amigo não sabia dizer o que o havia levado até lá (a não ser a decisão que havia tomado
de que depois daquilo [crime] iria à sua casa), e cedo pareceu arrepender-se da visita, não sem
antes tentar explicar-se:
-- Bem, escuta: eu vim te procurar porque, além de ti, não conheço ninguém que
possa me ajudar... a começar... porque tu és o mais bondoso de todos eles, ou seja,
o mais inteligente, e podes examinar... Mas agora eu vejo que não preciso de nada,
estás ouvindo, de absolutamente nada... dos obséquios e da colaboração de
ninguém... eu me viro... sozinho... Bem, chega! Deixa-me em paz! (p. 125)
Raskólnikov comporta-se na ambigüidade entre querer e não querer ser ajudado, entre a
concepção de que a ajuda significaria humilhação e fracasso e a necessidade de ser ajudado, dada
a intranqüilidade de que sofre. Ao perceber que sua razão o abandona, procura Razumíkhin (do
russo razum, que significa razão).
Assim, quando num primeiro momento reconhece estar doente, o protagonista parece
estar referindo-se ao fato de estar “intoxicado” pelas idéias que o motivaram a realizar o crime,
das quais alega querer curar-se. Ao procurar por Razumíkhin, Raskólnikov parece estar em busca
dessa “cura”, e, com isso tenta aproximar-se de um certo tipo de razão (a de Razumíkhin, que é
diferente do racionalismo de cunho egoísta que sustentava).
Uma descrição de Razumikhín feita em um capítulo anterior destaca que ele:
- 70 -
Era um rapaz extraordinariamente comunicativo e alegre, de uma bondade que
chegava às raias do simplório. Aliás por traz dessa simplicidade escondiam-se
profundidade e dignidade. [...] era admirável ainda porque nenhum fracasso
jamais o desconcertava e, parecia, nenhuma circunstância ruim o deixava
acabrunhado. Podia acomodar-se até no telhado, suportar uma fome infernal e um
frio incomum. Era muito pobre e se mantinha decididamente por seus próprios
meios, ganhado algum dinheiro sabe-se lá como. Conhecia o abismo das fontes
em que podia beber, naturalmente por meio do trabalho. (p. 66-7)
Assim, o que aproxima Raskólnikov de Razumíkhin pode ser essa capacidade de
resistência que esse último apresenta diante de situações tão precárias quanto àquelas nas quais o
protagonista vive. Isso pode levar a pensar também numa concepção de saúde que se vincula à
resiliência, a uma capacidade de resignar-se à situação em que vive. Todavia, essa vontade de
resistir, esse desejo de cura nem chega a expressar-se em Raskólnikov. Apesar de aproximar-se
do amigo, nega-o em seguida, reafirmando sua onipotência, egoísmo e tentando a todo custo
romper com os laços que possam remetê-lo ao Raskólnikov anterior ao crime, e reafirmando o
compromisso com a racionalidade que o levou ao crime.
- 71 -
“Nós cortamos o cordão umbilical com o passado de forma irreversível”30 – Raskólnikov e
Piotr Pietróvitch Lújin
No entanto o recém-chegado pouco a pouco foi despertando nele uma atenção
cada vez maior, depois perplexidade, em seguida desconfiança e até mesmo uma
espécie de temor. (p. 157)
Esse trecho refere-se à reação de Raskólnikov quando este se encontra pela primeira vez
com Piotr Pietróvitch Lújin, com quem sua irmã, Dúnia, decidiu casar-se. Ródia soube da decisão
da irmã por uma carta enviada por sua mãe, a qual exalta tanto o pretendente quanto a resolução
de Dúnia de com ele unir-se. Contudo, o protagonista não recebe bem a situação, uma vez que
compreende tratar-se de um matrimônio que visaria tão somente resgatar a família da precária
condição em que os três viviam31.
A passagem citada desvela as reverberações psíquicas que tal presença provoca em
Raskólnikov, ou seja, chama-lhe atenção, deixa-o perplexo, desconfiado e, por fim, atemoriza-o.
Tais reações demonstram, desde o princípio, uma “presença” de Piotr na subjetividade do
protagonista, e as passagens a seguir mostram o quanto essas reações se refletem na percepção de
Ródia sobre si mesmo.
Piotr mostra-se defensor das novas idéias que estavam surgindo, propagadas pelos
radicais niilistas32, acerca do egoísmo e do utilitarismo, conforme mostra a passagem a seguir:
30
Piotr Lújin em Crime e castigo (Segunda Parte, Capítulo V: 161).
Para mais detalhes sobre essa carta vide episódio “O canalha do homem se habitua a tudo” – Raskólnikov e
Marmieládov.
32
O trecho todo da fala de Piotr Lújin assemelha-se a um panfleto do radicalismo. Seu discurso incorpora toda a
essência do niilismo em sua vertente russa da década de 1860 que o associa ao egoísmo e utilitarismo. Além disso,
Piotr é caracterizado por um extremo pedantismo em sua linguagem, ou seja, ele utiliza um vocabulário inapropriado
e sobre o qual parece não ter domínio. Tal característica pode ser associada também à maneira pela qual ele
incorpora a ideologia radical, ou seja, de modo acrítico, e sem ter uma noção precisa das implicações de tais
pensamentos.
31
- 72 -
-- Eu me sinto feliz no meio da juventude: porque ela sabe o que há de novo. –
Piotr Pietróvitch olhou esperançoso para todos os presentes. (p. 160)
[...]
-- Se a mim, por exemplo, disseram até hoje: “ama teu próximo”, e eu amei, o que
resultou daí? [...] resultou que eu rasguei o cafetã ao meio, dividi-o como próximo
e ambos ficamos pela metade nus, seguindo o provérbio russo: “Quando se caçam
muitas lebres ao mesmo tempo não se pega nenhuma”. Já a ciência diz: ama acima
de tudo a ti mesmo, porque tudo no mundo está fundado no interesse pessoal. Se
amas apenas a ti mesmo, realizas os teus negócios da forma adequada e ficas com
o cafetã inteiro. (p. 162)
Aí se tem o cerne das idéias niilistas, da apologia à ciência, à economia capitalista e ao
egoísmo. Entretanto, ao ser colocada a questão sobre o caso de alguém que falsificava dinheiro
para enriquecer o quanto antes, à custa dos outros e sem esforço, Piotr questiona:
Mas, não obstante, como fica a ética? E, por assim, dizer as regras...
Ao que Raskólnikov responde:
-- Ora, com o que o senhor está preocupado? [...] Saiu segundo a sua teoria!
[...]
Raskólnikov estava pálido, com o lábio superior tremendo e respirava com
dificuldade.
-- Para tudo existe medida – continuou Lújin com um ar arrogante -, uma idéia
ainda não é um convite ao assassinato. (p. 165)
Nesse diálogo Raskólnikov demonstra ter consciência das implicações morais e éticas da
ideologia radical (e, como se vê posteriormente, de sua própria teoria). Contudo, tal consciência
não parece ser isenta de turbulências emocionais, haja vista o estado em que se encontra ao
proferir tal conclusão. Sua palidez, tremor no lábio e respiração dificultosa denunciam as
dificuldades que Raskólnikov terá para lidar com essas mesmas idéias quando defendidas (e
levadas a cabo) por ele mesmo. Fica claro, no entanto, que se tratam de dificuldades no âmbito
- 73 -
das emoções, já que, conforme dito, há um reconhecimento por parte dele a respeito das
conseqüências que o pensamento radical pode levar, ou seja, há uma linearidade peculiar à
racionalidade, a mesma que o levará, posteriormente, à desrazão.
Além disso, essa passagem mostra como Dostoiévski cria duplos para seus personagens e
dramatiza o conflito de um, no caso o conflito interior de Raskólnikov com a própria teoria, no
conflito entre duas pessoas, aqui representadas pelo protagonista e Piotr.
Depois desse momento de grande perturbação em que discute com Piotr e expulsa-o de
seu quarto, Raskolinov diz:
-- Deixem-me, deixem-me todos! – gritou possesso Raskólnikov –, Ora, será que
vocês finalmente vão me deixar em paz, seus carrascos! Não tenho medo de
vocês! Agora eu não tenho medo de ninguém, de ninguém! Fora daqui! Eu quero
ficar só, só, só! (p. 166)
Nesse momento Raskólnikov pede para que todos o deixem no estado em que
freqüentemente se encontrava, o da solidão, do isolamento. Apesar de ter proferido essas
palavras, imediatamente após a saída das pessoas que estavam em sua casa, Raskólnikov saiu,
sem destino e com a convicção de que precisaria terminar com tudo aquilo de uma vez, pois não
queria mais viver daquele modo (p. 168).
O que se tem em seguida é uma sucessão de ações em que Raskólnikov parece procurar
provar a si mesmo que a sua lógica (que, como se viu, é a mesma de Lújin) não lhe imporia
sanções de cunho moral, ou seja, continua aquilo que havia começado no seu diálogo com Lújin.
Raskólnikov acaba por entrar em um botequim onde encontra Zamiótov, um conhecido
seu. A certa altura começaram a falar do caso de uma quadrilha de falsificadores de moeda, que
havia sido presa em Moscou. Iniciaram uma discussão sobre os motivos que levaram a quadrilha
a ser descoberta, ou seja, sobre as atitudes suspeitas dos criminosos, como, por exemplo, de um
- 74 -
que, ao trocar o dinheiro no banco, tremeu as mãos. Nesse momento Zamiotov questiona
Raskólnikov:
-- E o senhor, será que agüentaria? Não, eu não agüentaria! [...] Não, eu ficaria
desconcertado. E o senhor, não ficaria desconcertado?
Súbito Raskólnikov teve uma terrível vontade de tornar a “sair dali correndo”. Por
um instante um calafrio lhe correu pelas costas.
-- Eu agiria diferente – começou ele de longe. – Veja como eu trocaria o dinheiro:
conferiria o primeiro milhar, assim umas quatro vezes, de todos os lados,
examinando cada nota, e passaria ao segundo milhar [...] de sorte que deixaria o
empregado esgotado a tal ponto que ele não saberia como se livrar de mim!
Finalmente terminaria tudo, sairia a porta – não, desculpe, tornaria a voltar,
perguntaria alguma coisa, pediria alguma explicação – assim que eu agiria!
[...]
-- Só que isso é apenas conversa, na prática o senhor certamente se tropeçaria.
Nesse caso, eu lhe digo, acho que não só nós dois, mas nenhum homem calejado,
arrojado pode se garantir. Ora, parece que uma cabeça arrojada correu todos os
riscos em plena luz do dia, só por milagre safou-se – e ainda assim suas mãos
tremeram: não foi capaz de cometer o roubo, não suportou; pela história se vê...
Raskólnikov pareceu ofender-se. (p. 176/7)
Raskólnikov tenta mostrar que não estaria (ou que não está) submetido a fraquezas do
modo como os criminosos comumente ficam após cometerem seus delitos, e, para isso, aplica
novamente o raciocínio lógico, explicando como agiria no lugar do falsificador de moedas.
Contudo, Zamiótov aponta, sem o saber, o exemplo do próprio Raskólnikov para ilustrar como,
na realidade, não seria possível safar-se, deflagrando ainda mais a incompetência de Raskólnikov
na execução de seu crime, o que o leva a ofender-se.
Assim, o episódio com Lújin coloca Raskólnikov em contato com os ideais radicais
adotados por ambos e mostra-o debatendo com essas idéias, de modo a levá-lo à consciência de
um aspecto fundamental da mesma, ou seja, a questão ética. É inevitável a Raskólnikov que essa
questão adentre o campo de sua própria subjetividade, ou seja, estaria ele submetido às
proposições da moral e da ética? Tendo se tornado um homem-idéia, incorporando a teoria
radical numa versão pessoal (conforme seu artigo A respeito do crime mostrará), o protagonista
- 75 -
não estaria, em tese, preso às “amarras da moral”. E esse ponto se esclarece melhor na conversa
com Zamiótov, na qual tenta impor-se como alguém “liberado”, apto a aplicar sua racionalidade,
desconsiderando justamente a aspecto da emoção. Diante deflagração da própria incompetência
ofende-se.
Esses episódios ilustram a temática do corte do cordão umbilical com o passado que
Raskólnikov tanto queria realizar. Todavia o que se vê nessas passagens é como isso se realiza na
subjetividade da personagem, de modo que, cortar o cordão umbilical com o passado é tanto
romper com a velha Rússia33 como romper consigo próprio, com o próprio passado miserável e
com as próprias emoções, aqui vistas negativamente, como aquilo que leva à submissão e a
fraqueza. O resultado disso é o Raskólnikov que a obra nos apresenta, ou seja, alguém dividido34
entre essa razão desrazoada, que o leva a sentir-se equivalente a Napoleão, e as fraquezas e
constantes titubeações que o assemelham a um piolho.
33
Da maneira como queriam os contemporâneos históricos de Raskólnikov, os quais foram abordados no Capítulo
III da Primeira Parte do presente trabalho.
34
Vale lembrar que o nome Raskólnikov tem sua origem no termo russo raskol que significa cisma, cisão. A
etimologia pode ser vista aqui como uma metáfora que se refere à cisão entre a racionalidade e a irracionalidade, as
quais, de fato, convivem dentro do personagem. Raskol também é a ocasião que marca a divisão entre a Igreja
Ortodoxa Russa e os “velhos crentes”, que formavam o grupo dos que cindiram com os ortodoxos, formando uma
alternativa à igreja oficial, que depois de reformada pelo patriarca Nikón adaptou-se aos costumes gregos.
(informações disponíveis nos seguintes sites: http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Old+believers,
e
http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Raskol
http://www.ecclesia.com.br/a_igreja_ortodoxa/arquid_russa/russia.htm)
- 76 -
“Quem entre nós na Rússia não se considera hoje um Napoleão?”35 – Raskólnikov e Porfiri
Raskólnikov, levado pelo amigo Razumíkhin, vai ao encontro do juiz Porfíri Pietróvitch,
que cuidava do caso do assassinato de Aliena Ivánovna. O propósito do encontro era de
Raskólnikov reaver os objetos que penhorara com a velha e, nessa ocasião, Porfri demonstra
demasiado interesse por Raskólnikov, que, por sua vez, procurava comportar-se de modo mais
natural possível. Na conversa entre os três surge o assunto da criminalidade, suscitado pela
lembrança dos temas debatidos na festa ocorrida no dia anterior na casa de Razumíkhin.
Porfiri aproveita para interrogar Raskólnikov a respeito “do seu artiguinho ‘A respeito do
crime’” (p. 267), que havia sido publicado no jornal Discurso periódico, sem que o autor ao
menos soubesse dessa publicação. Tal artigo tratava, segundo o próprio autor, do estado
psicológico do criminoso durante o ato do crime, o qual era caracterizado por uma doença. Além
disso, o artigo traz ainda uma diferenciação entre os membros da espécie humana em dois tipos:
os extraordinários e os ordinários.
Raskólnikov explica essa categorização dos indivíduos:
Ela consiste precisamente em que os indivíduos, por lei da natureza, dividem-se
geralmente em duas categorias: uma inferior (a dos ordinários), isto é, por assim
dizer, o material que serve unicamente para criar seus semelhantes; e
propriamente os indivíduos, ou seja, os dotados de dom ou talento para dizer em
seu meio a palavra nova [...] os crimes desses indivíduos, naturalmente, são
relativos e muito diversos; em sua maioria eles exigem, em declarações bastante
variadas, a destruição do presente em nome de algo melhor [...] a primeira
categoria é sempre de senhores do presente, a segunda, de senhores do futuro. (p.
269, grifo do autor)
Eis que então nessa conversa com Porfiri é revelado algo a respeito do pensamento de
Raskólnikov que até então era desconhecida pelo leitor e a qual tem grande importância para a
35
Porfiri Pietróvitch em Crime e castigo (Terceira Parte, Capítulo V: 274).
- 77 -
compreensão do ideário que esse personagem sustenta36. O fato de ter sido o juiz que questiona a
respeito do artigo indica que as múltiplas facetas e profundezas da mente do protagonista são
explicitadas quando este se encontra num diálogo com o(s) outro(s).
Mais do que possibilitar o conhecimento sobre o que se passa com a personagem, os
diálogos permitem também que ele seja contraposto a outras “vozes”, e nesse embate ocorre um
movimento de autoconsciência. Conclui-se, a partir disso, um importante princípio de construção
do romance dostoievskiano, conforme estudado por Bakhtin. Nesse sentido pode-se entender a
produção de Dostoiévski como forma viva, no sentido que Schiller atribui, ou seja, a beleza do
romance está no fato de ele poder conjugar a vida e a forma num todo indissociável.
Tendo escutado a exposição de Raskólnikov acerca dos homens extraordinários e o dos
ordinários, Porfiri indaga-o sobre a maneira de distingui-los, obtém a seguinte resposta:
O erro é possível mas só por parte da primeira categoria, ou seja, das pessoas
ordinárias [...] acho, no entanto, que aí não pode haver perigo considerável e o
senhor, palavra, não tem razão para se preocupar, porque elas nunca vão longe [...]
elas mesmas se chicoteiam, porque são muito bem comportadas; umas trocam
esses serviços entre si, e outras se chicoteiam com as próprias mãos... Impõe-se a
si diversas confissões públicas – isso é bonito e edificante, numa palavra, o senhor
não tem porque se preocupar... Essa lei existe. (p. 271)
Porfiri provoca Raskólnikov pedindo mais esclarecimentos sobre sua tese, e, em tom
irônico, faz sua segunda pergunta:
-- [...] existem muitos desses indivíduos que têm o direito de matar outros, esses
“extraordinários”? Eu, é claro, estou disposto a reverenciá-los, mas, convenha o
senhor, será um horror se houver mesmo um número muito grande deles, não?
-- Oh, não se preocupe com isso [..] Em linhas gerais, as pessoas de pensamento
novo, mesmo aquelas com um mínimo de capacidade para dizer ao menos alguma
coisa nova, nascem em número inusitadamente baixo, até estranhamente baixo.
36
Embora todo o romance traga sugestões fundadas nessas idéias, apresentadas em outros episódios da presente
análise, o artigo e, por assim dizer, a “teoria” de Raskólnikov em si mesma não havia sido apresentada até então.
- 78 -
[...] a ordem do nascimento dessas pessoas [...] é determinada, de modo bastante
certo e preciso, por alguma lei da natureza. [...] existe forçosamente e deve existir
certa lei: aqui não pode haver acaso. (p. 272, grifo nosso)
As seguidas indagações de Porfiri parecem ter como objetivo provocar Raskólnikov e, por
vezes, como no caso supracitado, ironizá-lo. Mais adiante o juiz chega ao principal
questionamento, crucial para que ele pudesse apurar a suspeita que tem com relação a
Raskólnikov no caso da morte de Aliena.
-- [...] quando o senhor estava escrevendo seu artiguinho, é impossível, pois, hehe!, que também não se considerasse, ao menos uma gotinha, um homem
“extraordinário, que pronuncia a palavra nova” – isto é, no sentido que o senhor
lhe dá... É isso, não é?
-- É muito possível – respondeu desdenhosamente Raskólnikov.
[...]
-- Já que é assim, será que o senhor se atreveria – fosse lá em virtude de alguns
desacertos e apertos da vida ou com vista a algum tipo de contribuição para toda a
humanidade – a passar por cima dos obstáculos?... Por exemplo, matar e
saquear?...
[...]
-- Se eu tivesse mesmo passado por cima, isso, é claro, não iria lhe contar –
respondeu Raskólnikov com um desprezo acintoso, soberbo. (p. 274)
Nessa conversa como um todo Porfiri vai armando ciladas, tenta envolver Raskólnikov
em suas perguntas na tentativa de que ele diga algo que o comprometa e confirme sua suspeita.
Suas perguntas são inicialmente mais impessoais até culminarem nessa última que coloca o autor
do artigo completamente implicado nas idéias que tem e relaciona-as com um possível ato
criminoso. Por fim, Porfiri pronuncia a pergunta que intitula esse episódio: “Quem entre nós na
Rússia não se considera hoje um Napoleão?” (p. 274). Com essa fala Porfiri coloca Raskólnikov
no rol dos inúmeros outros radicais niilistas que formavam a nova geração de homens da década
de 1860. Destarte, retira a originalidade de sua teoria e banaliza-a, isto é, a reduz a mero panfleto
do radicalismo.
- 79 -
O fato de ter usado a primeira pessoa na pergunta pode indicar também que ele próprio se
classifica como um Napoleão, alertando que isso se deve a uma condição humana que se
relaciona com as condições sóciopolíticas do país naquele momento, e não com uma
essencialidade do ser humano, que o distinguiria conforme as duas categorias propostas por
Raskólnikov.
Assim, o que Porfiri faz é inserir o pensamento de Raskólnikov no contexto social em que
a população russa estava, e atentá-lo para a historicidade do mesmo. Tal conduta condiz com
aquilo a que se propôs no início da conversa, quando discutiam uma concepção atribuída aos
socialistas da época de que o crime é “um protesto contra a anormalidade do sistema social” (p.
265), da qual Razumíkhin discorda veementemente. Em resposta Porfiri afirma que “o ‘meio’
significa muito no crime; isso eu vou te demonstrar” (p. 266). Com isso, o juiz pretende mostrar
que todas as idéias desenvolvidas por Raskólnikov estavam intrinsecamente relacionadas ao
contexto russo, no qual elas eram largamente difundidas, fato que o próprio romance demonstra
quando a cena do jovem e do oficial na taberna é narrada.
Após ter sido procurado por um senhor que se recusa a falar com ele, e, subitamente,
chama-o de assassino, Raskólnikov começa a ter certeza de que o tal desconhecido sabia do
crime. Absorvido por um turbilhão de pensamentos e sentindo-se fisicamente fraco, percebe que
Porfiri tinha razão em seu tom sarcástico:
“Napoleão, as pirâmides, Waterloo – e uma viúva de registrador, sórdida,
descarnada, velha, usurária, com o bauzinho vermelho debaixo da cama – ora,
como é que isso iria ser suportado até mesmo por um Porfiri Pietróvitch?!... Onde
é que ele iria suportar?!... A estética atrapalha: será, diria ele, que um Napoleão
iria meter-se debaixo da cama da ‘velha’?! Eh, canalha!...” (p. 284)
- 80 -
Com esse pensamento Raskólnikov parece dar-se conta de que a atitude de Porfiri era de
galhofa, e chega a concordar com ele. Desmerece as próprias atitudes e pensamentos, tendo por
base o critério estético. A escolha desse critério é digna de considerações, pois, nesse momento,
Raskólnikov parece ter em mente que, antes mesmo de constituir-se como uma questão ética, o
crime que cometeu incorre numa questão estética. Contudo, na concepção da personagem, uma
parece estar em função da outra, na medida em que sendo estético, algo poderia ser ético; ou
ainda que uma esteja completamente desvinculada da outra, sendo que a estética ocuparia um
papel central. Uma fala do protagonista que comprova isso é quando ele se autodefine como
sendo um “piolho estético” na seguinte passagem:
“A velhusca foi um absurdo! – pensava com ardor e ímpeto –, a velha vai ver que
foi mesmo um erro, mas não é nela que está a questão! A velha foi apenas uma
doença... eu queria ultrapassar o limite o quanto antes... eu não matei uma pessoa,
eu matei um princípio! Foi o princípio que eu matei, mas além não fui, permaneci
do lado de cá... [...] Ora veja, eu sou um piolho estético, nada mais – acrescentou
súbito, desatando a rir feito um demente [...] porque eu mesmo, é possível, sou
ainda pior e mais torpe que o piolho morto,e pressenti de antemão que viria a
dizer isso a mim mesmo depois que o matasse! [...] Ó, como eu compreendo o
‘profeta’ de sabre em punho, a cavalo. Alá manda, então obedece, ‘trêmula
criatura’! [...] Obedece, trêmula criatura, e evita querer, porque isso não é
problema teu!... Ó, não perdôo, não perdôo por nada a velhusca!” (p. 285)
Nesse trecho Raskólnikov responde, ao menos temporariamente, à pergunta que Porfiri
havia feito sobre onde ele se percebia dentro da teoria, pois se declara pertencente à categoria dos
inferiores, dos piolhos. Todavia, tal afirmação não permite dizer que aí o personagem tenha
revisto a teoria que enunciara para o juiz, uma vez que na passagem ele demonstra ter atingido
um determinado conhecimento sobre si mesmo que o permite categorizar a si próprio como
membro da categoria dos ordinários. Além disso, afirma compreender aqueles que, valendo-se de
justificativas de cunho religioso, fazem aquilo que lhes é “ordenado”, sem questionamentos e sem
levar em consideração a própria subjetividade.
- 81 -
Se no princípio qualifica-se como aquele que pode ir até onde sua individualidade
alcança, posteriormente, os desdobramentos do crime em sua psique lhe permite concluir que ele
não tem e não pode ter domínio das rédeas do próprio destino, pois sua natureza não lhe
possibilita, e, uma vez que chega à essa conclusão, não cabe mais contestação37. A esse respeito
cabe refletir sobre o conceito de condição humana, pois, tendo em vista que a teoria construída
pelo personagem traz em si uma noção de natureza humana, o raciocínio desenvolvido por
Raskólnikov segue uma linearidade. Entretanto, ao descartar-se essa noção é possível que se
analise essas mesmas questões sob outro prisma, ou seja, como questões da condição humana. O
olhar mecânico sobre o social, desprovido de crítica (algo que Porfiri procura mostrar a
Raskólnikov na conversa que tiveram), faz com que o personagem torne-se presa de uma idéia
(supostamente sua), a qual o leva a atitudes drásticas e impede-o de reconhecer-se como humano,
inserido num meio social que constitui, de maneira dialética, sua subjetividade e leva-o a
vivenciar o sofrimento ético-político.
Após ter tido esses pensamentos Raskólnikov adormece e sonha que estava caminhando
na rua. Vê um homem acenar-lhe e caminha na sua direção. Tendo sido ignorado pelo outro
como se nada houvesse acontecido, segue-o até chegar num prédio, que aos poucos reconhece
como sendo o da velha usurária. Entra num apartamento e vê a velha sentada, curvada e de
cabeça baixa, de modo que não podia ver seu rosto. Pensa que ela está com medo e golpeia-a com
o machado. A velha, porém, não se mexe,
Então ele se abaixa inteiramente até o chão e passa a lhe olhar o rosto de baixo
para cima, espia e fica petrificado: a velhusca, sentada, está rindo –
desmanchando-se num riso baixo, silencioso, fazendo todos os esforços para que
ele não escute. Súbito tem a impressão de que a porta do dormitório se entreabriu
levemente e parece que lá dentro também começaram a rir e estão cochichando.
37
Haja vista a frase de Raskólnikov citada anteriormente: “aqui não pode haver acaso” (p. 272).
- 82 -
Fica tomado de fúria: começa com toda a força a bater na cabeça da velha, mas a
cada golpe do machado o riso e o cochicho que vêm lá de dentro se tornam cada
vez mais fortes e mais se fazem ouvir, enquanto a velhusca se sacode toda às
gargalhadas. [..] ele está com o coração opresso, as pernas imóveis, cravadas... Ele
quer gritar e – acorda. (p. 287)
Esse sonho traduz as conseqüências que a conversa com Porfiri traz para Raskólnikov,
pois, ao tentar provar que com seu machado (e sua teoria) é capaz de ultrapassar os limites e
romper as barreiras, recebe como resposta risos. Esses risos adquirem para Raskólnikov uma
amplitude muito maior, pois não é somente a velha que ri, mas toda uma multidão que se
aglomera para assistir o constrangedor episódio. Com isso, ele pode perceber o quão humilhante
toda a situação se tornou para si próprio.
Essa cena permite que se pense toda a questão do crime como estando no limiar entre a
tragédia e a comédia, conforme definidas por Aristóteles (vide Capítulo I). O crime cometido
pelo protagonista pode ser visto como uma ação de caráter elevado que suscita terror e piedade (o
que o caracterizaria como tragédia, de acordo com o filósofo grego), ao passo que, tomando por
base a cena do delírio, a mesma ação apresenta-se simultaneamente como baixa e inócua. Acerca
do herói, tem-se que na tragédia são imitados homens superiores (nesse caso o “extraordinário”
Raskólnikov). Já na comédia imitam-se homens piores quanto ao ridículo e ao defeito (o
“ordinário” Raskólnikov).
- 83 -
“Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o sofrimento humano”38 –
Raskólnikov e Sônia
Dúnia e sua mãe Pulkhéria recebem um bilhete de Piotr Lújin, no qual este as solicita que
Raskólnikov não esteja presente no próximo encontro entre eles, em função do desentendimento
que tiveram, quando Lújin o visitou.
As duas, entretanto, tendo ficado muito indignadas com o pedido, deixaram de cumpri-lo
e promoveram o tal encontro com a família reunida. Diante da afronta Lújin exalta-se,
provocando a ira de Pulkhéria e de Dúnia, a qual, ao perceber que o convívio de Raskólnikov e
Lújin não seria possível, diz
Eu coloco o seu interesse ao lado de tudo o que até hoje me tem sido precioso na
vida, do que até hoje tem sido toda a minha vida, e de repente o senhor se ofende
por eu lhe dar pouco valor!
[...]
O amor ao futuro companheiro da vida, ao marido, deve estar acima do amor ao
irmão – pronunciou [Lújin] em tom sentencioso. (p. 312, grifo do autor)
Essas palavras remetem ao que Pulkhéria diz em carta à Raskólnikov, sobre o fato de sua
irmã amá-lo mais do que a si própria, e também quando diz que Ródia é tudo para elas, toda a
esperança e certeza39. Dessa forma, vai se delineando a posição que o protagonista ocupa em sua
família, ou seja, a de um alicerce. O desfecho do referido encontro foi o rompimento entre Lújin
e Dúnia, e, após isso, os presentes (Pulkhéira, Dúnia, e Razumíkhin) ficaram contentes, diferente
de Raskólnikov, o qual permaneceu carrancudo e distraído.
38
39
Raskólnikov em Crime e castigo (Quarta Parte, Capítulo IV: 332)
Vide análise “O canalha do homem se habitua a tudo” – Raskólnikov e Marmieládov do presente trabalho.
- 84 -
Até que, em determinado momento, Razumíkhin se oferece para montar uma editora em
sociedade com Dúnia e Raskólnikov. Pulkhéria e Dúnia imediatamente se animaram com o
projeto, especialmente, pela maneira pragmática e empenhada com que Razumíkhin descrevia
seus planos. No meio dessa conversa Raskólnikov levanta-se e começa a seguir em direção à
porta. Surpresos com essa atitude, perguntaram-lhe por que se retirava, ao que Raskólnikov
respondeu: “parece até que vocês estão me enterrando ou dando adeus para sempre [...] porque,
quem sabe, pode ser a última vez que nos vemos” (p. 322) e acrescenta:
-- Eu quis dizer... ao vir para cá... eu quis dizer à senhora, mãezinha... e a ti,
Dúnia, que para nós é melhor nos separarmos por algum tempo. Eu não ando me
sentindo bem, não ando tranqüilo... depois apareço, apareço pessoalmente,
quando... for possível. Eu guardo vocês na lembrança e as amo... Deixem-me!
Deixem-me sozinho! Assim eu decidi, ainda antes... decidi com certeza...
Aconteça o que acontecer comigo, morra eu ou não, quero estar só. Esqueçam-me
completamente. É melhor... Não procurem informações ao meu respeito. Quando
for necessário, eu mesmo aparecerei ou... mando chamá-las. Pode ser que tudo
ressuscite!... Mas agora, quando me amam, renunciem... Senão eu vou odiá-las, eu
sinto isso... Adeus! (p. 323)
Os motivos que levaram Raskólnikov a despedir-se de sua família não são explícitos,
especialmente nesse momento em que se apresentavam novas perspectivas com as sugestões de
Razumíkhin. É possível associar essa despedida com a incerteza do futuro do protagonista a partir
daquele momento em que não sabia como a questão do crime ficaria resolvida. A idéia que se
tem é de um rompimento com os laços familiares, os mesmos que inicialmente estavam
relacionados, ao menos em partes, com o assassinato que cometeu, pois Raskólnikov sentindo-se
esmagado pela miséria e sentindo-se responsabilizado pela mãe e pela irmã, tomado pelo
sofrimento ético-político, adota o radicalismo como saída. De modo que, se a princípio essa
ligação o levou a tomar certas atitudes, estas mesmas acabaram por levá-lo a um rompimento
com o próprio passado. O que se vê posteriormente, por meio do artigo que escreve e de
- 85 -
pensamentos que desenvolve ao longo da trama, é o fato das emoções e do sofrimento éticopolítico que o caracteriza constituírem a base da questão central no caso do crime, ou seja, o
rompimento com o que está posto e a possibilidade de ultrapassar os limites.
Em seu lugar de filho e irmão, Raskólnikov coloca Razumíkhin, pedindo que ele o
abandonasse, mas não abandonasse as duas. E, com um olhar intenso e chamejante “comunica” o
motivo de seu afastamento.
Súbito Razumíkhin estremeceu. Era como se uma coisa estranha tivesse passado
entre eles... Uma idéia qualquer se insinuou como se fosse uma alusão; alguma
coisa terrível, hedionda e subitamente compreendida de ambas as partes...
Razumíkhin empalideceu como um defunto.
-- Agora está entendendo? – disse de repente Raskólnikov com o rosto distorcido
e uma expressão dorida. – Volta, vai para a companhia delas – acrescentou de
súbito e, com uma rápida meia-volta, tomou a saída do prédio. (p. 324)
Logo após deixar o prédio, Raskólnikov dirigiu-se para o apartamento onde Sônia (filha
de Marmieládov) morava. A inesperada visita deixou Sônia desconcertada, e o olhar com que
Raskólnikov examinava o local fez com que ela se sentisse diante de um juiz. Começam a falar
sobre Catierina Ivánovna (viúva de Marmieládov), sobre sua doença e a precariedade da vida que
levavam. Raskólnikov levanta a possibilidade de Catierina morrer em breve, e faz com que Sônia
pense no futuro que teriam suas irmãs a partir de então. As palavras de Raskólnikov, cruelmente
pronunciadas, colocavam Sônia em profundo desespero. Até que ela diz: “Oh, não!... Deus não
vai permitir! – escapou finalmente do peito confrangido de Sônia. Ela o ouvia, olhando para ele
com um ar suplicante e cruzando os braços num pedido mudo, como se tudo dependesse dele” (p.
330).
Ao insinuar que Pólietchka (irmã de Sônia) pudesse também ter o destino da prostituição,
Sônia fica desesperada e, outra vez, clama pelo Divino – “Não, não! Deus a protegerá, Deus!...”
- 86 -
(p. 332). Ao ouvir isso, Raskólnikov ainda diz: “É, mas pode ser que Deus absolutamente não
exista – respondeu Raskólnikov com certa maldade, desatou a rir e olhou para ela” (p. 332). Após
destilar todo seu veneno sobre o destino de Sônia, ele passa a reverenciá-la, inclinando-se,
beijando-lhe os pés e dizendo: “Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o
sofrimento humano” (p. 332). Essa frase demonstra um ponto em que Raskólnikov se liga a
Sônia, ou seja, ambos se aproximam pela condição humana de sofrimento.
Raskólnikov espanta-se com a ambigüidade do caráter de Sônia ao questioná-la sobre
“como combinas em ti tamanha ignomínia e tamanha baixeza com outros sentimentos opostos e
sagrados? (p. 333). Compreende que o que a impede de cometer suicídio é a idéia de pecado.
Após ouvi-la ler a passagem bíblica que narra a ressurreição de Lázaro chama-a para seguirem
juntos pelo mesmo caminho, uma vez que são dois malditos. Raskólnikov entende que Sônia
também ultrapassou o limite, pois tirou uma vida: sua própria. Isto é, arruinou-se em prol de seus
familiares. Contudo, a prostituta optou por fiar-se em Deus e clamar por misericórdia e salvação,
enquanto Raskólnikov convida-a a ser mais pragmática com a situação, e sugere
Esmagar o que for preciso, de uma vez por todas, e só: e assumir o sofrimento! O
quê? Não estás entendendo? Depois vais entender... A liberdade e o poder,
principalmente o poder!... Sobre toda a canalha trêmula e todo o formigueiro!...
Eis o objetivo! Lembra-te disso! É isso que eu te recomendo! (p. 340)
A passagem evidencia que Raskólnikov reconhece-se no sofrimento de Sônia e na
contradição de seu caráter, que combina grandeza e baixeza. Percebe que a fé que a sustenta não
impede que os maiores infortúnios continuem acontecendo e possam vir a ser ainda piores.
Diante disso, reafirma sua postura e convida-a a acirrar suas convicções, só que dessa vez
assumindo o sofrimento decorrente de tal postura. Raskólnikov percebe que ambos romperam
- 87 -
com o que existe, ultrapassaram o limite, todavia, rejeita ser a “canalha trêmula”40, recusa-se a
ficar como criança chorando para que Deus não permita males vindouros.
Posteriormente, Raskólnikov volta à casa de Sônia para cumprir o que havia prometido:
revelar quem matou a velha Aliena e sua irmã Lisavieta. Antes de fazer a revelação propriamente
dita, começa a falar-lhe a respeito do acontecido com Lújin41, e incita-lhe a pensar sobre a
possibilidade de decidir sobre “a quem se deve permitir continuar vivendo neste mundo, isto é,
Lújin deve continuar vivendo e praticando suas torpezas, ou Catierina Ivánovna deve morrer?”
(p. 417). Essa provocação serve para introduzir o assunto do crime, e suscita novamente
declarações religiosas por parte de Sônia, uma vez que, para ela, cabe tão somente à Divina
Providência decidir a esse respeito.
Esse momento com Sônia faz Raskólnikov reviver a cena do crime, pois ele não consegue
deixar de ver Lisavieta nos olhos da prostituta e tem a mesma sensação de que não poderia perder
um instante sequer para fazer o que devia que fazer. Sem trocar palavras diretas, somente, por
insinuações Sônia “advinha” que Raskólnikov é o assassino. Entra em profundo desespero e
começa a abraçá-lo; Ródia chora. Após esse momento de comoção, em que Sônia jura que não irá
se separar dele jamais, ela começa a questionar-lhe sobre os motivos, levantando a hipótese da
pobreza de imediato. Na tentativa de explicar-se Raskólnikov diz
Se eu tivesse matado apenas porque estava com fome [...] agora eu estaria... feliz!
Fica sabendo! (p. 422, grifo do autor).
40
A expressão “trêmula criatura” remonta ao Alcorão e é repetida por duas vezes no romance, sendo que na primeira
delas Raskólnikov alegava compreender o profeta por sua cega obediência – “Alá manda, então obedece, ‘trêmula’
criatura” (p. 285). No primeiro momento o protagonista chegara à conclusão de que era um piolho por isso
compreendia a tal criatura, ao passo que, nesse segundo contexto, Raskólnikov recusa tal postura.
41
Na ocasião das exéquias pela morte de Marmieládov, Lújin chamou Sônia em seu apartamento, ofereceu-lhe dez
rublos, e, sem que ela percebesse colocou em seu bolso uma nota de cem rublos. Posteriormente acusou-a de ter-lhe
roubado essa quantia, conseguindo provar o que dizia ao encontrar a nota que ele mesmo havia colocado. Lújin foi
desmascarado por Leibeziátnikov (com quem dividia o quarto). Nesse momento, Raskólnikov está cogitando a
possibilidade de que Lújin não viesse a ser desmascarado e que, com isso, Sônia fosse presa.
- 88 -
[...]
Vê só: eu queria tornar-me um Napoleão e por isso matei... Então, agora dá para
entender? (p. 423)
[...]
-- O negócio é o seguinte: certa vez me fiz uma pergunta: o que aconteceria se,
por exemplo, no meu lugar estivesse Napoleão e, para começar a carreira, ele não
tivesse nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia do Mont Blanc, mas em vez
dessas coisas bonitas e monumentais houvesse pura e simplesmente alguma velha
ridícula, usurária, que ainda por cima ele precisasse matar para lhe surrupiar o
dinheiro do cofre (para a sua carreira, estás entendendo?) [...] senti uma imensa
vergonha quando finalmente adivinhei (subitamente e de alguma forma) que ele
não só não ficaria enojado como nem lhe ocorreria que aquilo não era
monumental... e nem chegaria a entendê-lo inteiramente: por que enojar-lhe com
isso? (p. 424)
Mais adiante reafirma todos os pressupostos de sua teoria sobre os dois tipos de homem,
concluindo que “quem pode ousar mais que todos, tem mais razão do que todos! Assim tem sido
até hoje e assim será sempre! Só um cego não vê.” (p. 426), e, nesse momento, “Sônia
compreendeu que esse catecismo sombrio se tornara a fé e a lei dele” (p. 426). Dessa forma, no
primeiro encontro Raskólnikov descobre “a fé e a lei” de Sônia, aquilo que a sustenta na miséria
de forma obstinada e abnegada. Nesse segundo encontro é a vez de Sônia perceber em que
Raskólnikov se apóia para cometer a transgressão.
Assim, essa passagem elucida o ponto em que as duas personagens se juntam, isto é, o
casal se encontra no ato da transgressão e no sofrimento dela advindo, e, mais do que isso, tratase trata de uma transgressão calcada em princípios (para ela o religioso e para ele o radical).
Como protagonistas dessas atitudes tem-se pessoas com caráter dinâmico, que suscitam terror e
piedade com suas ações, constituindo a tragédia. Essa contradição provoca a catarse no momento
do reconhecimento, que no caso do romance não ocorre em uma única cena42. Eis a diferença
entre o romance dostoievskiano e a tragédia grega. Embora seja possível identificar esses
elementos qualitativos e a profunda contradição que serve de base para a catarse, tais
42
Em outros episódios da presente análise verifica-se que Raskólnikov chega a conclusão de que não é um Napoleão,
mas um piolho.
- 89 -
características não se configuram de maneira monologizadora, que conduza a uma síntese dos
opostos. Nesse sentido, as observações de Bakhtin sobre a polifonia e de Ranciére43 sobre o fato
da psicologia de Crime e castigo ser a ruína impecável da ciência do encadeamento dos
pensamentos e ações que sustentam a tragédia clássica podem ser verificadas. Dessa forma, os
vários episódios de análise constantes no presente trabalho têm, a sua maneira, um
reconhecimento por parte do protagonista, que o leva a ampliar sua consciência sobre si mesmo.
43
Vide Capítulo III – Considerações acerca da literatura de Dostoiévski e do Niilismo de seu tempo, do presente
trabalho.
- 90 -
“Há um Schiller perturbando a todo instante dentro do senhor”44 – Raskólnikov e
Svidrigáilov
A
relação
entre
Svidrigáilov
e
Raskólnikov
é
praticamente
inexistente
até
aproximadamente a metade do romance. O protagonista toma conhecimento sobre essa
personagem por meio da carta que sua mãe envia, na qual relata o assédio que Dúnia (irmã de
Raskólnikov) sofre, na ocasião em que trabalhou em sua casa. As motivações que levaram
Svidrigáilov a visitar Raskólnikov são imediatamente expostas pelo primeiro: conhecer
pessoalmente Ródia e tê-lo como intermediário de um empreendimento com Dúnia.
Sem hesitar, o protagonista recusa-se a desempenhar o papel que o outro lhe designa.
Com isso, Svidrigáilov começa a interrogá-lo a respeito do motivo de tal rejeição dirigindo-lhe a
seguinte questão: “o que há, em tudo isso, em realidade, de tão especialmente criminoso de
minha parte, julgando de forma racional, isso é, sem preconceitos?” (p. 291)
Esse questionamento pode ser entendido como algo que remete diretamente ao crime de
Raskólnikov, bem como as concepções que este alega ter sobre o mesmo, haja vista que esse
personagem realizou o ato desconsiderando seu caráter criminoso, e, mais do que isso,
justificando-o racionalmente. Ao contrário, o que Raskólnikov faz é exatamente o que
Svidrigáilov propõe com sua questão, ou seja, julga a própria atitude sem preconceitos,
entendidos aqui como moralismos e/ou convenções sociais, que se configurariam como
obstáculos ao desenvolvimento e progresso da humanidade.
Ademais, Svidrigáilov leva Raskólnikov a pensar se, em realidade, ele se consittui em
vítima ou monstro nessa situação, quando diz:
44
Svidrigáilov referindo-se a Raskólnikov em Crime e castigo (Sexta Parte, Capítulo V: 493).
- 91 -
No entanto, suponha apenas que eu seja homem, et nihil humanum...45 numa
palavra, que até que eu seja capaz de me deixar seduzir e amar (o que, é claro,
acontece não por imposição nossa), e então tudo se explicará da forma mais
natural. Aí está toda a questão: sou um monstro ou eu mesmo sou uma vítima?
Mas vítima, como? É que, ao propor ao meu objeto fugir comigo para a América
ou para a Suíça, eu, é possível, nutria os sentimentos mais respeitosos, e ainda
pensava em construir a felicidade de dois!... É que a razão está a serviço da
paixão: eu, vai ver, arruinei ainda mais a mim mesmo, ora... (p. 291/2)
Mais uma vez Svidrigáilov dialoga com as concepções mais arraigadas em Raskólnikov,
no que se refere a utilizar-se de meios questionáveis para chegar a um fim meritório. A diferença
que se pode notar entre os dois personagens seria no âmbito do tipo de atitude que cada um toma.
Svidrigáilov é um nobre ocioso e libertino, um típico homem supérfluo, que vive em função de
satisfazer suas necessidades sexuais, cedendo a paixões mil, que justifica suas investidas sobre
Dúnia como sendo algo da natureza do homem e que pode ter uma finalidade magnânima.
Raskólnikov, por sua vez, julga poder ser extraordinário, e, por isso, ultrapassar o limite. Com
base em tais idéias comete os assassinatos, o qual justifica ao afirmar que esse seria um meio em
prol de um fim humanitário. De forma que fica clara uma grande semelhança no raciocínio que
ambos desenvolvem.
Ao ouvir isso, entretanto, Raskólnikov imediatamente “desmascara” os fins que justificam
os meios de Svidrigáilov, ao dizer:
-- Só que não é nada disso – interrompeu Raskólnikov com asco –, o senhor é pura
e simplesmente repugnante, tenha razão ou não, e aí não querem saber mesmo do
senhor, mostram-lhe a porta da rua; e vá embora!...
Svidrigáilov deu uma súbita gargalhada.
-- No entanto o senhor... no entanto não dá para desnortear o senhor! – pronunciou
ele rindo com a maior franqueza. – Eu pensei em tergiversar, mas nada, o senhor
acertou precisamente o alvo de verdade! (p. 292)
45
Refere-se à frase Homo sum: humani nihil a me alienum puto (Sou homem: nada do que é humano me é estranho)
de Terêncio, O homem que a si mesmo se castiga, I, 1, 25 (conforme nota da edição em russo).
- 92 -
É interessante notar a clareza e objetividade de Raskólnikov em seu pensamento. Nesse
momento compreende um ponto de extrema importância para o desenvolvimento do romance,
pois, ao dizer que, não importa que tenha ou não razão, Svidrigáilov é, para ele, repugnante, o
protagonista faz com que a razão deixe de ser o critério que define o caráter de alguém. A partir
disso é pode-se entender que para além disso, deve haver algo da ordem da ética e, por assim
dizer, da emoção46. É possível pensar que essas falas remetem à crise do sujeito do projeto
racionalista, o qual, por muitas vezes excluir a emoção, é incapaz de compreender o homem em
sua multiplicidade.
O reconhecimento de que há questões que dizem respeito não somente à razão é algo
compartilhado entre Raskólnikov e Svridrigáilov, já que este concorda com o que foi dito pelo
primeiro, e isso demonstra haver uma intersecção em suas concepções. Essa intersecção é
confirmada por Svidrigáilov durante esse diálogo quando, por exemplo, ele afirma que entre eles
existe um ponto em comum (p. 298), quando diz “somos vinho da mesma pipa” (p. 300), ou
ainda quando relata: “não paro de achar que o senhor tem alguma coisa que combina comigo” (p.
303).
Apesar de nesse primeiro momento as impressões de Raskólnikov sobre Svidrigáilov não
terem sido das melhores, procurou-o para um derradeiro encontro. Por certa circunstância,
Svidrigáilov ouviu o próprio Raskólnikov confessar ter cometido o crime para Sônia, por isso o
protagonista “tinha presa de ver Svidrigáilov; não estaria esperando dele alguma coisa nova,
indicações, uma saída? [...] Ele não podia deixar de se dar conta de que precisava de fato do
outro para alguma coisa” (p. 472/3). Ainda assim, parecia não compreender direito o que o
impelia naquela direção: “Bem, mas o que pode haver mesmo de comum entre eles? Nem o crime
46
Ética está sendo considerada aqui conforme a filosofia de Espinosa (retomada por Sawaia e abordada no Capítulo
II do presente trabalho), e, por isso, a dimensão das emoções é incorporada.
- 93 -
poderia ser o mesmo nos dois. Esse homem [Svidrigáilov], além do mais, é muito desagradável,
pelo visto devasso ao extremo, forçosamente finório e enganador, talvez muito mau” (p. 473).
Em certo momento Svidrigáilov explica suas tendências libertinas, que tanto
incomodavam Raskólnikov:
-- [...] Diga-me, porque eu iria me conter? Porque abandonar as mulheres, se sou
um apreciador delas? Pelo menos é uma ocupação
-- Então sua única esperança aqui é a libertinagem?
-- Ora, qual é o problema, pois que seja a libertinagem! [..] Nessa libertinagem, ao
menos, existe alguma coisa permanente, baseada inclusive na natureza e imune à
fantasia, algo que permanece no sangue como um carvãozinho sempre
incandescente, que arde eternamente, que persiste ainda por muito tempo, e tão
cedo não se extingue, talvez nem com o passar dos anos. Convenha, por acaso não
é uma espécie de ocupação?
-- [...] Isso é uma doença.
-- [...] Concordo que é uma doença, como tudo o que passa por cima da medida
[...] Não houvesse isso o jeito era meter um tiro na cabeça, vai ver que seria o
caso. (p. 479)
Diante das resistências de Raskólnikov em relação às suas condutas Svidrigáilov dirige-se
a ele como Schiller, com a intenção de expressar que este é um idealista:
-- Schiller, Schiller, o nosso Schiller! Oú va-t-elle la vertu se nicher?47 Sabe, eu
vou lhe contar de propósito esse tipo de histórias para ouvir os seus gritinhos. Que
prazer!
-- Pudera eu não estou sendo ridículo neste momento? – resmungou Raskólnikov
com raiva. (p. 490)
-- [...] se é assim então o senhor é um gradessíssimo cínico. Pelo menos guarda em
si um potencial gigantesco. (p. 491)
Esse encontro deflagra para Raskólnikov o lado impiedoso, “nu e cru” do egoísmo que ele
próprio apresenta em muitos momentos do romance, o qual se encontra fortemente relacionado
com todo o desenvolvimento do crime. A explicita amoralidade e libertinagem que coloca
47
“Onde não se aninha uma virtude?”. A frase é atribuída à Molière em resposta a um pedinte que achara que o
dramaturgo se equivocara ao lhe dar uma moeda de ouro (conforme nota da edição em russo).
- 94 -
Svidrigáilov como alguém irreverente e despreocupado com dogmas estabelecidos remetem
àquele Raskólnikov que gostaria de ultrapassar os limites das convenções, e parece que ao
procurá-lo o protagonista está em busca de uma saída, a qual pode ser oferecida por alguém com
as características supracitadas. Eis o que Svidrigáilov lhe propõe:
Compreendo que questões o senhor levanta: questões morais, não? Questões do
cidadão e do homem? Deixe-as de lado; para que lhe servem agora? He-he!
Porque o senhor continua cidadão e homem? Sendo assim, então não devia ter se
metido nisso; nada de se meter com o que não é da sua competência. Então meta
uma bala na cabeça; ou não quer? (p.494)
Essa fala traz uma clara distinção entre homem e cidadão, sendo que homem aqui remete
ao et nihil humanum, citado no início desse episódio, ou seja, o “apenas homem”, que segundo
Svidrigáilov é aquele que é capaz de se deixa seduzir e amar de forma natural, isto é, aquele que
vive sua sexualidade de forma libertina48. De maneira que, a concepção de homem de
Svidrigáilov parece ser mais determinista, algo como que regido por impulsos biológicos
inerentes. Com isso, aproximam-se mais uma vez Svidrigáilov e Raskólnikov, à medida que,
assim como na hipótese da existência de duas categorias de seres humanos desenvolvida pelo
segundo no artigo A respeito do crime, a concepção de homem implícita na fala do primeiro,
também leva a uma noção de essência humana.
Em contrapartida, um cidadão vai além dessas determinações basilares, é capaz de pensar
sobre ética e constituir uma moral. Svidrigáilov é decididamente “apenas homem”, ao passo que
Raskólnikov pretende-se cidadão. É possível aproveitar o paralelo que o próprio Svidrigáilov faz
entre Raskólnikov e Schiller para pensar na concepção deste filósofo acerca do Estado Natural
(da necessidade) e Estado Moral (da liberdade), sendo que o primeiro deles, por caracterizar-se
48
Segundo o dicionário Houaiss, libertino é aquele que “leva uma vida dissoluta, que se entrega imoderadamente aos
prazeres do sexo; que revela irreverência a regras e dogmas estabelecidos, especialmente à religião e à prática desta”
- 95 -
pela falta de liberdade diante dos impulsos da natureza, assemelha-se ao que Svidrigáilov chama
de homem; e o segundo que é regido pela razão, a qual confronta-se com o natural em prol do
ideal e moralmente necessário, aproxima-se da noção de cidadão.
Essas idéias facilitam a compreensão da distinção entre as duas personagens focadas nesse
episódio, pois, ao tornar-se um transgressor da moralidade, ao ultrapassar os limites impostos
pelas convenções, em especial no que diz respeito à sexualidade, Svidrigáilov não alcança
liberdade e poder, e permanece, ao contrário, cativo de sua própria natureza. Diferentemente de
Raskólnikov, para quem essa transgressão das normas que lhe foram impostas pelo social não
bastava, pois o principal seria “ultrapassar a si próprio”, isto é, lançar-se para além da
mediocridade de sua existência até aquele momento, que se limitava à providência do necessário
para sobreviver.
É nesse sentido que se pode compreender a associação de Raskólnikov com Schiller e,
com isso, perceber o que leva Raskólnikov a recusar Svidrigáilov como uma saída para sua
situação, haja vista o contra-senso em que isso implicaria. Além disso, a partir dessa
problemática, é possível formular aquilo que poderia ser uma das questões centrais de
Raskólnikov, ou seja, como é possível ser “homem” e “cidadão” simultaneamente?
- 96 -
“Agora ele não resolveria nada de modo consciente; apenas sentia”49
Nos momentos finais do romance, Raskólnikov cogita o suicídio como uma possível saída
para sua situação, relembrando a sugestão de Svidrigáilov. Posteriormente, ao relatar esse
pensamento a sua irmã Dúnia, esta se alegra com o fato do irmão ainda acreditar na vida. Nesse
momento Raskólnikov já havia decidido por se entregar à polícia, cedendo, ao menos
aparentemente, às súplicas de Sônia:
-- Vou. Agora. E foi para evitar essa vergonha que eu quis me afogar, Dúnia, mas
pensei, já postado sobre o rio, que se até agora eu me considerei forte, então
doravante é não temer a vergonha – disse ele, antecipando-se. – Isso é altivez,
Dúnia?
-- É altivez, Ródia.
Foi como se um fogo tivesse brilhado em seus olhos apagados; foi realmente
agradável perceber que ainda era altivo.
-- E tu não achas, minha irmã, que eu simplesmente tive medo da água? –
perguntou ele com um sorriso feio, olhando-a no rosto. (p. 524)
Essas falas indicam que, em verdade, o motivo de abandonar o suicídio tem mais a ver
com uma tentativa de reafirmar que não era covarde, que não era um fraco, um “piolho”. Assim,
não é possível inferir que se trate de uma “crença na vida”, um respeito por ela, como supõe
Dúnia, uma vez que Raskólnikov anteriormente concluíra que, ao assassinar a velha, foi a si
mesmo que ele matou. Parece ter real importância que ainda possa permanecer altivo, e
reconhecido como tal. A palavra altivez, conforme o dicionário Houaiss implica em dois sentidos
conflitantes: pode referir-se a um sentimento de dignidade, nobreza e magnanimidade, assim
como pode relacionar-se com uma atitude de arrogância, soberba e intolerância. A ambivalência
intrínseca ao significado dessa palavra expressa com bastante fidedignidade o caráter do
protagonista, ou seja, o dinamismo entre o altruísmo, a ignomínia e o mais profundo egoísmo e
49
Crime e castigo (Epílogo, Capítulo II: 559).
- 97 -
descaso para com a humanidade. Ao levantar a possibilidade do medo ter sido o único motivo
que o impediu de suicidar-se, Raskólnikov mostra-se mais consciente da própria ambivalência do
que sua irmã.
Uma fala seguinte desvela ainda mais as profundas contradições no caráter de
Raskólnikov:
-- Será que tu, ao assumires o sofrimento, já não apagas metade do teu crime? –
gritava ela [Dúnia], apertando-o em seus braços e beijando-o.
-- Crime? Que crime? – gritou ele subitamente, caindo em repentina fúria. – O
fato de eu haver matado um piolho nojento, nocivo, uma velhota usurária, que não
faz falta a ninguém? Quem mata esse ladrão tem cem anos de perdão! Que sugava
a seiva dos pobres, isso lá é crime? Não penso nem em apagá-lo. E que história é
essa de ficarem me apontando de todos os lados: “Crime, crime!”. Só agora vejo
com clareza todo o absurdo da minha pusilanimidade, agora que me resolvi a
assumir essa desnecessária vergonha! É simplesmente por minha baixeza e
mediocridade que me resolvo, sim, e ainda pela vantagem, como me propôs esse...
Porfiri!50... [...]
Com essa tolice eu queria apenas me colocar numa condição independente, dar o
primeiro passo, conseguir recursos, e depois tudo seria reparado pela utilidade
relativamente incomensurável do ato. Mas eu, eu não segurei nem o primeiro
passo, porque sou um patife! [...] se eu tivesse conseguido, eu seria coroado, mas
agora vou para a armadilha!
-- Mas não é isso, não é nada disso! Meu irmão, que coisa estás dizendo!
-- Ah! não é a forma, não é a forma esteticamente boa! [...] O medo à estética é o
primeiro indício de impotência!... (p. 525/6)
Raskólnikov reafirma com toda convicção o cerne das idéias contidas em sua teoria sobre
os homens ordinários e os extraordinários. Aqui a decisão de entregar-se parece passar
exclusivamente pelo fato de que, tendo em vista os desdobramentos do crime, ele pertenceria à
categoria de seres ordinários, e que, por isso, cumpriria necessariamente seu destino de sucumbir
ao castigo. Todavia, a análise de outros momentos leva a crer que esse seja apenas um aspecto da
questão, pois, ao colocar a problemática no âmbito da estética, a determinação de que algo seja
aceito ou não deixa de depender de aspectos éticos e morais, e, porque não dizer, da própria
50
Porfiri, na última conversa que tivera com Raskólnikov, propôs-lhe que se denunciasse, pois assim poderia ter sua
pena atenuada.
- 98 -
divisão da humanidade nas categorias que Ródia propõe e passa a ser considerada como algo que
depende exclusivamente do impacto que certa atitude pode gerar nas sensações. Além disso, a
questão da teoria fica posta em xeque, ao menos em partes, no momento em que Ródia duvida
que o castigo pode levá-lo a redimir-se. Compreende todo o procedimento legal como uma
espécie de “teatro”, que tem por finalidade reverenciar as pessoas ditas honestas, “é para isso que
estão me exilando agora, é disso que eles precisam... Aí estão eles nesse vaivém pelas ruas, mas
cada um deles é um patife e um bandido já pela própria natureza; pior ainda é um idiota!” (p.
528). Tais palavras demonstram uma outra concepção: a da natureza maligna da humanidade
como um todo e, com isso, a criação de todo o protocolo da Justiça leva-o a se indignar com a
injustiça a ele inerente.
Após a conversa com Dúnia, Raskólnikov dirige-se à Sônia para contar-lhe sobre a
decisão de entregar-se. A certa altura surpreende-se com a própria atitude: porque, afinal, havia
procurado-a e pedido-lhe suas cruzinhas? “Terá sido das cruzes dela que eu realmente precisava?
[...] Não, eu precisei das lágrimas dela [...] Era preciso que eu tivesse me agarrado ao menos a
alguma coisa, retardado as coisas, olhado para um ser humano!” (p. 531). Reconhece, enfim, a
necessidade que tem do outro, de ser olhado e reconhecido por outro ser humano, para que ele
próprio pudesse reconhecer-se como tal. Essa constatação se contrapõe totalmente à visão egoísta
e utilitária que permeia muitas vezes sua visão das coisas, e eleva a questão a um outro patamar,
que não mais pode restringir-se a uma teoria que classifica os seres, nem tampouco a uma questão
de humanitarismo que fá-lo perceber a importância da vida (seja ela qual for; quaisquer sejam as
condições em que ela se encontra). Destarte, o que essa passagem evidencia é o reconhecimento
que Raskólnikov passa a ter de algo sobre si mesmo, sobre suas próprias necessidades e, pode se
dizer, sobre suas motivações, reconhecimento este que ocorre na sua relação com Sônia.
- 99 -
A Sexta Parte do romance termina com Raskólnikov confessando-se diante do tenente Iliá
Pietróvitch. Seguindo-se a isso se tem o Epílogo, no qual o narrador trata dos fatos subseqüentes
à confissão, desde a prisão e julgamento de Raskólnikov, até mesmo o destino que tomaram as
vidas de sua mãe Pulkhéria, de sua irmã Dúnia e de amigo Razumíkhin. A respeito do epílogo
cabem algumas considerações no que tange ao estilo em que foi construído, o qual, de certa
forma, diferencia-se do modo pelo qual as outras seis partes do romance foram elaboradas.
Em seu estudo sobre a obra de Dostoiévski, Joseph Frank, analisando os cadernos de
notas do autor, descreve o longo e árduo processo de construção de Crime e castigo, revelando
que a obra foi, inicialmente, escrita em primeira pessoa. O autor, percebendo as contradições e
complicações derivadas dessa decisão, modifica-a algumas vezes, até que chega a forma de
narração em terceira pessoa, criando um narrador diferenciado, o qual não deveria constituir-se
como um autor implícito da obra, que pudesse moldar a perspectiva romancística. A opção de
Dostoiévski foi pela criação de um narrador que se mostrasse como “uma espécie de ser invisível
e onisciente, que não deixa seu herói por um momento sequer” (Dostoiévski apud Frank, 2003:
138), de modo que esse narrador esteja o mais próximo possível do ponto de vista do
protagonista, possibilitando que se mantenha as vantagens e efeitos da narração em primeira
pessoa e, concomitantemente, permita “a liberdade de onisciência necessária para dramatizar o
processo de autodescoberta de Raskólnikov, para revelar a personagem aos poucos, para fazer
comentários externos sobre ela quando isso se torna necessário e para abandoná-la quando a
trama-ação se amplia” (Frank, 2003: 138).
É a construção desse tipo de narrador que permite sustentar a análise de Bakhtin a respeito
do personagem em Dostoiévski, quando o crítico afirma que “aquilo que o autor executa é agora
executado pela personagem, que focaliza em si mesma todos os pontos de vista possíveis; quanto
- 100 -
ao autor, já não focaliza a realidade da personagem, mas a sua autoconsciência enquanto
realidade de segunda ordem” (Bakhitn, 1997: 48).
Essa proximidade entre narrador e protagonista mostra-se menos característica do epílogo
(especialmente em seu primeiro capítulo). O leitor não mais é lançado às profundezas do
psiquismo de Raskólnikov, ficando apenas a par dos fatos subseqüentes à confissão. É possível
dizer, ainda, da dificuldade de pensar esse momento nos termos da polifonia e do diálogo das
vozes de que trata Bakhtin, dada a escassa presença de diálogos “externos” e “internos”51 nessa
parte.
O segundo e último capítulo do epílogo inicia-se tratando da atitude de Raskólnikov com
relação ao cumprimento da pena que realizava na Sibéria:
[...] Iria envergonhar-se da cabeça raspada e da meia jaqueta? Diante de quem? De
Sônia? Sônia o temia, e era dela que ele iria sentir vergonha?
Então o que era? Ele sentia vergonha até de Sônia, que ele atormentava com o
tratamento desdenhoso e grosseiro que lhe dispensava. Mas não era da cabeça
raspada e dos grilhões que se envergonhava: seu orgulho estava fortemente ferido;
era de orgulho ferido que estava doente. Oh, como seria feliz se pudesse acusar-se
a si próprio! Aí suportaria tudo, até a vergonha e a humilhação. Mas ele fez um
julgamento severo sobre si mesmo, e sua consciência obstinada não descobriu
nenhuma culpa especialmente terrível no seu passado, a não ser uma simples falha
que podia acontecer a qualquer um. (p. 553, grifo do autor)
A esse trecho segue-se toda uma argumentação que Raskólnikov faz para tentar convencer
que o ato que cometeu não era, de fato, criminoso, ou, ao menos, não mais criminoso do que
muito daquilo que acontecia pelo mundo; bem como para reafirmar que não se arrependia e que
tinha a consciência tranqüila. Para ele só havia uma conclusão possível para tudo o que lhe
51
Toma-se por “diálogo externo” aquele em que duas personagens travam uma conversa, ao passo que, “diálogo
interno” seria aquele da personagem em sua consciência, resultante muitas vezes da retomada de vozes de outras
personagens e da sua própria, e que configura uma espécie de fluxo de consciência. Frank alerta para o fato de
Dostoiévski ter sido profundamente original na construção de sua narrativa, pois “através do emprego [...] de
mudanças temporais de memória e de sua notável manipulação da seqüência temporal, começa a aproximar-se das
experiências de Henry James, de Joseph Conrad e, mais tarde, de escritores do fluxo-de-consciencia como Virginia
Woolf e James Joyce” (2003: 138).
- 101 -
acontecia: “eis em que não reconhecia seu crime: apenas no fato de não o ter agüentado e ter
confessado a culpa” (p. 554).
Refletindo novamente sobre a ocasião em que pensa em suicidar-se e desiste,
atormentava-se, sem entender porque não superou a suposta força do desejo de viver. Nesse
momento o narrador exerce sua função de onisciência no intuito de dramatizar o processo de
autodescoberta de Raskólnikov, fazendo o seguinte comentário:
[...] não conseguia entender que, naquele momento em que estava sobre o rio,
talvez pressentisse uma profunda mentira no seu íntimo e em suas convicções.
Não compreendia que aquele pressentimento pudesse ser o prenúncio da futura
transformação em sua vida, da sua futura ressurreição, da sua futura concepção
nova de vida. (p. 554)
Aqui o narrador coloca às claras a contradição entre a confissão de Raskólnikov e sua
indisposição em aceitar que o assassinato tenha sido, de fato, um crime, ou que a vida possa valer
a pena nessas circunstâncias. Evidencia-se, dessa forma, a incompreensão que atormenta o
protagonista no que diz respeito a sua condição no presente. Essa irresolução deixa Raskólnikov
indisposto com todos seus companheiros de prisão, para os quais vale tanto “um raio qualquer de
sol, um matagal, uma nascente fria em confins ignorados, marcada há coisa de três anos e que o
vagabundo sonha encontrar como sonha com uma amante” (p. 555); e, até mesmo, com Sônia,
que o acompanhava, fazendo-o visitas todos os dias e escrevendo cartas relatando as notícias para
seus familiares. Para Raskólnikov “parecia que ele e eles eram nações diferentes” (p. 555).
Um dia Raskólnikov adoeceu e, em estado de convalescença sonha que o mundo sofre de
uma peste “terrível, inédita e inaudita” (p. 556), em função da qual todos passaram a considerar a
si próprio como detentores da verdade absoluta. Estando cada qual com suas verdades, ficou
impossibilitado qualquer tipo de julgamento sobre o que seria tido como bem e mal. Tomados por
- 102 -
uma incontrolável raiva, as pessoas matavam-se umas as outras. Esse sonho remete diretamente
às concepções de Raskólnikov descritas por sua teoria de homens ordinários e extraordinários. E
a possibilidade aventada pelo sonho de uma sociedade em que todos se considerassem
extraordinários atormentou Raskólnikov e constitui seu derradeiro confronto com suas próprias
convicções. O sonho leva-o a pensá-las até as últimas conseqüências, até o limite de seus
desdobramentos, no qual desaparecem qualquer tipo de humanitarismo e benevolência que
pudessem porventura embasá-las. Com isso, segundo Frank, “Dostoiévski tratou do niilismo
russo com uma percepção inquietadora e aguda dos perigos que se escondiam por trás de suas
aspirações aparentemente meritórias – uma percepção aguçada pelas observações do
comportamento humano aberrante que fez na prisão52” (2003: 148).
Após isso, foi Sônia quem adoeceu, e, com isso, deixou de visitar Raskólnikov por uns
dias. Durante esse período de afastamento, o personagem sente uma arrebatadora saudade,
rompendo com o tratamento frio e distante que vinha destinando a ela. Ao reencontrá-la, “alguma
coisa pareceu o impelir e lançá-lo aos pés dela. Ele chorava e lhe abraçava os joelhos” (p. 558/9).
Inicialmente perplexa com a atitude, Sônia empalideceu. Depois “ela compreendeu, e para ela já
não havia dúvida, que ele a amava, a amava infinitamente, e que enfim chegara esse momento...”
(p. 559).
Para explicitar o que ocorre com Raskólnikov nessa passagem o narrador diz:
O amor os ressuscitara, o coração de um continha fontes infinitas de vida para o
coração do outro [...]
Ademais, o que significavam todos esses, todos os suplícios passados? Tudo, até o
crime dele, até a condenação ao exílio, agora, no primeiro impulso, pareciam-lhe
algum fato externo, estranho, até como se não tivesse acontecido com ele. Aliás,
nessa noite ele não conseguia pensar de forma demorada e constante em nada,
concentrar o pensamento em nada; demais agora ele não resolveria nada de modo
52
Remete ao período que Dostoiévski passou na Sibéria cumprindo pena de trabalhos forçados.
- 103 -
consciente; apenas sentia. A dialética dera lugar à vida, e na consciência devia
elaborar-se algo inteiramente diferente. (p. 559)
Esse Raskólnikov, que aqui se apresenta, contrasta significativamente com aquele cujos
“sonhos [foram] tirados de livros” e cujo coração estava “exasperado por teorias”53. O
racionalismo, que ocupava uma posição primordial em sua subjetividade, agora não mais a pauta.
Ao invés de exaltar-se com as teorias que davam sentido à sua existência e às suas atitudes, agora
Raskólnikov parece encontrar um outro sentido para elas. Aquelas mesmas teorias haviam
afastado-o do convívio humano, pois Raskólnikov mostrava-se cada vez mais isolado e
atormentado, passando a maior parte do tempo em estado de semi-consciência, solitário em seu
cubículo. A renovação para que o final do romance aponta vai numa direção oposta a essa,
Raskólnikov vê-se impelido ao contato com o outro e possibilitado de encontrar-se com uma
dimensão de si mesmo que havia até então negligenciado: as próprias emoções, as quais o
racionalismo muitas vezes rechaça.
Essa modificação acontece na ocasião em que tem vazão para expressar-se o sentimento
que se desenvolve entre o protagonista e Sônia. O amor abre-se como possibilidade de uma nova
perspectiva. Por fim, as palavras de Schiller em uma de suas cartas podem ser aqui retomadas
para compreensão do significado desse sentimento para a transformação.
Quando cercamos de paixão quem mereça nosso desprezo, sentimos penosamente
a necessidade natural. Quando somos hostis a quem mereça nosso respeito,
experimentamos penosamente a necessidade da razão. Tão logo, entretanto, ele
interessa à nossa inclinação e conquista nosso respeito, desaparecem tanto a
coação do sentimento quanto a da razão e começamos a amá-lo, isto é, jogamos a
um tempo com nossa inclinação e o nosso respeito. (1991: 87)
53
Porfiri Pietróvitch falando de Raskólnikov e do crime que este cometeu, diz: “Aqui vemos sonhos tirados de
livros, aqui vemos um coração exasperado por teorias; aqui vemos a decisão de dar o primeiro passo, mas uma
decisão de uma espécie particular – ele tomou a decisão, mas foi como se tivesse caído de uma montanha ou
despencado de um campanário, e chegou ao crime como se não houvesse caminhado com as próprias pernas.
Esqueceu-se de fechar a porta após entrar, e matou, matou duas pessoas, apoiado na teoria.” (p. 465).
- 104 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 105 -
Em função da metodologia escolhida e das concepções que a permeia, não seria possível
denominar esse momento de conclusão, uma vez que fazê-lo implicaria numa contradição. Além
disso, dada a perspectiva psicológica adotada, não se pretende fazer generalizações ou mesmo
concluir dados, fatos ou características sobre o ser humano, mas refletir acerca de sua condição.
Para tanto, são essenciais as relações humanas, já que nelas se dão o exercício e a própria
constituição da subjetividade. Nesse contexto, a questão das emoções é essencial, pois, ao mesmo
tempo em que elas fundam as relações, são fundadas por elas.
Tendo esses pressupostos em vista, é possível tecer algumas considerações acerca da
personagem Raskólnikov, com o intuito de agrupar as principais questões levantadas nos
episódios de análise desenvolvidos na Segunda Parte. A profundidade da personagem analisada
impossibilita assunções simplistas acerca de seu caráter e uma tentativa resumi-lo em poucas
palavras estará fadada ao fracasso. Nos contextos concretos de relacionamento suas facetas vão
sendo desveladas e é possível perceber as profundas contradições que o marca.
Assim, Raskólnikov vai transitando de um oposto a outro, passando, por exemplo, do
extremo sentimento de humanidade e altruísmo ao mais frio e calculista egocentrismo. Tal
contradição faz-se presente desde o princípio, pois está na própria gênese da decisão pelo fatídico
assassinato, constituindo-se como uma alavanca que alça o protagonista a lugares de si mesmo
que lhe eram completamente desconhecidos.
Destarte, Raskólnikov vê-se capaz de atitudes magnânimas e, em outras ocasiões,
identificam-se requintes de crueldade e desumanidade. Essas duas polaridades, embora opostas,
convivem num mesmo indivíduo sem que se possa dizer que em apenas uma delas está sua
- 106 -
verdade, já que Raskólnikov é a contradição54. E ela não será resolvida facilmente, por atitudes
moralistas que encerrem o caso por meio da aplicação pura e simples de uma regra.
No desenvolvimento do romance, o protagonista tem a oportunidade de dialogar com
outros pontos de vista, os quais aparecem em sua consciência de modo autêntico e não reificado.
Nesses diálogos e nas reverberações dos mesmos em Raskólnikov é que são descobertas as
profundezas de seu psiquismo.
Uma outra contradição que se faz presente é, por um lado a necessidade que o
protagonista apresenta de ser ajudado, de ser resgatado de uma condição que provoca-lhe
sofrimento, e, por outro, a total recusa dessa necessidade e a crença de ser alguém autônomo que
não precisa do “assistencialismo” alheio. Esses movimentos podem ser percebidos, por exemplo,
nos momentos em que Raskólnikov busca Razumíkhin ao mesmo tempo em que o recusa.
Por trás desse conflito tem-se uma questão que muito incomodava Raskólnikov e que diz
respeito à sua capacidade de estar sob o controle de seu próprio destino e poder desvincular-se de
um estigma de impotência. Raskólnikov questiona-se, sobretudo, acerca da sua capacidade de ser
humano. Para tanto, formula uma concepção que expresse o que isso quer dizer. Daí decorre sua
teorização a respeito da existência de duas categorias de humanos: os ordinários, e os
extraordinários. Vacilante entre entender-se como um ou como outro, Raskólnikov ocupa-se de
executar o teste que lhe daria a resposta.
Assim, o crime se configura simultaneamente como o passo inicial no sentido de “cortar o
cordão umbilical com o passado”, como diria Lújin e como uma possibilidade de verificar se
seria capaz de suportar as conseqüências de tal feito, o que atestaria seu pertencimento à
categoria dos extraordinários. Perpassam todo o romance questionamentos éticos, originados não
54
É digno de nota, novamente, que essa contradição foi expressa por Dostoiévski na atribuição desse nome à
personagem, pois raskol em russo significa cisma, cisão (cf. nota 32).
- 107 -
somente do ato criminoso em si, mas cujas raízes podem ser encontradas desde a concepção de
sua idéia. No diálogo com Lújin, quando essa questão aparece, o protagonista lida com ela de
modo exclusivamente racional, ainda que emocionalmente atordoado.
Pode-se dizer que toda essa “simplificação” dos impasses éticos e morais tem suas origens
na classe dos raznochintsi. Para compreensão desse grupo da intelligentsia russa é imprescindível
considerar o contexto sóciopolítico desse país na segunda metade do século XIX, uma vez que
essa geração se constitui como contraponto da geração de 1840 e em oposição a toda organização
social excludente do regime autocrático.
Em busca do novo homem, declaram a importância da ciência como algo que deve pautar
o desenvolvimento social e a necessidade de ultrapassar os ditames e convenções da sociedade
para promover esse desenvolvimento e demover a Rússia de seu atraso. Este ideário torna
indiscernível moralismo e reflexão ética e transforma ambos em uma mesma coisa.
Nesse sentido, Crime e castigo pode ser visto como uma obra que dialoga com essa
ideologia e coloca-a em cheque. O juiz de instrução Porfiri seria aquele que alerta Raskólnikov
para o fato de que todas suas atitudes e teorizações estão circunscritas nesse contexto social
russo. Alerta esse que foi expresso na seguinte questão dirigida ao protagonista: “Quem entre nós
na Rússia hoje não se considera um Napoleão?” (p. 274).
Contudo, mesmo aí Raskólnikov não pode ser reduzido, pois, ainda que seja possível vêlo como um produto de uma certa sociedade, o protagonista mostra-se um ser humano complexo
que se constitui dialeticamente a partir dessa determinação social e de suas próprias motivações.
Portanto, ainda que a teoria seja importante para compreensão da personagem, deve-se
estar atento para o que está na base disso, isto é, o sofrimento advindo da condição de subalterno
e a necessidade de existir de maneira digna. O radicalismo se insere nesse contexto como forma
- 108 -
pela qual o exercício da subjetividade se deu, de modo que não seja possível dissociar
completamente individuo e sociedade.
Questionamentos de ordem ética são constantes no romance e Raskólnikov confronta-os
com sua teoria radical. Dadas as dificuldades que encontra, procura uma saída para sua situação.
Svidrigáilov apresenta-se como uma possibilidade, uma vez que parece conseguir conviver com
seus “crimes” de maneira relativamente tranqüila. Não obstante, Svidrigáilov é sobremaneira
simplório quanto a isso: “Questões do cidadão e do homem? Deixe-as de lado” (p. 494). Para
Raskólnikov não é suficiente ser homem, é preciso ir além, ultrapassar a própria condição e não
se bastar com ela.
Em contrapartida, um outro horizonte se abre na relação com Sônia, uma vez que esta
encarna tantas contradições quanto o próprio Raskólnikov. Ao se aniquilar diante da necessidade
de salvaguardar a sobrevivência de seus familiares, perpetra um crime contra si própria. Assim,
as personagens irmanam-se em suas transgressões calcadas em princípios (para ela o religioso,
para ele o radical) e no sofrimento delas advindo.
Atravessa todo o romance e sobressai-se em seu final a questão das emoções. Atentar para
esse aspecto conduz a importantes reflexões acerca da condição humana, suscitadas pela obra.
Raskólnikov personifica o indivíduo da modernidade fundado pelo projeto racionalista, que se
constitui de modo cindido ao enfatizar a razão em detrimento das emoções. Ainda que norteado
por elas, procura rechaçá-las e somente ao reincorporá-las torna-se capaz de reaver sua
humanidade e exercê-la integralmente. Tal feito é viabilizado pela relação humana, expressa no
romance pela forma dos diálogos e da polifonia. Dessa forma, Dostoiévski trata em Crime e
castigo de questões da condição humana tanto pela forma quanto pelo conteúdo da obra, isto é,
pela construção de uma forma viva.
- 109 -
Referências Bibliográficas
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Os Pensadores)
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. In: Sentimento do mundo. 11. ed. Rio de
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