NAVEGANDO CONTRA A CORRENTE: AS NAUS ANTIÉPICAS DE LOBO ANTUNES
Gustavo Henrique Rückert*
Professora Orientadora: Jane Fraga Tutikian
RESUMO: Este trabalho pretende analisar o romance As naus, de Lobo Antunes, enquanto texto anti-épico.
O método empregado para essa tarefa foi a realização de um estudo contrastivo entre o gênero épico e o
romance, à luz, principalmente, das teorias de Mikhail Bakhtin (em relação ao romance) e de George Lukács
(em relação ao anti-épico). Para efeito da análise do posicionamento d’As Naus em relação ao discurso épico
de Portugal, foram consideradas a epopéia Os Lusíadas, de Camões, e o relato-ficção de viagem
Peregrinação, de Mendes Pinto. Os resultados sugerem que, por intermédio de um gênero inacabado e em
aberto (o romance), Lobo Antunes, em As naus, ironiza o discurso imanente ao gênero de origem, a epopéia,
que representa um passado mitológico, fechado e absoluto. Dessa forma, com o riso amargo da ironia
representando uma realidade inessencial e vazia com a descrença nas ideologias, As Naus atua na direção do
que já fizera Peregrinação (porém sem a ironia do homem pós-moderno), ou seja, na contramão do épico, Os
Lusíadas. Ao profanar o cenário, os heróis e o discurso desse passado mítico e fechado que compõe o
imaginário português, a própria noção da identidade nacional portuguesa, por fim, acaba sendo questionada.
PALAVRAS-CHAVE: Épica, anti-épica, romance.
ABSTRACT: This work intends to analyze the novel As naus, by Lobo Antunes, as anti-epic text. The
method used for it was a comparative study between the epic genre and the novel with the theoretical support
of Mikhail Bakhtin (about novel) and of Georg Lukacs (about anti-epic). The epic Os Lusíadas, by Camões,
and the travel report-fiction Peregrinação, by Mendes Pinto, were used in order to better understanding the
position of As naus in relation to the Portuguese epic discourse. The results suggest that Lobo Antunes, with
As naus, through an unfinished and open genre, the novel, mocks the discourse immanent to the genre of
origin, the epic, which represents a mythological past, closed and absolute. This way, As naus, with the bitter
laugh of irony representing a reality inessential, empty and unbeliever in ideologies, acts in the direction of
what Peregrination have done (but without the postmodern irony): against the epic, Os lusíadas. By
desecrating the scene, the heroes and the discourse of the mythical and closed past that make up the
Portuguese imaginary, Lobo Antunes destabilizes, finally, the notion of the Portuguese national identity.
Raios partam a liberdade se a liberdade é isto.
António Lobo Antunes
*
Graduando em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010). E-mail:
[email protected]
1 O gênero épico
Um dos mais elevados gêneros literários, já definido desde a Poética por
Aristóteles, no universo greco-romano, era a Epopéia. Baseadas em modelos como,
principalmente, a Ilíada e a Odisséia, de Homero; além da Argonáutica, de Apolônio de
Rodes; e a Eneida, de Virgílio, tais obras são constituídas de narrativas que têm como
objeto narrativo grandes feitos guerreiros de um passado restituído. A matéria-prima do
gênero épico é aquilo que foi consagrado como lenda, e, com o distanciamento temporal,
passou a fazer parte da mitologia de uma região. “A construção da identidade é
indissociável da narrativa” (BERND, 2003, p.19), assim
se atribui a missão de articular o projeto nacional, de fazer emergir os mitos
fundadores de uma comunidade e de recuperar sua memória coletiva, (...)
[exercendo] somente a função sacralizante, unificadora, tendendo ao mesmo, ao
monologismo, ou seja, à construção de uma identidade do tipo etnocêntrico, que
circunscreve a realidade a um único quadro de referências. (BERND, 2003, p.19)
Na cultura clássica, os deuses constituíam entidades reais no sentido de possuírem
sentimentos e atitudes tipicamente humanos. Dessa forma, era comum ao imaginário, a
participação divina nas batalhas. “Assim, se impusera o esquema de uma intriga dos
deuses, divididos em partidos, numa determinada ação humana (uma guerra, uma viagem
marítima...)” (LOPES e SARAIVA, 2005, p.326).
“Os homens, por sua vez, pondo à prova os seus músculos em combates singulares,
ou a sua astúcia em enganar o adversário e até os deuses adversos, ganham proporções
sobre-humanas, candidatam-se à imortalidade”. (LOPES e SARAIVA, 2005, p.326). Desse
modo, mesmo excessivamente sublimados, os heróis eram tidos como exemplos a serem
seguidos, guias morais e guerreiros de todos os homens – mesmo que suas qualidades
fossem impossíveis. O herói épico acaba sendo o ícone de uma comunidade, resumindo em
si o fator comum – idealizado, é claro – de toda uma identidade nacional. É, portanto, num
passado mítico e distante, ou ainda num passado absoluto, utilizando os termos de Goethe
e Schiller, que a epopéia busca sua matéria, idealizando um conjunto valorativo da sua
nação, unificada na figura heróica.
Para a pretendida grandiloqüência do conteúdo desse gênero, faz-se necessário uma
elevada forma. Nesse sentido, a poesia em oitavas e em decassílabos é que eram formas
dignas de cantar o passado fundador da nação, bem como as intervenções divinas nele
inseridas. É devido a toda essa dimensão de importância atribuída que o gênero épico foi
entendido durante muito tempo como a “forma natural e universal da literatura”, assim
como o compreendeu Goethe. (KALEWSKA, 2000)
1.1.Os Lusíadas
É no século XVI, durante o Renascimento, que Luís de Camões compõe a obra
épica lusa: Os Lusíadas. A obra, além de um resgate da cultura clássica, almeja cantar as
glórias da expansão marítima portuguesa e da propagação da fé cristã nos novos “mundos”
descobertos.
O poema, escrito em decassílabos, narra a viagem de Vasco da Gama, seguindo a
tradição das epopéias das rotas marítimas, como as viagens de Ulisses e de Eneias.
Contudo, no decorrer do enredo, toda a História de Portugal acaba sendo tematizada. O
próprio título – Os Lusíadas – já demonstra a pretensão de uma épica visando identificação
nacional.
Adotando as exigências do gênero épico, o poema ainda apresenta a intriga de
deuses – gregos – apaixonados que, cativados ou enciumados das aventuras portuguesas,
interferem no enredo fulcral – a viagem de Vasco da Gama. Os heróis, como característico,
são desprovidos de qualquer paixão, são seres inacessíveis e distantes da condição humana.
A estrutura épica da proposição, da invocação e do ofertório também é respeitada.
A epopéia camoniana foi um fator essencial na construção de uma consciência
nacional portuguesa. A obra não mostrava – somente – as virtudes de um navegador ou de
uma embarcação, mas, sim, de um povo que seria diferenciado e escolhido por Deus –
cristão – para ampliar o seu Império e difundir a religião católica por mares nunca dantes
navegados. Os lusos, de acordo com a narrativa, foram muito além dos gregos e dos
romanos. A própria língua portuguesa passou a se consolidar a partir d’Os Lusíadas.
Assim, a obra é o grande alicerce para a consolidação de uma identidade portuguesa, pois
mostrava um grandioso passado comum aos lusos, um território – em expansão -, uma
língua, e as virtudes que seriam comuns aos filhos dessa nação.
2 O gênero anti-épico
Em 1914, Lukács, afirmando que “a grande literatura épica não é mais do que a
utopia concretamente imanente na hora histórica” (KALEWSKA, 2000), postula algumas
formulações teóricas do que chamou de uma anti-épica.
Segundo ele, o apagamento do sujeito na epopéia é trabalhado ironicamente na antiépica, bem como a aspiração metafísica – seja de um Deus, ou de uma pátria
transcendental -, que é abolida em virtude do psicologismo de personagens que estão
sempre a buscar e jamais encontrar. “A comunidade é a soma de zeros sociais que se
metamorfoseiam em milhões pela graça da voz do narrador” (KALEWSKA, 2000).
Outra característica apontada, e talvez a mais importante – até porque pode ser
entendida como uma síntese das já apresentadas -, é o sentido contra-ideológico abordado,
que também é contramitológico.
Em diversos momentos críticos de Portugal, Os Lusíadas foi utilizado como
artefato ideológico, como meio de incentivo ao nacionalismo. O exemplo mais recorrente é
o do ditador Salazar, conservador que se amparava nas bases da religião e da pátria. Sabese que, com o 25 de Abril, o discurso se modificou. A intenção passou a ser o apagamento
da mitologia cultural que sustentava o regime salazarista. Daí a necessidade de uma
contramitologia. Autores como Lobo Antunes e Saramago, dentre outros, são reflexos
desse movimento e acabaram produzindo suas literatura de acordo com essa necessidade.
Uma perspectiva oposta àquela consolidada pela mitologia, no entanto, não é
particularidade da atual geração literária em Portugal. Devido a toda a idealização inerente
à representação épica da identidade nacional, já existiram desde o próprio épico os textos
que fossem na sua contramão, demonstrando o que não teve a grandiosidade necessária
para compor a narrativa mitológica – é claro que sem a ironia pós-moderna dos romances
atuais. Fernão Lopes já desmistificara a História em algumas de suas crônicas a respeito do
cotidiano das famílias reais. Fernão Mendes Pinto acabou fazendo o mesmo em relação às
grandes navegações lusas por intermédio de sua obra Peregrinação.
2.1 Peregrinação
Fernão Mendes Pinto, em Peregrinação, narra suas aventuras marítimas. Desde
criança esteve envolvido em navegações e percorreu diversos mares, principalmente os
asiáticos, sendo, inclusive, segundo Saraiva e Lopes, “um dos primeiros europeus a pôr o
pé no Japão” (2005, p. 297). Com uma mescla de ficção e realidade, seus relatos têm a
mesma estruturação das narrativas das novelas de cavalaria. Isto é, capítulos curtos
indicados por um título que já anuncia as aventuras ali presentes. Saraiva e Lopes duvidam
que a versão que se dispõe ao alcance seja a original. A primeira publicação ocorreu duas
décadas após a morte do autor, em 1614, passando pelas mãos dos jesuítas (2005, 297). As
fortes e nem um pouco épicas narrativas de pilhagens, estupros, assassinatos, traições,
parricídios e pederastia teriam sofrido alguns cortes? Assim, poderíamos pressupor cenas
que fossem menos dignas de decassílabos do que aquelas que já nos chegaram?
De qualquer modo, chegando como nos chegou, e bastando por isso, o texto
continua sendo importante. Conhecedor de muitas civilizações asiáticas, Mendes Pinto as
descreve mais próximo de um simples observador, e não com os preconceitos religiosos e
étnicos de um conquistador, como é o caso d’Os Lusíadas. Ele “põe na boca das suas
personagens orientais os comentários mais depreciativos acerca dos europeus’ e chega a
“desejar que as leis da China sejam imitadas em Portugal” (SARAIVA e LOPES, 2005, p.
298). A honra dos portugueses acaba servindo como justificativa para as suas barbáries, em
tom ideológico completamente distinto da aventura camoniana.
Observa-se algumas situações do Capítulo XXXX, Como daquy nos partimos para
a ilha de Ainão, onde avia novas que estava o cossairo Coja Acém, e do que nos acôteceo
no caminho:
(...)& por não vermos [nós da nau portuguesa] ahy cousa de que lançar mão, nos
tornamos a sayr(...)(p. 109)(...) & bradando por Santiago, [António de Faria] deu
nelles [supostos piratas] cõ tãto impeto e esforço, q~em muyto pequeno esforço
foraõ quase todos mortos. (p. 110) E depois de fazer dar a morte ao Similau &
aos outros seus cõpanheyros, q~ foy cõ lhes mandar lanças os miolos fora cõ
hûa tranca (...) (p.111) para q~ a mãos de Portugueses pagasse o que lhes tinha
feito. (p. 111)
Nota-se que a intenção dos portugueses era de saquear alguma nau ou semelhante.
Após aproximarem-se da embarcação lusa possíveis piratas, são praticamente todos mortos
cruelmente sob comando de António de Faria. Aqueles que iriam praticar a mesma atitude
que era intenção dos portugueses foram “castigados” por isso, para que com a mão dos
portugueses pagassem.
Outro aspecto a ser observado é a linguagem empregada. Mendes Pinto não é
dotado do espírito humanista, das alusões eruditas, dos clássicos greco-romanos, do estilo
metafórico. O escritor faz uso da objetividade e da proximidade com a língua falada,
notada não só no vocabulário e na grafia, como na sintaxe. (CASAIS MONTEIRO,
Prefácio da edição de 1952)
Por que motivo foi, por fim, esquecida ao longo da História a Peregrinação, de
Mendes Pinto, e sempre lembrado Os Lusíadas, de Camões? A reflexão do historiador
Ernest Renan pode guiar a uma resposta: “esquecer ou mesmo interpretar mal a História é
um fator essencial na formação de uma nação, motivo pelo qual o progresso dos estudos
históricos muitas vezes é um risco para a nacionalidade.” (apud HOBSBOWN, 1998, p.
285). Desse modo, o sublime impasse dos deuses gregos, o distanciamento da realidade
vivido pelos heróis, os sentimentos de fé e de honra e os gloriosos versos decassílabos
foram recordados como registro de um grandioso passado imperial luso, como produto da
grandeza da nação. Já a narrativa com influência medieval, escrita na linguagem dos nautas
e que faz questão de registrar pilhagens, extermínios, parricídios, prisões, escravidão,
cobiça,... foi – e ainda não o é ? - uma ameaça para essa identidade que fora construída.
2.2 O romance
Para Bakhtin, o romance nasce de uma atitude nova, reflexiva e crítica, diante da
linguagem, a partir do momento em que ela deixa de ser vivida interiormente,
como um absoluto, para voltar-se para fora, compreendida como linguagem
distanciada e relativizada. (AUCOUTURIER, prefácio de BAKHTINE, 1978,
p.17)
Opõe-se, dessa forma, ao anterior absolutismo autoritário da língua única,
atribuída a uma civilização ou uma sociedade.
Se na epopéia há um distanciamento de um passado absoluto, com seus ancestrais,
heróis e mitos fundadores, no romance há a abordagem do contemporâneo, do inacabado,
do imperfeito, do profano.
Se Bakhtin não define os contornos de forma precisa é porque o romance não é
verdadeiramente um gênero, no sentido que encontramos definido desde
Aristóteles. (...) O romance é antes um anti-gênero, sempre inacabado, que se
desenvolve sobre as ruínas dos gêneros fechados, monológicos, dogmáticos,
oficiais, e se nutre de sua substância. (AUCOUTURIER, prefácio de
BAKHTINE, 1978, p.18)
O romance, ainda de acordo com as teorias de Bakhtin, acaba sendo veículo
perfeito para a Teoria do Carnaval, ou seja, a realização de um novo mundo na ficção, um
mundo com uma ordem às avessas, principalmente no que diz respeito ao fator social.
Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de
libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. (...) O
riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (...); todos riem, o riso
é “geral”; em segundo lugar é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (...)
um mundo todo parece cõmico e é percebido e considerado no seu aspecto
jocoso, no seu alegre relativismo, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de
alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e
ressuscita simultaneamente. (BAKHTIN, 1987, p.8-10)
Assim, o carnaval acaba sendo uma aproximação familiar dos homens, com a
libertação do que fica oculto pelos filtros das aparências, com a profanação de objetos
sagrados (um dos métodos destacados aqui é a paródia) para o que o teórico chama de
mésalliances, um casamento entre desiguais, signos sagrados e profanos.
2.3 As Naus
Ex-médico do exército português que lutou contra a independência das colônias
africanas, Lobo Antunes aborda em sua narrativa o caos colonial e, sobretudo, póscolonial. Buscando a problematização tanto do passado quanto do presente, explorando as
piores facetas humanas, servindo-se de metáforas originais, adotando uma lógica
associativa de idéias – que lembra algo de Surrealismo – em uma estrutura de narração
completamente fragmentada – assim como a mente –, o escritor leva ao ápice, n’As Naus, o
estilo que lhe é peculiar. Esse romance atribui ao leitor a tarefa de ajudar a compô-lo, de
reunir os farrapos da condição humana que estão soltos num fluxo caótico de pensamento.
Pensando na carnavalização, Lobo Antunes une aquilo que foi sacralizado pela
construção do discurso do glorioso passado luso com a profana condição pós-colonial. Os
homens não estão unidos pelo riso carnavalesco: o que os une é o desespero. E estão
unidos no sentido de estarem todos na mesma miserável condição, e não no sentindo de
serem solidários uns aos outros. As aparências de uma sociedade supérflua já não
importam mais, pois estão todos nivelados em um subnível. O homem regride aos instintos
animalescos: o que importa é a sobrevivência – uma sobrevivência flagelada e que só faz
perdurar o sofrimento.
O principal recurso literário do romance é a paródia. O autor transpõe,
ironicamente, a elevação épica para os primeiros tempos pós independência das colônias,
mostrando, assim, que o passado pode não ter sido assim tão glorioso.
Para explorar a desconstrução épica d’As Naus, serão analisados dois aspectos
fundamentais: o cenário e os heróis (personagens).
2.3.1 O cenário
Tendo como presente narrativo os meados da década de setenta – logo após as
independências das colônias -, o romance retrata o que foi o caos de aproximadamente
oitocentos mil portugueses espalhados pela África regressando para Portugal. O país, que
já se encontrava em condições precárias, com o grande aumento populacional agrava sua
carência de estrutura sócio-econômica. Os países africanos, que foram explorados de modo
violento, agora se encontram jogados ao abandono, numa sorte que parece gradativamente
pior. É nesses dois cenários que as almas penadas do romance transitam,
desterritorializadas, desesperançadas, descaracterizadas, numa agonizante busca que nunca
tem fim. Os vícios e a sexualidade se destacam e fazem-se sempre presentes na busca por
algum alívio imediato. Na verdade, estão presentes de maneira doentia, já não surtam
efeito, mas é o que resta: o cumprimento de um ritual automatizado.
Logo na primeira página, já nos é descrita uma Lixboa (com a grafia arcaica)
urbana, moderna, efêmera, não digna de decassílabos, mas de um fluxo confuso de
descrições, pensamentos e diálogos:
À noite, se abria a janela, via os restaurantes chineses iluminados, os glaciadores
sonâmbulos dos estabelecimentos de electrodomésticos na penumbra (...) E
acabava por adormecer a sonhar com as ruas intermináveis de Coruche (...) No
dia do embarque, a seguir a uma travessa de vivendas de condessas dementes, de
lojas de passarinheiros alucinados e de bares de turistas onde os ingleses
procediam à transfusão de gin matinal, o táxi deixou-nos junto ao Tejo (...)
(ANTUNES, 1988, p.9-10)
O clima do aeroporto de Lixboa é caótico e lembra o desespero dos moradores de
Angola saqueando vendas em busca de alimento, assaltando escritórios e prostituindo
meninas órfãs. Mesmo as máquinas, símbolo do moderno, passam mal, vomitam, perdem o
“sentido” com a situação:
Enxotaram-me para um miserável edifício de cimento com painéis de voos
nacionais e internacionais a pulsarem ampolas coloridas ao lado do free-shop dos
uísques. Uma máquina de vender chocolates e cigarros estremecia de febre a um
canto, vomitando caramelos após uma complicada digestão de moedas, e os
passageiros do avião alinhavam-se em filas como nas mercearias, nas padarias e
nos talhos pilhados de Loanda, em busca de arroz, do pão e da carne que não
havia mais, somente poeira e côdeas e gorduras (...) e as vitrinas vazias. E
lembrou-se dos últimos tempos de Angola, dos moleques que assaltavam os
escritórios e os apartamentos do centro, das fachadas rombas de balas e das
beneméritas do Bairro Marçal sem clientes, oferecendo a ninguém as coxas de
sereias órfãs nas vielas (...) (1988, p.13)
Fazendo associações de idéias em meio aos seus devaneios, o autor vai compondo
seu cenário com elementos vulgares, “desprovidos” de lirismo, típicos de comédias. Na
noite de Lixboa, um defunto cheira a fígado de atum, a ambulância e um bêbado, que ri da
desgraça, desfazem o silêncio noturno, as cervejarias e os cafés são imundos e é utilizada a
imagem das moscas varejeiras para representar isso, as ruas estão tomadas de travestis se
prostituindo e os clientes avançam de maneira animal em seus corpos. A atmosfera d’As
Naus é uma inversão da elevação literária e do conceito de Belo que compõem as
aventuras épicas:
Lixboa se crispa a horas mortas numa mudez sonâmbula decepada de quando em
quando por chocalhos de ambulância ou discurso de um bêbado espojado num
canteiro, em busca de posição para a azia do sarro. Ruas com chafarizes de
mulas de almocreve iluminados pela intensidade de ringue de boxe dos focos
municipais, rua de amoreiras tossindo folhas, oblíquas claves luciferinas, o odor
de fígado do atum do velho e nenhum cemitérios nas redondezas, que maçada,
mais prédio zarolhos, mais chaminés, mais comboios e a pouco e pouco, à
medida que se aproximava do Cais do Sodré, cervejarias e cafés de varejeiras
com mesas para dominós de estivadores e na outra face da avenida homensmulheres de cabeleira postiça, cor de malte, que automóveis viciosos
procuravam, a avançarem nos decotes e nas estolas de coelho, agarrados às bois
de malinhas de verniz em que guardavam o pó de disfarçar a barba e os pincéis
de compor a maquilhagem, (...) (1988, p. 93)
Como se não bastasse a profanação dos cenários outrora idealizados na epopéia –
tanto Portugal quanto as colônias –, as grandes viagens também são atacadas de maneira
direta, com descrições das doenças, da falta de higiene e sanidade nos cenários precários
dos navios do século XVI, mostrando assim aquilo que se sabe que ocorreu mas não
poderia compor Os Lusíadas.
E eu de minhocas no sovaco a vogar pela cidade, sem banho nem muda de roupa
há mais de um mês, seco de sede, alimentado de restos (...). (1988, p. 93) Era
difícil viver nesse árduo tempo de oitavas épicas e de deuses zangados (...).
(1988, p.65)
O cenário por onde transitam os personagens d’As Naus é opressor, transtornado e
completamente desprovido de qualquer ordem ou organização. São ruínas de um mundo
completamente desfeito – se é que outrora tenha existido – em que a busca pela
sobrevivência leva os seres humanos aos vícios, à exploração física, à regressão das
relações sociais em direção à animalização. Tudo isso sem nenhum ressentimento ou
reflexão, assim como sem nenhum prazer mesmo naqueles que compram os vícios e os
corpos. As colônias foram evacuadas, ficando somente o desespero daqueles que foram
explorados ao longo da História e agora estão perdidos em meio a uma nova situação. Os
países estão independentes mas e agora? Como se manterão? Como conseguirão se
organizar numa noção de nação que é completamente estranha aos africanos? A cicatriz
colonial jamais irá sumir. Portugal mergulha em crise; com o regresso em massa não há
emprego, não há moradia. Descrente em utopias políticas, e mesmo no ser humano, Lobo
Antunes arma-se de seu niilismo – típico de um veterano que compôs exército – e com
pessimismo nos guia para um passeio nem um pouco turístico, mostrando as piores
mazelas herdadas do Colonialismo. Tanto na África, quanto em Portugal, é satirizada toda
a grandiosidade épica. Afinal, a expansão marítima, o Império Luso, foram os grandes
responsáveis pela construção desse cenário decadente.
2.3.2 Os heróis
N’As Naus, os grandes heróis históricos, épicos e mesmo grandes autores da
Literatura são transpostos para a época pós-colonial, no cenário já discutido. Nessas
condições, essas figuras consolidadas e sacralizadas acabam sendo vulgarizadas e
mostram-se inaptas a um mundo fragmentado – como todos. Em outras palavras, assumem
um caráter humano. Como personagens de Lobo Antunes, são pessoas comuns, que
sofrem, possuem sentimentos e estão expostas às mais cruas e cruéis realidades. Já não
mais são ilustres figuras de atos nobres e perturbam-se em meio a incertezas. Eles não têm
aquilo que o próprio escritor intitula a estupidez visionária dos heróis.
A grande questão é o caráter cômico parodial, uma vez que é o contraste com a
imagem excelsa que nos foi passada dessas imponentes figuras que revela a ironia.
Utilizando os termos de Bakhtin, o romancista português profana as figuras sagradas.
Aproxima-as de todos os homens por intermédio do sofrimento. Assim, transpõe o que é da
ordem do sublime para o mundano, provocando o riso nesse mésalliances, embora seja um
riso desesperado, ou um riso sério, como quer Kristeva.
A concepção de herói moderno de Lukács, ou de anti-herói para outros autores,
serve perfeitamente nos heróis (ex)épicos parodiados na narrativa. O herói moderno, para o
teórico, é problemático e representativo de um mundo sem sentido e em degradação. O
conflito interior, por isso, é pressuposto da sua existência.
Logo na página dezenove do romance, já nos é apresentado o maior nome da
Literatura lusa, Luís de Camões: “Era um homem de nome Luís a quem faltava a vista
esquerda” (1988, p.19). A caricatura é um dos métodos mais comuns de deboche, e é
utilizada sem qualquer cerimônia ao longo da obra. Outro literato clássico, dessa vez
espanhol, também não é perdoado: “um maneta espanhol que vendia cautelas em
Moçambique chamado Dom Miguel de Cervantes Saavedra” (1998, p.20). O título de
Dom, sem sentido nos dias atuais, contribui para a comicidade. Ainda sobre Camões, ele
vai de Angola a Lixboa carregando o corpo do pai assassinado, em um caixão. Numa
atitude nem um pouco épica, vende as cinzas do pai como adubo para um produtor de
plantas medicinais, que crescem e devoram toda a casa de seu criador. O grande poema
épico português – Os Lusíadas – estava sendo escrito por Luís em alguma pastelaria suja,
regado a Martini:
Continuava o poema numa pastelariazita tranqüila do Príncipe Real (...),
distraído das suas tosses e da teimosia das varejeiras nos pastéis de feijão, redigia
tempestades e concílios de deuses com um cálice de Martini ao alcance da barba.
(1988, p. 161)
O poema é mais uma vez ironizado quando Vasco da Gama, que compra quase todo
Portugal após enriquecer no carteado, “forneceu a Camões a possibilidade de uma edição
de bolso de Os Lusíadas, com bailarinas nuas na capa, publicada numa coleção de
romances policiais”. (1988, p. 128-129).
O navegador Diogo Cão, na narrativa, é um obcecado na busca de tágides –
prostitutas n’As Naus – de volta a Portugal. Torna-se louco e amante de uma idosa
prostituta. O navegador Pedro Álvares Cabral emprega sua mulher como prostituta para
pagar a pensão onde moram na volta para Portugal. Ele acaba perdendo-a para Manoel de
Sousa de Sepúlveda, personagem consagrado n’Os Lusíadas pelo seu naufrágio. Já no
romance de Lobo Antunes, Sepúlveda é um contrabandista de jóias em Moçambique e,
posteriormente, dono de inúmeros prostíbulos em Lixboa. Cabral acaba, por fim, fugindo
com os piratas Federico Garcia Lorca e Luís Buñuel. O padre António Vieira foi “expulso
de todos os cabarés de Lixboa, procedia a uma entrada imponente discursando os seus
sermões de ébrio, até tombar num sofá, entre duas negras, a guinchar as sentenças do
profeta Elias numa veemência missionária” (1998, p.124). O rei Dom Manuel I anda
sempre com uma coroa de lata à cabeça, que adquire o tom ridículo pela ausência de
sentido para o símbolo nos dias atuais e o material nem um pouco nobre com que
dispunha. Dom Manuel e Vasco da Gama, amigos, acabam recebendo uma multa de
trânsito e são presos em uma cena cômica. O rei ainda repete sem sucesso aos guardas: “já
lhes disse (...) que sou o patrão disso tudo (...) a assentar com a coroa na cabeça” (1988, p.
187). Por fim, os dois acabam internados como loucos.
Além dessas figuras, muitas outras são satirizadas ao longo da obra. Uma delas, no
entanto, tem maior importância para o presente estudo por tratar-se de um dos maiores
mitos portugueses: Dom Sebastião. Vejamos a descrição de sua figura e de sua mística
morte:
D.Sebastião, aquele pateta inútil de sandálias e brinco na orelha, sempre a lamber
uma mortalha de haxixe, tinha sido esfaqueado num bairro de droga de Marrocos
por roubar (...) um saquinho de liamba. (1998, p.179)
Por fim, todos ficam esperando seu retorno sem que nunca apareça, esperam pelos
“relinchos de um cavalo impossível”. (1988, p. 247).
3 Considerações finais
Numa posição de ser ilhado, descrente em Deus e nas ideologias, como é a
condição do homem pós-moderno, Lobo Antunes atua na idéia do que já fizera Fernão
Mendes Pinto, isto é, na contramão do épico. A diferença está justamente no que diz
respeito à ironia. Se o riso amargo da ironia é um recurso de almas errantes numa realidade
vazia (cf. Lukács), é exatamente nesse sentido que o ficcionista português parodia as
tradicionais figuras da História e da Literatura, colocando-as no conturbado cenário do
trânsito entre as colônias e Portugal na década de setenta. Essa ironia é a mesma ironia
cruel das crianças colegiais, que desenham enfeites de óculos e chifres nas fotos dos
manuais de História. (1998, p. 198).
Todo riso, entretanto, possui um fundo sério. No caso, seriíssimo, quando somos
nessas naus convidados a navegar entre a miserável condição africana e o declínio
português. Deparamo-nos com farrapos humanos, desesperados em busca de uma
sobrevivência doentia. E o que provocou tudo isso? O glorioso e grandioso passado épico.
O império dos lusíadas deixou como herança esses Cus de Judas que são as comunidades
africanas e um Portugal cada vez mais decadente: um contexto nem um pouco digno de
oitavas ou decassílabos. A última imagem do romance é uma pátria doente – representada
pelos loucos fugidos do manicômio – à espera de uma alucinação: Dom Sebastião, o eterno
futuro português.
REFERÊNCIAS
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RUCKERT, Gustavo. NAVEGANDO CONTRA A