The Accord: a morte como bifurcação da existência e potencialização do corpo híbrido Aline Amsberg de ALMEIDA1 Resumo: Em The Accord (Keith Brooke, 2009), Noah Barakh é o programador de informática que constrói um paraíso virtual, um espaço dentro do netspace para onde vão os usuários após sua morte. Dentro desse espaço, volta-se à vida a partir de um backup das informações pessoais feitas antes da morte. A partir das reflexões de Deleuze e Guattari a respeito da construção do Corpo sem Órgãos e das propriedades do rizoma, assim como as noções de pós-humano e corpos de informação de Katherine Hayles, busco o híbrido corpo-tecnologia presente nesta obra de Keith Brooke, tomada como exemplo de produção cultural da literatura de ficção científica do século XXI. Palavras-chave: Ficção Científica – corpo – novas tecnologias – híbrido – Keith Brooke Abstract: In The Accord (Keith Brooke, 2009), Noah Barakh is the information technology programmer who builds a virtual heaven, a space within the netspace to which the users go after their death. Inside this space, it is possible to live again from a personal informational backup made by the user before her death. From the thoughts by Deleuze e Guattari about the Body without Organs and the properties of the rhizome, as wells as Katherine Hayles notions concerning the posthuman, I intend to find the bodytechnology hybrid in this work by Keith Brooke, one example of the cultural production of SF literature of the XXI century. Keyworkds: Science Fiction – Body – new Technologies – hybrid – Keith Brooke 1 Doutoranda do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/Unicamp. CEP:13015-120, Campinas/SP, [email protected] The computer molds the human even as the human builds the computer. Katherine Hayles (1999) “Você é só uma espécie de coisa no sonho dele [...] Se o rei acordasse [...] você sumiria [...] você sabe muito bem que não é real” [...] “Eu sou real!” disse Alice e começou a chorar [...] “Não vai ficar nem um pingo a mais real chorando” [...] “Se eu não fosse real, não conseguiria chorar” [...] “Espero que não imagine que suas lágrimas são reais” Lewis Carroll (1871) Através do espelho e o que Alice encontrou por lá “Eu sonho com você. Sempre sonho com você. Asseguro que aconteça. Sou o arquiteto do Accord: posso rodar a realidade. Posso rodar realidades.”2 (BROOKE, 2009, p.10) Noah Barakh é conhecido como o homem que construiu o paraíso, ou “The Accord”, um espaço virtual onde se pode continuar existindo após a morte do corpo orgânico. “Uma realidade construída a partir da massa de experiência humana, uma super-cidade da mente, uma realidade onde a humanidade [pode] viver após a morte” (Ibid., p.9). Espaço possibilitado e potencializado pelas novas tecnologias, habitado por memória, onde o humano é informação e o corpo se torna e se apresenta como forma computacional, constituindo o híbrido onde a pele deixa de ser somente fronteira e passa a ser também interface, muito embora ainda constitua matéria orgânica, limite corporal e, principalmente, lugar e meio para que ocorra a experimentação. O corpo não é somente carne fora do Accord, nem somente virtual dentro dele, em ambos os casos é de um corpo híbrido que estamos falando, em função da parcela de tecnologia que coexiste com a parcela orgânica daquilo que define o humano. A morte aqui serve apenas como ponto de bifurcação em ao pressupõe o fim do orgânico, visto que os personagens da narrativa retomam sua existência no espaço virtual a partir da organicidade da memória. Portanto, a grande questão é que, sim, há morte, mas ela não representa um fim, por não liquidar o orgânico, apenas transformá-lo em sua codificação. Utilizo o termo “corpo pré-virtual” para me referir ao corpo antes do momento da morte fora do Accord ou “corpo não-virtual” para o corpo fora do Accord (haja ou não na narrativa uma morte para esse corpo); e o termo “corpo virtual” serve para falar do corpo que renasceu dentro desse espaço. Todos são híbridos e orgânicos, e todos são 2 Todas as tradução de The Accord neste trabalho são de minha responsabilidade. informação e corpo interdependentes. O corpo pré-virtual e o corpo não-virtual existem predominantemente fora do espaço virtual mas têm também sua existência virtual ao acessar o netspace, tomando a forma de um corpo virtual. O corpo virtual tem sua existência predominantemente no Accord, mas em alguns casos pode acessar o mundo não-virtual através de um corpo que vive fora do Accord, para isso é necessário um corpo não-virtual. A fronteira entre o virtual e o não-virtual, portanto, é bastante porosa e desenhada por uma linha tênue onde o dentro e o fora não podem ser radicalmente definidos, sob pena de se cair numa dualidade opositora excludente entre aquilo que seria o virtual “puro” e o completamente fora do virtual. São termos que podem se complementar ou mesmo intercalar numa construção do corpo híbrido, que existe em ambos os espaços. A aplicação do rizoma de Deleuze e Guattari permite essa intersecção. Embora a tecnologia tenha estado constantemente presente no decorrer da história humana de que se tem conhecimento, o século XXI não apenas guarda o embrião de uma provável explosão do elemento humano-tecnológico – já prevista por Hans Moravec em 1988 com um otimismo quase excessivo, embora não sem razão, a respeito dos robôs como próxima etapa da evolução humana –, como também fornece o terreno onde se desenvolve a versão atual desse híbrido corpo-tecnologia, em toda sua potência, visto que a discussão sobre a bomba atômica e a penicilina, longe de ser superada, a cada dia ganha mais espaço, visibilidade e importância. The Accord, obra publicada em 2009, participa de uma nova tradição dentro da ficção científica, que vem se desenvolvendo desde a segunda metade do século XX, com uma explosão tecnológica que tem transformado o social, o cultural e o orgânico, principalmente com as ciências quânticas, a nanotecnologia e a internet. Cabe aqui salientar a tese de Paula Sibilia, segundo a qual, na era da evolução pós-humana, “o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando obsoleto” (SIBILIA, 2002, p.13). Nessa “configuração biológica” está o corpo organizado, aquele regido pela hierarquia do organismo que, segundo Deleuze e Guattari, deve ser quebrada pela/para a emergência do Corpo sem Órgãos (CsO). Ou seja, num processo de subjetivação onde o eu e o corpo significam a mesma direção, embora não sejam o mesmo elemento, ultrapassando os limites da organização sistemática do organismo lógico e mecanizado. Portanto, quando falo de experimentação, é no sentido dado por Deleuze e Guattari (1996), ao descreverem os modos de agenciamento do Corpo sem Órgãos. A noção de “interpretação” é dada por Noah, arquiteto do paraíso, como definidora da relação com o mundo e dos modos de existência dentro das possíveis realidades. Portanto é no sentido da “percepção” que faço uso da palavra “interpretação”, num viés que se pretende não limitado à fixidez de uma rápida leitura subjetiva, nem de uma busca destinada à descoberta/invenção do sentido, aquele que se esconde por baixo da superfície. Mas a superfície é em si uma experimentação construída pela percepção singular das realidades: “a cor não é cor, é apenas um conjunto compartilhado de regras para como interpretar diferentes comprimentos de ondas de radiação eletromagnética.” (Ibid., p.13-14) E, aqui, as realidades são multiplicidades e são interconectadas, por estarmos tratando da existência como um composto de camadas e intensidades, possível naquilo que Deleuze e Guattari chamam de “plano de imanência”. Deleuze e Guattari sugerem a construção permanente do eu através da busca incessante do CsO, ao qual jamais se chega e jamais se para de chegar (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11). Essa construção do processo de subjetivação ocorre pela experimentação de superfícies no lugar outrora ocupado pela interpretação no seu sentido tradicional: descobrir significados ocultos ou profundos. No romance The Accord o corpo virtual aparece como possibilidade encontrada pelo programador de informática Noah Barakh para lidar com a questão da mortalidade humana. A tecnologia utilizada em The Accord oferece aos usuários a possibilidade de uma continuação da vida após a morte do corpo pré-virtual. Entretanto, é apenas quando esse corpo morre e a partir dos dados gravados antes dessa morte que os corpos de informação passam a existir como entidades virtuais. O corpo virtual carrega em si a potência da bifurcação, da multiplicação e da fragmentação, assim como a alma, entendida pelo programador e pelos usuários do Accord como o conjunto de dados referentes ao corpo – a memória e suas configurações – passíveis de codificação binária e tradução para o corpo virtual constituído pelo computador. Noah explica o funcionamento do Accord, juntamente com sua definição da alma: aqueles que escolhem continuar vivendo no Accord após a morte, somente o [farão] como a última instância gravada de si mesmos – os minutos, horas, dias finais [estarão] perdidos para sempre, até seu último upload... sempre funcionando a partir do último instantâneo da alma. (BROOKE, 2009, p.11) O corpo, que já era híbrido fora do espaço virtual, em vista de toda a tecnologia que o constrói em sua existência, continua a vida dentro do Accord, embora sofrendo uma mutação na matriz e passando a ser um híbrido de outra ordem: o pós-humano; um híbrido virtual que carrega a memória subjetiva traduzida em código binário, porém não se sustenta no antigo formato onde predominava o elemento carne. Nas palavras de Katherine Hayles, “o pós-humano aparece quando a computação, ao invés do individualismo possessivo é tomado como o chão do ser, um movimento que permite o pós-humano ser perfeitamente articulado com as máquinas inteligentes” (HAYLES, 1999, p.34). A bifurcação da existência em Priscilla Logo no início do romance, o corpo pré-virtual de Priscilla é assassinado por seu marido: Jack Burnham. Imediatamente, Priscilla renasce dentro do Accord, mostrando que a experiência de estar viva num corpo é o que caracteriza efetivamente a vida, seja ela dentro ou fora do ambiente virtual. Priscilla nasce mais de uma vez no Accord, visto que ora é assassinada lá dentro, ora surgem na narrativa outras instâncias suas espalhadas pelo espaço virtual. Em um de seus nascimentos, ou reinicializações, informático-computacionais, Priscilla “sente... um sentimento de vitalidade. Ela corre uma mão pelo seu corpo, olha para baixo. [...] Ela está morta. Percebe isso. [...] Isto é a coisa real.” (BROOKE, 2009, p.51) Nesse momento da história, Priscilla ainda está se acostumando à sua nova condição viva, afinal de contas, além de haver deixado o mundo não-virtual – que possui uma materialidade conhecida e confortável – ao ser assassinada, já passou por uma bifurcação de existência também dentro do mundo virtual. Essa bifurcação ocorre pela primeira vez com Priscilla quando ela está viajando de carro junto com Noah dentro do Accord e ambos verificam que os elementos da paisagem apresentam pouca definição em suas linhas de contorno: Passamos pela floresta, mas as árvores... o detalhe se foi... num olhar rápido está tudo bem, mas encare fixamente um ponto e eles não se resolverão em ramos, folhas, troncos. Blocos de verde e marrom escuros mudam quando examinados, resistindo às tentativas do olho de distinguir forma, detalhe. (Ibid., p.26) Nesse momento, Noah e Priscilla estão se deslocando dentro do mundo virtual. Embora o lugar de destino tenha as linhas perfeitamente definidas, o que deveria significar a segurança da forma física, a transição entre espaços faz com que Priscilla sinta um forte mal-estar em meio à redefinição dos elementos do ambiente, quando vê as “árvores... a parede de calcário... blocos de cores, mudando, se reorganizando,” um desconforto, a vertigem da incerteza; “apenas outra anomalia”, explica Noah Barakh (Ibid., p.26-27), afinal o Accord ainda se encontra incompleto, inacabado. E subitamente ambos sentem o chão tremer, um tremor sentido nas profundezas do corpo assim como nas profundezas da terra, lento, “passa através do [...] corpo, ressoando com os [...] ossos” (Ibid., p.28). E Priscilla desaparece. É depois desse primeiro desaparecimento que Priscilla acorda sentindo a vitalidade, a realidade e a organicidade de seu corpo virtual. Aqui, ela se dá conta da inexistência - ou impossibilidade - do fim dentro do paraíso, quando “[o futuro] a assusta de uma maneira diferente” (BROOKE, 2009, p.82), porque agora o futuro representa também o infinito. Além disso, ao despertar pela segunda vez dentro do Accord, Priscilla se encontra no “cinza”. O “cinza” é a palavra usada no texto para descrever uma espécie de lacuna – ou “limbo” que pode mesmo conter o inferno – onde após desaparecer o indivíduo acorda antes de retomar sua existência. É no “cinza” que a bifurcação da existência se concretiza, é o primeiro instante da consciência após o desaparecimento virtual. Entretanto, aquele indivíduo que decidiu fazer seu backup virtual, sempre irá despertar dentro do Accord iniciando uma história de vida que parte do momento de seu último backup. Essa regra aparentemente serve tanto para aquele primeiro renascimento, logo após a morte orgânica, quanto para as reinicializações seguintes, após as bifurcações de existência que, neste caso, identifico na história da personagem Priscilla. Em consequência disso, a cada reaparecimento, Priscilla inicia uma nova existência virtual, que irá seguir um caminho próprio e singular. Essa existência única é iniciada e formada por padrões informáticos, dado que está no ambiente virtual: “Priscilla é. Uma espécie de. Ela é formas. Padrões. Ela é altos e baixos e ondas e cores caleidoscópicas” (BROOKE, 2009, p.170). Ou seja, “Priscilla é”: é corpo, existência legítima, é real. A questão também se aplica à realidade como estatuto onde a palavra “real” talvez não seja prioridade para definição. Assim, em certos momentos, o narrador em primeira pessoa entra em cena falando um pouco sobre essa condição de realidade virtual sem a necessidade imperativa do “real” como adjetivo ou substantivo: “este mundo, esta realidade... eu ainda fico maravilhado com como a sinto real, embora saiba que “real” não é um conceito válido: este mundo é. Isso é tudo.” (BROOKE, 2009, p.170) Depois de já haver visitado o país das maravilhas e agora explorando o mundo encontrado do outro lado do espelho, a preocupação de Alice (Lewis Carroll, 1865) com a condição real de seu corpo não vem acompanhada de um questionamento, a menina apenas refuta a constatação de Tweedledee e Tweedledum, decretando que o fato de poder chorar atesta sua condição real, usando o argumento de que essa experiência é sentida sem a necessidade de uma explicação. Já em The Accord, a realidade virtual é baseada na proposição de que a realidade – física, material e palpável, mas também relacional, afetiva, rizomática e, em todos esses aspectos, portanto, corporal – é construída pelo contato com o mundo, pela experiência de existir nele, pela decodificação de suas fórmulas e tradução de suas linguagens. Uma paisagem não muito diferente da história de Alice, onde o país das maravilhas (Wonderland) se assemelha a uma terra virtual onde as possibilidades excedem o conforto do óbvio e do conhecido e podem enganar a primeira percepção. Dessa maneira, a percepção é condicionada pela interface que permite a experimentação e a criação do eu e do outro através do contato, da sensação, da definição do mundo. Estatuto de interface atribuído à pele por Pierre Lévy (1996), que serve aqui para definir o corpo como lugar de experimentação. Quanto à existência bifurcada de Priscilla, acontecem no romance muitos despertares de Priscilla no “cinza”, inclusive multiplicando suas instâncias. Isso já é anunciado no início da história por Noah, o próprio arquiteto do paraíso, aquele que programou os protocolos do Accord e, portanto, permitiu essa possibilidade da multiplicação de existências. Nós somos anomalias. Temos múltiplas instâncias, algo que os protocolos não podem permitir. Eu antecipei este pensamento: o consenso deveria reunir meus pedaços, me integrar, tornar-me um, assim como deveria fazer com Priscilla. (BROOKE, 2009, p.30) E, no entanto, os protocolos, as regras que regem o paraíso virtual, não fazem essa reintegração esperada, em função de uma brecha programada pelo próprio Noah. Durante a construção do paraíso virtual, foram criadas múltiplas instâncias de Noah e de Priscilla, pois, segundo o programador, “a duplicação era um resultado inevitável de tomarmos conta de uma fase experimental” (Ibid., p.25). Priscilla não é a única Priscilla dentro do Accord, há outras instâncias dela que passam a ter sua existência, também única, a partir de um despertar no “cinza”. Aquilo que Noah chama de “duplicação” pode ser também chamado de bifurcação, no sentido trabalhado aqui, uma bifurcação que define o ponto fundamental na questão da mutação. Segundo Katherine Hayles, a mutação prova o padrão porque o divide, ou transtorna, e a bifurcação é o que ocorre quando a interação entre padrão e aleatoriedade dá uma nova direção ao sistema ao qual pertencem (HAYLES, 1999, p.33), ou seja, padrão e aleatoriedade formam um sistema, neste caso informacional e computacional, por meio de uma interatividade constante que deve sofrer mutação: bifurcação da existência; existência em padrões (a existência humana se dá em padrões também fora do ambiente virtual, a ordem complexa dos padrões é o assunto da teoria da complexidade ou do caos, de acordo com Hayles). O corpo e a máquina também formam um sistema, que Katherine Hayles coloca na forma da máxima: “o computador molda o humano assim como o humano molda o computador” (HAYLES, 1999, p.47), mostrando que a criação e a construção são mútuas quando se trata de corpo e tecnologia. O assassino híbrido: a pluralidade da morte define a pluralidade da vida. Dentro do Accord caminha outra anomalia: o assassino de Jack Burnham, marido de Priscilla. A situação aqui é mais complicada do que no caso de Priscilla, pois é um assassino no mundo não-virtual construído especialmente para conseguir escapar das investigações após cometer o assassinato, portanto feito para não ter uma identidade certa. Não há nome para ele, é chamado somente de “assassino”, “um amálgama, um construto. Quem quer que seja [...] pegou algumas características daqui, outras dali, e construiu um assassino adequado para o trabalho” (BROOKE, 2009, p.133). E então, ele precisa se refugiar no Accord, entrar no netspace, e isso só é possível através da própria morte ou da ajuda de um hacker profissional: Chuckboy Lee. Ao chegar ao escritório de Lee, o assassino é logo reconhecido pelo hacker, que se mostra interessadíssimo no caso: como é ser você, Sr. assassino? Ser um homem de muitas partes. Partes de outros homens – e talvez mulheres, quem sabe? – e módulos de IV [inteligência virtual], um mix, um remix. Todos andando em um corpo de outro homem. [...] como é ser algo novo, algo único, um dos primeiros de sua espécie? Uma nova variedade de homem pela primeira vez em, o que, vinte mil, cem mil anos? (BROOKE, 2009, p.151) O hacker Lee visualiza o próximo passo da evolução humana nesse ser híbrido, um homem feito da união de partes de outros seres humanos, possibilitada somente pela ação tecnológica. Mais tarde, já dentro do Accord, o assassino encontra Noah Barakh, e obtém a uma explicação de sua natureza múltipla: “você é, em uma parte significante, baseado no perfil de um estudante chamado Bartie Davits, mas isso é uma grande máscara. Um elemento ainda mais significante sua natureza é o próprio Elector Burnham” (BROOKE, 2009, p.191). Uma vez no Accord, o assassino resolve procurar Burnham para continuar seu trabalho dentro do espaço virtual e nessa busca descobre que o corpo não-virtual com o qual cometeu o assassinato fora do Accord era o de Joey Bannerman, uma terceira peça do quebra-cabeça, aparentemente um adolescente que ganha a vida alugando seu corpo a terceiros, assim como Bartie Davits. Há ainda outras partes a serem descobertas e acrescentadas ao longo de sua estadia no Accord. A partir disso, o assassino passa a dividir a narração da história com o narrador em terceira pessoa e o narrador em primeira pessoa (Noah Barakh), porém utilizando o pronome “nós”. Além disso, assumindo sua natureza híbrida, passa também a refletir sobre essa condição e entender que não é feito apenas de Bartie Davits, Joey Bannerman e Jack Burnham, mas também foram incluídas partes de outros corpos ainda no espaço não-virtual. Entretanto, ele apenas consegue pensar sobre isso a partir do olhar para si e, principalmente, ao assumir essa condição através da linguagem, dizendo “nós” onde um narrador em primeira pessoa diria “eu”. “Nós somos Jack Burnham, nós somos Bartie Davits, nós somos um conjunto de subprogramas de IV; somos outros também, mais tênues: somos suas habilidades, somos remixes fragmentados de suas experiências” (BROOKE, 2009, p.256). Muito embora essa mudança ocorra apenas no nível da narrativa (nos diálogos com outros personagens ele ainda usa “eu”), é uma troca linguística significativa na matriz da autoimagem; a criatura do Dr. Frankenstein jamais diria “nós” pois passa sua história inteira tentando encontrar uma unidade em si mesmo, enquanto o assassino em The Accord entende e assume a multiplicidade como essência da sua subjetividade. Mais tarde, quando o hacker Chuckboy Lee, que já conseguiu entrar no Accord mesmo sem a morte de seu corpo não-virtual, encontra-se com o assassino híbrido dentro do netspace - sabendo de sua capacidade magnética para agregar a seu todo partes encontradas pelo caminho, principalmente no ambiente virtual - volta a lhe fazer a mesma pergunta que havia feito no momento do primeiro encontro: “Como você se sente sendo uma nova espécie de pessoa?” [...] “Você já me perguntou isso antes.” [...] “Você era diferente então. Havia menos de você.” [...] “Eu sou eu,” nós dizemos. “Eu sou majoritariamente eu. Mas... está no mix. Todo mundo é feito de muitos componentes diferentes: fragmentos de experiência, de conhecimento, de entendimento. Então o que é tão diferente a meu respeito? Sou realmente algo novo?” (BROOKE, 2009, p.283-284, ênfase minha) Uma descrição que talvez seja aplicável a qualquer outra pessoa tanto dentro do Accord quanto fora dele. Misturados à tecnologia, assim como uns aos outros, podemos também ser descritos como esse mosaico representado pelo assassino em The Accord, uma reunião de muitos, mistura do orgânico e do não-orgânico, sem os quais não se pode dizer “eu”. Aqui, a tradição da criatura do Dr. Frankenstein toma outras medidas. O mito da criatura-mosaico, feita de partes humanas mortas na obra de Mary Shelley, quando transposta para o contexto da realidade virtual agrega ainda os protocolos dos programas informáticos aos quais está submetida, e figura como resultado em processo da manipulação tecnológica e humana, numa tradição fáustica de quem cria o próprio paraíso e suas regras para poder desafiá-las em nome da ciência. O lugar deste personagem, portanto, é o de quem tem consciência da multiplicidade de seu corpo, que aceita ser construído e recusa a necessidade de uma identidade única para favorecer a subjetividade como processo contínuo, intermitente e interminável. Parecido com o mapa de Deleuze e Guattari, “desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22). O novo também depende da percepção, da mesma maneira que Noah Barakh explica que a realidade das cores é fruto da percepção das ondas eletromagnéticas; indo ao fundo das coisas, encontra-se a superfície. O híbrido em The Accord, portanto, tem mais de uma configuração: refere-se a: (a) união entre o orgânico representado pela memória guardada em backup, e os padrões computacionais não-orgânicos, e (b) a mistura de instâncias dentro do próprio ambiente virtual, no momento do desaparecimento de um indivíduo e seu posterior reaparecimento dividido em várias instâncias de si mesmo ou mesmo o reaparecimento de diferentes instâncias de diferentes indivíduos em um só corpo. Bernard Andrieu parte do conceito de handicap para caracterizar e pontuar o híbrido em sua gama de modificações, afirmando-o como aquele modificado em sua “materialidade inicial” (ANDRIEU 2007, p.33). Ou seja, o handicap ou “deficiente” não é mais considerado diminuído ou menor em relação ao não-handicap (ou nãodeficiente), mas é aquele que dá continuidade à sua existência através da modificação corporal. Assim, o “natural” e o “original” não são mais referência para o humano em sua questão corporal, mas o híbrido se torna a nova referência, ganhando autonomia como tal (ANDRIEU 2007, p.33). Andrieu ainda recorre ao ciborgue de Donna Harraway, mostrando que o híbrido redefine o esquema corporal (ANDRIEU 2007, p.35). Como instrumento revolucionário, o ciborgue incorpora a máquina ao orgânico (ANDRIEU 2007, p.36); como organismo cibernético, o ciborgue é o resultado da fusão permanente (sem retorno) entre a carne (orgânico) e o protético (não-orgânico) em uma única realidade material. Redesenhado, reconfigurado, reapropriado concomitantemente por si mesmo e pelas novas tecnologias, o corpo se torna híbrido em sua subjetividade e em toda sua complexidade. A hibridação, portanto, produz um novo corpo, inteiro em sua existência e na incorporação da tecnologia, “uma nova condição humana de um ser híbrido biotecnológico” (ANDRIEU 2007, p.38) Assim, tanto a morte do corpo pré-virtual quanto o desaparecimento virtual, permitem a hibridização do corpo em diferentes modalidades. Porém, definir um estatuto de híbrido pressupõe a existência de um não-híbrido, o que forçosamente gera outro questionamento: “que não-híbrido é este?” ou “o não-híbrido é possível?” Não estou certa de que este não-híbrido possa ser encontrado na história da humanidade e, menos ainda, no mundo do século XXI, onde narrativas classificadas sob o gênero de ficção científica como The Accord proliferam e conquistam espaço. Também não tenho ainda certeza da necessidade de tal definição, pois isso levaria estas reflexões ao caminho de um dualismo opositor excludente do qual me esforço por esquivar, por uma questão de coerência com os pensadores nos quais apoio minhas reflexões. Embora seja muito difícil se libertar desses dualismos, Deleuze e Guattari oferecem uma saída: a inexatidão. Ou antes, uma “anexatidão”. Um “[p]roblema de escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo exatamente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32). Penso que seja possível uma inversão dessa fórmula - prática também muitas vezes utilizada por esses filósofos: é absolutamente necessário usar expressões exatas para designar algo anexato. Já que o recurso para designar as coisas são as palavras e este é um recurso único no lugar de onde escrevo, pode-se tomá-las como exatas ou anexatas. E, dessa maneira, encontrar o habitante híbrido da literatura de ficção científica pode ou não passar pela detecção do não-híbrido como seu oposto binário (que creio não detectável) ou como seu oposto complementar (que seria mais um de seus fragmentos constituintes). Seja qual for o caso, cabe agora definir quais são elementos caracterizadores desse híbrido formado pelo orgânico e pelo não-orgânico dentro da literatura de ficção científica do século XXI. REFERÊNCIAS ANDRIEU, Bernard. L‟intégration des hybrids. In: Pratiques sportives at handicaps, Lyon: Cronique Sociale, 2007. Direção de Joël Gaillard. AUGÉ, Mark. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. Tradução de Maria Lúcia Pereira. BROOKE, Keith. The Accord. Solaris, 2009. CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010 [1865]. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Como criar para si um corpo sem órgãos. 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