mãos M E N I N A S mulheres A CULTURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO SOCIAL mãos M E N I N A S mulheres A CULTURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO SOCIAL mãos M E N I N A S mulheres A CULTURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO SOCIAL RICARDO BUENO QUATTRO PROJETOS PORTO ALEGRE, RS, BRASIL MARÇO DE 2011 PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO EDIÇÃO E TEXTOS: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE FOTOGRAFIA: ITA KIRSCH FOTOGRAFIAS IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI PATROCÍNIO PRODUÇÃO Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP ) B928m Bueno, Ricardo Rodolfo. Mãos, Meninas, Mulheres – A Cultura como Ferramenta de Inclusão Social/ Ricardo Bueno. – Porto Alegre : editora Quattro Projetos, 2011. 152 p. ; il. (fotogr.); 25x30cm Projetos desenvolvidos exclusivamente por mulheres, reunidas em associações, que utilizam o artesanato como uma fonte de renda e inclusão social. 978-85-64393-00-4 1. Política social - Brasil. 2. Mulher –Projeto social. 3. Artesanato – Projeto social. I. Título. CDU 364-78 Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 (51)30297042 QUATTRO PROJETOS E SERVIÇOS: [email protected] – 51 8599 1009 ALMA DA PALAVRA: [email protected] – 51 9844 0652 8 RENNER Cumplicidade, esta é a maneira como nós nos relacionamos com as nossas clientes. Essa proposição de valor nos motiva a entender cada vez mais a mulher moderna, desvendando seus desejos e transformando-os em realidade através dos produtos oferecidos em nossas lojas espalhadas por todo o país. A mulher é a razão da nossa existência. É neste contexto e filosofia sólida que está alicerçado o trabalho do Instituto Lojas Renner. Hoje 35% dos lares brasileiros são sustentados por mulheres. Acreditamos que, investindo no desenvolvimento destas chefes de família, contribuímos para que elas possam se apropriar de forma efetiva de suas vidas, seja no âmbito pessoal, seja no desempenho profissional, desatando os nós que as mantêm presas ao ciclo da pobreza. Por isso, investimos em projetos de capacitação profissional e geração de renda para a mulher. Tecendo sonhos, transformando realidades É muito confortável para nós, portanto, patrocinar, via Lei Federal de Incentivo à Cultura, a publicação que chega agora às suas mãos. Ao longo dessas páginas, você encontrará 15 iniciativas as quais, sem exceção, contribuem para a educação e formação profissional, fomentando o empreendedorismo econômico e a geração de renda e inserindo jovens e mulheres no mercado de trabalho. Algumas delas já contam com nosso apoio, outras ainda não, mas todas são merecedoras do texto apurado e das imagens sensíveis que retratam seu trabalho. Enquanto elas tecem seus sonhos, nós costuramos suas vidas a uma nova realidade, abrindo caminhos que só se conquistam com preparo, capacitação e desenvolvimento. Temos a convicção que o presente trabalho será muito útil nessa trajetória, até porque acreditamos poder contar também com o apoio de todos daqueles que se dispuserem a apreciá-lo, no sentido de ampliarmos a visibilidade dessa causa. Boa leitura. 9 ÍNDICE O ARTESANATO NO BRASIL: DIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE 12 INTRODUÇÃO: CULTURA QUE INCLUI E GERA VALOR 18 GRUPO DE ARTESÃS DA BARRA: COSTURANDO CAMINHOS E TECENDO SONHOS 24 TECENDO MEMÓRIAS: BORDADOS E LEMBRANÇAS 32 LÃ PURA: COOPERAÇÃO A SERVIÇO DO PURO TALENTO 40 GRUPO CANOA: JEITO NOVO DE LIDAR COM REJEITOS 50 MULHERES DO FREI: ARTESANATO DE PALHOÇA E DO BRASIL 58 COPESCARTE: O MILAGRE DA TRANSFORMAÇÃO DOS PEIXES 66 CAFÉ IGARAÍ: BORDANDO E PINTANDO COM SABOR DE CAFÉ 76 ALDEIA DAS MULHERES: UMA ALDEIA FEMININA POR NATUREZA 84 MULHERES CERAMISTAS: MOLDANDO TALENTOS NAS ONDAS DA MARÉ 92 TOQUE DE MÃO: MUITAS MÃOS E TODOS OS TOQUES 100 COSTUMES ARTES: COM FIBRA E MUITA DETERMINAÇÃO 110 FIBRA VIVA: NATUREZA RECRIADA COM RETALHOS 118 ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS DO PORTO DE SAUÍPE: TRANÇANDO A PIAÇAVA, TRAMANDO A VIDA 126 CRIANDO E FAZENDO ARTE: COM AS CORES DA CRIATIVIDADE JUVENIL 134 FRAGMENTOS: UM MOSAICO DE TEXTURAS E REALIZAÇÕES 144 CONTATOS 152 12 ARTESANATO NO BRASIL diversidade e sustentabilidade 13 ARTESANATO NO BRASIL Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil, o artesanato nacional movimenta anualmente cerca de R$ 28 bilhões, ou 2,8% do PIB do país, indicador impressionante, que equivale ao da indústria automobilística. Números recentes apontam que cerca de 8,5 milhões de pessoas trabalham na produção do artesanato no Brasil, e nada menos que 87% delas são mulheres. Tradicionalmente, elas aprenderam o ofício com as mães, pois este tipo de conhecimento costuma ser passado de geração em geração. É uma atividade que não apenas contribui para o aumento da produção de riqueza no país, como também impacta no desenvolvimento sustentável de regiões com potencial produtivo e que muitas vezes se encontram à margem do desenvolvimento. Atualmente, em todas as regiões do país é possível encontrar produção artesanal diversificada, feita com matérias-primas regionais e com técnicas específicas, que variam de acordo com a cultura e o modo de vida da população de cada localidade. Esses contrastes, além de tornarem o nosso artesanato ainda mais rico, criam uma marca de identidade nacional. As referências regionais são muito valorizadas por um mercado externo globalizado e cada vez mais aberto a produtos diferenciados, que retratem a origem e a história do povo que os produz. Artesanato (de artesão + ato) é essencialmente o próprio trabalho manual ou produção de um artesão. Com a mecanização da indústria, a partir da revolução industrial, o artesão passou a ser identificado como aquele que produz objetos pertencentes à chamada cultura popular. Um aspecto do artesanato brasileiro diz respeito ao caráter familiar da produção, na qual o produtor (artesão) possui os meios de produção, sendo o proprietário da oficina e das ferramentas e trabalhando com a família em sua própria casa. Realiza, portanto, todas as etapas da produção, desde o preparo da matéria-prima, passando pela concepção do produto a ser executado, até o acabamento final. Não há, como fica claro, divisão do trabalho ou especialização para a confecção de algum produto. Os primeiros objetos feitos pelo homem eram artesanais. Foi no período neolítico (6.000 a.C.) que o homem aprendeu a polir a pedra, a fabricar a cerâmica como utensílio para armazenar e cozer alimentos e descobriu a técnica de tecelagem das fibras animais e vegetais. Este processo Contrastes criam identidade nacional,muito valorizada no exterior 14 15 16 ARTESANATO NO BRASIL também ocorreu na região que futuramente seria o território brasileiro. Pesquisas permitiram identificar uma indústria lítica e fabricação de cerâmica por etnias de tradição nordestina que viveram no sudeste do Piauí justamente em 6.000 a.C. Os índios, como se sabe, foram os mais antigos artesãos a marcarem presença no país. Eles utilizavam (e em alguns casos seguem utilizando, apesar da população bastante deprimida na atualidade) a arte da pintura, com pigmentos naturais, a cestaria e a cerâmica, sem esquecer a arte plumária, como os cocares, tangas e outras peças de vestuário feitas com penas e plumas de aves. A partir do século XI, em especial na Europa, o artesanato ficou concentrado em espaços conhecidos como oficinas, onde grupos de aprendizes viviam com o mestre-artesão, detentor de todo o conhecimento técnico. Este oferecia, em troca de mão-de-obra barata e fiel, conhecimento, vestimentas e comida. Criaram-se, assim, as Corporações de Ofício, organizações que os mestres de cada cidade ou região formavam a fim de defender seus interesses. No Brasil, uma importante transformação se inicia a partir do século XIX. Com o início da forte imigração europeia, novos aportes de técnicas artesanais chegaram ao país trazidos pelos imigrantes, em especial de origem italiana, alemã, polonesa, japonesa, síria e libanesa, transformando e ampliando a gama de produtos feitos artesanalmente nas diversas regiões brasileiras. Um dos principais agentes de fomento ao artesanato no Brasil é o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa). Presente nas 27 Unidades Federativas do país, a instituição investe em estratégias de atuação diferenciadas que possibilitam o desenvolvimento de cada categoria de artesanato, mantendo, entretanto, os valores simbólicos dos modelos culturais. O Sebrae atua em aproximadamente 2.700 municípios brasileiros e já capacitou em torno de 220 mil artesãos. Nas próximas páginas, estão retratadas 15 diferentes iniciativas em artesanato, de nove estados brasileiros, todas elas desenvolvidas por mulheres e com foco em inclusão social e geração de renda. Chama a atenção a diversidade de técnicas, bem como de aspectos culturais que cercam cada uma das atividades. O artesanato de caráter social, como se verá, jamais acontece descolado da realidade que o gerou. Artesanato de caráter social nunca está descolado de sua realidade 17 18 INTRODUÇÃO cultura que inclui e gera valor 19 Em uma de suas mais conhecidas canções, a dupla Milton NascimentoFernando Brant diz que "todo artista tem de ir aonde o povo está". Inspirados neste trecho de Nos bailes da vida, e pedindo a devida licença aos renomados poetas da Música Popular Brasileira, com este livro nos propusemos a fazer o caminho inverso: levar o povo (os leitores e todos os que visitarem a exposição que integra este projeto) aonde os artistas estão - no caso, as artistas, para não incorrermos em um deslize quanto ao gênero que permeia e protagoniza INTRODUÇÃO estas páginas. E assim foi feito. Uma vez selecionadas as 15 diferentes experiências protagonizadas por mulheres, as quais dessem conta do artesanato como forma de expressão cultural, e da cultura como ferramenta de inclusão social, iniciamos o roteiro de viagens por nove estados, literalmente de sul a norte do território brasileiro. Percorremos estradas e rotas aéreas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Foram nada menos que 30 trechos, entre deslocamentos de avião, de ônibus ou de van, e mesmo de táxi, em uma ocasião. Em cada parada do roteiro, uma miríade de emoções. Olhares, gestos, histórias, sonhos, realizações, esperanças renovadas - e trabalho, muito trabalho. Se Roberto Carlos se dispusesse a percorrer os caminhos que percorremos, já de início comentaria: "São tantas emoções...". Para um jornalista que a cada dia se convence mais de que seu papel é ser um contador de histórias (e por isso o nome da empresa que dirijo é Alma da Palavra), foi realmente um Em cada parada do roteiro, uma miríade de emoções: olhares, gestos, sonhos 20 21 22 privilégio ter estado em Rio Grande, Canoas, Ivoti, São Borja, Palhoça, Antonina, Mococa (e Igaraí), São Paulo capital, Rio de Janeiro idem, Cariacica (ao lado de Vitória), Porto de Sauípe, Recife e Natal. Em cada cidade, conheci mulheres de fibra, força e fé. Mulheres que já fizeram muito, ainda fazem e muito farão. Mulheres que se transformam dia a dia e que seguirão transformando realidades - as suas e as do entorno. De agosto a dezembro de 2010, fui iluminado por dezenas de olhares, cada um INTRODUÇÃO com sua peculiaridade, todos eles com a energia de quem acredita em si e no poder transformador da união, do firme propósito, da determinação. Nas pegadas dos trajetos que percorri, seguiram depois o fotógrafo Ita Kirsch e sua equipe. E a partir dos retratos colhidos em cada parada, devidamente "embalados para presente", como costumo dizer, no sensível projeto gráfico da designer Luciane Trindade, chegamos ao resultado final desta jornada. Sempre sob a liderança serena e tranquila de Flavio Enninger, da Quattro Projetos, esta aventura não teria sido possível sem o apoio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura e o patrocínio da Lojas Renner. As mãos das meninas e mulheres que serão conhecidas nas páginas seguintes fazem uma breve pausa em seu trabalho para aplaudirem essa iniciativa. Até porque elas sabem como ninguém que as expressões culturais servem muito bem como ferramenta de inclusão social e geração de renda, e que seus exemplos poderão ser replicados Brasil afora. Que assim seja. RICARDO BUENO artesanato funcionam como ferramenta de inclusão Expressões culturais como o 23 24 GRUPO DE ARTESÃS DA BARRA RIO GRANDE RS costurando caminhos e tecendo sonhos 25 DA BARRA GRUPO DE ARTESÃS QUALIDADE E ATENÇÃO AOS PRAZOS SÃO DIFERENCIAIS DO GAB O que é que répteis surgidos há mais de 150 milhões de anos têm a ver com resgate da autoestima, inclusão social e geração de renda? Quem se deslocar até a 4ª Seção da Barra, em Rio Grande, litoral sul do território gaúcho, vai descobrir. É lá que atuam, desde 2004, as mulheres que integram o Grupo de Artesãs da Barra (GAB). Mas qual a relação delas com os répteis, no caso, as tartarugas marinhas? Estes animais são parte da inspiração do artesanato produzido pelo GAB, trabalho que, além de buscar a geração de renda e inclusão social, contribui para a preservação ecológica. É o artesanato da conservação. O início dessa história é o projeto "Tartarugas Marinhas no Litoral do Rio Grande do Sul", uma das tantas atividades desenvolvidas pelo Nema (Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental), uma ONG (Organização Não Governamental) nascida há 25 anos, por iniciativa de estudantes de Oceanologia da Universidade Federal de Rio Grande (Furg). Além de se ocupar da agroecologia, da educação ambiental, de cuidar da conservação de santuários como o banhado do Taim e a Lagoa Verde, o Nema percebeu que era preciso atuar também na geração de renda, tendo como foco a comunidade de mulheres da barra. "O modelo é semelhante ao que o projeto Tamar implantou em diversos estados brasileiros", explica a bióloga Alice Monteiro, que até o final de 2010 atuava como coordenadora do projeto "Costurando caminhos, tecendo sonhos", através do qual o Nema conseguiu apoio do Instituto Renner e do Instituto Nestor de Paula para o GAB, que financiaram a compra de equipamentos. Via projeto, o conhecimento dos técnicos e voluntários do Nema sobre as tartarugas e outras espécies que habitam o litoral do Rio Grande do Sul foi sendo repassado às artesãs. Apesar de morarem uma vida inteira junto ao mar e em geral serem casadas com pescadores, elas não sabiam diferenciar, por exemplo, as tartarugas cabeçuda, verde, de pente, oliva e de couro. Eram mulheres que também não trabalhavam com a possibilidade de assumirem o artesanato, uma vez encerrada a capacitação inicial Artesanato da conservação ressignificou a vida das artesãs e a realidade em torno 26 27 A EXPERIÊNCIA DE LEDENI CONVIVE COM A JUVENTUDE DE LIDIANE EM NOME DA COOPERAÇÃO 28 DA BARRA GRUPO DE ARTESÃS em 2004 (modelagem de tartarugas marinhas em biscuit, corte e costura, pintura em tecido, reciclagem de papel e modelagem em biscuit de animais marinhos que ocorrem na região). Foi Suzana Camargo Reis, 42 anos, líder informal do grupo, quem na ocasião se fez a pergunta: "E agora que terminou o curso, vai cada uma para sua casa?" Alice Monteiro confirma: "A ideia de formar um grupo realmente foi delas." Das 36 mulheres que fizeram a capacitação inicial, nove foram as mais persistentes. Hoje, junto com Suzana, as mais assíduas participantes do grupo são Lidiane Gonçalves de Andrade, 21 anos, Juceli de Assunção Marques, 29, Fátima Regina Rodrigues, 42, e Ledeni Alves dos Santos, 51. "A gente passou a enxergar de forma diferente as coisas à nossa volta", explica Suzana, mostrando os móbiles, chaveiros, bolsas e peças em biscuit, crochê e fuxico, adornados com biguás, garças, cisnes-do-pescoço-preto, gaivotas, golfinhos, tubarões, polvos e siris. Moradora da Barra há 15 anos, ela teve momentos muito difíceis na vida, por conta das dificuldades de ter um irmão para criar, de um quadro forte de depressão, que superou, e da resistência inicial do marido. "Hoje ele apoia, mas no começo dizia que eu estava era arrumando incomodação". Lidiane tem mais sorte: encontrou uma alternativa para a rotina de passar os dias em casa, apenas cuidando da filha, Dyuliane, 6 anos, e sempre contou com o incentivo do marido, Alex. Assim como Fátima, que tem todo o incentivo do esposo, José Luiz. Mas Juceli lembra que muitas mulheres ainda não se deram conta das alternativas que possuem: "Pouca gente vai atrás. Dizem que não sabem dos cursos que acontecem aqui." percebiam as fragilidades da natureza à sua volta Até então as mulheres não 29 DA BARRA SUZANA (EM PÉ, À DIREITA): LÍDER INFORMAL DO GRUPO DE ARTESÃS GRUPO DE ARTESÃS A propósito de capacitações, uma das metas das artesãs do GAB é aprender a confeccionar as camisetas que hoje compram e estampam com serigrafias. Constituir formalmente uma associação ou cooperativa é outro objetivo, mas os custos ainda dificultam. Enquanto isso não acontece, elas mostram com orgulho as carteiras de artesãs. “Agora temos uma profissão”, lembra Ledeni. Nas quartas-feiras, uma das integrantes do GAB marca presença com uma banca no campus da Furg (Fundação Universidade de Rio Grande), instituição para a qual, a propósito, já produziram mochilas, especialmente confeccionadas para um evento. Sem falar nas muitas outras feiras e eventos onde elas expõem seu trabalho. Outro grande cliente, de prestígio nacional, é o Projeto Tamar, de preservação das tartarugas marinhas. Fátima comenta: "Demorou um pouco para sair essa parceria, mas hoje sempre temos encomendas, não só porque o nosso produto é de qualidade, mas também porque nunca deixamos de atender no prazo". No mês de outubro de 2010, elas estavam focadas em produzir 340 peças encomendadas. Para novembro, seriam mais 530, e outros 710 chaveiros e móbiles para o final do ano. As peças em biscuit, espécie de porcelana fria produzida a partir de maisena e cola, que primeiro tem que ser cozida para depois passar pela modelagem e pintura, foi aos poucos dando lugar ao feltro recheado com fibra acrílica e posteriormente bordado. Com o croché e o fuxico é possível produzir bichinhos com uma riqueza impressionante de detalhes. A bióloga Alice resume a transformação que a iniciativa gerou, nela e no grupo: “Quando eu cheguei à comunidade da Barra, o que eu mais conhecia era o mar, o estuário. No entanto, eu não valorizava a cultura e a estrutura social da comunidade. Eu simplesmente não as via. Só passei a enxergar à medida que as mulheres foram me mostrando, abrindo meus olhos para o contexto de suas próprias vidas. Eu, em contrapartida, mostrei para elas o que eu enxergava no mar. E neste fluxo, elas foram revendo seus contextos e reconstruindo suas visões do mar e de sua comunidade, e eu conheci a comunidade e resignifiquei o mar para mim.” Dito de outra forma: o Grupo de Artesãs da Barra, desde 2004, vem costurando caminhos e tecendo sonhos – seus e de quem quiser compartilhá-los com elas. 30 As mulheres do GAB vão costurando caminhos e tecendo muitos sonhos 31 32 TECENDO MEMÓRIAS IVOTI RS bordados e lembranças 33 DIFERENTES GERAÇÕES COMPARTILHAM CONHECIMENTOS E HABILIDADES 34 MEMÓRIAS TECENDO As primeiras famílias de origem alemã chegaram em Ivoti, no Rio Grande do Sul, por volta de 1826. Na bagagem, entre os escassos objetos trazidos, encontravam-se os Wandschoner, panos de parede que haviam sido bordados em seu país de origem (e, quem sabe, também, no navio, durante a viagem da Europa para a América do Sul). Uma vez instalados nas novas terras, os domingos à tarde daqueles que seriam chamados de teuto-brasileiros eram reservados para que os homens jogassem cartas ou tivessem outra atividade de lazer, enquanto as mulheres se reuniam na casa de uma delas para bordar. A prática, passada de mãe para filha, prosseguiu até o período da Segunda Guerra Mundial, quando foi proibido o uso da língua alemã no Brasil. Celita Holler, 77 anos, bordadeira reconhecida por sua habilidade, não se cansa de relembrar que seu pai colocou a Bíblia, vários documentos e os Wandschoner da família em uma caixa de madeira, e enterrou-os, com medo de perseguições. Quando terminou a guerra, descobriu que todo o material havia se estragado por causa da umidade. "Foi quase a morte para ele", relembra Celita. Justamente para resgatar a tradição dos Wandschoner surgiu em Ivoti, por volta de 2004, uma iniciativa que, alguns anos depois, redundaria no projeto Tecendo Memórias. Tudo começou com o Grupo de Terceira Idade Amizade, sob a coordenação da psicóloga Ivete Mariane Johann. Na fase inicial do trabalho, entre 2004 e 2005, foram realizadas algumas ações pela comunidade e pelo poder público municipal, como fichamento, classificação e catalogação dos objetos coletados, levantamento das frases mais citadas, seus significados e sentidos. Através da busca e empréstimo de Wandschoner, montou-se um acervo, cujo material deu origem a exposições em eventos culturais de Ivoti e arredores. perseguições e sofrimento, hoje alimenta esperanças Influência alemã, motivo de 35 AULAS INICIAIS DE CAPACITAÇÃO FICARAM A CARGO DE EXPERIENTES BORDADEIRAS 36 MEMÓRIAS TECENDO Por fim, houve o resgate das técnicas artesanais propriamente ditas, através de oficinas de bordado e de educação patrimonial. O passo seguinte se deu em em 2007, quando o governo do Rio Grande do Sul lançou, através da Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social (SJDS), a Rede Parceria Social (RPS). Por meio dela, a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, em parceria com o Grupo Gerdau, criou a carteira de projetos sociais intitulada "Desenvolvimento Social e Protagonismo Comunitário por meio da Cultura". Via edital, organizações da sociedade civil poderiam encaminhar projetos, com valor máximo de R$ 30 mil. E então surgiu o projeto Tecendo Memórias. "A iniciativa do Instituto de Educação Ivoti buscou resgatar o conhecimento tradicional das mulheres e, ao mesmo tempo, agregar uma proposta educativa de aprendizagem do bordado", explica Marli Brun, coordenadora do projeto. Dois grupos passaram a se reunir no próprio instituto e um grupo, na Associação dos Moradores do Bairro União. "Mantivemos nos três grupos o estudo de Técnica e História do Bordado, Criação e Arte, Direitos Humanos e Gestão de Negócios. As áreas de Alemão, Memórias e Vivências e Informática Educativa foram desenvolvidas em duas turmas", acrescenta Marli. Do total de 30 mulheres inscritas, 19 concluíram com índice de presença superior a 75%. A maior parte das integrantes possuía entre 30 e 55 anos de idade, mas algumas adolescentes e uma senhora com mais de 60 anos também participaram do curso. O grau de instrução da maioria situava-se entre a 3ª e a 7ª série do Ensino Fundamental. As aulas de Técnica de Bordado foram ministradas por bordadeiras reconhecidas na comunidade por sua expertise. A incorporação ao projeto como monitoras remuneradas significou um reconhecimento pelo saber que construíram informalmente. Na fase inicial, quando processo era chamado de resgate das memórias histórico-afetivas, três das quatro bordadeiras contratadas puderam se aperfeiçoar ainda mais através de algumas oficinas. Desde aquela época, a frase em alemão que tem acompanhado o grupo, sendo motivo de produção de vários Wandschoner, é Gott segne dieses Haus und alle die da gehen ein un aus (Deus abençoe esta casa e todos os que nela entram e saem). Ingrid Margareta Tornquist, pesquisadora e professora aposentada do Instituto de Formação de Professores de Língua Alemã, diz que os provérbios bordados nos Wandschoner são "como a voz da mulher, da dona de casa. Era ela quem os escolhia e bordava". Provérbios bordados nos Wandschoner são como a voz da mulher 37 MEMÓRIAS MARLI (PRIMEIRA À ESQUERDA, AGACHADA) E ALGUMAS DAS ARTESÃS DE IVOTI TECENDO O trabalho das bordadeiras atualmente ultrapassa a produção de Wandschoner. O grupo, que a partir de 2009 deu início ao projeto de constituir uma associação, instituindo uma mensalidade para aquelas que possam contribuir, tem participado de feiras e exposições comercializando também aventais, camisetas e trilhos. "É uma terapia, pois exige calma, paciência", explica dona Celita, a professora septuagenária que tem o privilégio de conviver com a iniciante Tainara, de 16 anos. Exímia desenhista, Tainara está fazendo o curso de Técnica em Artes Visuais e passou para o 3º ano do Ensino Médio. Ao lado delas, convive Teresa, nascida na região das Missões, que já costurava, mas quer se tornar bordadeira profissional um dia. A renda complementar que sua produção gera tem sido importante para a família, já que o marido foi demitido de um curtume há um ano, e ela ainda ajuda a sustentar um cunhado que tem deficiência mental. Vera Koch Schneider, professora voluntária no projeto e espécie de "presidente informal" da futura associação, diz que é difícil mensurar o valor do que vem sendo feito no Tecendo Memórias: "Expor os Wandschoner sempre traz boas recordações para as pessoas que tomam conhecimento do trabalho. Muitas têm boas lembranças da casa da mãe, da avó. Uma moça, em especial, chamou minha atenção durante uma exposição, porque ficou muito emocionada, com os olhos cheios de lágrimas. Ela lembrou de sua avó, pessoa muito querida. Fotografou todos os panos e nos contou com muita satisfação sobre suas lembranças do tempo de criança". Vera tem razão: quanto vale costurar (ou bordar) com mãos firmes e delicadas um elo entre o presente de realizações e o passado feliz? bordando um elo entre o presente e o passado É difícil mensurar o valor de ir 38 DONA CELITA (ACIMA, À ESQUERDA) DOMINA E COMPARTILHA OS SEGREDOS DO PONTO À MODA ANTIGA 39 40 LÃ PURA SÃO BORJA RS cooperação a serviço do puro talento 41 PURA AGULHAS, LÁS E CRIATIVIDADE FORMAM A BASE DO SUCESSO DA COOPERATIVA LÃ Dona Eva Kufner, gaúcha de 65 anos, nascida no pequeno município chamado São Pedro do Sul, admite: "Foi um sonho que eu não sonhei". A bela definição refere-se à semana de setembro que viveu em Paris, em 2009. Na capital francesa, ela passou boa parte do tempo no estande do projeto Talentos do Brasil, na condição de presidente da cooperativa Lã Pura, de São Borja, que lá estava mostrando seu trabalho. Mas guiada pela assessora do Ministro do Desenvolvimento Agrário, teve oportunidade de conhecer também os pontos turísticos da chamada Cidade Luz. Apesar de se considerar uma pessoa "pé no chão", como ela mesma diz, desfrutou e deslumbrou-se com uma sensação de liberdade e de encantamento que sua rotina de donade-casa jamais sinalizaria ser possível um dia. "A arquitetura é maravilhosa. As igrejas, então, nem se fala", relembra dona Eva. Mas a emoção maior veio mesmo dos elogios recebidos quando do desfile das peças produzidas por ela e suas companheiras, tendo como adereço principal a lã dos pampas gaúchos. "Vendemos até as peças do mostruário". Uma evolução e tanto para quem, desde sempre, se dedicou a produzir peças mais rudimentares, como o bachero, espécie de pelego colocado entre o cavalo e a sela, confeccionado a partir das sobras da lã de ovelha, ou ainda palas, cobertores, tapetes e blusões. Habilidades que ela herdou de sua bisavó, que fazia os próprios fios que usava para remendar as roupas da família. Hoje, dona Eva e as companheiras da Cooperativa Lã Pura compram a matéria-prima de qualidade que, depois, transformam em belas peças artesanais. São fios mais sofisticados, que mandam lavar em Santana do Livramento, na fronteira sul do Estado, e que já Nas mostras no exterior, não é incomum 42 serem vendidas até as peças do mostruário 43 44 PURA LÃ PREPARAÇÃO DOS FIOS É ETAPA ESSENCIAL PARA A QUALIDADE DO PRODUTO Sonho de fazer artesanato com a matéria-prima abundante na região já é realidade 45 PURA LÃ O reconhecimento ao trabalho das artesãs gera maior visibilidade 46 chegam a São Borja cardados. Ainda assim, é preciso "limpar", tirar fiapos. "Dá trabalho. Não é todo mundo que aguenta", acrescenta dona Eva. A história do Lã Pura começa em 2005, quando o designer Renato Imbroisi, consultor do Sebrae, mais Adriane Colleto e Fabio del Re estiveram na cidade, envolvidos com um projeto para a região sul com apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Cerca de 10 a 12 mulheres de São Borja, que tinham algum conhecimento de crochê, tricô e bordado, foram convidadas a acompanhar estes profissionais a São Gabriel, onde durante dez dias trocaram experiências e conhecimentos. E foi lá que começaram a sonhar com a possibilidade de transformarem o que eram noções de corte e costura em autêntico artesanato, a partir da mais típica matériaprima da região, a lã. O sonho logo começou a se tornar realidade. Voltaram para São Borja no dia 20 de dezembro, e já no dia 5 de janeiro de 2006 deveriam entregar as mais de 100 peças daquela que seria sua primeira coleção, a ser apresentada na Fashion Rio, no Rio de Janeiro. Tânia Razia Cappellari, Gema Maria Thiele Frizon e Eronildes Brittes Mattes eram algumas das integrantes das ousadas mulheres que toparam o desafio na época, e que seguem no projeto até hoje. Assim como Cleni Ocampos Feldberg, uma espécie de faz-tudo do grupo, pois cuida das finanças, alimenta o site e ainda consegue tempo para dar asas à imaginação e usar de muita criatividade para desenvolver ecobags e vestidos, como o modelo Quero-Quero, que despertam paixões nas europeias. "Sofremos muito no começo, e não tínhamos noção de onde poderíamos chegar", reconhece Cleni. Por falar em reconhecimento, Cleni foi destaque na etapa estadual do Prêmio Sebrae Mulher de Negócios, edição de 2008, tendo sido distinguida na categoria Membros de Associações ou Cooperativas de Pequenos Negócios. Na ocasião, emocionada, afirmou: "Essa não é minha história, ela é o resultado de um trabalho feito com muito amor por um grupo de pessoas". Não é à toa, portanto, que se multiplicam reportagens sobre o trabalho das artesãs, que já foram ao ar no Globo Rural, da Rede Globo, e no TeleDomingo, da RBS-TV, apenas para citar algumas das muitas ocasiões em que o trabalho que realizam foi reconhecido publicamente. Em um dos textos sobre a relação do designer Renato Imbroisi com diversos projetos de artesanato Brasil afora, a repórter Clarice Couto, do Globo Rural, descreve: "Quem já teve a oportunidade de conhecer os cachecóis feitos pelas mulheres da coo- NA MÁQUINA OU À MÃO, HABILIDADE DAS ARTESÃS SEMPRE ENCONTRA SEUS CAMINHOS 47 PURA CLENI (SENTADA) E DONA EVA (EM PÉ, NO MEIO) COM ALGUMAS DAS COLEGAS LÃ perativa Lã Pura, adornados com pequenas pimentas ou bolinhas coloridas de lã penduradas, ou seus gorros em variados estilos, cores e bom acabamento, não relaciona essas criações de aspecto moderno ao antigo processo pelo qual são confeccionadas. Cleni Ocampos Feldberg, uma das sócias fundadoras da Lã Pura, conta que é no mês de outubro que a atividade se inicia: as famílias tosquiam as ovelhas, lavam o velo (lã), cuidam da fiação da matéria-prima na roca e do tingimento dos fios. Coloridos, eles podem ser aplicados sobre as roupas (é o caso das pimentas) ou trabalhados em tear manual. (...) O Lã Pura envia seus artigos com frequência cada vez maior para os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo." A Cooperativa Lã Pura hoje integra a Cooperúnica, espécie de cooperativa das cooperativas e que abrange o território nacional. Em um site partilhado, 12 associações que reúnem 15 cooperativas compartilham também um mesmo modelo de nota fiscal para venda de seus produtos. Na Lã Pura, são 25 as sócias-fundadoras, mas o grupo de apoio é bem maior. A planilha de controle do trabalho realizado, que serve também para o rateio dos valores que ficam para cada uma delas, a partir de uma ficha técnica de cada produto, foi desenvolvida por Cleni "meio na marra", mas já está virando modelo de gestão. Em paralelo, o trabalho das artesãs ganha visibilidade junto a nomes consagrados do design, como Ronaldo Fraga e a mineira Ana Vaz, que desenvolveram alguns produtos para a cooperativa. E tudo porque, se a lã é pura, elas são puro talento. qualidade dos produtos tem chamado a atenção de designers consagrados A 48 PEÇAS CRIADAS EM SÃO BORJA DESPERTAM PAIXÕES QUANDO LEVADAS AO EXTERIOR 49 50 GRUPO CANOA CANOAS RS jeito novo de lidar com rejeitos 51 o que era para ser lixo ganha O 52 atributos CANOA REAPROVEITAMENTO: CRIATIVIDADE QUE FAZ NASCEREM LUMINÁRIAS E BOLSAS GRUPO Quem procurar no dicionário um sinônimo de persistência não vai encontrar o nome de Edy Ferreira Ribeiro entre as opções. Mas a culpa é dos dicionaristas. Porque essa gaúcha de 57 anos é do tipo que não desiste nunca. Não é à toa, portanto, que está à frente do Grupo Canoa, na cidade quase homônima de Canoas, no Rio Grande do Sul. Formada em corte e costura ("que não deixa de ser uma espécie de artesanato") e filha de mãe artesã, que operava com destreza o tear, tecidos e retalhos, dona Edy é uma usina. Seu celular não para de tocar, seja para tratar dos assuntos referentes à formalização da associação de artesãs, que está em curso; seja para ver os detalhes da participação na próxima feira; seja para combinar a remessa de resíduos que serão enviados por uma fábrica, para depois serem transformados pelas mãos habilidosas de suas companheiras de trabalho. Reaproveitamento, como se vê, é palavra-chave no Grupo Canoa. O nome, aliás, é mais do que uma homenagem à cidade. Acontece que os índios que habitavam a região utilizavam canoas para revender o que produziam. "Se eles encontravam sua sustentabilidade usando canoas, nós também podemos", explica dona Edy. Sustentabilidade que passa também pela criação de peças artesanais a partir da reutilização de resíduos da indústria automobilística, especialmente insumos de borracha que fazem parte do sistema de filtragem de óleo e ar de carros e caminhões, mas também banners descartados e, ainda, garrafas pet e tampinhas. O que seria rejeito acaba se transformando em luminárias, joias, acessórios, carteiras e bolsas. Dona Edy gostaria que mais empresas contribuíssem com o projeto, até porque, como ela enfatiza, quem recicla pode pleitear algumas isenções fiscais. como beleza e funcionalidade 53 CANOA DONA EDY (ESQ.) É A LÍDER DO PROJETO QUE MUDOU A VIDA DE SIRLEI GRUPO O projeto tem o apoio do Sebrae-RS (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e da Petrobras. Logo em seus primeiros passos, contou com a consultoria da designer Karen Ghetto, de Novo Hamburgo, que coordenou as oficinas iniciais de capacitação, em agosto de 2007, em uma sala emprestada pelo Colégio La Salle. A iniciativa foi da Secretaria de Desenvolvimento Econômico. E a evolução foi rápida. O lançamento das primeiras peças, concebidas a partir de garrafas pet e borracha, aconteceu já em outubro de 2007, durante a Mercopar. A história, entretanto, começa bem antes, quando dona Edy resolveu participar de uma feira promovida pela prefeitura de Canoas, onde comercializava peças que ela mesma produzia, a partir de roupas reformadas e decoradas com retalhos. A feira não durou muito tempo, mas ela foi a última a desistir. "Eu sou muito persistente, sabe? Sou sempre a última a me entregar. A maioria das pessoas não têm visão de futuro", enfatiza. Em razão dessa característica, dona Edy foi convidada para liderar a oficina de artesanato que acabaria sendo o embrião da atual associação. O prédio onde as artesãs trabalham desde 2008 foi cedido pela prefeitura municipal. "Somos muito gratas ao prefeito Jairo Jorge e à primeira dama, Tais, que sempre nos apoiaram". Dona Edy tem outra marca: o uso constante do plural majestático. Dificilmente sai de sua boca um "eu isso" ou "eu aquilo". É sempre "nós". É dessa sua convicção no trabalho coletivo que vem parte da energia que sustenta o Grupo Canoa. Outra pilar é a solidariedade e o compartilhamento de experiências positivas. A colega Sirlei que o diga. Quando chegou ao projeto, o marido, que havia sido aposentado como piloto da Varig cinco anos antes, passava por um quadro de depressão. "Nossa vida deu uma virada para pior. A família entrou em crise. Perdemos amizades, perdemos o ânimo, perdemos quase tudo", lembra Sirlei. Indicada por uma amiga, resolveu conhecer a iniciativa. E foi lá que recuperou a autoestima. "Aqui aprendo muita coisa no convívio diário. Até dicas de como arrumar casa, fazer isso ou aquilo", explica, garantindo que tudo mudou de um ano para cá, quando se integrou ao grupo. 54 Rotina do projeto diminui espaço do “eu”, pois no trabalho coletivo o “nós” é quem impera 55 CANOA GRUPO CANOA NAVEGA MOVIDO A TALENTO E MUITA PERSISTÊNCIA GRUPO É claro que dificuldades existem, e para o Grupo Canoa são basicamente duas: espaço para estocar material (no final de 2010 elas ganharam do Sebrae nada menos que 26 mil tampinhas de garrafas pet) e os gastos na compra de insumos para os acessórios, como fechos e elos. Sem falar na matéria-prima, que algumas vezes é doada, mas muitas empresas só aceitam revender, mesmo que se tratem de sobras que não teriam qualquer utilidade. É dinheiro que as artesãs investem, pois os patrocínios que o projeto consegue em geral não cobrem este tipo de gasto, apenas estandes e despesas de viagem para participação em feiras, o que não deixa de ser um apoio importantíssimo. Desde 2008, por exemplo, o Grupo Canoa participa da Paralela Gift, em São Paulo. É uma oportunidade e tanto, porque os melhores resultados advêm das vendas no atacado. A propósito de investimento, 10% do valor fixado para cada peça é reinvestido na associação. "Nós calculamos o preço de venda a partir do valor da hora, que para nós é de R$ 5. Se uma peça pode ser feita na metade desse tempo, então ela vai custar R$ 2,50. Na venda no varejo, há um acréscimo de 50%", explica Elisabeth Madrid, a Beth, uma das mais antigas do grupo e espécie de braço direito de dona Edy. Hoje, em torno de 12 a 15 mulheres participam mais constantemente dos trabalhos, pois há muitas idas e vindas. Para participar, não há burocracia. "Elas chegam por indicação ou porque ouviram falar de nós em algum lugar", explica dona Edy. Toda nova integrante passa por uma capacitação inicial. Com visão de futuro, dona Edy, que hoje dá aulas de corte e costura em uma iniciativa de geração de emprego e renda no município de Estância Velha, já está pensando na Copa de 2014. E por isso insiste na necessidade de que mais empresas doem materiais. É com orgulho que ela mostra um dos tantos resultados da criatividade do grupo: uma espécie de esponja que filtra o ar do motor, e que depois de ser tingida com erva-mate e dobrada delicadamente, vira flor. "Eu sempre acredito que as coisas possam acontecer, decolar." Quem conhece dona Edy passa a acreditar também. Esponja do filtro de ar vira flor depois de 56 SEJAM FIOS, SEJAM TAMPINHAS, TUDO GANHA NOVA VIDA NA MÃO DAS ARTESÃS CANOENSES tingida e dobrada com delicadeza 57 58 MULHERES DO FREI PALHOÇA SC artesanato de Palhoça e do Brasil 59 DO FREI MULHERES APURO TÉCNICO (ACIMA) EM EMBALAGENS ADEQUADAS (AO LADO) Peças eram produzidas individualmente, mas hoje mais de uma artesã se envolve 60 Na teoria, as mulheres que moram em uma comunidade chamada Frei Damião, em Palhoça, na Grande Florianópolis, conhecida por seus altos índices de risco social, dificilmente poderiam ter qualquer relação com lojas como Le Lis Blanc e Imaginarium, estabelecidas nos melhores shoppings do país. Na prática, uma associação nascida informalmente por volta de 2005, mas formalizada desde 2009, está mudando esta realidade. Acontece que a Mulheres do Frei Produção Artesanal, mais conhecida simplesmente como Associação Mulheres do Frei, se transformou em uma fornecedora dos elegantes acessórios vendidos pelas duas famosas grifes. A delicadeza do crochê, o bom gosto no uso das cores e o capricho no acabamento das peças produzidas por mãos humildes, mas muito talentosas, vêm encantando as clientes das duas grandes redes, de abrangência nacional. Se no início as peças eram produzidas individualmente, hoje o trabalho é cooperado, literalmente. Três e até quatro mulheres podem se envolver em alguma etapa da produção. "Tudo em nome da produtividade e da qualidade", explica Marinete Bachesk Rodrigues, 49 anos, espécie de mãezona do grupo, pois está sempre preocupada com o bem-estar de todas. Ela faz questão de lembrar que o momento atual é bem diferente da realidade de cerca de seis anos atrás, quando tudo começou, num galpão cedido pela prefeitura e onde a poeira imperava. Na época, um grupo de mulheres se reuniu e decidiu encontrar alguma maneira de complementar sua renda familiar. As possibilidades eram três: investir no ramo da alimentação, opção logo descartada, em razão da dificuldade de seguir as normas de higiene e necessidade de equipamentos; produzir sabão e revender de casa em casa ou em mercadinhos de bairro, atividade que foi a escolhida por algumas delas; e por fim o crochê e o bordado, nicho preferido por um terceiro grupo. O que prosperou mesmo foi o terceiro, até porque neste grupo a união e o espírito de cooperação se mostraram mais fortes - características que seguem até hoje. Para que as coisas seguissem evoluindo, foi fundamental o apoio do Sebrae-SC, através de uma consultoria de moda. Graças a este apoio, as artesãs foram adaptando o tipo de trabalho que realizavam. Elas chegaram a produzir um vestido de noiva inteirinho em crochê, mas aquele tipo de peça não tinha apelo comercial, além de levar muito tempo para ficar pronto. Acabaram descobrindo que poderiam usar como tema o boi-de-mamão e per- 61 A QUALIDADE DO TRABALHO COOPERADO ABRIU MERCADO NACIONAL PARA COLARES COMO O ACIMA 62 DO FREI MULHERES sonagens como a Bernunça, o Boi e a Maricota, do folclore açoriano, cuja presença é muito forte em Santa Catarina. As peças, assim, poderiam contar com um apelo diferenciado, mais próximo da cultura local e explorando o sentimento de pertencimento a uma comunidade. E começaram, então, a nascer panos de prato, toalhas, cobertas de mesa e sachês, hoje comercializados em delicadas embalagens com a marca própria. Com a melhoria nos negócios, veio a cedência de uso da atual sala, que pertence à prefeitura de Palhoça e onde há dois anos funciona a associação. O projeto, a propósito, foi incluído no programa municipal de artesanato. Outra parceria importante foi estabelecida com a Rede de Comercialização Casa Catarina, o que garante diversos pontos de vendas com fluxo constante de pessoas, pois a rede tem filiais em shoppings. Além disso, a loja trabalha com um sistema de gerenciamento de estoques muito útil, para que não falte nunca produto nas filiais. Sem falar no Projeto Comércio Brasil, através do qual o Sebrae aproxima instituições de mercados para colocação de seus produtos. CAPACIDADE DE APRENDER Na trajetória do grupo, uma das marcas mais fortes tem sido o aprendizado, tanto no que se refere ao trabalho artesanal em si, quanto na gestão. Sirlei Anhaia é um exemplo explícito. Seu nome completo (Sirlei Aparecida Serafim Luiz Ferreira Anhaia) é proporcional à capacidade que tem de se Decisão de adotar temas do folclore açoriano gerou novas oportunidades de negócio 63 DO FREI QUARTETO AFINADO: MARINETE, ROSÂNGELA, SIRLEI E TEREZINHA MULHERES aprimorar. Casada, 31 anos, recebeu a incumbência de manter os controles da produção, e a cada momento vem sofisticando mais as planilhas que utiliza para registrar quem fez o que e em quanto tempo. Simultaneamente, revelou-se uma aplicada aluna de Rosângela Loureiro Gorri, 46 anos, exímia no crochê e bordados. "Muitas vezes eu dizia para ela: esse aqui tem que desmanchar, não ficou direito", lembra Rosângela. Hoje, ela mostra com orgulho que o ponto apertadinho da "aluna" Sirlei beira à perfeição. Terezinha Gomes do Rosário, 48 anos, é outro exemplo de superação. Analfabeta funcional, tinha apenas noções básicas de costura quando entrou para o grupo, e acabamento não era o seu forte. Mesmo assim, persistiu. Em uma ocasião, recebeu fita métrica e tecidos para cortar em casa, mas como não sabia ler as medidas (ficou com vergonha de admitir), não cumpriu a tarefa. Em lugar de se abater, decidiu se inscrever no EJA (Educação de Jovens e Adultos), e já está no terceiro ano. Do tipo mais calada, divide suas horas entre as terças e quintas à tarde na Associação Mulheres do Frei e o pequeno sítio onde cria porcos, coelhos e galinhas. Durante muito tempo, sua atividade principal foi a reciclagem de lixo. O futuro da Associação Mulheres do Frei ainda é uma incógnita. Até porque elas seguem vivendo e trabalhando em um ambiente complicado, do ponto de vista social. Mas o fato é que o faturamento anual da associação só faz crescer. De 2007 para 2010 as receitas aumentaram consideravelmente, e para 2011 as perspectivas são muito animadoras, ainda que boa parte do capital continue sendo reinvestido na própria associação. É por essas e outras que as mulheres do Frei já são mulheres do Brasil. O futuro é uma incógnita, mas bons 64 TEREZINHA (ESQ.) DECIDIU FAZER O EJA E SIRLEI BORDA MELHOR QUE A PROFESSORA resultados alimentam o otimismo 65 66 COPESCARTE ANTONINA PR o milagre da transformação dos peixes 67 COPESCARTE ARTESÃS DE ANTONINA PASSARAM A ENXERGAR NOVOS HORIZONTES Salmão, corvina, linguado e abrótea são algumas das espécies que há muitos anos fazem parte do dia a dia da comunidade pesqueira de Antonina, no litoral paranaense. Desde 2006, entretanto, estes peixes passaram a desempenhar um outro papel, ainda que também ligado à economia local e à geração de renda, tal qual a pesca. Acontece que a pele e as escamas destes habitantes de rios e mares, depois de devidamente beneficiadas, passaram a ser utilizadas como insumo de belas e originais peças de artesanato. Elas são produzidas por uma cooperativa integrada por mulheres de baixa renda e moradoras de comunidades socialmente vulneráveis - a maioria dos bairros Portinho, Graciosa de Cima e Graciosa de Baixo. Há mais de quatro anos, a Copescarte tem contribuído para resgatar a autoestima e ressignificar a vida destas mulheres e suas famílias. Ainda que o trabalho seja coletivo e que sua continuidade seja resultado do espírito cooperativo que mantém unidas as 20 associadas efetivas, o catalisador (ou catalisadora) de todo o processo tem nome. Chama-se Leocília Oliveira da Silva, 53 anos. Nascida em Manaus e ex-voluntária do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Leocília domina como ninguém os segredos e mistérios do processamento da pele de peixe. No início de 2004, ela fez uma especialização na Universidade Estadual de Maringá, no oeste paranaense. Em 2005, quando visitou Antonina a passeio, apaixonou-se pelo lugar. E está lá até hoje. O embrião de tudo foi um desfile-mostra na cidade das muitas peças de vestuário e de artesanato que poderiam ser confeccionadas a partir da pele Talento e cooperativismo se 68 uniram para oferecer uma nova perspectiva às mulheres 69 UMA DAS PEÇAS CHEIA DE ESTILO PRODUZIDAS PELAS COOPERADAS, COMO MARLI Trabalho cooperado contribui na 70 superação COPESCARTE TINGIMENTO PROPORCIONA VARIEDADE DE TONS ÀS PELES TRANSFORMADAS EM COURO transformada em couro e das escamas. Com o apoio de Nelson Rosa, do Instituto Ambiental e Cultural Carijó (que também colaborou na redação do que seria o futuro estatuto da Copescarte), Leocília conseguiu despertar a curiosidade e o interesse da comunidade de Antonina, em especial das chamadas marisqueiras. Antonina tem cerca de 25 mil habitantes, e não é incomum as pessoas que querem ter uma vida melhor saírem de lá em busca de oportunidades. Para as mulheres, então, as alternativas são ainda mais reduzidas. E muitas delas também têm que conviver com a violência doméstica, resultado do abuso do álcool ou drogas por parte dos maridos, quase todos pescadores. Por isso, a Copescarte se transformou em uma opção tão atraente, menos pelos resultados financeiros (isto porque os ganhos têm sido quase todos reinvestidos na própria cooperativa), e mais por proporcionar uma nova perspectiva de realização pessoal e de condições de vida. Após saírem de casa por volta das 5 da madrugada, as marisqueiras, em grupos de 10 a 12, vão de canoa a remo (barco contratado e com o custo rateado) até um ponto determinado. Atravessam a baía de Antonina e embrenham-se nos mangues até por volta de 16h30min, quando retornam com sacos de bacucu. As marisqueiras precisam permanecer de seis a oito horas com suas pernas e ventre submersos no substrato lodoso dos manguezais. Na maior parte do tempo, essa submersão ocorre até a altura do busto. O corpo feminino, enterrado por horas no rico lodo dos manguezais, sofre com as consequências: doenças vaginais, uterinas e renais, como infecções e corrimentos, geram um quase que permanente comprometimento da saúde da mulher - e também da vida do casal, sob o ponto de vista sexual. Involuntariamente sendo contami- do drama da falta de horizontes 71 COPESCARTE Ver a autoestima renovada é um privilégio que não tem preço 72 nadas e contaminando os manguezais, acabam gerando impactos negativos para a saúde pública e no ecossistema. Uma das protagonistas desta realidade chamase Marli Pereira de Oliveira, 48 anos. Mãe de três filhos (duas mulheres, já casadas, e um menino de 12 anos), com nove anos já ajudava a mãe "a tirar siri, sentadinha em uma lata de leite", como ela mesma relembra. Engravidou aos 15 anos, acabou perdendo o bebê. Mais tarde, conheceu aquele que viria a ser seu futuro marido, mas também seu algoz. Passada a fase inicial do relacionamento em que tudo eram flores, ele começou a beber e até a espancá-la na frente dos filhos. Depois de muita resistência, finalmente ele concordou com a separação, o que de um lado foi bom, pois Marli parou de ser agredida, mas por outro ficou a carga de sustentar sozinha o filho e os netos. "Depois que entrei na Copescarte minha vida melhorou muito, conheci pessoas diferentes, fiz novas amizades, deixei de tirar siri. Quero voltar a estudar e pelo menos terminar o Ensino Médio, pois parei na 6ª série", diz Marli. Não menos dramática é a história de Cristiane Mari Fligikowski, 31 anos. Abandonada pela mãe, que era garota de programa, logo depois de nascer, teve a felicidade de ser criada por um casal muito amoroso, que a adotou e com quem foi morar em Curitiba. Com a separação dos pais adotivos, anos depois, as dificuldades aumentaram. Mas Cristiane acabou se mudando para Antonina com a mãe, quando o pai, que vivia sozinho na cidade, ficou muito doente e não tinha quem cuidasse dele. Acabou engravidando de surpresa aos 17 anos. O neto durante algum tempo foi a alegria de seu pai, mas ele morreu poucos anos depois. Quando engravidou da segunda vez, de novo de forma inesperada, primeiro tentou abortar, pois não tinha condições de criar mais um filho; depois, decidiu que daria a criança, assim que nascesse (repetindo a história que havia acontecido quando ela era um bebê). Acabou se arrependendo da decisão, buscou a filha de volta, mas não escapou da prostituição (outra vez repetindo a história da mãe), fazendo programas com marinheiros embarcados que passavam por Antonina. Foi Leocília, da Copescarte, quem ofereceu a ela uma outra possibilidade de encarar a vida. E é essa a trajetória que Cristiane vem percorrendo desde então. "Agora tenho uma profissão, sou respeitada pela sociedade que me condenava", assegura ela. Formada em Técnica Portuária e concluindo o curso de Técnico em Meio Ambiente, ela agora sonha em cursar uma faculdade - "Ciências Contábeis ou Matemática", explica Cris. A beleza do artesanato produzido pelas associa- ESCAMAS VIRAM FLORES NAS MÃOS HABILIDOSAS DAS ARTESÃS DA COPESCARTE 73 COPESCARTE LEOCÍLIA (A SEGUNDA DA DIREITA PARA A ESQUERDA, SENTADA) E SUAS PARCEIRAS das da Copescarte envolve um processo trabalhoso, e com uma peculiaridade: elas são as únicas do Brasil que sabem como beneficiar a pele de peixes de mar, e não apenas de água doce. As peles são compradas em Paranaguá, de uma peixaria. Aos pescadores foi mostrada a importância de caprichar na hora de tirar o couro dos peixes, evitando furos e outras imperfeições. O material fica guardado em câmaras frigoríficas, até chegar a hora de descongelar, fazer mais uma limpeza, reidratar. Só então as peles vão para o fulão, aparelho onde, durante dois dias e meio, ocorre todo processo químico para a transformação em couro, com a utilização de 23 produtos. Depois vem a secagem, e só então a matéria-prima está pronta para ser transformada em peças de artesanato. O trabalho tem rendido diversos convites para palestras Brasil afora, e até no exterior, como no caso dos cônsules do Senegal e do Congo e do governo do Paraguai. Também não foi à toa que a presidente da Copescarte foi indicada ao Prêmio Soroptimista Ruby - Para Mulheres Ajudando Mulheres, reconhecimento que homenageia aquelas que, através de seus esforços pessoais e profissionais, estão fazendo diferença na vida de mulheres e meninas. Leocília confessa que o trabalho realizado hoje pelas artesãs tem como principal objetivo divulgar o domínio da técnica de beneficiamento da pele, porque elas imaginam que poderão obter recursos mais vultosos vendendo diretamente o couro. "É como se as peças que produzimos fossem um mostruário das muitas possibilidades que existem", explica. Quem já viu os cintos, colares, brincos, chaveiros, calçados, e até biquinis, produzidos pelas artesãs da Copescarte, fica na torcida para que elas não parem de criar, mesmo que vender as peles possa um dia vir a ser seu negócio mais rentável. transforma em Antonina é a realidade feminina Mais do que as peles, o que se 74 MIÇANGAS DE MADEIRA, LIGADAS POR FIO DE TUCUM, FAZEM PARTE DOS ACESSÓRIOS 75 76 CAFÉ IGARAÍ MOCOCA SP bordando e pintando com sabor de café 77 IGARAÍ CAFÉ ALTERNATIVA: EM LUGAR DE ENXADAS E FOICES, AGULHAS E LINHAS Eixo da produção de 78 Distrito do município de Mococa, na região norte de São Paulo, Igaraí quer dizer "canoa pequena". Com uma população estimada em apenas 2.500 pessoas na área urbana (e talvez outras mil nas fazendas em torno), Igaraí é, de fato, minúscula. Trata-se de uma pacata localidade em cuja pracinha central está localizada a modesta, mas organizada sala de uma instituição dedicada ao artesanato. Batizada Café Igaraí, a associação congrega mulheres que se dedicam ao crochê, ao bordado e à pintura em porcelana para retratar uma histórica atividade econômica da região, explícita em seu nome: o cultivo do café. Claudia Meirelles Davis, que apoia, de forma voluntária, as artesãs (ela já foi gerente de fazenda de café durante três anos), conta que Igaraí fica bem na divisa com Minas Gerais, na região que durante algumas décadas, mais exatamente entre 1898 e 1930, foi protagonista da famosa política do café com leite, que estabeleceu um revezamento entre políticos paulistas, plantadores de café, e mineiros, produtores de leite, no comando dos rumos do país. Se o eixo da produção de café tipo exportação atualmente se deslocou para o norte de Minas e até para Goiás, ficou a tradição em Igaraí, onde muitas fazendas seguem recebendo visitantes, em programações do tipo turismo rural em um roteiro batizado, é claro, "Café com Leite". Parte do público que adquire os produtos artesanais da associação Café Igaraí está justamente neste nicho. A história começa por volta de 2006, quando foi veiculado nas rádios locais um anúncio convidando as mulheres da região para um encontro sobre uma alternativa de geração de renda. A possibilidade despertou a curiosidade de nada menos que 70 mulheres, boa parte das quais, como se descobriria depois, estava justamente em busca de uma opção para o trabalho cansativo no plantio e colheita do café. De início, ninguém sabia bem do que se tratava. Quando informadas de que a ideia era a realização de oficinas apoiadas pelo Sebrae, durante as quais seriam transmitidas noções de crochê e bordado, em aulas teóricas e técnicas visando à produção artesanal, apenas 30 decidiram continuar. E assim foi feito, de agosto de 2006 a abril de 2007. As aulas incluíram até encontros com renomadas bordadeiras do município mineiro de Taguatinga. Uma vez definidas as artesãs que tocariam adiante o projeto e escolhida a linha de trabalho, um aspecto que foi bastante estudado foi a paleta de cafés finos mudou, mas DO GRUPO DE 70 MULHERES, 30 PERSISTIRAM E FUNDARAM SUA PRÓPRIA ASSOCIAÇÃO tradição se mantém viva em Igaraí e região 79 A PINTURA EM PORCELANA É UM COMPLEMENTO PERFEITO AOS PANOS BORDADOS Além da produção própria, cada artesã é 80 IGARAÍ CRENÇA: DURANTE BOM TEMPO, ARTESÃS REINVESTIRAM OS GANHOS NA ASSOCIAÇÃO CAFÉ cores. Durante a florada do café, entre setembro e outubro, as plantações ficam brancas como a neve. Depois, os tons mudam para amarelo ou vermelho, dependendo da variedade. Há ainda os tons do terreiro utilizado para secagem dos grãos, e, ainda, as cores da terra propriamente dita. Para o tingimento dos tecidos, a técnica utilizada é japonesa, e inclui sutilezas como adicionar leite de soja nos panos de algodão, pois a proteína ajuda na absorção do pigmento. O consultor do Sebrae, Renato Imbroisi, foi quem sugeriu que, aos trabalhos em bordado e crochê, se agregasse a pintura em porcelana, de forma a que se pudesse montar uma mesa de café da manhã completa, da louça à toalha e descansa-pratos, passando pelos guardanapos, todos com motivos da região. Durante um bom tempo, as artesãs reinvestiram na íntegra tudo que ganhavam (inclusive com a venda da produção das oficinas). Gessi Inácio de Souza Teodoro, 59 anos, casada e mãe de três filhos homens, lembra que ouvia sempre a mesma frase, durante o período do treinamento: "Não vai dar certo. Vocês estão trabalhando de graça, perdendo tempo." Hoje, além de trabalhar no corte e estar estudando a costura, ela se aventura no computador, ajudando na parte administrativa. Eliana de Fátima Santana Cipriano, 40 anos, casada, dois filhos, acrescenta que justamente por causa desta descrença é que decidiu continuar: "Gosto muito de desafios". Há pouco tempo ela morava na capital paulista, onde vivia de faxinas, e fez o caminho inverso de muita gente que procura oportunidades. Preferiu fugir da violência urbana, e considera que já evoluiu muito na costura. "As tarefas são compartilhadas. Cada uma delas, além do artesanato que produz, é responsável por uma área: umas cortam, outras passam, uma cuida das rotinas de banco, a outra da limpeza, outra dos emails", explica Claudia. responsável por alguma tarefa de apoio 81 IGARAÍ OTIMISMO: CLÁUDIA (PRIMEIRA À DIREITA) E O GRUPO ESTÃO CONFIANTES NO FUTURO CAFÉ Maria Aparecida Arcas Costalonga, a Cida, 64 anos, morou e trabalhou em fazendas a vida toda. Viúva, tem 10 filhos e 18 netos, apenas três dos quais não ajudou a criar, como ela faz questão de enfatizar. Trocou a rotina de carpir, plantar, colher e descascar o café pelo bordado e, basicamente, crochê, que já dominava. Mineira de Guaxupé, quando voltou a morar em Igaraí dedicou-se ao vagonite, um tipo de ponto do bordado. Já Silvia Helena Xavier Antonioli, 43 anos, conta que desde o início teve a intuição de que as coisas iam dar certo. "Pensei: vou entrar e vou lutar por uma coisa que vai me servir amanhã, mas também pode ser uma opção para outras pessoas, no futuro." As vendas da Café Igaraí seguem sendo um tanto sazonais, mas cerca de 40% das encomendas chegam via internet, enquanto 30% são vendidos em bazares e outros 30% em Mococa ou diretamente em Igaraí. Além da participação em feiras como Paralela Gift e Arts & Crafts, a associação chegou a vender para uma loja de São Paulo um conjunto com saia para berço, protetor, rolinho e trocador. Outra alternativa de negócio é investir nos bordados finos, através da terceirização ou dando treinamento. Em meio às perspectivas de crescimento, a associação busca maior aproximação com grupos de jovens. Enquanto o pessoal da terceira idade conta histórias, os mais novos desenham. O projeto se chama TUMM (Todos Unidos Mudaremos o Mundo), e faz parte de uma movimentação que pretende transformar o prédio onde funciona a sala do Café Igaraí em um Ponto de Cultura. Quando acontecer, a marca do Café Igaraí, criada pelo arquiteto Marcelo Aflalo, vai ganhar novo e privilegiado ponto de visualização. Merecidamente. Prédio onde fica a associação deve virar Ponto de Cultura e melhorar 82 visibilidade INVESTIMENTO EM BORDADOS FIINOS PODE GERAR NOVOS NEGÓCIOS PARA A ASSOCIAÇÃO 83 84 ALDEIA DAS MULHERES SÃO PAULO SP uma aldeia feminina por natureza 85 MULHERES INÊS TEM PAPEL FUNDAMENTAL NA FORMAÇÃO DAS ARTESÃS ALDEIA DAS Como diz o ditado, uma andorinha sozinha não faz verão. Da mesma forma, um simples canudo (ou tubete), feito com folha de jornal ou com papel de revista, se visto isoladamente, pouco significa. Mas se algumas dezenas deles passarem pelas mãos femininas e mentes criativas que povoam a Aldeia das Mulheres, cooperativa de São Paulo que funciona dentro de uma ONG chamada Aldeia do Futuro, a lista de produtos e objetos que dali nascem pode chegar a nada menos que 10 mil. A técnica, desenvolvida pelo artesão, arte-educador e educador ambiental Alexandre Chagas dos Anjos, 40 anos, oferece uma fantástica versatilidade, mas não é apenas ela que brilha no segundo andar do centro de convivência localizado no bairro de Americanópolis, subprefeitura de Jabaquara. É também do corte e da costura que o talento destas mulheres emerge. O impulso maior na geração de renda para instrutoras e alunas da Aldeia das Mulheres aconteceu há cerca de dois anos, quando o Instituto Wal-Mart encomendou a produção de nada menos que 15 mil peças, mas exigia como contrapartida que o grupo estivesse formalizado. Daí nasceu a cooperativa, que hoje reúne em torno de 30 associadas. A cada ano, entretanto, cerca de 300 mulheres são ali capacitadas, e em torno de 200 seguem trabalhando de forma terceirizada com a cooperativa. Ainda muito dependentes do suporte concedido pela Aldeia do Futuro, elas em breve devem encontrar o caminho da autonomia e da autogestão. De momento, como enfatiza Alexandre, cumprem um importante papel na valorização do artesanato urbano, que tem como matéria-prima os muitos resíduos que as cidades geram. "O artesão paulistano está se transformando em um grande profissional. Mais engajado e atento para a importância do design, realiza um trabalho mais sofisticado, a caminho de se transformar em artesão plástico", explica o arte-educador. A cada ano, cerca de 300 artesãs são formadas, 86 MULTIPLICIDADE DE USOS DOS TUBETES SE UNE AO APELO ECOLÓGICO DA TÉCNICA e em torno de 200 se mantêm em atividade 87 AMARRADINHO, FUXICO E CROCHÊ: DIVERSIDADE DE TEXTURAS E DE ACABAMENTOS Muitas das artesãs são 88 responsáveis MULHERES QUALIDADE DO ARTESANATO PAULISTANO COMEÇA A SER RECONHECIDA ALDEIA DAS O mercado para as peças produzidas tendo os tubetes de papelão como insumo é vasto. Passa, por exemplo, por uma parceria com a Sabesp, companhia de saneamento de São Paulo, para fornecimento de 30 mil vasos para mudas (os vasinhos de tubete são totalmente absorvidos pela natureza, ao contrário dos tradicionais sacos pretos). Outro nicho é o setor de brindes para empresas do interior, de quem as artesãs recebem encomendas de organizers, mouse-pads, relógios e até troféus, pintados com tinta à base de água, para não perder o apelo ecológico. Além do jornal, os tubetes também podem ser feitos com folhas de revista, mas o papel couché, que é o mais usado neste tipo de publicação, apesar de mais decorativo, é mais agressivo ao meio ambiente, pois carrega tinta e verniz. Um aspecto importante a salientar em relação às sócias e artesãs ligadas à Aldeia das Mulheres é que muitas delas são as responsáveis pelo sustento das famílias, ou ao menos desempenham papel fundamental na manutenção de seus lares. Para outras, a atividade pode ser uma tábua de salvação por motivos distintos. É o caso de Meirilane Vitória Dias Freitas, 38 anos. Como mora perto, passou de lotação pela Aldeia do Futuro e viu a placa com o anúncio dos cursos gratuitos. Meire, como é mais conhecida por lá, inscreveu-se tanto nas aulas de bordado quanto de costura. Era o ano de 2001, período em que passava por uma forte crise de depressão e ansiedade. Não imaginou de início que ali poderia estar uma atividade que daria novamente sentido à sua vida; uma saída para que pudesse seguir cuidando dos três filhos, de 19, 17 e 11 anos. Meire foi tão bem sucedida que foi convidada em seguida para dar aula em uma penitenciária feminina, desafio que as colegas tiveram receio de encarar. Meire enfrentou a barra, e deu aulas para reclusas todas as manhãs, durante dois meses. Na sequencia, virou professora em outro curso, desta vez no Sesc Mariana. A mãe, Cenira, também se pelo sustento de suas famílias 89 MULHERES ARTESANATO É UMA ALTERNATIVA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL EM BAIRRO VULNERÁVEL ALDEIA DAS integrou à cooperativa, e a filha, Vanessa, está se interessando pela atividade, pois vê a mãe costurando em casa. Até o pai e uma irmã estão envolvidos na produção, pois a família hoje tem cinco máquinas de costura em casa. Se o mais difícil de tudo foi o começo, como ela diz, hoje sua grande realização é quando percebe que suas alunas conseguem realizar sozinhas um trabalho, sem a ajuda dela. A mestra inspiradora de Meire é Inês. "Ela mostra como se faz, mas deixa espaço para que a gente aprenda sozinha", explica Meire. A Inês a que Meire se refere é Maria Inês Manoel, 51 anos, que conhece a Aldeia do Futuro desde 1998, quando foi convidada para compartilhar seus conhecimentos, não só porque dominava as máquinas de costura que haviam sido recém-compradas, mas também por ser exímia no corte e costura manual. Na época, Inês vendia sua produção para bazares, e passou a dar aulas duas vezes por semana. "A satisfação das meninas quando aprendem é o mais legal. Muitas vêm aqui para se divertir e acabam descobrindo que o trabalho também pode render uma graninha", explica a professora, com um sorriso permanente no rosto. De alunas de Inês para colegas de cooperativa, Joaquina Aparecida Lima, 53 anos, e Aparecida Robélia Otávio Ramos, de 55, hoje trabalham lado a lado. Dividem com as colegas a produção de um sem número de peças feitas com amarradinho, fuxico, ráfia, biscuit. De suas mãos talentosas surgem ecobags, macacões, sacolas feitas com banner, barras de guardanapo, almofadas. É assim que a Aldeia do Futuro, um centro de convivência que abriga vários jovens em liberdade assistida, localizado em um bairro conhecido pelos problemas ligados ao tráfico de drogas, vai mostrando que é possível acreditar no potencial de muitas aldeias. Um lugar onde mãos de meninas e mulheres ajudam a construir uma nova perspectiva de vida. O centro de convivência ganhou perspectiva diferente capacitando dezenas de mulheres 90 JOYCE E UM CONJUNTO DE ALMOFADAS PRODUZIDAS PELAS MULHERES DA ALDEIA 91 92 MULHERES CERAMISTAS RIO DE JANEIRO RJ moldando talentos nas ondas da Maré 93 Cerâmica de Itaboraí ganha tom negro 94 CEERAMISTAS DONA RITINHA (AO LADO) E ALGUMAS PEÇAS PINTADAS DEPOIS DA QUEIMA (ACIMA) MULHERES A Vila do João é apenas uma entre as 16 comunidades que formam o chamado Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, região conhecida pelos altos índices de fragilidade social. Basta dizer que há na vila apenas uma escola, e ainda assim de Ensino Fundamental, para uma população estimada em 32 mil pessoas (de um total de 132 mil em todo o complexo). Pois é em meio a um inevitável oceano de semianalfabetos e analfabetos funcionais que há quase 10 anos vêm se movimentando insistentes ondas de um surpreendente fazer artístico, impulsionadas por lufadas de talento individual e movidas também pelo respeito ao meio ambiente. O projeto Mulheres Ceramistas, que desde 2002 é realizado pela Ação Comunitária do Brasil (ACB), tem proporcionado a criação de peças de rara beleza, em um processo puramente artesanal cujas peculiaridades se iniciam na matéria-prima, passam pelas etapas de produção e preparação, e chegam ao resultado final: objetos utilitários ou peças figurativas cuja qualidade e originalidade já foram reconhecidas e admiradas até mesmo fora do país. O principal insumo das Ceramistas da Maré (excetuada sua própria criatividade e talento) é a argila que vem de Itaboraí, município localizado a 45 quilômetros da capital fluminense. O material é adquirido em sua forma bruta, ou seja, são pedras que precisam inicialmente ser desmanchadas, permanecendo de molho na água durante uma semana. Em seguida, a cerâmica é filtrada, passando por uma sequência de peneiras, primeiro mais grossas, depois mais finas, em um processo de hidratação e desidratação. Mais ou menos 20 dias depois é que a argila poderá ser manuseada. Uma vez que as peças ganhem forma pelas mãos das meninas e mulheres que as moldam, é a vez do alisamento, ou polimento, que pode levar um dia ou mais, dependendo do após queima com serragem e óleo 95 CEERAMISTAS DEPOIS DE POLIDAS, PEÇAS VÃO PARA O FORNO ECOLÓGICO (AO FUNDO DA IMAGEM) MULHERES tamanho da obra e do grau de exigência de cada artista com seu próprio trabalho. Só depois estão prontas para serem "queimadas" no forno. É ali, em uma estrutura construída pelas próprias artesãs, seguindo preceitos ecológicos como o de filtragem de resíduos, de forma a se gerar a menor agressão possível ao meio ambiente, que a cerâmica ganhará o tom negro que é uma de suas peculiaridades – e tudo graças a uma combinação inusitada de serragem e óleo, técnica primitiva que remete a tradições históricas de afro-descendentes. Em média, as peças ficam queimando por quatro horas, sem considerar o tempo inicial de pré-aquecimento do forno, em geral de uma hora. Em meio a tantas e tão delicadas etapas, há sempre o risco do resultado final não ser o esperado. As peças podem rachar, ou mesmo se quebrar em pedaços durante o processo de queima. Neste caso, é preciso não apenas saber lidar com a frustração pela perda do trabalho de tantos dias, mas também, e principalmente, tentar entender o que pode ter gerado a falha. Para isso, as artesãs contam com o privilégio de uma convivência muito próxima entre as mais experientes e as iniciantes. Como destaca Ana Paula Degani, coordenadora do Núcleo da Maré, "a atividade da cerâmica requer atenção do tipo flutuante, ou seja, é possível criar e ao mesmo tempo trocar ideias, cultivar amizades. Nosso espaço é tomado pelas conversas, e é quando as mais velhas aconselham as mais jovens, nos mais variados aspectos da vida, em um ambiente lúdico, alegre, onde se aprende muito mais do que apenas dominar uma técnica". A propósito: nos indicadores de monitoramento e avaliação permanente de cada turma, a ACB procura medir o grau de mudança de atitude das artesãs, em relação a si próprias e às pessoas com quem convivem. São avaliadas a melhoria na capacidade de se comunicar e de resolver problemas e conflitos, o desenvolvimento de espírito de equipe e o apreço e respeito por suas tradições culturais. Já no indicador que se refere ao desenvolvimento pedagógico são avaliadas a capacidade de produzir peças originais, de um lado, e o aumento da concentração e desenvolvimento das funções psicomotoras, de outro. Por fim, o terceiro indicador diz respeito ao convívio intra e extra-familiar, através do qual o que se 96 Convívio entre as mais experientes e as novatas gera ambiente alegre e lúdico 97 CEERAMISTAS CÁTIA (À FRENTE, TERCEIRA DA ESQ. PARA DIR.): DESCOBERTA DE UMA VOCAÇÃO MULHERES busca é medir a melhoria da autoestima. Para chegar a estes números, que têm se mostrado bastante positivos a cada turma formada, os educadores preenchem questionários mensalmente, e os próprios educandos, a cada três meses. A qualidade das peças produzidas vem sendo conferida de perto em diferentes eventos de moda e decoração, em especial no Rio de Janeiro. Casa Cor, Fashion Business e até o Salão Pret-à-Porter So Ethic, este último em Paris, tem levado a originalidade e o bom gosto das ceramistas da Maré para territórios que elas não poderiam imaginar. De outra parte, uma parceria formalizada em 2010 com a ONG Mulheres de Respeito, do município de Caxias, permitiu uma relevante troca de conhecimentos e resultou na criação de uma coleção inédita de acessórios: brincos, colares e pulseiras que combinam as peças em cerâmica negra com fios trançados em folha de bananeira. Sob a liderança informal de Glória da Conceição, 53 anos, e Francisca Duarte, 43, mais conhecida como dona Rita, ou então Ritinha, ambas integradas ao projeto desde 2003, há sempre novos talentos sendo descobertos no projeto. Enquanto Glória produz enormes vasos encomendados pela Rede Record para decorar um de seus cenários e dona Ritinha relembra da frase que ouviu muitas vezes dos filhos, incrédulos com seu talento ("Mãe, foi a senhora mesma quem fez?"), a novata Cátia vai esculpindo mais um totem, e parece surpresa com a descoberta de que "é capaz de fazer alguma coisa do nada, do barro", como ela diz. "Eu trabalhava como copeira, e agora descobri uma habilidade que não sabia que tinha, uma coisa que estava muito oculta", completa, orgulhosa da admiração que o marido, José Carolino, e os filhos, Gilliard, 21 anos, e Jacqueline, 17, vêm manifestando em relação às peças que cria. Para Cátia, o trabalho feito pela Associação Comunitária do Brasil deveria ser estendido para mais pessoas, em diferentes lugares. "A grande coisa dessa vida é a oportunidade", resume. Como se vê, Cátia não entende apenas de escultura. Há sempre novos talentos se revelando 98 UTILITÁRIOS E PEÇAS FIGURATIVAS AGORA TÊM A COMPANHIA DE COLARES em meio às constantes capacitações 99 100 TOQUE DE MÃO RIO DE JANEIRO RJ muitas mãos e todos os toques 101 DE MÃO IMAGENS DO RIO DE JANEIRO GANHAM NOVAS CORES E TONS TOQUE É comum encontrarmos entre as pessoas que se dedicam a uma atividade artística uma personalidade pincelada com traços de ousadia, irreverência e até mesmo alguma petulância. Quase todo artista gosta de romper barreiras, ultrapassar limites, derrubar convenções. Eunice da Ressurreição Matos, 59 anos, moradora do bairro Santa Teresa, no Rio de Janeiro, talvez até não se considere uma artista, mas seu trabalho como artesã assim a qualifica. Pois Eunice não tem o menor pudor em afirmar: "O nosso Abaporu ficou até mais bonito que o original; tem mais cores, mais volume". Ela se refere nada mais, nada menos que à tela pintada por Tarsila do Amaral em 1928 e que hoje é considerada a obra de arte brasileira mais importante e mais valiosa em todos os tempos (foi adquirida por um colecionador argentino por US$ 1,5 milhão). Acontece que o quadro foi "recriado" por Eunice e suas colegas do projeto Toque de Mão, iniciativa cujo embrião remonta aos anos 2000 e desde então vem oportunizando a um grupo de mulheres em situação de alta vulnerabilidade social expressar seus dotes artísticos através da pintura, do bordado e da costura. A própria camiseta "oficial" do grupo já revela as ferramentas e recursos utilizados pelas artesãs: é uma combinação colorida e vibrante de alfinetes, retalhos, joaninhas, flores, bordados e costuras (só não entra a pintura). Eunice, por exemplo, descobriu no projeto os segredos do bordado e das telas. Costurar não é o seu forte - ainda, pois se diz disposta a aprender. Mais velha das atuais integrantes do Toque de Mão (ela tem 59 anos), acabou formando uma dupla inseparável com a mais moça. Ela e Géssica Dias Duarte, 21 anos, não se desgrudam. "Eu faço o grosso e ela faz o fino", explica Eunice, que, mesmo sem admitir, costuma proteger e defender Géssica nas eventuais situações de conflito que possam surgir. "Quando cheguei aqui não sabia absolutamente nada. Camiseta do grupo é uma combinação 102 À MÁQUINA OU À MÃO, TECIDOS VIRAM ARTE NAS MÃOS DAS ARTESÃS CARIOCAS de alfinetes, retalhos, bordados e costuras 103 104 DE MÃO TOQUE ESPECIALIZAÇÃO: TAREFAS SÃO DIVIDIDAS DE ACORDO COM HABILIDADES Oficinas batizadas Compartilhar é que deram origem ao projeto Toque de Mão 105 Melhoria da autoestima tem peso de 106 DE MÃO EUNICE E JÉSSICA (PÁGINA AO LADO): DUPLA INSEPARÁVEL TOQUE Quando vi o anúncio, pensei até que era um curso de manicure para senhoras", explica Jéssica, mãe de Marco, 6 anos. Todo esse relacionamento afetivo e artístico que une Eunice e Géssica é resultado de uma iniciativa do Instituto Marquês de Salamanca (IMDS), instituição que atende dois núcleos (além de Santa Teresa, possui também atividades sociais em Três Rios, zona rural do Rio de Janeiro). Na capital carioca, o embrião de tudo foi o Espaço Educacional Cantinho Feliz, creche onde os filhos das futuras artesãs (moradoras da comunidade em torno) costumam ser acolhidos. De início, foi oferecida às mães a possibilidade de participarem de oficinas, batizadas Compartilhar, cujo objetivo principal era a terapia ocupacional. Nestes momentos, aprenderam a pintar sabonetes e tinham aulas de tricô. O interesse de algumas das mulheres foi crescendo, e veio então a ideia de criar um grupo com autonomia e que buscaria uma complementação de renda. Para dar conta do desafio, a diretora do IMDS, Paula Baggio, foi buscar o apoio da Pró-Social, uma ONG que promove o desenvolvimento sustentável e socialmente responsável por meio de programas de formação em gestão. Na sequência veio o apoio do BG Group, decisivo para a compra de alguns equipamentos e remuneração dos instrutores de bordado e costura, assim como das aulas de história da arte, empreendedorismo, formação de preço etc. "A renda extra é importante, mas podemos dizer que uns 50% do resultado tem a ver com questões emocionais, de aumento da autoestima, de inserção das mulheres em um outro contexto", explica Mônica Igrib, coordenadora do projeto. "Sentirem-se importantes e reconhecidas é um fator relevante para elas", acrescenta. O amadurecimento do grupo foi rápido, e não demorou a surgir a ideia de realizarem releituras das obras de grandes pintores brasileiros, em especial em 50% nos fatores de sucesso da ação 107 DE MÃO DIFERENCIAL: AO FUNDO, UMA DAS OBRAS DE PORTINARI, RECRIADA PELAS ARTESÃS TOQUE bolsas e almofadas. Di Cavalcanti e Candido Portinari, além da já citada Tarsila do Amaral, são alguns deles. Em novembro de 2010, por exemplo, as artesãs estavam às voltas com a produção coletiva de uma enorme tela com um quadro de Portinari retratando uma fazenda de plantação de café (os grãos da planta que aparecem na imagem, explica Géssica, haviam sido feitos em rococó). Lucileide Mendes de Barros, 33 anos, ou simplesmente Lu, está há cinco anos no Toque de Mão. E não tem queixas, ao contrário. Mãe de Lucas, 7 anos, e casada com o conferente de supermercado Raimundo Geraldo, lembra até hoje dos primeiros R$ 8 que ganhou na época dos Jogos Pan-Americanos de 2007, com a venda de um sabonete que havia pintado. Sua vida mudou muito desde então, pois não raras vezes teve receita superior a R$ 2 mil mensais no projeto. Tanto é verdade que com seus ganhos conseguiu ampliar a casa onde mora, comprar ar-condicionado e inclusive mais uma máquina de costura, além da que já possuía, pois também trabalha em casa. "Reconhecimento é importante, mas dinheiro no meu bolso me dá a independência que eu tanto prezo", explica a determinada Lu. Alcidéia Estevão, 53 anos, foi outra que chegou ao IMDS sem saber nada de corte, costura e pintura. Na ocasião, havia perdido um dos cinco filhos (que lhe deram 10 netos), e integrar-se ao grupo foi muito importante para superar a depressão por que passava. "Além da renda, dá bem para a gente se animar aqui", explica, acrescentando que sua preferência é pelo bordado. Segundo ela, o marido Gustavo de Oliveira, 50 anos, que trabalha como fotógrafo da arquidiocese da cidade, não se importa que ela tenha trabalho sábados, domingos e feriados. Atualmente, o Toque de Mão desenvolve produtos para estilistas e lojas como Corpo Alma, Alfaias, Missiza, entre outras. Também atua no segmento de brindes corporativos para empresas como Kuat Guaraná, DNV, Brasil Cap, Instituto Realice e Hortifruti. As artesãs vão, assim, construindo sua trajetória particular. Sempre com um toque especial. Um toque de suas talentosas mãos. 108 Grãos de café em quadro de Portinari foram recriados em rococó pelas artesãs 109 110 COSTUMES ARTES CARIACICA ES com fibra e muita determinação 111 ARTES FOLHA DA BANANEIRA PODE REVESTIR OS MAIS DIFERENTES MATERIAIS COSTUMES Dizer que Maria Antonia Moura Silva, 55 anos, é uma mulher de fibra poderia soar como um trocadilho infeliz, já que ela, entre outras atividades, é a líder de um grupo de artesanato baseado na economia solidária no qual uma das principais matérias-primas é justamente a fibra - no caso, da bananeira. Melhor seria dizer que dona Antonia, como é mais conhecida, é uma usina de energia. E não foi à toa, portanto, que terminou por ser indicada ao Prêmio Mulher Empreendedora, do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa), logo na primeira edição, em 2004. Também não foi por acaso que dona Antonia esteve entre os destaques do Prêmio Betinho - Atitude Cidadã 2009, promovido pelo Coep, uma rede que reúne cerca de 1.100 organizações, públicas e privadas, mais de 100 comunidades em todos os estados brasileiros e 12.500 mobilizadores sociais. Casada, mãe de duas filhas e avó de Milene, 6 anos, dona Antonia está à frente da Costumes Artes, localizada em Cariacica, na Região Metropolitana de Vitória, Espírito Santo. É lá que artesãs produzem diversos itens, boa parte deles decorados com a fibra da bananeira e papéis artesanais. E tudo com base na economia solidária, modelo de trabalho em que tanto tarefas quanto resultados são divididos de forma igualitária. Este capítulo da história de dona Antonia começa por volta de 2001, quando o Centro de Capacitação Profissional (Cecap) da Pastoral da Criança de Cariacica promoveu um curso de corte e costura, logo seguido de outro, de produção e revestimento de embalagens. Em meio às aulas, surgiu uma primeira encomenda, de um shopping center. O trabalho de revestimento das embalagens com fibra de banana foi tão bem recebido que logo em 2002 a Petrobras, via programa Ciranda Capixaba (uma espécie de Fome Zero), decidiu apoiar o grupo. E então veio mais uma encomenda: 1.200 caixinhas a serem forradas e distribuídas para os participantes de um congresso do Instituto Ethos. O próximo passo na história da Costumes Artes foi o registro de um CNPJ próprio, em 2005. A partir de 2006, quando foi feito o primeiro planejamento estratégico, surgiu a percepção de que era preciso caminhar para que a organização trabalhasse de forma mais independente e, se possível, tivesse uma sede 112 A Costumes Artes se baseia na economia solidária, seja no fazer, seja no repartir 113 TODAS AS ARTESÃS DOMINAM AS TÉCNICAS DE MANUSEIO DA FIBRA, MAS ALGUMAS TAMBÉM COSTURAM 114 ARTES COSTUMES própria, meta que só seria alcançada efetivamente em 2010. Naquele momento, decidiram sair da sala que ocupavam até então, cedida pela Associação Comunitária do Espírito Santo, e alugar um espaço, cujo recurso para pagamento seria proveniente de palestras sobre superação pessoal e motivação. E neste aspecto dona Antonia também é craque. Uma das artesãs, Terezinha de Almeida Guinzani, 50 anos, acompanhou a palestrante em diversos momentos: "Lembro de uma ocasião em que um rapaz, com jeito de executivo, chorava no final da palestra, e dizia para a mãe, ao lado dele: 'Eu sempre achei que não tinha nada, quando na verdade agora me dou conta que tenho tudo'. As pessoas se emocionam muito com a fala dela", conta Terezinha. Emoções à parte, a sede própria, batizada Casa Sol, foi inaugurada em 2010, graças ao apoio da Fundação Banco do Brasil, que entrou com o recurso financeiro, e da Mitra Diocesana, que cedeu o terreno. No mesmo prédio hoje funciona um telecentro, aberto à comunidade, e uma filial do Banco Sol, instituição financeira comunitária que empresta recursos a juros baixos para a comunidade. A moeda que começa a circular na região é o girassol, já aceito por 18 comerciantes do entorno. Duas das artesãs da Costumes Artes, inclusive, solicitaram empréstimo ao banco, na condição de pessoas físicas, para aquisição de máquinas de costura. O Instituto Renner aportou, em 2010, R$ 20 mil para o Banco, com a condição de que o recurso fosse utilizado apenas por mulheres, público que é seu alvo preferencial na geração de renda e inclusão social. Do ponto de vista dos insumos, a Costumes Artes terceiriza a produção do papel artesanal e o cozimento da fibra da bananeira, que adquire de agricultores da região. O conceito de sustentabilidade fica explícito, uma Conquista da Casa Sol, a sede própria, foi um marco no ano de 2010 115 ARTES MAIS DO QUE RENDA, O ARTESANATO TRAZ MELHORIAS NA AUTOESTIMA COSTUMES vez que, assim, se pode aproveitar tudo o que a planta oferece, sem necessidade de se queimar a palha que é descartada pelos agricultores, por exemplo, atividade que polui o meio ambiente. Na sala ocupada pela Costumes Artes, espalham-se diversas peças, moldes de trabalhos já entregues, como uma bolsinha e um bloco forrados com papel feito da folha da bananeira, distribuído em um encontro de casais, e uma miniatura de circo, concebido como uma das peças de decoração de um aniversário de criança. A artesã Terezinha, que foi parceira de dona Antonia em viagens Brasil afora, é uma das mais experientes do grupo, e em geral é ela quem desenvolve e dá acabamento à primeira peça, que serve de modelo para o trabalho das colegas. Patrícia dos Anjos, 35 anos, mãe de Layssa, 14 (que frequenta a Casa Sol no contraturno da escola), prefere os trabalhos com papel reciclado, mas lembra que todas estão habilitadas a desenvolver as atividades. "Menos a costura, na qual a dona Rita é que sabe mais", explica. Ela se refere a Rita Maria Rodrigues de Almeida, 59 anos, cinco filhos, que encontrou na Costumes Artes uma oportunidade de ampliar suas habilidades, pois dominava apenas a costura manual. Foi no convívio com o grupo que aprendeu a operar a máquina, e hoje a receita extra que recebe ajuda, e muito, no pagamento das despesas da casa, já que o marido sofre com uma doença nas pernas que limita seus movimentos. Ao lado de Rita, dona Benedita da Conceição Amorim, 57 anos, trabalha em silêncio, discretamente. Oriunda da Pastoral da Criança, onde atuou durante muitos anos, comenta, com a voz baixa que lhe é peculiar, que chegou “a tirar um salário mínimo” nos rateios dos trabalhos realizados, mas que em média sua renda é de R$ 100 por mês, valor que para ela é satisfatório. "Se fosse apenas pelo dinheiro, talvez não estivéssemos aqui. A gente trabalha mesmo é por amor", intervém Terezinha. E não é uma ótima motivação? Fibra da bananeira tem apelo ecológico, 116 DONA ANTONIA (ESQ.) SE TORNOU REFERÊNCIA DE COMPROMETIMENTO SOCIAL pois o que seria queimado vira arte 117 118 FIBRA VIVA BONITO MT natureza recriada com retalhos 119 VIVA MATERIAL RECICLÁVEL E INSPIRAÇAO NA NATUREZA SÃO INSUMOS DAS ARTESÃS FIBRA A vida de Ana Gicelda Rodrigues dos Santos, 37 anos, deu uma guinada a partir de novembro de 2007. Foi nessa época que a mãe de Evelyn Ester, 10 anos, e Lilia, 8, ouviu dizer que uma instituição do município de Bonito, no Mato Grosso do Sul, estava oferecendo curso gratuito de corte e costura. Como já dominava os rudimentos da atividade (inclusive tinha uma máquina em casa), Ana, que até então passava os dias envolvida apenas com as lides domésticas, foi conferir de perto do que se tratava. O tal de curso não era exatamente de corte e costura, mas hoje, já na condição de instrutora do projeto Fibra Viva, Ana está fazendo autoescola para aprender a pilotar a motocicleta que comprou com o rendimento do artesanato que produz (habilitação para dirigir automóvel ela já tem). Casada com o oleiro Ricardo Gonçalves dos Santos, 36 anos, Ana é um exemplo prático do potencial transformador do projeto Fibra Viva, iniciativa do Instituto Família Legal, ONG que é resultado do desmembramento das atividades da Fundação de Proteção à Criança e ao Adolescente Vida Bonito. A descoberta de sua vocação não só para produzir artesanato de qualidade, mas também de multiplicar e compartilhar estes conhecimentos, veio aos poucos. "A gente começa estudando as cores, porque tem que entender o que se está fazendo", afirma Ana. Ela desde logo mostrou que conseguiu entender o processo. "Pegava uma peça para fazer, produzia logo várias. Mas se pudesse, preferia ficar só na produção", admite Ana, meio que se contradizendo em relação à preocupação com os outros e a vontade que sempre teve de ajudar as pessoas, características que logo fizeram dela uma instrutora compreensiva, mas exigente. E o que é que Ana e outras 15 mulheres fazem? Elas transformam lonas de malotes doados pelos Correios (que são desmanchados, lavados e consertados), assim como roupas de mergulho usadas, feitas de neoprene (material Retalhos e sobras viram objetos que ajudam 120 ANA (À DIREITA) DOMINOU RAPIDAMENTE A TÉCNICA E PASSOU A INSTRUTORA a transformar duras realidades 121 BOLSAS E SACOLAS PARA EVENTOS TÊM GERADO BOAS PARCERIAS E VENDAS EM GRANDE VOLUME Materiais geram renda e inclusão 122 social, VIVA COSTUREIRAS QUE NÃO USAVAM MÁQUINA HOJE SÃO EXÍMIAS PROFISSIONAIS FIBRA emborrachado e isolante térmico), além de retalhos de jeans, em uma gama de produtos cujo apelo ultrapassa o fato de contribuírem para gerar renda para mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social. São sacolas, bolsas, mochilas, puxa-sacos, luvas de forno, capa protetora para notebooks, porta-cds, revisteiros etc, todos desenvolvidos também a partir de conceitos de sustentabilidade e respeito ao meio ambiente. Isto porque os objetos comercializados pelo Fibra Viva, além de proporcionarem o reaproveitamento de materiais cujo descarte sempre foi um problema de difícil solução, são também adornados com as figuras de animais da região do Cerrado e do Pantanal. Desenhos geométricos produzidos com a técnica do patchwork e inspirados nos origamis japoneses dão vida a macacos, araras, tucanos, peixes etc. "Muitas das mulheres nascidas aqui mesmo na região, famosa pelas belezas naturais, nunca tinham prestado atenção nas cores da arara ou do tucano, ou se sensibilizado com a visão de um tamanduá-bandeira", explica Sinéia Zattoni Milano, coordenadora voluntária do Fibra Viva. Rotina bem diferente da que tinha até então é também uma nova realidade para Aparecida Martins Duarte. Com 35 anos e mãe de nada menos que dez filhos (cinco homens e cinco mulheres, que já lhe deram inclusive duas netas), faz quase um ano que Aparecida não sabe mais o que é encarar um dia de sol ou de chuva torrencial nas frentes de trabalho que recrutavam mulheres para fazer a limpeza das ruas da cidade. Sensibilizada pela irmã, Luciana, que já havia se incorporado ao Fibra Viva, hoje seu dia a dia é vivido sob o lema "quem trabalha bem, ganha bem". Nascida em Bodoquena, Aparecida está há 23 anos em Bonito, e hoje é especialista em corte, costura e acabamentos das peças feitas pelas colegas. Sua atividade diária torna-se ainda mais importante porque o marido (do segundo casamento) está desempregado. Como mora em Marambaia, bairro e tudo com base na sustentabilidade 123 VIVA SATISFAÇÃO EXPLÍCITA: ARTESÃS COMEMORAM VENDAS CRESCENTES FIBRA um pouco distante e que abriga 95% das mulheres que atuam no Fibra Viva, Aparecida pega carona no ônibus que traz um dos filhos, Adriano, para as atividades no Projeto Família Legal. "A maioria vem de bicicleta", explica ela. Quem também não para um minuto sequer de trabalhar, nem mesmo para dar entrevista, é Miriam Ramos de Souza de Assis. Casada, 33 anos, ela enfatiza: "Quem trabalha mais, ganha mais". Mãe de quatro filhos (Robert, Mylena, Michelle e Gabryele), Miriam nunca tinha feito absolutamente nada que se referisse a costurar, cortar, cerzir etc. "Eu fazia faxina e salgados para ajudar na renda familiar", conta, explicando que usa a bicicleta para chegar ao Fibra Viva (são cerca de 15 minutos pedalando). A capacidade produtiva e a disciplina fizeram de Miriam uma auxiliar temporária da monitora Ana. As cotas de patrocínio do Fibra Viva são negociadas e renegociadas a todo momento. Os parceiros mais constantes do projeto, que já capacitou em torno de 60 mulheres, são os Correios, o Sebrae/MS, o Recanto Ecológico Rio da Prata, o Rio Sucuri, o Aquário Natural e a Tittus Jeans. No rol de parcerias incluem-se ainda as irmãs paulistas Graça e Zulmira, que comandam o Empório Olinda, no centro de Bonito. O resultado das vendas na loja, mesmo que parceladas em até seis vezes no cartão de crédito, é pago à vista para a instituição. "Outro dia vendemos de uma vez seis bolsas, seis porta-notebooks e seis lixeirinhas para carro. Um professor universitário brasileiro vai levar de presente para colegas da Noruega", lembra Graça. Os produtos Fibra Viva, cujo valor de venda é revertido em 30% para manutenção do projeto (o restante é da autora da peça), podem ser encontrados também na Livraria da Vila, que tem lojas em três shoppings de São Paulo, além dos aeroportos do Rio de Janeiro e de Brasília. Sem falar nas dezenas de congressos e seminários, cujas sacolas de material trazem a marca da fibra e da vivacidade das mulheres de Bonito. O nome, Fibra 124 Viva, remete à capacidade PROFUSÃO DE MOLDES, LINHAS, TESOURAS E RETALHOS COMPÕEM O AMBIENTE de superação: da natureza e das mulheres 125 126 ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS DO PORTO DE SAUÍPE ENTRE-RIOS BA trançando a piaçava, tramando a vida 127 DO PORTO DE SAUÍPE CAPACITAÇÕES TIVERAM COMO UM DOS OBJETIVOS A PADRONIZAÇÃO DO TRABALHO ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS Na tarde quente de uma segunda-feira de dezembro, Valdimira Batista Bispo Silva, 74 anos, está sentada no chão da peça, em posição estratégica: bem no corredor de brisa que passa pela porta da frente, refresca o ambiente e sai pela porta dos fundos. O prédio, batizado Centro Artesanal, está localizado em frente ao mar, em Porto de Sauípe, um vilarejo costeiro que pertence ao município de Entre-Rios. Estamos a cerca de 80 quilômetros de Salvador, em direção ao norte da Bahia, seguindo pela rodovia BA-099, também conhecida como Linha Verde. Dona Vavá não está sozinha, e nem é pela companhia naquele momento de algumas das colegas que integram a Associação das Artesãs do Porto de Sauípe (APSA), entre elas, a filha Dilma Conceição dos Santos, 40 anos. Enquanto trança rolos de piaçava já cozida, riscada e tingida, dona Vavá pode sentir a companhia etérea da mãe, da avó, da bisavó, já falecidas. Mulheres simples como ela e que muitas vezes, no passado, viveram momentos semelhantes, repassando seus conhecimentos, geração após geração. Com uma diferença: dona Vavá hoje trabalha de forma cooperada na busca de uma renda complementar. Mais do que isso: dá asas ao seu talento artesanal alicerçada nos conceitos da sustentabilidade, ou seja, não deixa de levar em consideração as gentilezas que a natureza demanda, de forma a que o meio ambiente possa seguir oferecendo a piaçava que abunda nos matos da região. Fundada em 1998, a Associação das Artesãs do Porto de Sauípe (APSA) foi uma decorrência quase que inevitável do surgimento do Complexo Hoteleiro da Costa do Sauípe, nos idos dos anos 1990. A mudança radical no cenário econômico da região, despertada para os prós e contras do turismo alicerçado em enormes conglomerados hoteleiros, trouxe uma ameaça velada a todos os que se dedicavam há dezenas de anos ao artesanato: levas de homens deixa- Tradição de trançar a piaçava vem 128 passando de mãe para filha há muitas gerações 129 ANTES DE TRANÇAR É PRECISO ENCONTRAR O TOM ADEQUADO NO TINGIMENTO DA PALHA Apoios institucionais contribuíram para 130 DO PORTO DE SAUÍPE NA REGIÃO, É USUAL QUE OS CHAPÉUS DAS MULHERES SEJAM ABERTOS NO TOPO ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS ram a atividade e viraram pedreiros ou carpinteiros; muitas artesãs passaram a trabalhar como camareiras, cozinheiras, ajudantes. Para que a cultura centenária do artesanato da região não morresse, era preciso encontrar atrativos para a atividade, do ponto de vista da inclusão social e da geração de renda. Fundar uma associação, entretanto, não seria suficiente. Foi preciso buscar o apoio de iniciativas como o Projeto Trança do Mar, viabilizado pelo programa Comunidade Solidária, com recursos da Caixa Econômica Federal. Entre os anos de 2000 e 2001, as artesãs frequentaram oficinas e cursos que enfatizavam não apenas a técnica artesanal em si, mas também, e principalmente, os aspectos da sustentabilidade, do associativismo, da importância da qualidade e da padronização do produto final, sem falar nos fundamentos da administração e da contabilidade. O passo seguinte veio com o Programa Berimbau, ligado ao programa Fome Zero e iniciativa da administração da empresa Sauípe S.A., que mudou sua visão de negócio, mais atenta aos impactos gerados pelo empreendimento na comunidade local. Via Berimbau, a APSA conquistou sua sede própria. Em janeiro de 2009, a APSA uniu-se a outras cinco associações de artesões da região, algumas do município de Mata de São João e que também utilizam a piaçava. Oficializaram, assim, a criação de uma cooperativa que chega aos mercados de várias capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. "A ideia é evitar a concorrência entre nós e ganhar força para negociar com comerciantes de todos os estados", conta Maria Joelma Bispo Silva, outra das filhas de dona Vavá e que atualmente preside a APSA. Além de dona Vavá e Dilma, trançavam a piaçava naquela segunda-feira Maria Oliveira dos Santos, 57 anos, mais conhecida como Cota; Irani Batista dos Santos, 66, a falante dona Nitinha; Dionísia Maria da Conceição, 64, a tímida qualificação e na conquista da sede própria 131 DO PORTO DE SAUÍPE INTEGRANTES DA APSA TRABALHAM NA SEDE PRÓPRIA QUE CONQUISTARAM EM 2003 ASSOCIAÇÃO DAS ARTESÃS dona Dió, e Jandira Ferreira da Silva, 52 anos. Como manda a tradição, cada uma delas é responsável por todas as etapas do artesanato da piaçava. Todas coletam (ou compram em molhos), cozinham, riscam, tingem, trançam e costuram suas esteiras, tapetes, bolsas, chapéus, almofadas ou cestos. O fazer individual não significa que não haja interação, troca, aprendizado. Em especial na etapa do trançado, que pode ser feito em qualquer lugar, a qualquer hora, elas relembram histórias passadas, alinhavando-as com os fios do presente. Todas também sabem que, na hora da coleta, é preciso cuidar onde cortar a piaçava (é bem no miolo, o chamado coração da planta), para não inviabilizar o pé, de forma que em três meses se possa fazer novo corte. Depois vem o cozimento em grandes panelões, em fogo a lenha, no chão, para que a palha se flexibilize. A etapa seguinte é a riscagem, que equivale a desfiar, fazer tiras com a mesma largura e comprimento. Em seguida, o tingimento, feito hoje com anilinas, porque os corantes naturais, menos agressivos, exigiriam a inclusão de mais uma etapa de trabalho, que já é muito. Ademais, as cores não ficam tão marcantes. Elas já tentaram o cipó de rego para extrair o vermelho, a lama do mangue para o preto, a capianga (madeira comum na região) para o amarelo. A constituição da associação e, depois, da cooperativa, trouxe à tona outros papéis a serem desempenhados pelas artesãs, na liderança comunitária, na gestão, na comercialização. Esta simbiose entre a tradição e a modernidade não tem futuro garantido, porque, como diz Anamari Batista Silva, 43 anos, os jovens tendem a buscar alternativas. Enquanto o futuro não vem, as artesãs de Porto de Sauípe vão trançando a piaçava como quem não desiste de tramar a própria vida. Cada uma das artesãs coleta, cozinha, risca, tinge, trança e costura sua própria peça 132 DONA VAVÁ É O SÍMBOLO DE UMA CULTURA QUE PASSA DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO 133 134 CRIANDO E FAZENDO ARTE RECIFE PE com as cores da criatividade juvenil 135 FAZENDO ARTE USO DE CORES FORTES VALORIZA A IDENTIDADE REGIONAL CRIANDO E Desenhar e pintar não são propriamente tarefas complexas. Entretanto, para que trabalhos produzidos a partir destas técnicas ganhem status de produção artística e, mais ainda, para que possam gerar renda, é preciso a contribuição de uma série de outros elementos, tanto no que se refere à qualificação constante de quem desenha e pinta, quanto à sua capacidade de entender o ambiente onde a produção será colocada à mostra. Se a pessoa que se pretende protagonista deste fazer artístico estiver inserida em um ambiente considerado de baixa renda, há que se trabalhar ainda outros aspectos, como a questão da autoestima, de uma visão positiva de si mesma. Todos estes elementos fazem parte da rotina da Casa Menina Mulher, ONG de Recife que iniciou suas atividades em 1994, no bairro Boa Vista. São temas que dizem respeito muito especialmente a um dos projetos da instituição, o Criando e Fazendo Arte, voltado para meninas de 16 a 24 anos, e que a partir de 2006 encontrou seu ponto de equilíbrio. "Na verdade, é mais do que um projeto. É um programa permanente, com visão de médio e longo prazo", explica Maria de Lourdes de Sousa, 54 anos, a Lurdinha, coordenadora da iniciativa. Ela acrescenta que a parceria com o Instituto Lojas Renner foi fundamental para a compra de maquinário e material, e lembra que os primeiros passos do projeto foram dados ainda em 1998, com apenas algumas meninas da comunidade. Em 2000, novo avanço, a partir de uma aproximação com o programa Comunidade Solidária. Mas foi a partir de 2006, com o apoio recebido do Wal-Mart para a montagem do núcleo de produção, que a iniciativa decolou. "Desde então, o público-alvo são jovens moradoras de bairros circunvizinhos, que se caracterizam pela baixa renda. Todas elas recebem, inicialmente, uma formação específica, com aulas sobre história da arte, desenho e pintura, grafismo, empreendedorismo, associativismo, vitrine, comercialização, inclusão social e comércio solidário", detalha Lurdinha. Outro aspecto importan- Mais do que um projeto, trata-se de um 136 CORES DOS UNIFORMES AJUDAM A DISTINGUIR AS DIFERENTES TURMAS programa, com visão de médio e longo prazo 137 PENINA E DONA DORA: DIFERENÇA DE 45 ANOS ENTRE ORIENTADORA E ALUNA Cada aluna acompanha sua própria evolução 138 FAZENDO ARTE AMBIENTE DESCONTRAÍDO: MONITORAS E ALUNAS CONVIVEM EM HARMONIA em um banco CRIANDO E te é a valorização da identidade regional, a qual se expressa, entre outros detalhes, pelo uso de cores fortes nas linhas de moda, decoração, brindes e acessórios. As meninas e mulheres aplicam seus talentos em uma extensa gama de produtos, como camisetas, passadeiras, tapetes, jogos americanos, bolsas, telas, cabaças, porta-cartão, capas de agendas, chaveiros, entre outros. No segundo semestre de 2010, duas turmas se revezavam nas atividades desenvolvidas principalmente no amplo salão localizado no segundo andar da Rua Leão Coroado, 55, uma delas com 19 meninas, outra com 16. As cores predominantes nos uniformes, vermelho ou preto, ajudam a identificar a qual grupo pertencem. "Temos em torno de 32 produtos sendo comercializados", explica Livia Aguiar, assistente de desenvolvimento de produto. Cada aluna tem uma pasta, chamada Banco de Imagens, onde toda a evolução individual fica documentada. "Um aspecto interessante diz respeito ao trabalho das monitoras. Quem repassa o conhecimento se qualifica, também, porque aprende a dar aula, e para tanto precisa ter amplo domínio da técnica", acrescenta Livia. Além disso, quem está na função consegue perceber que uma simples pintura é diferente de um produto, no qual há todo um processo por trás. É o caso de Angélica, 27 anos, mãe de Ana Paula, 1 ano e 7 meses, monitora há cerca de quatro anos no Criando Arte. Do ponto de vista pessoal, ela prefere trabalhar mais com o jogo de cores, mas já está tendo aulas de corte e costura, pois a ideia é aprenderem a modelar as camisetas que hoje pintam. "Até os uniformes que nós usamos poderemos produzir aqui dentro no futuro", explica Angélica. Outra monitora, Patrícia, 22 anos, garante que o mais interessante em sua função é a possibilidade de repassar sua experiência para quem está iniciando. de imagens individual 139 FAZENDO ARTE FILOSOFIA: COMPROMISSO DE FAZER CERTO DESDE O INÍCIO É ENFATIZADO CRIANDO E E acrescenta que o mais difícil é quando uma aluna resiste às observações: "Algumas não querem refazer o que não ficou bem. Por isso, procuro mostrar a elas como é importante ter o máximo de atenção desde o início." Das etapas do processo criativo e produtivo, Patrícia prefere o desenho, pois diz que é a partir dele que tudo se inicia. Quanto aos temas dos trabalhos de suas alunas, são de livre escolha, mas não é raro as monitoras fazerem sugestões. Quem também procura ser bastante exigente com uma aluna considerada "especial" é a alegre e vivaz Penina, 23 anos. Coube a ela ser a orientadora de Maria Auxiliadora Perez, 68. A diferença de 45 anos entre aluna e instrutora parece não atrapalhar o relacionamento, ao contrário. Dona Dora, como é mais conhecida, havia comprado um jogo americano produzido pelas meninas do projeto, justamente no momento em que procurava alternativas de cursos que proporcionassem mais criatividade do que as experiências que havia tido até então, usando moldes vazados. Mesmo que a Casa Menina Mulher não possua turmas abertas para a terceira idade, ela tanto insistiu com Livia que a instituição decidiu abrir uma exceção, até como projeto piloto para abertura de futuras oportunidades para moradores da comunidade. "Ela é muito exigente", diz dona Dora, sobre o tratamento que recebe de Penina. "Levei uns dois meses para chegar no pano. Até então, era só papel e lápis", explica, sorrindo. Penina devolve o sorriso e confirma: "Depende só dela. Só termina o curso quando estiver dando conta sozinha". E acrescenta: "Tem que criar o compromisso de fazer certo", com uma firmeza e convicção que surpreendem, pela idade de quem as verbaliza. Ana Cláudia Rodrigues, educadora que também atua na coordenação do projeto, diz que é importante ter em mente alguns conceitos quando se avaliam Instituição está avaliando possibilidade de ampliar público beneficiado pelo programa 140 PERCURSO: SÓ DEPOIS DAS AULAS TEÓRICAS VÊM AS AULAS DE DESENHO E PINTURA 141 ARTICULADORA DE MERCADO TRABALHA PARA DAR MAIOR VISIBILIDADE AOS PRODUTOS Diferente da escola formal, 142 foco da FAZENDO ARTE LÍVIA (À ESQUERDA): UMA PINTURA NÃO NECESSARIAMENTE É UM PRODUTO instituição é na CRIANDO E os resultados do trabalho, como o de que a Casa Menina Mulher não oferece um emprego formal, e sim oportunidades de acessar o mercado e, assim, gerar renda. Ela também ressalta a importância dos momentos de integração, em que as pessoas da família sejam envolvidas. "Temos que ter atenção com elas e também com quem cuida delas". A pedagoga Andréia Oliveira acrescenta que a instituição não é uma escola, e portanto o processo que ali se dá não é igual ao do ensino formal. Questões como nota e frequência precisam ser relativizadas: "Nosso foco é na cidadania, na construção da autoestima. É um trabalho desafiador, que não para nunca, porque cada uma delas tem seu próprio tempo. E precisamos ter presente que pode ser necessária alguma atividade complementar, para dar conta de eventuais dificuldades", explica. Adriana Bacci, por sua vez, que atua como articuladora de mercado, explica que o trabalho de sensibilização em busca de apoio é constante. "Mas não apelamos para o assistencialismo", diz Adriana, cuja tarefa é aumentar ao máximo a visibilidade, não só do projeto, mas de toda a instituição. Ela trabalha de forma permanente na montagem e monitoramento da agenda de feiras, congressos e eventos, e acrescenta que os produtos do projeto Criando e Fazendo Arte são comercializados na Loja Solidária que funciona no shopping Passo Alfândega. Sem falar nas demandas pontuais: "Agora mesmo elas estão terminando de produzir 150 caixinhas de madeira, com uma chave, encomendadas por uma construtora de Recife". E é assim que o programa vai cumprindo sua missão, "favorecendo o fortalecimento do núcleo familiar, o protagonismo infanto-juvenil, a qualificação profissional e o exercício pleno da cidadania, rumo a uma sociedade justa e solidária". Palmas para a Casa Menina Mulher. cidadania e na autoestima 143 144 FRAGMENTOS NATAL RN um mosaico de texturas e realizações 145 FRAGMENTOS HARMONIA: CORES E FORMAS EM PEDAÇOS VIRAM OBRAS DE ARTE É com lágrimas nos olhos e a voz embargada pela emoção que Maria Antonia dos Santos Rodrigues, 52 anos, profere a seguinte frase: "Eu amo o artesanato". E em seguida acrescenta: "O mosaico é contagiante". Naquele momento, Antonia está em meio às colegas artesãs do projeto Fragmentos, em Natal, Rio Grande do Norte, ao final de uma oficina sobre formação de preço, oferecida pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa). A razão de tanta emoção vem na sequência de sua fala: ela conta que descobriu há cerca de dois anos que tinha câncer de mama. "Estava terminando de fazer uma peça aqui na oficina quando fiquei sabendo". As sequelas do tratamento afetaram seu braço direito e dificultam o manuseio do torquês, espécie de alicate utilizado para quebrar em pequenos pedaços as peças de revestimento cerâmico que formam os mosaicos. "Acaba funcionando até como fisioterapia, pois tenho que fazer força. Estou tentando continuar", explica Antonia, sentada ao lado da irmã, Maria do Socorro, que, de tão tímida, costuma ficar sem voz quando está em um grande grupo e é convidada a falar. Maria do Socorro não faz nenhum comentário sobre a fala da irmã, mas os olhos, também marejados, deixam explícita sua solidariedade. O projeto Fragmentos, que vem ajudando Antonia a superar a depressão após o diagnóstico da doença, é uma iniciativa da Adote (Associação de Orientação Aos Deficientes), instituição sem fins lucrativos localizada no bairro Cidade Esperança. A Adote atua em três frentes: atendimento clínico, escola de ensino infantil e fundamental e centro de convivência. Os primeiros passos do projeto de artesanato voltado para as mães foram dados em 2006, na época sob a forma de uma oficina de artes. No ano seguinte, com a inauguração do Centro de Convivência, a proposta se incorporou a atividades de cunho artístico e de inclusão digital, e é ainda em 2007 que se realiza a primeira exposição de trabalhos, lá mesmo. Em 2009, um passo adiante é dado com a primeira mostra realizada fora da sede da Adote, desta vez na Assembleia Legislativa do Estado. Primeiros passos foram dados em 2006, e 146 PARTIR A MATÉRIA-PRIMA EM PEDAÇOS É TRABALHO DURO, MAS NECESSÁRIO já em 2007 aconteceu a primeira mostra 147 TRABALHAR O MOSAICO GARANTE AOS PRODUTOS UM DIFERENCIAL COMPETITIVO Grupo visitou os famosos mosaicos 148 FRAGMENTOS O NOME FRAGMENTOS SURGIU A PARTIR DO APOIO DO INSTITUTO LOJAS RENNER Mas foi graças à formalização de parceria com o Instituto Lojas Renner, por meio da "Campanha Mais Eu", que as oficinas ganharam o nome atual, Fragmentos, e o foco em atividades em um grupo produtivo, capacitando as mulheres para o empreendedorismo e possibilitando ações práticas que resultem em geração de renda. Além das oficinas de design, as artesãs, todas mulheres cujos filhos e filhas com algum tipo de deficiência são atendidos pela Adote ou que moram na comunidade em torno, também passam por capacitações em empreendedorismo, fluxo de caixa, negociação, atendimento ao público, técnicas de venda. Edízia Lessa, coordenadora do centro de convivência e do projeto Fragmentos, explica que a opção pelo mosaico como mote se deu em razão da técnica ser pouco explorada. Em Natal, por exemplo, apenas uma fábrica de móveis e um artista plástico se dedicam a este tipo de trabalho. Do ponto de vista do marketing, as peças, portanto, têm um diferencial bastante interessante. Além do mais, o setor de construção civil, que anda bastante aquecido, registra 10% de perda de revestimentos cerâmicos, que acabam sendo adquiridos pela Adote em lojas de material de construção. Em João Pessoa, a tradição do mosaico é mais forte. Edízia diz que justamente por isso as alunas estiveram visitando, em novembro, os famosos painéis de mosaico da capital da Paraíba. E conta com orgulho que uma das alunas, Gildeci Pereira do Nascimento, foi escolhida para dar aulas no Ponto de Cultura de São José de Mipibu (município a 35 quilômetros de Natal), capacitando outras 40 mulheres na arte do mosaico. Gildeci, a propósito, tem 39 anos e é mãe de Luana, 18, aluna da Adote. Ela atuava como voluntária na instituição, ajudando nos cuidados com outros deficientes, e durante muito tempo ficou apenas observando o trabalho das artesãs da oficina. De 2008 para 2009 deixou de lado o receio, e hoje garante que o processo de colar pedrinha por pedrinha em uma base de madeira, usando cola e depois de João Pessoa em 2010 149 FRAGMENTOS CRIADORAS E CRIATURAS: AS ARTISTAS DE NATAL E ALGUMAS DE SUAS PEÇAS rejunte, para o acabamento, "é encantador". Maria Galiléia, a Léia, 41 anos, também ex-voluntária da Adote, resistiu o quanto pode, pois não gostava do torquês: tinha medo de usar a ferramenta. Até que um dia resolveu participar das aulas. Ela lembra do primeiro quadro, uma figura geométrica até hoje exposta na sala do grupo. No dia da entrevista, ela estava trabalhando em uma peça com 80 centímetros de diâmetro, que deveria consumir no mínimo três dias de trabalho. Maria da Apresentação, 43 anos, mãe de Mateus Jordan, 17, que tem paralisia cerebral, fazia trabalhos em biscuit, pintura em tecido e cerâmica antes de se envolver com o mosaico. Achou que poderia ser uma boa terapia e uma forma interessante de passar o tempo, enquanto aguardava as seções de atendimento do filho. Aos poucos, foi mudando a forma de olhar seu próprio trabalho. Hoje, se dedica às paisagens, e decidiu fazer também um curso de desenho. Ela e o marido, a propósito, trabalharam desde o início e de forma voluntária na construção da Adote. Já Ana Torres Borges, 48 anos, está envolvida com o Fragmentos desde o início. Ela tem uma sobrinha com Síndrome de Down que frequenta a Adote, e diz que largou o crochê para se dedicar apenas ao mosaico. "A gente se apaixona logo que conhece. Quando se termina um trabalho, já quer fazer outro. Eu até levo para casa, quando posso". Quando conversou com a reportagem, ela estava há quatro dias trabalhando na figura de uma enorme tartaruga, e faltava ainda a metade por fazer. As peças produzidas pelas artesãs do Fragmentos tem uma peculiaridade: utilizam não apenas as partes lisas e retas dos revestimentos cerâmicos. Elas separam também as bordas, arredondadas, e as utilizam para fazer contornos mais delicados ou no meio do desenho, garantindo uma textura e movimento insuspeitados. É por esses e outros detalhes que faz sentido estar exposta na sala da coordenação do Centro de Convivência da Adote uma frase de Wassily Kandinsky, o renomado artista plástico russo nascido em 1866: "A arte é uma força cuja finalidade deve desenvolver e apurar a alma humana". Uso de contornos arredondados 150 dá textura e movimento às peças 151 PATROCÍNIO