Palácio Nacional da Ajuda/Artigos em Linha nº 5/ Dez. 2010 O Mobiliário da época de Napoleão III nas colecções do Palácio Nacional da Ajuda* Maria do Carmo Rebello de Andrade** O Palácio Nacional da Ajuda foi residência oficial da Monarquia desde 1861, ano da subida ao trono do rei D. Luís I (1838-1889). Desabitado até meados do século XIX, ainda que utilizado em cerimónias oficiais esporádicas, o Palácio encontrava-se, à data, em mau estado de conservação. Para o monarca se instalar, realizaram-se algumas obras, sobretudo ao nível das grandes estruturas: coberturas, janelas, madeiramentos, etc.1 O arranjo dos interiores restringiu-se ao indispensável; exceptuando o quarto da futura rainha, do qual D. Luís se encarregou pessoalmente, muito ficou para depois, deixado a cargo da princesa italiana, Maria Pia de Sabóia (1847-1911). [Fig. 1]. Fig. 1 Palácio da Ajuda. Enrique Casanova, aguarela sobre papel, 1889. Foto David Martins 1 IAN/TT, C.R., Ano 1862, Cx. 4665, 4667, 4668 http://www.pnajuda.imc-ip.pt/pt-PT/estudos/artigosemlinha/ContentDetail.aspx?id=477 2 Ao longo deste reinado (1862-1889), a decoração do novo Paço foi sendo continuamente renovada, sempre sob orientação directa da rainha. Guiada pelos padrões decorativos em voga na Europa, entre 1862 e 1865, D. Maria Pia empreendeu a primeira grande campanha de reformulação de interiores nos aposentos privados; para executar o projecto, nomeou o Arquitecto da Casa Real Joaquim Possidónio Narciso da Silva (1806-1896), que se encarregou também da decoração das novas salas.2 Centro da corte portuguesa e da vivência régia é neste palácio que nascem os príncipes D. Carlos (1863-1908) e D. Afonso (1865-1920). [Fig. 2] Aqui se desenrola o quotidiano da família real, preenchido por obrigações oficiais, a par das actividades privadas de cada membro da família: o monarca recebe em despacho membros do seu Governo; os príncipes recebem formação académica, com dias de rígido horário a cumprir; a rainha desdobra-se entre as múltiplas funções de uma mãe e rainha, que a todos faz questão de atender. Fig. 2 Rainha D. Maria Pia com os príncipes D. Carlos e D. Afonso Emílio Biel (Antiga Casa Fritz), Porto, 1875 Albumina sobre cartão 165 x 107 mm (com suporte) PNA, inv. F61218 2 A obra tida como um todo. A um arquitecto não cabia apenas a responsabilidade do projecto estrutural, mas também a decoração dos interiores por si criados. Cf. Odile Nouvel-Kammerer, Le Mobilier Français. Napoléon III, Années 1880, Éd. Massin, Paris, 1996, pg.12 3 Os palácios de Queluz e da Vila de Sintra, no Verão, da Cidadela de Cascais, no Outono, e de Vila Viçosa em períodos pontuais no Inverno, eram os escolhidos para períodos de férias. Da decoração de todos eles, se envolveu a rainha pessoalmente. Após a morte de D. Luís, em 1889, D. Maria Pia continuou a viver na Ajuda até 1910, com o filho mais novo, embora fizesse estadias muito prolongadas no Paço do Estoril (essencialmente na década de 1890), de que tanto gostava. Era aqui que podia expandir o seu enorme gosto pelos passeios e caminhadas, e cultivar outro tipo de distracções (para lá das obrigações públicas), como foi o caso da fotografia.3 D. Carlos, depois de 1886, ano em que casou com D. Amélia de Orléans (1865-1951), passou a alternar entre os Palácios de Belém e Necessidades, reservando apenas o andar nobre da Ajuda para cerimónias de Estado. As transformações sociais ocorridas ao longo do século XIX (muito sentidas na segunda metade), relacionadas com a valorização da identidade individual e a importância do papel da família no seio da sociedade, tiveram uma influência fundamental nas mudanças surgidas nas habitações: o valor do indivíduo estava em estreita relação com a casa, a qual passara a ser concebida para a vida familiar.4 Esta deslocação dos interesses da esfera pública, para a esfera da vida privada e familiar, o desejo de uma maior intimidade, leva à criação de novos espaços arquitectónicos mais pequenos; enquanto no século XVIII se privilegiavam as grandes salas de recepção, em detrimento dos aposentos privados, no século XIX dá-se exactamente o contrário. Agora a demarcação dos espaços torna-se clara. Separam-se as zonas para trabalho, vida privada, crianças, refeições, empregados, etc.; para cada sala, sua função. Dos 3 O Inventário do Chalet Real do Estoril (APNA), descreve a existência de uma quantidade muito variada de objectos relacionados com a fotografia. É também razoável, o número de fotografias de paisagens da região Estoril/ Guincho/ Serra de Sintra, assinadas pela rainha, tiradas em passeio. 4 O monarca par ser popular teria de ser um homem de interior, a mulher o centro da casa e da família. Cf. “Lar, doce lar” in História da Vida Privada, vol. 4, Da Revolução à Grande Guerra, Ed. Afrontamento, 1990. 4 quartos, por exemplo, excluem-se as antigas funções sociais: o hábito de neles receber ou fazer refeições cai progressivamente em desuso, para esse efeito surgem as casas de jantar. As salas principais tornam-se mais pequenas e adquirem funções próprias, fala-se antes de espaços íntimos e familiares; surgem zonas de lazer – como o são os jardins de inverno, as salas de fumo e as de bilhar; escritórios, salas de jantar, casas de banho..., toda uma série de novidades, justamente concretizadas pela rainha D. Maria Pia no Paço da Ajuda, logo nos primeiros anos de vida em Portugal.5 Naturalmente, todas estas mudanças tiveram grandes reflexos na decoração. A repercussão no mobiliário, um dos elementos que mais realçava a decoração de uma casa, foi enorme. Este torna-se mais leve e prático, mais fácil de manusear, sendo a grande tónica conceptual atribuída ao conforto e ao bem-estar. Para além da comodidade, outra característica marcava a produção: a funcionalidade. E como tal, as novas tipologias não só eram vocacionadas para a arrumação, para o uso e apoio, como também se reajustaram aos espaços recém surgidos, sendo redimensionados a uma escala mais humana. Tal foi o caso dos semanier, guéridons, pequenas secretárias, mesinhas de todo o género e feitio, floreiras, écrans de lareira, móveis pequenos com gavetas (para jóias, documentos...), cadeiras volantes, banquinhos para pés, etc. É este novo conforto, que invade a casa na segunda metade do século XIX, que encontramos na Ajuda. Ao longo da vivência de D. Luís e D. Maria Pia, o recheio do palácio foi-se formando por entre um leque variado de peças de origem portuguesa e europeia – adquiridas ou oferecidas –, sempre 5 Entre 1862-1865 surgem no piso térreo da Ajuda, reservado aos apartamentos privados (o andar nobre para as salas de recepção), uma série de salas novas: Sala Azul – sala de estar entre família e corte; Gabinete de Carvalho – sala de fumo reservada ao rei e amigos; Jardim de Inverno – sala de estar, onde também se realizavam festas pequenas e festas dos príncipes; Sala de Saxe – para as colecções de porcelana da rainha. Também o quarto de cama do rei foi dividido em três áreas distintas: quarto de cama, de toilette e escritório, com casa de banho anexa. Mais tarde, em 1879, surge, ainda neste piso, a Sala de Jantar, para a família, com uma Sala de Bilhar anexa. Tratou-se de uma primeira grande campanha de obras; no entanto, a reformulação e criação de novas salas foi contínua, até ao final do reinado. 5 pontuado pela presença de objectos orientais. Nestes ambientes, onde sobressaiam os revivalismos históricos, o orientalismo e a nova corrente naturalista, predominava o elemento têxtil, sintomático da procura do conforto. As grandes Exposições Universais, a Industrialização, e também a Fotografia, foram fundamentais na concepção destes cenários onde perpassavam a História e a Geografia: neles, diferentes épocas e estilos, tendências do Oriente ao Ocidente, conviviam lado a lado.6 Entre os países europeus, com os quais Portugal mantinha relações mais estreitas e que mais influenciaram as escolhas decorativas da rainha, destacamos Itália, França e Inglaterra. Itália, naturalmente, seu país de origem, em cujos palácios viveu até aos catorze anos de idade, e de onde trouxe as melhores recordações; também o país de destino de recorrentes viagens, realizadas até ao final da vida. Contam-se na Ajuda inúmeros móveis italianos, fruto dos presentes de casamento e de bens trazidos pela princesa de Sabóia, quando veio para Portugal em 1862, bem como fotografias de interiores italianos, que em tudo se sobrepõem aos da Ajuda dos anos 1880, que revelam a efectiva proximidade entre os dois países. Inglaterra. Não tanto pelo número de móveis ingleses aqui existentes 7, mas mais pela influência do longo reinado vitoriano, que aliás teve repercussões sociais em toda a Europa; também pela importante directriz lançada pela rainha Vitória em 1850, que ao promover o arranque das exposições universais, levou à enorme divulgação internacional das melhores produções artísticas, industriais e tecnológicas, de cada país.8 A adesão foi 6 AA.VV, Roteiro. Palácio Nacional da Ajuda, IPPAR, Lisboa, (a publicar) 7 A distância geográfica entre países também era maior. De Inglaterra vieram sobretudo peças que integram hoje as colecções do Vidro. É ainda curioso notar, que existe na Ajuda mobiliário para casa de banho, com marca inglesa; pelo facto de Inglaterra ter sido um país pioneiro na revolução dos hábitos higiénicos, certamente compeliu a uma maior modernidade das infraestruturas inerentes, sendo por isso um país com mobiliário, nesse âmbito, mais inovador. 8 Cf. L’Art de Vivre, Deux cents ans de Création en France, 1789-1989, Flammarion, Paris, pg. 57-58. Exposições: Londres – 1851 e 1862; Paris – 1867, 1878 e 1889; Viena – 1873; Filadélfia – 1876. 6 total, e os resultados dos intercâmbios culturais cedo se fizeram sentir. No que diz respeito ao surgimento de novas correntes artísticas foi notório, sendo exemplo o caso do Japonismo. Quando viajavam, em anos de exposição, os monarcas portugueses incluíam sempre tais visitas no seu programa, delas tendo ficado testemunhos iconográficos e documentais. França. Durante o II Império (1848-1870), França detinha o primeiro lugar mundial ao nível das artes decorativas: quer pela grande qualidade das matérias-primas utilizadas, quer pela excelência da execução, algo que o país herdara dos tempos de Napoleão I, que reerguera a indústria francesa à custa duma firme exigência da qualidade artesanal. Sob Napoleão III, viveu-se uma época de grande prosperidade económica, tendo Paris atingido o auge da centralização comercial. Foi a cidade que viu nascer os Grandes Armazéns, que tentavam reproduzir, em pequena escala, o ambiente de uma exposição internacional. O papel que desempenharam junto do consumidor foi determinante para as artes decorativas, nomeadamente em relação ao mobiliário, que ao passar a ser produzido em larga escala, podia ser vendido a preços mais baixos, e por isso adquirido por um leque muito grande de pessoas.9 Gerou-se um proveitoso ciclo de oferta e procura, que possibilitou aos fabricantes a produção de móveis de todos os estilos, ajustáveis a qualquer padrão decorativo. Simultaneamente, Paris foi também uma capital europeia de grande influência cultural. Era uma cidade que congregava uma numerosa elite literária e artística, cujo ponto de encontro oficial era o famoso salão da princesa Matilde Bonaparte (1820-1904).10 Prima direita de Napoleão III – sobrinha neta de Napoleão I –, recebia a melhor sociedade do II Império em sua casa, foi aliás aí, que Napoleão III e Eugénia de Montijo, se encontraram pela primeira vez. 9 10 Para o tema ‘Grandes Armazéns’ ver L’Art de Vivre, ob. cit., pp. 74-95 Nomes como os de A. Dumas, G. Sande, G. Maupassant, G. Flaubert, M. Proust, L. Pasteur, F. Nadar, Delacroix, Ingres, Violet-le-Duc, Liszt, C. Saint-Saens, Fauré, etc., etc., são exemplo de autores célebres, frequentadores deste salão. 7 Embora não tenhamos nenhum documento a afirmá-lo, é mais que provável que D. Maria Pia, nas muitas vezes que esteve em Paris, tivesse visitado a princesa Matilde. Chamaram-nos à atenção uma nota num caderno de apontamentos da rainha, sobre compras feitas em viagem, que ao lado de uma peça adquirida refere “comme Matilde”, e ainda dois banquinhos para pés, que apresentam sob o estofo uma etiqueta colada com a inscrição “Princeza Mathilde”.11 Também têm semelhanças evidentes as Salas de Jantar do Palácio da Ajuda, criada em 1879, e a da princesa Matilde.12 Ambas em estilo Neo-Renascença, como ditavam as normas decorativas em vigor13 , revelam parecenças no revestimento mural – boiseries e cor da seda – e no mobiliário, composto pelo mesmo género de aparadores e de cadeiras. A tipologia das cadeiras dispostas em torno das mesas de cada uma das salas é muito semelhante. Na Ajuda, o conjunto de trinta e três cadeiras sem braços, com assento e costas em couro lavrado e repuxado, com pregaria em metal amarelo, à maneira das cadeiras de couro do século XVII, foi encomendado ao especialista em couros de Córdoba J. Tixier, instalado no 9, 11 & 12 da rue Moreau, Paris.14 Cada cadeira tem nas costas, em relevo policromo, o monograma «L1» e o escudo real português coroado. Por ocasião do restauro de algumas das cadeiras, descobriu-se que todas tinham dentro das pressintas, sob o assento, um cartão original (em tamanho postal), com o timbre do fabricante. [Fig.3] 11 Comprados por 22 francos no Au Bon Marché – o primeiro grande armazém parisiense, surgido em 1852. 12 Para a encomenda da Casa de Jantar veja-se IAN/TT, C.R, 1879, cx. 5220, 5221. Sala adjudicada ao arquitecto Rafael de Castro, que por sua vez contratou o entalhador da Casa Real, Leandro Braga, para o projecto de decoração interior. L. Braga realizou as boiseries em estilo neorenascentista, utilizando bocados de talha antiga, em madeira de castanho, que existiam nas arrecadações do Palácio das Necessidades (mediante pedido da Família Real). Mais uma das conformidades com o espírito ecléctico do século XIX. 13 Alguns dos padrões então estabelecidos: sala de estar – Luís XVI; sala de jantar – Renascença; sala de fumo – mourisca; biblioteca – gótica, entre outros. 14 Na sala encontram-se apenas doze cadeiras à volta da mesa; as restantes guardam-se em reserva. A aguarela da Sala de Jantar da princesa Matilde vem reproduzida em Nouvel-Kammerer, ob. cit., pg.48 8 Entre todos os fornecedores estrangeiros da casa real portuguesa, os franceses são, de facto, quem detém a primazia. Donde a sua eleição como país de origem dos móveis aqui seleccionados, todos eles com particularidades inerentes ao perfil do mobiliário Napoleão III. Baseámo-nos em três características principais, por norma associadas à definição do mobiliário desta época: o eclectismo; o contraste dos materiais e das cores, e o uso de matérias-primas naturais; o conforto. Fig. 3 Casa de Jantar do Piso Térreo; projecto de 1879. Foto David Martins Toda a riqueza e profusão decorativas do Palácio da Ajuda, são protótipo de um período genuinamente ecléctico (e nesse sentido Romântico). Esta foi uma época em que a cópia atingiu o apogeu e em que o meio artístico 9 recorreu a fontes de inspiração muito variadas 15 – estilos do passado, exotismo, naturalismo, Japonismo, orientalismo... –, o que resultou num eclectismo dito “delirante”16, extensível não apenas ao mobiliário, mas a todo nível das artes decorativas: têxteis, porcelanas, cristais, objectos decorativos, etc. “Em resposta à incertitude do gosto, os fabricantes procuravam satisfazer todos os gostos”, o que levou a que se chegasse a identificar este período de “estilo sem nome”, por “estilo confortável”, o grande mote para fabrico.17 Como representante do estilo Luís XV, seleccionámos peças de Paul Sormani (1817-1877), ébéniste especializado no execução de móveis de estilo Luís XV e Luís XVI. O estilo Luís XV, era o preferido de D. Maria Pia, daí, talvez, a enorme quantidade de peças da autoria de Sormani, com as mais variadas tipologias, hoje nas colecções: cómodas, vitrines, mesas, secretárias, escrivaninhas, móvel guarda-jóias, biombos e estojos [Fig. 4]. 15 A Imperatriz Eugénia do Montijo, mulher de Napoleão III, tinha uma verdadeira admiração por Maria Antonieta, donde o retorno dos estilos Luís XV e Luís XVI. 16 Vide L’Art e Vivre, ob.cit., pg. 61 17 Idem, pp. 55-61 10 Fig. 4 Toucador da rainha. Em primeiro plano a senhorinha com estampilha da Maison Krieger; atrás um pequeno móvel guarda-jóias, vernis Martin, assinado por Sormani. Foto David Martins. Entre todos, destacamos a magnífica meia-cómoda com duas grandes gavetas, toda folheada e marchetada com madeiras exóticas e pau-santo (o interior em carvalho), numa temática geométrica de losângulos em claroescuro alternado, com uma flor no interior. Tem a frente, ilhargas e sapatas decoradas com ferragens em bronze dourado, de enorme mestria no cinzel e na adossagem à peça: folhagem serpenteante e com concheados; animais fantásticos nas chutes. 11 Fig. 5 Meia-cómoda estilo Luís XV, assinada Paul Sormani; PNA inv. 528. Foto David Martins Curiosamente, Sormani, também era italiano. Ao casar com uma Senhora francesa, instala-se em Paris, onde inicialmente passou por vários estabelecimentos /moradas. Só em 1867 se transfere para o nº 10 da Rue Charlot, quando adquiriu grande importância e renome – “... toda a sua produção revela uma qualidade de execução de primeiríssima ordem”.18 Os móveis existentes na Ajuda são todos desta época, marcados: «P. Sormani – Paris / 10 r. Charlot». Sormani exerce até 1877. Depois, a casa mantem-se sob a direcção da mulher e filho, que embora continuem a participar em todas as exposições internacionais, não conseguem manter o prestígio alcançado. Para ilustrar a época de Luís XVI, escolhemos móveis originais, de época (não de estilo), de dois autores da segunda metade do século XVIII. Tratam-se, certamente, de bens já existentes na Coroa e não adquiridos por D. Maria Pia – os chamados Bens de Estado que, em cada reinado, transitavam para a nova residência régia vigente. 18 Denise Ledoux-Lebard, Le Mobilier Français du XIXe, 1795-1889, Dictionnaire des Ébénistes et des Menuisiers, Les Éditions de l’Amateur, Paris, 1984, pg.583 12 Jean-Baptiste Lebas (1729-1795), o autor de um par de cadeiras de braços Luís XVI, em madeira entalhada e dourada (inv. 596-597)19 , tinha atelier em Paris com os seus dois filhos, seus aprendizes e colaboradores. O remate do espaldar destas duas cadeiras é em forma de laço, tendo uma delas incisa sob o aro da frente a marca «[I.] Lebas». Existem, na mesma sala, outras sete cadeiras perfeitamente iguais, sem marca, mas com o remate do espaldar em forma de concha; são, concerteza, da mesma proveniência. [Fig.6] Fig. 6 Sala Azul Em primeiro plano à esquerda uma cadeira Luís XVI (de um par), com punção de Lebas; à direita desta uma cadeira igual (de um conj. de 7), embora com uma concha no remate das costas, não apresenta marcas. Supomos que o conjunto das 9 cadeiras sejam da mesma autoria. Foto David Martins. Jean-Baptiste Lelarge (1744-1802), tornado mestre em 1775, foi o mais ilustre representante (da 3ª geração) de uma família de mestres entalhadores, todos com o mesmo nome. O seu atelier, em Paris – Rue Cléry – foi na época da Revolução Francesa considerado um dos mais notáveis, e 19 Hoje na Sala Azul, no piso térreo; o estofo já não é o original 13 recebia encomendas da Coroa francesa.20 Entre nós está representado por um conjunto de um sofá (en gondole), duas bèrgeres e seis cadeiras de braços, em madeira entalhada e dourada, com a estampilha «J. B. Lelarge» encoberta pelo estofo (inv. 531-539).21 [Fig.7] O eclectismo, por si só, revestia o ambiente de um certo exotismo, o que, por sua vez, também era o desejado. Entre toda a variedade de estilos, proliferavam ainda nas salas do Paço da Ajuda peças orientais, ou de cariz oriental: móveis em laca original22 , em acharoado, com chinoiseries, um grande biombo Coromandel, tapetes, porcelanas (sobretudo chinesas), cadeiras com estofos imitando tapetes persas 23, etc., etc.; muito destas peças foram fruto de ofertas diplomáticas à casa real, outras foram sendo adquiridas pelos monarcas. A atracção pelo Oriente, pelo ‘outro’, por uma cultura diferente, foi em grande parte estimulada pelas relações abertas entre o Japão e o Ocidente (a partir da década de 1860), pelo conhecimento da arte japonesa, fortemente divulgada nas exposições universais. Na exposição de 1878, em Paris, a presença japonesa foi muito marcante. O Japão apresentava peças de grande qualidade artesanal, inspiradas na observação atenta e pormenorizada das formas naturais – flores, plantas, pássaros, insectos.... –, o que veio agradar a todos. Oferecia aos entalhadores novos temas, exóticos e naturalistas, que contribuíram para expandir o gosto pelo naturalismo. O Japonismo foi uma tendência que emergiu com força, justamente porque permitiu sair do impasse a que se chegara com o eclectismo histórico.24 20 Ledoux-Lebard, ob.cit., pg.410 21 Hoje no Quarto de D. Luís. Conjunto que fez parte do recheio do Palácio das Necessidades, e que transitou para a Ajuda com a República; o estofo já não é o original. 22 É significativo o número de móveis japoneses, de pequenas dimensões, existentes na colecção. 23 Vejam-se as cadeiras inv. 3617, 3621 e 44301, no Atelier de Pintura. 24 Nouvel-Kammerer, ob.cit., pg.69 14 Entre as fotografias de exposições internacionais, existe na Ajuda uma imagem de um Boudoir Genre Japonais, patente na Exposição Industrial de Viena, em 1888, onde é muito interessante observar não só o género de mobiliário pelo qual se concebia (fantasiava) o Japonismo, como todo o tipo de móveis aí presentes, tão semelhantes a alguns das nossas colecções. Foi uma das mostras visitadas pela rainha, que aliás anotou na própria fotografia a designação e valor dos objectos vistos. A construção de uma Salinha Chinesa, no andar nobre, foi outra das novidades que D. Maria Pia introduziu no Paço da Ajuda, em 1865. O recheio desta sala foi então sobretudo formado por peças japonesas, oferecidas à casa real por uma embaixada do Japão, vinda a Portugal em 1864. Uma fotografia da autoria de Henrique Nunes (que supomos da década de 1870), mostra o interior desta sala com sofás de assento muito baixo (à maneira oriental), poufs e etágeres japonesas, de cariz semelhante ao ambiente criado no Boudoir Genre Japonais da exposição de Viena. Mais uma confirmação da actualidade, ou modernidade, das renovações empreendidas por D. Maria Pia. Muitos móveis ‘orientais’ eram, no fundo, fabricados na Europa, ainda que alguns com laca original exportada para o Ocidente. Desta circunstância resultaram peças híbridas – na conjugação de materiais originais com formas ocidentais. Tal é o caso da escrivaninha com alçado e prateleiras laterais rebativeis, da «Anc.ne Maison Giroux» (inv. 51176), hoje, tal como em 1888, exposta na Sala dos Últimos Quartos do Rei, no andar nobre. Em laca castanha escura, com decoração de motivos japoneses – vegetalistas, zoomórficos e armaduras de aparato – em metal cinzelado, aplicados no espelho e na laca, bem como pintados a ouro e tons polícromos, apresenta uma inscrição truncada, em caracteres japoneses, igual e repetida em diferentes sítios. A sua composição denuncia uma peça executada ao gosto europeu, com placas de laca original, importadas do Japão. A primeira gaveta do corpo inferior, cuja frente rebate, extende-se para fora transformando-se no tampo de uma secretária com prateleiras e pequeninas 15 divisões; este interior, é realizado com uma madeira tão clara e luminosa, acetinada, que provoca um contraste enorme com o exterior; nele se encontra a punção Giroux, incisa na chapa metálica da fechadura. [Fig. 8] Fig. 8 Cómoda escrivaninha/toucador da Maison Giroux, Paris. Foto David Martins François-Simon-Alphonse Giroux (Pai) foi quem criou a casa, em 1799; situada no 7, rue Coq-Saint-Honoré, teve actividade desde o Consulado até ao fim do II Império. Alphonse-Gustave Giroux, seu filho e continuador foi, de facto, quem ampliou o ramo de ébénisterie. Em 1838 os pais legaram-lhe a firma, que em 1849 expandiu, passando a executar móveis pequenos de boudoir, guéridons e floreiras. A sua loja, no 43, Boulevard des Capucines, fornecia a Casa Imperial francesa; aqui exerceu desde 1857 até 1867, ano em que cedeu a casa a Duvinage et Harinkouke. Napoleão III e a Imperatriz Eugénia compraram-lhe móveis de diferentes géneros, sempre de pequenas dimensões.25 25 Ledoux-Lebard, ob.cit., pp. 223-230. É muito interessante ver nesta obra a imagem de uma peça praticamente igual à nossa, mas só com o corpo inferior (a parte da cómoda) sem o alçado superior com espelhos. 16 O emprego de materiais diferentes, utilizados a fazer contraste, o jogo do claro-escuro, o convívio dos mates e dos brilhantes e o colorido do vernis martin, foram outras das características apreciadas nesta segunda metade do século XIX. O escurecimento dos móveis em substituição das madeiras exóticas era uma técnica que permitia obter acabamentos de luxo a preços baixos, e que, por isso, com facilidade conquistou o mercado. Estas peças eram depois realçadas com a aplicação de materiais contrastantes, tal como bronzes dourados, placas de porcelana, mármores, incrustações em madrepérola, etc.26 O mobiliário do Quarto da Rainha, encomendado à Maison Krieger, Suc. Racault, de Paris, é um caso sintomático deste género de móveis. É um conjunto lacado de preto a imitar o ébano, com bronzes dourados, cinzelados, de grande qualidade. É composto por cama com dossel, coroado com as armas reais portuguesas e italianas, duas mesas-de-cabeceira, uma cómoda toucador, um armário secretária e uma mesa de centro (inv. 1850 a 1855). [Fig.9] Em 1862, por intermédio do Visconde de Paiva, responsável pela Legação Portuguesa em França, o rei D. Luís, pessoalmente, efectuou esta encomenda, mas só depois de se ter certificado que a opção correspondia ao melhor dos padrões decorativos em voga, o que lhe foi garantido. Teve uma verdadeira preocupação em agradar à futura rainha. Por este especial empenho, entre as inúmeras obras de redecoração efectuadas na Ajuda, D. Maria Pia nunca incluiu o seu quarto, que inclusive mantém a pintura original do tecto.27 26 27 Nouvel-Kammerer, ob. cit., pp. 21-27. Para a encomenda do Quarto da Rainha, à casa R. Racault-Krieger em Paris, consultar IAN/TT, C.R., 1862, Cx. 4667, 4668. Ainda hoje com a mesma feição dos tempos iniciais, o quarto de cama da rainha é a única sala da Ajuda, em conjunto com o Toilette - sala imediata - que mantém a alcatifa original. Sabemos que inicialmente, a maioria das salas do palácio, incluindo do andar nobre, eram forradas a alcatifa. Também todos os tectos dos apartamentos privados, com pinturas originais, foram mudados por D. Maria Pia, o do seu quarto foi o único que restou. 17 Fig. 9 Quarto da rainha. Podem ver-se peças do mobiliário lacado a imitar ébano, da casa Krieger, ao centro, a bérgere azul da Perrichet et Belzacq; no canto, as cadeiras volntes acharoadas de preto, com assento em palhinha e incrustações em madrepérola. Foto de David Martins Antoine Krieger et Cie, foi um fabricante de todo o género de mobiliário, tanto de desenhos antigos como modernos. Participou em várias exposições, desde 1852. Estabeleceu-se em Paris em 1826 e exerceu até 1856, ano em que transfere a empresa para os seus genros e sucessores, e a partir de quando passa ser identificado com diferentes nomes e moradas: 1856 – Cosse-Racault et Cie; 1860 – A. Krieger et Cie, A. Racault et Cie e, em c. 1880 – Damon et Cie.28 D. Maria Pia compra-lhe peças até ao fim do reinado. São disso exemplo duas cadeiras estofadas em veludo peluche, muito coloridas, todas revestidas com bordados aplicados, rendas, borlas, franjas e passamanarias, no melhor estilo Napoleão III. Falamos de uma senhorinha hoje no Toilette da Rainha (ao lado 28 Ledoux-Lebard, ob.cit. pg.396 18 do quarto), que tem sob assento, no estofo, a estampilha «Maison KRIEGER / [Faubourg] S. Antoine, 74 / PARIS » (inv. 2048) [Fig.4], e de uma cadeirinha baixa sem braços (chaise coussin), com as costas e o assento quadrados, exposta no Atelier de Pintura, marcada no mesmo sítio com o carimbo “Ameublements complets / [?] A. DAMON & C.E. / Sucesseur / 74 Faubourg Ste Antoine PARIS” (inv.3567). A. Damon, sucessora, em c. 1880, de H. Racault/ Krieger, foi uma oficina com grande destaque na indústria do mobiliário; tinha fábrica, ateliers e várias sucursais em Paris, e em Nice.29 Voltando ainda ao Quarto da Rainha, destacamos aqui mais dois móveis de assento. Uma bergère em talha dourada, estofada a veludo gauffré azul, estampada sob o assento “A. PERRICHET & BELZACQ / [?] / [?] / PARIS” (inv. 1833) [Fig. 9], por ser exactamente igual a um exemplar reproduzido numa aguarela francesa de 1887.30 Entre a bergère do quarto da rainha e a da aguarela há uma sobreposição tão grande, até a textura do veludo é igual, que nos permite confirmar quer a fidelidade destes retratos de interiores, tão ricos e minuciosos nesta centúria, quanto a importância de que se revestiram nesta época em que tanto se desenvolveram.31 O segundo destaque dirige-se a um conjunto de quatro cadeiras acharoadas, com o assento em palhinha, decoradas com filetes dourados e incrustações em madrepérola, reluzentes por entre o negro da laca, em torno de todo o espaldar (inv. 2136, 2137; 51171, 51173). É um exemplo perfeito de cadeiras volantes românticas, extremamente leves, feitas com materiais naturais, típicas do período de Napoleão III. [Fig. 9] 29 Idem, Ibidem, pg.146 30 Ver aguarela da sala da casa da Mme. Biencourt, na Rue Chaillot, Paris, reproduzida em NouvelKammerer, ob. cit., pg.66 31 Importância capital, ainda nos dias de hoje, para o estudo dos ambientes históricos. As aguarelas dos interiores do Paço da Ajuda, encomendadas pela rainha ao pintor da corte Enrique Casanova, em 1889, para oferecer ao rei D. Luís, permitem-nos realizar a reconstituição histórica dos aposentos régios. Este conjunto de dezanove aguarelas, em álbum, engloba interiores do Paço da Ajuda, do Paço da Vila de Sintra e da Cidadela de Cascais. Do mesmo autor, existem ainda as fachadas de alguns Paços Reais, entre os quais Ajuda, Necessidades e Vila Viçosa. 19 Entre este jogo de contrastes e cores, queremos assinalar a existência nas colecções da Ajuda, de um número significativo de móveis parcialmente revestidos com a técnica do vernis martin.32 Guillaume e Etienne Martin foram dois irmãos, franceses, que no século XVIII se tornaram grandes especialistas na arte da imitação da laca, mas com múltiplas cores (ao contrario da laca oriental). Com o decorrer dos tempos, o seu nome acabou por dar nome à nova técnica de pintura a óleo, de cenas românticas ao ar livre, que perdurou identificada por vernis martin, à qual durante o século XIX muitos especialistas recorreram para decorar objectos. Uma das casas revendedoras de muitos destes móveis, foi a L’Escalier de Cristal, uma das mais famosas lojas parisienses, especializada na reprodução de móveis setecentistas, fornecedora de muitas cortes europeias. Executava peças com tanta qualidade, que passavam por originais; por vezes, só por ocasião de restauros, quando se descobria no interior a estampilha recente, se reconhecia ser uma cópia. A utilização dos materiais naturais como as palhinhas, o bambu, o papier maché, os nacarados, as telas e couros pintados, teve uma certa popularidade pelo facto destes móveis serem simultaneamente ligeiros, elegantes, e geralmente mais baratos.33 Outras vezes os móveis tinham apenas uma feição de cariz naturalista, ou seja, apresentavam temas e formas tirados do natural. Veja-se o caso do torneamento das madeiras imitando o bambu, de que é exemplo todo o mobiliário do Jardim de Inverno34, ou algumas das peças do Gabinete de Carvalho (que lhe fica anexo), com molduras em forma de ramos de árvore entrelaçados e sanefas também com intrincada morfologia de ramos (galhos) e folhas sobrepostos, 32 Ver, como exemplo, o biombo austríaco estilo Luís XV inv. 1330, o relógio de caixa alta da Escalier de Cristal inv. 3459, ou os móveis assinados por Paul Sormani: secretária inv. 2394, meiacómda inv. 3456, vitrine inv. 1325, guarda jóias inv. 2100 (pode ver-se na fotog.9), e biombo inv. 1709. 33 Peter Thornton, L’ Époque et son Style. La décoration intérieure 1620-1920, Flammarion, Paris, 1986, p.323 34 Sobre a criação desta sala e as suas funções à época (tal como para a descrição das salas do piso térreo), ver o catálogo da exposição Tempo Real, Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, 1996. 20 albergando ao centro um ninho com passarinhos, protegido pelas grandes asas abertas da mãe, que desse modo marca o centro da composição. O aparecimento deste tipo de objectos esteve também relacionado com o culto e a paixão pela natureza, com o espírito romântico do Naturalismo. O prazer de trazer a natureza para o coração da casa, nomeadamente através da criação de estufas ou de jardins de inverno, onde eram abolidas as estações do ano, foi mais um dos exotismos oitocentistas. O jardim de inverno, outra moda lançada pela princesa Matilde 35, tratava-se de um espaço onde toda a família, com todo o conforto do interior, podia conviver com os encantos do exterior, mas sem as suas adversidades: “a natureza domesticada... assegurava a tranquilidade da vida privada e oferecia um quadro ideal à vida familiar”.36 Esta avidez pelo conforto foi uma das maiores tónicas decorativas da segunda metade do século XIX. A exploração de todas as potencialidades do conceito, foi uma das máximas da época. O capitoné atingiu o seu auge e, inerentemente, os sofás e as cadeiras de formas cómodas e flexíveis: assentos almofadados, geralmente em cabriolet, de encosto côncavo, mais ergonómico, em substituição das tão usadas cadeiras à la reine, de espaldar plano. Esta nova tipologia de mobiliário de assento, de estrutura totalmente encoberta, escondida no interior do estofo, para além de facilitar o fabrico em série, permitiu também a introdução de madeiras menos nobres na construção, como foi o caso do pinho. Tornavam-se visíveis os passos da industrialização. Foi um período marcado pelo reino dos estofos, das passamanarias, dos bons reposteiros, dos cortinados duplos, de uma completa profusão de tecidos a revestir quer os móveis, quer as paredes e as janelas, bem como de tapetes de todos os tamanhos e nacionalidades, a cobrir o chão. O interior, assim 35 L’Art de Vivre, ob.cit. pg. 118 36 História da Vida Privada, ob. cit., pg. 69 21 confortável, era um interior tido como seguro, ideal para o culto da vida íntima, privada e familiar. Os sofás e senhorinhas da Sala de Música e o borne da Sala Azul, ambas salas de estar entre família e amigos, são bons exemplares da morfologia do capitoné. Como exemplo de mobiliário de assento en cabriolet, mais leve e ligeiro, com rodízios, escolhemos o conjunto da Antiga Sala do Bilhar, composto por um sofá de três lugares e catorze cadeiras (duas com braços), em pau-santo encerado, que apresenta a estampilha «Quignon/à Paris», no interior do estofo de um dos assentos (inv.51143 a 51157). [Fig. 10] Fig. 10 Antiga Sala do Bilhar. Conjunto de mobiliário de assento, constituído por 14 peças, com a assinatura de Quignon. Entalhador francês, Napoleon Quignon (1815-act.1874), instala-se em Paris em 1849, onde se inicia como fabricante de cadeiras, canapés, cadeiras 22 de braços..., os quais fabricava de todos os géneros e feitios. Em 1868 teve fábrica e loja, onde vendida uma gama variada de ébénisterie de estilo e fantasiada. Participou em muitas exposições, e em 1872 tornou o seu filho sócio; dois anos depois, passou-lhe a direcção da empresa e deixou de exercer a actividade.37 Este conjunto da Ajuda, que durante muitos anos passou despercebido, por se encontrar totalmente alterado na sua feição original38 , tratou-se concerteza de mais uma compra de D. Maria Pia, numa das suas muitas passagens por Paris. Foram as compras em viagem, as encomendas por catálogo e fotografia, que fabricantes estrangeiros e portugueses insistentemente enviavam para a rainha, acompanhados de um caloroso pedido de ascensão à categoria de fornecedor da Casa Real, que estiveram na origem de muitas das colecções do Palácio Nacional da Ajuda. Este foi, sem dúvida, um Paço Real que desde a primeira década do reinado de D. Luís I, ganhou a feição de um palácio internacional, congénere de tantos outros palácios reais europeus, acabando por vir a reunir um dos mais importantes núcleos nacionais de artes decorativas oitocentistas. Ainda hoje, o Palácio da Ajuda é internacionalmente destacado pela homogeneidade das suas colecções e capacidade de representação de uma época, face a outros palácios seus contemporâneos, que muitas vezes não guardaram a riqueza dos objectos pessoais e decorativos, que hoje nos permitem espelhar uma imagem, muito personalizada, de um genuíno ambiente da segunda metade do século XIX. 37 38 Ledoux-Lebard, ob.cit., pg.537 Em data incerta do século XX, supomos que pelos anos 60/70, este conjunto foi pintado com verniz preto e estofado com um tecido brocado moderno, provavelmente por se encontrar em mau estado de conservação. Esta sua transformação fez com que permanecesse nas reservas largos anos. Só recentemente, por ocasião da reconstituição histórica da Antiga Sala do Bilhar, se chegou à conclusão tratar-se do mesmo conjunto, descrito pelo Arrolamento dos Paços na sala, pois o número de peças e a sua morfologia sobrepunham-se, só os materiais eram diferentes. Resolveuse então desmanchar uma cadeira e decapar a tinta à superfície, e concluiu-se que eram de facto os móveis originais. A surpresa maior do restauro, foi ter-se descoberto no interior do estofo, na parte posterior do aro do assento duma cadeira, a estampilha original do fabricante. 23 *Artigo adaptado de uma comunicação apresentada no 1º Colóquio de Artes Decorativas – Mobiliário Português. Lisboa 27 e 28 de Setembro de 2007. Museu de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva Publicado em: Mobiliário Português. Actas do I Colóquio de Artes Decorativas (separata), (2008), Lisboa, pp. 127-139, Fundação Ricardo Espírito Santo Silva/Escola Superior de Artes Decorativas. ** Conservadora das Colecções de Mobiliário e Fotografia do Palácio Nacional da Ajuda.