FRANCISCO XAVIER: DE SOLDADO DE CRISTO À MÁRTIR DA
IGREJA
Karla Katherine de Souza Seule (UEM)
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar dentro do contexto das relações
estabelecidas entre as populações indianas e os portugueses no século XVI, como
através das narrativas em torno da morte do jesuíta Francisco Xavier e do episódio do
suposto milagre do seu corpo incorrupto, esse jesuíta foi de soldado de Cristo sendo
transformado em mártir da Igreja. O co-fundador da Companhia de Jesus, Francisco
Xavier, foi designado para as missões do Padroado português no Oriente. Em 1542
partiu para a Índia nomeado pelo Papa como Núncio Apostólico do Oriente, tendo
jurisdição sobre todas as missões do Cabo da Boa Esperança ao Japão. Xavier, após 10
anos percorrendo os entrepostos portugueses da Índia, pretendeu ir para a China fundar
novas missões evangelizadoras. Para isso, contava com a ajuda do mercador Diogo
Pereira, que prometeu patrocinar sua viagem e o apoio do vice-rei da Índia, Afonso de
Noronha, que designou Pereira como embaixador para acompanhá-lo. Porém, devido às
desavenças entre o capitão do entreposto português de Malaca, Álvaro de Taíde, e
Diogo Pereira, Xavier não obteve permissão do primeiro para guardar suas provisões e
para que Pereira o levasse até o seu destino. Francisco Xavier, parte sem o necessário e
acaba falecendo às portas da China, na ilha de Sanchão, em dezembro de 1552. O seu
corpo, após três meses foi desenterrado e encontrado em perfeito estado, e mesmo após
alguns meses, passando ainda por Malaca, chegou em perfeito estado em Goa. O
“milagre do corpo incorrupto” de Xavier, maneira como ficou conhecido o evento,
causou comoção popular. Os relatos em torno da morte de Xavier e o traslado do seu
corpo da China até Goa devem ser explorados levando-se em conta o contexto colonial,
português e católico que os envolveram. Eles nos fornecem os contornos das práticas da
Companhia de Jesus e do Estado da Índia Portuguesa durante meados do século XVI e a
situação dos portugueses ao longo dos lugares por onde o seu corpo passou, daí o nosso
intuito em recordar essas narrativas.
Palavras-chave: Padroado, Jesuítas, Francisco Xavier.
FRANCISCO XAVIER: DE SOLDADO DE CRISTO À MÁRTIR DA
IGREJA
Karla Katherine de Souza Seule (UEM)
Introdução
Nos séculos XV e XVI a expansão marítimo-comercial européia resultou no
descobrimento e consolidação de novas rotas de comércio para o Oriente. Os
portugueses foram pioneiros nesse processo. A expansão ultramarina portuguesa, além
de fins comerciais, também tinha o objetivo de divulgar a fé cristã. Para isso, foram
enviados padres, juntamente com os mercadores, às novas terras encontradas. Portanto,
na época da expansão marítima e colonial de Portugal, dois poderes se mostraram
fundamentais: o espiritual e temporal. A união entre eles era representada pelo Padroado
Real da Igreja. Através do Padroado, a Igreja concedeu ao Estado português direitos,
deveres e privilégios sobre as instituições eclesiásticas do ultramar. No Oriente, o
conjunto de entrepostos e feitorias portuguesas recebeu o nome de Estado da Índia
Portuguesa. A sede das atividades administrativas, religiosas, comerciais e políticas dos
lusos na Ásia estava localizada em Goa.
O trabalho missionário na Ásia expandiu-se amplamente no decorrer do século
XVI. As missões começaram a se desenvolver com rapidez principalmente, após a
chegada dos jesuítas. Antes mesmo da fundação oficial da Companhia de Jesus, teve
início em 1538 uma próspera relação entre os seus membros e o reino de Portugal. Em
1540, o embaixador português em Roma, Diogo da Gouveia, procurou os jesuítas em
nome de D. João III, e deixou claro o desejo do último, em ter os novos padres
trabalhando em Portugal e em seus domínios orientais (COSTA, 2006, p. 40).
Tendo em vista esses objetivos o jesuíta Francisco Xavier foi, então, designado para as
missões do Padroado português do Oriente. Xavier era espanhol, nascido em 7 de abril
de 1506. Ele estudou em 1525 na Universidade de Paris, onde conheceu Inácio de
Loyola e os outros colaboradores na fundação da Companhia de Jesus. (XAVIER, 2006,
p. 39). Em 1542, ele foi para a Índia como Núncio Apostólico do Oriente, tendo
jurisdição sobre todas as missões, do Cabo da Boa Esperança ao Japão.
Após passar por várias partes da Índia, desde a sua chegada em 1542, Francisco
Xavier partiu para o Japão onde missionou dois anos. Após 10 anos percorrendo os
entrepostos portugueses no Índico ele pretendeu ir para a China fundar novas missões
evangelizadoras. Para isso, contava com a ajuda do mercador Diogo Pereira, que
prometeu patrocinar sua viagem, e o apoio do vice-rei, Afonso de Noronha, que
designou Pereira como embaixador para acompanhá-lo. Porém, devido às desavenças
entre o capitão de Malaca, Álvaro de Taíde, e Pereira, Xavier não obteve permissão do
primeiro para guardar suas provisões e para que Pereira o levasse até o seu destino. E
mesmo sob os apelos de alguns oficiais portugueses presentes em Malaca, Francisco
Xavier teve que partir sem o necessário e acabou falecendo às portas da China, na ilha
de Sanchão, em dezembro de 1552. Três meses depois ele foi desenterrado para ser
transportado até Goa. O seu corpo foi encontrado incorrupto e segundo os relatos,
mesmo depois de enterrado por mais três meses em Malaca, entreposto português no
sudeste asiático, continuava sem sinais de deterioração. De Malaca então foi
transportado até Goa, onde permanece até hoje.
Nós iremos, portanto, recordar as narrativas em torno da morte de Xavier e do
suposto milagre do seu corpo incorrupto. Para isso, fazemos um paralelo com o trabalho
da historiadora Pamila Gupta1, que partindo da premissa de que o ato de contar a
história é tão importante quanto a própria história, analisou as biografias pós-morte de
Francisco Xavier e o que ela chama de “saint-in-the-making”, ou o fazer do santo, que
foi realizado em torno de sua morte e funeral. O nosso intuito é através dos relatos de
padres e de testemunhos como o do viajante português Fernão Mendes Pinto, entender
um pouco mais da trajetória desse jesuíta dentro do Estado da Índia Portuguesa e nesse
contexto, verificar, na forma como foi narrada a sua morte, como ele de soldado de
Cristo se transformou em mártir.
Francisco Xavier: a morte e o milagre do corpo incorrupto
Segundo os testemunhos analisados por nós – cartas de padres e do viajante
português Fernão M. Pinto, assim como a obra desse último, Peregrinação – a morte de
Xavier foi o fim de uma série de infortúnios sofridos por esse padre.
Como vimos, Francisco Xavier tinha planos de ir para a China fundar novas missões
evangelizadoras, e para isso, contava com a ajuda do mercador Diogo Pereira 2, que
prometeu patrocinar sua viagem:
Nesta viagem q o padre fez da China para Malaca em companhia de Diogo
Pereyra q era muyto seu amigo, lhe deu conta dos termos em que ficauão as
cousas da Christandade em Iapão, & quão importante lhe era a elle trabalhar
todo o possiuel por ver se podia ter entrada na China, assi para lá diuulgar, &
dar noticia a aquella gentilidade da ley de Christo nosso Senhor [...] Diogo
Pereyra se offereceu tomar a cargo por seruiço de Deos, & pela amizade que
tinha co padre, metelo na China â custa de sua fazenda, & fazer toda a
despesa que fosse necessária assi do presente como de tudo o mais, o que o
padre aceitou delle, & lhe prometeo por isso satisfaçaõ del Rey nosso Senhor.
(PINTO, 1983, p. 679-680).
Xavier então buscou obter permissão e apoio do vice-rei em Goa, Afonso de
Noronha:
Chegado o padre a Goa, deu conta desta sua determinação ao Visorrey dom
Afonso de Noronha, o qual lhe louuou muyto este seu bõ & santo propósito, &
se lhe offereceu para o ajudar nelle com tudo o que fosse possiuel. (PINTO,
1983, p. 680).
Xavier em seguida, partiu para Malaca para encontrar Pereira, com o necessário
para seguir seu caminho. Porém, devido às desavenças entre o capitão de Malaca,
Álvaro de Taíde, e Pereira, não teve permissão do primeiro para guardar suas provisões,
e para que Pereira o levasse até o seu destino:
Elle contente assaz cõ esta boa reposta do Visorrey, se auiou o mais depressa
que pode de tudo o que lhe era necessário: & dandolhe o Vissorey prouisoes
para Diogo Pereyra yr nesta santa jornada por embaixador a el Rey da China,
cometidas a dom Aluaro de Tayde que então estaua por capitão da fortaleza,
se tornou a Malaca, porem o capitão lhe não quis guardar as prouisoens,
porque ao tempo que o padre chegou estaua muyto de quebra com Diogo
Pereyra por lhe não emprestar dez mil cruzados que lhe pedira. E trabalhando
o padre todo o possiuel por soldar com sua virtude esta quebra, & esta
discórdia, nunca já mais pode, porque como Ella estaua fundada em ódio &
cúbica, & o demônio era o que atiçaua este fogo, em vinte e seis dias em que
sobre isso se fizerão alguas diligencias nunca o capitão quis conceder no que
o padre pedia, nem dar liçeça paraque Diogo Pereyra o leuasse â China,
como da Índia vinha ordenado, com hum grandíssimo gasto jâ feito, dando em
tudo nouos entendimentos ás prouisoes do Visorrey, & dizendo a modo de
escarneo que aquelle Diogo Pereyra que sua senhoria dezia era hum fidalgo
que ficaua em Portugal, & não aquelle q o padre apresentaua, que fora ontem
criado de dõ Gonçallo Coutinho, & não tinha partes para yr por embaixador
a hum tamanho monarcha como era o Rey da China. (PINTO, 1983, p. 680).
E mesmo após os apelos de algumas pessoas, Taíde não mudou o seu parecer.
Note-se que a narrativa em torno dos acontecimentos mostra Xavier enquanto uma
espécie de herói, sempre obstinado a cumprir o seu santo propósito, o de levar a fé a
todos os cantos possíveis. Por outro lado, aquele que impede o seu santo intento, D.
Álvaro de Taíde, aos poucos vai sendo tratado como o antagonista, vilão que, como
Pinto observa, vai contra toda a razão, possivelmente segundo ele, sendo usado como
um objeto em prol do mal. E esse desentendimento entre Pereira e Xavier tomaria, como
veremos, pouco a pouco proporções maiores, devido a forma como posteriormente
foram feitos os relatos à respeito da morte de Xavier.
De acordo com esses relatos, Francisco Xavier, parte sem o necessário e acaba
falecendo às portas da China, na ilha de Sanchão, em dezembro de 1552, como vemos a
seguir em um trecho da Peregrinação:
Partindo a nau aquella madrugada do porto de Malaca em vinte & três dias
de viagem foy surgir no porto de Sanchaõ, que He hua ilha vinte & seis legoas
da cidade de Cantão, onde naquelle tempo se fazia o trato com a gente da
terra. [...] Porem como o mesmo Deos, cujos segredos ninguém pode rastejar,
não era seruido que elle entrasse na China, & a razão porque elle só o sabe,
[...] Cõ isto se deixou o padre ficar dentro na não sem dar effeito a esta santa
obra que tanto desejaua. E como elle já então andaua mal desposto de febres
& de camaras de sangue, ajuntandose aisto a melancolia, & desgosto que
tomara, se veyo a doeça a senhorear tanto delle, que crecendo cada dia mais
veyo a cayr na cama com fastio muyto grande, [...] até q de todo deu a alma a
Deos, que foy hum sabbado dous dias de Dezembo, do anno de 552. â meia
noite, cuja morte foy assaz sentida & chorada de todos quantos aly se acharão
presentes. (PINTO, 1983, p. 683-684).
E a narrativa em torno do herói não cessa, pois o que viria após a sua morte, de
acordo com os relatos analisados, serviria para confirmar a santidade já esperada de
Francisco Xavier.
Em uma carta, em que o jesuíta Melchior Nunes Barreto escreve ao superior da
Ordem, Loyola, sobre sua viagem de volta a Índia, regressando após visitar as
residências jesuítas em Coulão, Comorim e Cochim, este fala dos rumores da morte do
padre Francisco num porto da China chamado Sanchão. Segundo Barreto, Xavier estava
nesse lugar com um mercador chinês que havia contratado por trezentos cruzados de
pimenta que lhe deram de esmola, para que este o levasse numa noite até a praça da
cidade de Cantão. Preço necessário devido ao risco, por causa das leis da região, que
castigavam com a morte quem ajudasse estrangeiros a entrar na China. Ele fala da
grande caridade de Xavier em arriscar de forma consciente a sua vida para salvar
“alguns escolhidos, que Deus terá predestinados nos grandes reinos da China”. Com
isso, segundo Barreto, Xavier depositava grãos de trigo que seriam colhidos por outros
missionários da Companhia no futuro, tendo uma morte tão gloriosa quanto a vida,
conforme os relatos que ouviu de pessoas que estavam presentes no momento de sua
morte, inclusive o piloto da nau em que agora estava. (BARRETO in: CATZ, 1983, p.
21)
Barreto narra os relatos da morte de Xavier e o modo como foi enterrado:
E assim, na sexta, à meia-noite, 2 de Dezembro, dia de Santa Bebiana, deu sua
alma ao seu Criador.Os portugueses que ali estavam o meteram numa arca
com muita cal, e o enterraram debaixo da terra, na praia, junto do mar,
vestido com sua loba e sobrepeliz, e alva, e estola, e as mãos em cruz, e pés
calçados com botas e servilhas. (BARRETO in: CATZ, 1983, p. 22-23).
Conta a respeito do “milagre do corpo incorrupto”:
Dali a três meses e meio que o navio houve de tornar a Malaca, puseram-se os
portugueses em conselho, pela afeição que lhe tinham, se iriam ver a cova, e
assentaram que a mirassem: se achassem o corpo de maneira que se pudesse
sofrer no navio o cheiro dele, o trouxessem para Malaca para ser enterrado
na igreja dos cristãos. E indo ver, aberta a cova, o acharam todo inteiro, com
o rosto que parecia vivo, e sem nenhuma coisa lhe minguar de todo seu corpo
e com um cheiro bom e suave, sem haver cheiro que lhe ofendesse, senão o
bafio da cal. E para mais se certificarem, lhe deram um golpe num braço, e
estava com a carne como viva e de cheiro mui bom; e acharam todo o vestido
e calçado inteiro sem o comer a cal. E, espantados com a novidade da coisa,
o trouxeram à cidade de Malaca onde não estava ninguém da Companhia
Foi recebido seu corpo com mui grande solenidade, por estar ali Diogo
Pereira, seu mui verdadeiro amigo, e outros muitos seus devotos. Mas agora
fora por fazerem a vontade de D. Álvaro, que é o capitão de Malaca, que o
perseguiu ora por ignorância de não saberem o que faziam, o fizeram
enterrar, tirando-o da arca. E não sabendo considerar o mistério, o
enterraram numa fossa mui pequena sem arca, onde, segundo o costume de
Malaca, com pilões o calcaram, de maneira que em algumas partes de seu
corpo lhe fizeram grandes lesões, quebrando-lhe o pescoço e um joelho, e em
outras partes; e esteve soterrado por alguns meses. [...] E o trouxeram este
ano para Goa [...]. (BARRETO, in: CATZ, 1983, p. 22-23).
Portanto, como podemos perceber, o corpo de Xavier é de Sanchão trazido até
Malaca. Apesar da comoção em torno de sua incorruptibilidade, neste último lugar, o
corpo de Xavier não recebe de acordo com esse relato de Barreto, o tratamento
adequado, sofrendo algumas contusões. Aqui, Álvaro de Taíde aparece novamente
como o vilão, acusado por Barreto de ser o responsável pelo mau tratamento dado ao
cadáver de Xavier. Por esses motivos, foi decidido que este deveria ser transferido para
Goa, onde se esperava que recebesse um enterro mais decente.
Nos relatos de Barreto, vemos a continuidade da narrativa em torno do herói,
agora morto, mas para aquele que se ocupou em registrar este acontecimento, Xavier
tem na morte sua santidade comprovada. E a prova estaria no suposto milagre de seu
corpo incorrupto.
Barreto descreve a comoção popular em torno da chegada do corpo de Xavier
em Goa:
Tanto que fomos sabedores que vinha o navio que o trazia para Goa, me
embarquei num catur para trazermos no mesmo catur, pelo navio vir muito
devagar, e juntamente para que, como Tomé, mirasse e palpasse o que
publicamente por todo o Mundo se dizia. [...] Vinha numa arca ainda com a
cal: havia quinze meses que era morto e que andava na cal. Estava a carne
branda e com substância, sem ser consumida da cal, nem da terra, nem dos
vermes, com um cheiro muito bom.
[...] Pôs-se todo o povo, que penso que seriam mais de cinco ou seis mil
almas, em não se querer apartar da igreja se lhes não mostrássemos o corpo e
assim o mostramos. Foi tanta a devoção da gente e admiração que foi uma
das coisas que em esta vida tenho visto mais para dar graças ao Senhor
Nosso: uns choravam, outros batiam nos peitos, pedindo a Deus perdão de
seus pecados, outros faziam força a quererem tocar com suas contas e com
outras coisas no corpo do bem-aventurado padre, de maneira que, até
quebrarem as grades da igreja, e não se fartarem de beijar-lhe os pés
[...].(BARRETO in: CATZ, 1983, p. 22-23).
Vemos que Barreto aqui compara Francisco Xavier ao apóstolo Tomé,
considerado pelos portugueses patrono da Índia, o que nos faz crer que o faça com a
intenção de afirmar mais uma vez a sua santidade.
Como podemos ver, de acordo com os relatos aqui apresentados, o suposto
milagre do corpo incorrupto de Xavier teria sido algo chocante. E possivelmente foi por
sua causa que, Fernão M. Pinto um viajante português que após percorrer por vários
anos após percorrer os entrepostos portugueses do Oriente como mercador, embaixador
e soldado, mudou os seus planos de voltar para Portugal. Na opinião de Rebecca Catz,
professora e pesquisadora da Universidade da Califórnia, que a longa data pesquisa
Fernão Mendes Pinto, este, ao ver o corpo incorrupto de Xavier, quem conheceu ainda
em vida, foi objeto de uma conversão mística que o levou a desapossar-se de grande
parte dos seus bens em favor da Companhia de Jesus, que o acolheu em suas fileiras
como irmão. Barreto dá seu testemunho a respeito, dizendo que um devoto de Xavier
foi especialmente tocado pelo milagre do corpo incorrupto. Era Fernão Mendes Pinto
que:
Tinha de seu sete mil cruzados, e no domingo de Pastor Bônus, oito dias antes
que partíssemos para Japão, não estando eu ainda determinado de ir de todo,
indo eu a uma ermida de Nossa Senhora da Graça, que fazemos na ilha de
Chorão, uma milha na fronteira da cidade de Goa, foi ele comigo para
oferecer a Nossa Senhora cinqüenta cruzados para ajuda de se acabar a casa.
E a Virgem sagradíssima, como seja Mãe de misericórdia, lhe alcançou tal
graça de seu bendito Filho, que estando todos praticando de Deus Senhor
Nosso foi tanta sua devoção e fervor que fez voto (não aproveitando ir-lhe eu
à mão que o não fizesse) no qual obrigou seu corpo, alma e fazenda a
perpétuo serviço de Deus Nosso Senhor. É homem humilde e a quem
esperamos que Nosso Senhor há-de comunicar muitos dons e graças.
(BARRETO in: CATZ, 1983, p. 26).
O padre Melchior continua, afirmando que Pinto enviou dois mil cruzados a Portugal,
para ser entregue uma parte como doação ao Colégio de Coimbra e outra a suas irmãs e
irmãos. Ele também patrocinou a missão do Japão, com “peças e presentes que havemos
de oferecer àqueles reis para os termos mais amigos e contentes”, e para a construção de
um templo. Barreto explica que, como Mendes Pinto era muito conhecido na região do
Japão, por ter permanecido ali catorze anos, partiria para lá como embaixador do senhor
vice-rei da Índia até o Rei do Bungo, com os presentes (armas entre outras coisas), que
levava em nome do Rei de Portugal. (BARRETO in: CATZ, 1983, p. 26).
E assim, ficou decidido que Barreto devia chefiar a missão no Japão, inspirada em
Xavier e subsidiada por Pinto, que o acompanharia. Esse foi nomeado embaixador pelo
vice-rei, para estabelecer relações diplomáticas entre o Japão e a Índia Portuguesa, não
usando o hábito da ordem até ter concluído a sua missão diplomática. Ele parece ter
cumprido o seu cargo como embaixador com relativo êxito, em vista das concessões
dadas aos Portugueses. Mas uma vez concluída a sua missão oficial, quando chegou o
momento de envergar o hábito, Fernão Mendes Pinto mudou de opinião. Quanto ao
motivo, “as cartas são mudas”, mas o que se sabe, é que ele se separou da ordem a seu
próprio pedido e amigavelmente. Pinto deve ter partido do Japão com o padre Melchior,
que já estava em Goa em 1557 e é muito provável que já estivesse em Portugal em
1558, completando assim as suas peregrinações de vinte e um anos em muitas partes da
Ásia. (CATZ, 1983, p. 13).
Portanto, ao longo desses trechos das narrativas em torno do episódio da morte
de Francisco Xavier, do aparato e suposto milagre em torno de seu funeral e a conversão
de Fernão Mendes Pinto, fruto do primeiro acontecimento, que o leva a abandonar tudo
em favor de uma vida espiritual ao lado da Companhia de Jesus, é significativo o
contexto de disputas de poder traçado entre as diferentes categorias de portugueses
presentes na Ásia no século XVI (missionários, mercadores, autoridades do Estado
português). Contendas que encerram a vida desse jesuíta no Oriente, mas que também
estavam presentes em menor ou maior medida, desde as sua chegada na Índia.
Francisco Xavier e o traslado de seu corpo: “caminho de volta”
Os relatos em torno da morte de Xavier devem ser explorados levando-se em
conta o contexto colonial, português e católico que os envolveram. Ele nos fornece os
contornos das práticas da Companhia de Jesus e do Estado da Índia Portuguesa durante
meados do século XVI.
Gupta lembra que os portugueses criaram uma rede focada na conquista de nichos e na
negociação de espaços coloniais em meio a um mundo maior no Oceano Índico. E esses
postos coloniais em torno de Goa, geraram redes culturais, de comércio e fé. Enquanto
isso, a Companhia de Jesus, através de seus membros, em uma busca constante de
novos convertidos ao rebanho do catolicismo romano, investiu na expansão que
coincidiu com a aquisição de novos territórios por Portugal. E para isso o próprio
Xavier partiu em uma missão que teria início a partir de Goa em 1542. (GUPTA, 2010,
p. 199).
A vida de um jesuíta viajando no mundo do oceano Índico estava diretamente
ligada aos êxitos da Companhia de Jesus e do Estado da Índia Portuguesa (GUPTA,
2010, p. 199). E notamos evidências disso nos escritos sobre os planos de Xavier de
adentrar à China e nos testemunhos a respeito de sua morte. Ele tenta construir todo um
aparato para adentrar na China, justamente por estar ciente da condição em que os
portugueses que lá comerciavam se encontravam. Como podemos observar, em
Sanchão, os portugueses não possuíam fortalezas, apenas passavam para fazer trocas
comerciais. Além disso, Xavier dependia ainda, para entrar em território chinês, de um
mercador nativo, que foi, segundo os seus escritos e outros relatos, muito bem pago por
esse serviço, pois estaria sob pena de morte se fosse pego ajudando um estrangeiro a se
infiltrar na China.
Por esse motivo então, que após a sua morte, o corpo de Xavier é transferido
para Malaca e depois para Goa, onde é sepultado definitivamente. Como em Sanchão os
limites da soberania portuguesa eram maiores, pois lá era mais um refúgio temporário
para fins comerciais do que um entreposto colonial, daí a necessidade de levar o corpo
de Xavier para um lugar mais seguro (GUPTA, 2010, p. 204).
Em Malaca, como vimos nos relatos, o seu corpo, apesar da comoção popular que
causou, não recebe o tratamento adequado, e teria, inclusive, sofrido alguns danos. O
túmulo teria sido cavado de maneira inadequada demais para encaixar o seu corpo, o
que teria resultado em um recuo do pescoço e cortes profundos nessa área e no rosto,
além de uma ligeira contusão na parte superior do nariz. Todas essas características
corporais foram evidenciadas por João da Beira e outros companheiros jesuítas, após a
abertura de sua cova. Beira estava em Malaca de passagem e viera com outros jesuítas
das Molucas especialmente para ver o corpo de Xavier. (GUPTA, 2010, p. 209).
No final do século XVI, Malaca era um reduto econômico, político e militar,
além de centro religioso português. Xavier introduzira a ordem dos jesuítas em Malaca,
em 1548, e uma igreja lhes fora legada pelo governador português em exercício para
promover a religiosidade da cidade. A cidade era encruzilhada de rotas comerciais
privilegiadas e o ponto de verificação de homens e mercadorias. Mas se tornava um
ambiente cada vez mais hostil. Aqui, mais do que em Sanchão, a santidade de Xavier se
espalha por meio de outros órgãos (missionário e colonial), precisamente porque é um
posto colonial mais avançado. No entanto, no final, o pobre tratamento durante o enterro
de Xavier em Malaca, expõe as vulnerabilidades da e do Estado, provocando a sua
posterior remoção para Goa. Assim, o cadáver de Xavier retoma em sentido inverso o
circuito de sua história de vida. E essa viagem, vista através das narrativas em torno
dela, permite que notemos, em paralelo aos escritos do próprio Xavier, as proporções do
alcance do Estado português e de sua expansão da fé católica em cada um dos seus
entrepostos no Índico. (GUPTA, 2010, pp. 205, 206).
Alguns dos documentos analisados por Pamila Gupta aludem à razão por trás do
fato de não existirem jesuítas residindo em Malaca. Eles sugerem que as tensões entre o
capitão de Malaca, D. Álvaro de Taíde e Xavier, levaram a sua desaprovação por parte
dos jesuítas, de tal forma, que tinham deixado a cidade como resultado. Assim, Beira e
seus companheiros se sentiram compelidos a transferir o cadáver de Xavier para um
"lugar mais decente", neste caso Goa, centro do império português no Oriente, também
conhecida como a "noiva do mar" pelos lusitanos. Essa cidade testemunhara a chegada
de Xavier, em 1542, para iniciar as missões jesuítas na Ásia. Nela Xavier seria mais
plenamente solenizado pelo Estado e pelo público. Goa era um centro mais
desenvolvido da atividade missionária e colonial. E precisamente por causa da forte
relação que Xavier teve em vida com esse lugar, é que, ao contrário do que aconteceu
em Sanchão e Malaca, onde seu cadáver foi intermitentemente valorizado e mal tratado,
Xavier é muito apreciado em Goa. (GUPTA, 2010, p. 209-212).
Gupta observou alguns sinais de santidade presentes no corpo de Xavier e na
trajetória dele de Sanchão até Goa, o que é relevante para o nosso estudo. O primeiro
desses sinais é que, apesar do uso de cal, como um agente de decomposição que age
para limpar os ossos de suas carnes, o seu cadáver desafia a deterioração da morte,
significando mais uma vez a sua santidade potencial. O testemunho de Fernão Mendes
Pinto exemplifica este ocorrido. De acordo com nosso viajante, o cadáver de Xavier foi
encontrado sem qualquer sinal de deterioração, nem mesmo a mortalha e a batina que
ele usava tinham quaisquer manchas, parecendo que ambos tinham acabado de ser
lavados. E, por último, ela destacou que a santidade de Xavier é reforçada através da
prática e da produção e distribuição de relíquias através dos lugares por onde passou.
(GUPTA, 2010, p. 203-204). Portanto, o que percebemos em todos esses sinais é que,
através do ato de contar a história, ao mesmo tempo que os detalhes do traslado de seu
corpo promovem a sua santidade, os testemunhos também expõem as vulnerabilidades
da condição do Estado português na Índia (ideológicos, religiosos, e políticos).3
Considerações finais:
Em suma, o nosso intuito, ao retomarmos na companhia de Pamila Gupta a
morte e o milagre do corpo incorrupto de Xavier, foi mostrar que esses acontecimentos
permitem-nos compreender alguns tipos de conflito presentes nas relações entre as
diferentes categorias de portugueses que viviam na Índia no século XVI. Além disso,
eles encerram a epopéia de vida e morte de Xavier, gerada em torno de seus escritos e
dos testemunhos de sua morte, do suposto milagre do corpo incorrupto, enfim, de sua
conversão de Soldado de Cristo em mártir. Essa figuração do jesuíta acabou sendo
usada em muitos momentos para incitar o fervor religioso, nos recém convertidos da
Ásia, bem como, para tentar comprovar a necessidade de um cuidado maior com a
religião e a própria administração do Estado da Índia Portuguesa.
1
GUPTA, Pamila. “Signs of Wonder”: The Postmortem Travels of Francis Xavier in the Indian Ocean
World. In. MOORTHY, Shanti; JAMAL, Ashraf. Indian Ocean Studies. Cultural, Social, and Political
Perspectives. New York: Routledge, 2010.
2
Diogo Pereira, grande amigo de Xavier, vivia em Goa. Em 1548 já estava a muitos anos na Índia
servindo o Rei. Era um mercador muito conhecido e rico. Nesse mesmo ano tinha ido a Sião e em 1551 à
China. (SCHURHAMMER, GONÇALVES e COUTO, apud XAVIER, 2006, p. 335).
3
O suposto milagre do corpo incorrupto de Xavier teria causado uma comoção grandiosa e, como vimos,
teria feito com que Fernão Mendes Pinto, então um rico mercador, abandonasse sua forma de vida e
entrasse na Companhia de Jesus.
Referências Bibliográficas:
BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português (1415-1825). São Paulo: Cia
das Letras, 2002.
____________________. A Igreja e a Expansão Ibérica. Lisboa: Edições 70, 1978.
CATZ, Rebecca. Cartas de Fernão Mendes Pinto e Outros Documentos. Lisboa:
Editorial Presença/Biblioteca Nacional, 1983.
COSTA, Célio Juvenal. Os Jesuítas no Brasil: servos do Papa e súditos do Rei. Revista
Diálogos, nº 2, vol. 10, Maringá, 2006, p. 37-63.
GUPTA, Pamila. “Signs of Wonder”: The Postmortem Travels of Francis Xavier in the
Indian Ocean World. In. MOORTHY, Shanti; JAMAL, Ashraf. Indian Ocean Studies.
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Francisco Xavier: de Soldado de Cristo à Mártir da Igreja