P E D R O AV E L A R HISTÓRIA DE GOA D E A FONSO DE A LBUQUERQUE A VASSALO E S ILVA ÍNDICE Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Um: Goa, Roma do Oriente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 1.1. A conquista de Goa por Afonso de Albuquerque . 1.2. A política de casamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.3. As populações locais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.4. A cabeça do Estado Português da Índia . . . . . . . . 1.5. A cristianização de Goa e o papel da Inquisição . 1.6. São Francisco Xavier, apóstolo das Índias . . . . . . 1.7. A colonização linguística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.8. Camões em Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 36 44 50 57 74 85 91 Dois: O domínio espanhol e os novos impérios europeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 2.1. Ascensão dos Holandeses e Ingleses nas grandes rotas comerciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 2.2. A viragem para Macau e Brasil . . . . . . . . . . . . . . . 126 Três: A decadência de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 3.1. Novas conquistas e ampliação do território de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2. As políticas pombalinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.3. Motins e conspirações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.4. Bocage em Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.5. A ocupação inglesa e a extinção da Inquisição . . . 141 148 156 162 170 Quatro: Do período liberal à Primeira República . . . . 175 4.1. A Igreja em conflito: entre o Vaticano e o Padroado de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 4.2. As epidemias e a passagem de Velha Goa para Pangim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 4.3. A arquitectura colonial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 Cinco: O Estado Novo e o conflito luso-indiano (1947-1961) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 5.1. Gilberto Freyre em Goa: o luso-tropicalismo . . . . 243 5.2. Crise nas relações entre o regime e o episcopado: deterioração das relações entre o Estado e a Igreja . 253 5.3. A invasão de Goa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283 Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 Sofala (1502) Moçambique (1502) Melinde Lamu Pemba Mombaça Zanzibar Quiloa (1502) Mogadíscio Oceano Índico Colombo (1510) Damão (1559) Mascate(1508) Diu (1536) Baçaim (1533) Bombaim (1530) Chaúl (1522) Goa (1510) Adém Mangalor (1565) Socotará Cananor (1502) Jafna (1519) Cochim (1502) Ormuz(1507) Pegu Sião Malaca (1511) Lampacau (1554) Macau (1557) Suchau (1547-1549) Liampó (1533-1545) Presença portuguesa no Índico, século XVI Goa, costa ocidental da Índia MAHARASHTRA Perném Perném Mapusa Bicholim Satari Bicholim Valpoi Pangim Velha Goa Pondá Mormugão Pondá Sanguém Margão Salcete Mar Arábico Sanguém Quepém Quepém Canaconá Canaconá KARNATAKA Bardez UM G OA , RO M A D O O R I E N T E Goa teve tanta importância no império colonial de Quinhentos, que a Coroa portuguesa chegou a imaginá-la como uma réplica de Lisboa. Se esta última era a capital do Império no Ocidente, Goa seria a capital do Império no Oriente. A arquitectura político-administrativa de Goa – um vice-rei, um Conselho de Estado, um Tribunal da Relação, um Conselho da Fazenda, uma Alfândega, uma Mesa da Consciência e Ordens – e a estrutura eclesiástica – que em 1557 ascendeu ao estatuto de arcebispado e em 1560 instituiu o Tribunal do Santo Ofício – eram semelhantes à da metrópole. Responsável directo por aquele centro administrativo, económico, militar, político e religioso, o vice-rei da Índia portuguesa era o representante do rei de Portugal naqueles territórios, estando por isso investido de poderes régios, como os poderes de punição, de deportação, de desterro e de expropriação. Eram tantos os poderes do vice-rei (e do bispo), que o reitor do Colégio dos Jesuítas, padre António Gomes, escreveu na altura: «cá o bispo hé papa e o governador rey». O cargo exercia tal atracção, que começou progressivamente 19 HISTÓRIA DE GOA a ser disputado pelos fidalgos das principais casas nobiliárquicas. A prosperidade que alcançou no século XVI, pela sua condição de entreposto do comércio para diferentes pontos da Ásia e da África Oriental, deu origem ao «mito da Goa Dourada». Mito porque o Estado Português da Índia seria rico mas apenas para os padrões europeus – o reino mogol, por exemplo, era muito mais abastado –; o mesmo em relação à cidade de Goa, que numa perspectiva europeia podia ser grande mas no contexto indiano não era mais que uma urbe de média dimensão (as três grandes cidades da Índia, por volta de 1600, eram Deli, Agra e Lahore, cada qual com cerca de meio milhão de habitantes; as cidades europeias eram muito mais pequenas: em 1600 Nápoles tinha 200 mil pessoas, Roma 110 mil, Londres 170 mil, Madrid 60 mil e Lisboa, mesmo em 1629, não passava das 110 mil). Fosse como fosse, durante o século XVI, Goa foi a mais importante colónia portuguesa, tanto em termos políticos, como em termos religiosos e comerciais. Daí ter recebido o distintivo epíteto de «Roma do Oriente». 1.1. A conquista de Goa por Afonso de Albuquerque Dez anos antes da conquista de Goa, já os Portugueses circulavam no Índico, porém, faziam-no sobretudo a bordo das naus ou nas feitorias. A ameaça muçulmana a isso obrigava. Daí que o controlo do território de Goa fosse vital para as aspirações lusas. Goa, pela sua situação geográfica, era um porto de abrigo com condições únicas de segurança para as frotas e constituía um centro de operações que facilitaria o 20 GOA, ROMA DO ORIENTE policiamento daquelas zonas costeiras. Afonso de Albuquerque parece tê-lo percebido melhor que ninguém. Albuquerque viajou pela primeira vez ao Oriente em 1503, com o objectivo de pôr os Portugueses a dominar o comércio da região – em particular das especiarias –, o que obrigava, desde logo, a controlar a navegação no Índico, nomeadamente através da conquista dos portos que serviam de correia de transmissão de todas as operações mercantis. Em Setembro de 1505, visando reforçar essa estratégia, D. Manuel I nomeou D. Francisco de Almeida vice-rei da Índia. As ordens eram muito claras: construir feitorias no litoral, o ponto de partida para se conseguir o monopólio do comércio marítimo. Dando sequência à política da realeza, Albuquerque estabeleceu fortalezas em Cochim, naquele que seria o primeiro assentamento europeu na Índia e o motor de arranque da expansão portuguesa no Oriente. Regressado a Portugal em Julho de 1504, Albuquerque foi gloriosamente recebido por D. Manuel. Aquela primeira missão na Índia causara tão boa impressão na corte lisboeta, que o rei não dispensou os seus conselhos na hora de traçar a futura estratégia para o Oriente, em particular esta: Portugal deveria manter uma frota naval, a título permanente, no Índico Ocidental. Só assim conseguiriam submeter o rei de Calecute. Não surpreende, por isso, ver Albuquerque, no início de 1506, a rumar novamente à Índia, tendo-lhe sido atribuída uma esquadra de cinco navios na armada de Tristão da Cunha, constituída por um total de 16 embarcações. O primeiro objectivo era conquistar Socotorá e edificar aí uma fortaleza, que passaria a controlar o comércio no mar Vermelho. O que poucos sabiam era que Albuquerque, entre os seus pertences, levava uma carta selada pelo rei designando-o, após o cumpri- 21 HISTÓRIA DE GOA mento dessa primeira missão, sucessor do vice-rei D. Francisco de Almeida. Após algumas escaramuças com os árabes da costa oriental africana, Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque chegaram a Socotorá em Agosto de 1507 e, tendo-a conquistado, iniciaram a construção de uma fortaleza. A partir dali, os destinos de ambos seguiriam caminhos diferentes. O primeiro foi directamente para a Índia, para dar apoio aos Portugueses sitiados em Cananor; o segundo avançou em direcção à ilha de Ormuz, no golfo Pérsico, com uma frota de seis naus, uma fusta e quinhentos homens (Ormuz era outro centro nevrálgico do comércio no Oriente). Quando foi avistado em Ormuz, a 26 de Setembro de 1507, Albuquerque levava consigo a reputação de adversário de respeito – pelo caminho conquistara várias cidades árabes, como Mascate, Curiate, Corfacão e Soar –, o que explica, em parte, que o rei local tivesse logo concordado submeter-se à autoridade do Terribil Português, também conhecido por Leão dos Mares ou César do Oriente. Sem perder tempo, Albuquerque ordenou a construção do Forte de Nossa Senhora da Vitória (posteriormente designado Forte de Nossa Senhora da Conceição), que teve início a 24 de Outubro de 1507, com a colocação da primeira pedra. Porém, em resultado do mau ambiente entre os oficiais portugueses, obrigados a participar nos trabalhos de construção debaixo de condições de subsistência duríssimas, vários capitães revoltaram-se e desertaram, levando consigo todos os mantimentos e quase todas as naus. Reduzido a dois míseros navios, em território hostil, cercado por forças inimigas que tinham aparecido em socorro do rei de Ormuz, Albuquerque teve de abandonar a cidade, em Abril de 1508, e dirigiu-se para Socotorá, onde foi recebido pela igualmente esfomeada e débil 22 GOA, ROMA DO ORIENTE guarnição portuguesa. Se queriam sobreviver, tinham de recorrer novamente à força e à violência: pilhar navios e cidades muçulmanas. Entretanto, acabara de chegar de Portugal a armada de Jorge de Aguiar com a ordem de o vice-rei passar o governo a Afonso de Albuquerque e regressar imediatamente ao reino. Albuquerque foi então para a Índia, onde chegou em Dezembro de 1508, a terras de Cananor, e onde estavam D. Francisco de Almeida e os capitães desertores. Assim que ali chegou, e na presença de D. Francisco de Almeida, Albuquerque mostrou o documento do rei designando-o a autoridade máxima na Índia. Almeida, que por portas travessas já tivera conhecimento daquela ordem, recusou-se a deixar o cargo, argumentando que o seu mandato só terminava em Janeiro de 1509. Além disso, queria vingar o seu filho, D. Lourenço de Almeida, morto na Batalha de Chaúl pelos árabes do almirante Mirocem. Era um imperativo de consciência, sem isso nunca mais teria paz. Em contrapartida, propôs a Albuquerque o pagamento pelo cargo de governador enquanto ele ia combater o Mirocem (no que seria a Batalha de Diu, ocorrida nesse ano de 1509). Não querendo enfrentar-se abertamente ao ainda vice-rei, Albuquerque aceitou e retirou-se para Cochim. Restava-lhe esperar. E suportar, por um lado, a animosidade dos oficiais da confiança do vice-rei, que tudo fizeram para o desinteressar do futuro cargo, e, por outro lado, os conselhos dos camaradas de armas, que o desafiavam a assumir o poder pela força. Porém, nada demoveu Albuquerque, que resistiu a todas as solicitações e emboscadas. Ali ficaria pacientemente a aguardar novidades. Estas surgiram em Agosto e pela voz do próprio Francisco de Almeida. Engrandecido pela vitória sobre 23 HISTÓRIA DE GOA os otomanos e os mamelucos egípcios, que perante a fúria de vingança do português se viram forçados a abandonar o Índico, e aconselhado pelos capitães e outros senhores da sua confiança – que inclusivamente forjaram algumas cartas dirigidas ao vice-rei ainda em funções e atribuídas ao Leão dos Mares –, Francisco de Almeida enviou Albuquerque para a Fortaleza de Santo Ângelo, em Cananor. A esta desconsideração se referiu Albuquerque com amargura numa das cartas que enviou a D. Manuel: Confiado em vossos poderes, vim à Índia, e com eles me atacam, e me puseram em prisão e torre de menagem, guardado e velado, e vilmente arrebatado de minha casa e levado! O objectivo era claro: isolar Albuquerque, mantê-lo afastado dos manejos do governo. Ali ficou desterrado até Outubro de 1509 – as casas onde habitara em Cochim tinham sido destruídas, como era comum fazer-se aos réus acusados de alta traição, e os seus bens confiscados –, mês em que chegou a Cananor o marechal do reino, D. Fernando Coutinho, que, além de ser o fidalgo mais importante do reino que pisava aquelas terras do Oriente, era seu familiar. Desembarcou com uma armada de 15 naus e três mil homens, enviados pelo rei para fazerem valer a ordem de entregar o governo a Afonso de Albuquerque e conquistarem Calecute. O vice-reinado de Almeida tinha os dias contados: a 4 de Novembro, superadas todas as intrigas, conspirações e invejas, Albuquerque recebia finalmente o singelo título de governador do Estado da Índia Portuguesa. A política que Albuquerque perspectivava para aquela região era bem diferente, se não oposta, à que Francisco de Almeida 24 GOA, ROMA DO ORIENTE levara a cabo. Se a obsessão deste era o domínio marítimo, Albuquerque concentrar-se-ia na edificação de uma série de fortalezas em pontos estratégicos da costa, pois só assim seria possível expulsar os mouros, controlar o comércio do Índico e fundar um império português no Oriente. O primeiro passo, segundo as ordens vindas de Lisboa, era a tomada de Calecute. Chegados ali, gulosos com a perspectiva do saque, os oficiais liderados por D. Fernando Coutinho entraram imprudentemente na cidade e sofreram uma emboscada. Obrigado a intervir para os salvar, Albuquerque foi ferido e teve de recuar. Após o desastre de Calecute, instalado novamente em Cochim, Albuquerque tratou de reforçar a sua armada para empreender nova batalha contra os infiéis. Reunidos 23 navios e 1200 homens, dirigiu-se para a costa do Malabar, possivelmente para reconquistar Ormuz ou derrotar os mamelucos egípcios do mar Vermelho. Porém, quando já estava na barra de Onor, alguns informadores locais inimigos dos maometanos – parece que um de nome Timoja, chefe hindu de Canará – comunicaram-lhe que a frota dos mamelucos estava em Goa, em cujos estaleiros tentava reorganizar-se com o objectivo de perseguir os Portugueses e acabar com os seus dias. Havia assim que eliminar, quanto antes, aquela ameaça. Caso saíssem vitoriosos, herdariam uma cidade próspera e com um enorme valor estratégico, já que por ali tinha de passar obrigatoriamente o comércio do Índico Ocidental e do golfo Pérsico, bem como todos os mercadores que se dirigiam para a entrada do mar Vermelho. A seu favor, o ódio dos indígenas ao governo tirânico e cruel dos maometanos e as disputas políticas entre os chefes do exército (tratava-se de um terri- 25 HISTÓRIA DE GOA tório dividido em várias soberanias, controladas sobretudo por príncipes muçulmanos). Para Goa, pois, e em força! Em Fevereiro de 1510, sem que ninguém estivesse à espera, Albuquerque apareceu no porto de Goa com a sua frota. A primeira investida ficou a cargo de D. António de Noronha, seu sobrinho, que atacou e tomou, quase sem resistência do inimigo, a fortaleza de Pangim, situada à entrada da barra (mais tarde Palácio do Governo), abrindo assim caminho à entrada dos Portugueses. Com o sultão ausente, em guerra no Decão, a rendição foi instantânea: os mouros mais importantes ajoelharam-se e ofereceram a Albuquerque as chaves da fortaleza. Montados a cavalo, bandeira portuguesa ao alto e uma grande cruz transportada pelos dominicanos, Albuquerque e os seus entraram na cidade ao som das músicas das trombetas e dos tambores. Vitoriado pela multidão, que o ia cobrindo de flores, o novo senhor de Goa cruzou as muralhas da cidade e dirigiu-se ao palácio do xá Adil. Seguiram-se depois Salcete e Bardez, que também se deixaram subjugar pacificamente. Uma vez em Goa, depois de analisada a posição do seu porto, que estava situado num vasto estuário, ainda mais convencido ficou Albuquerque da relevância estratégica daquela cidade, tanto ao nível do comércio marítimo como do comércio com o interior do subcontinente indiano. Rodeada por rios e encravada no extremo sul da costa do Concão, num espaço de 3611 quilómetros quadrados, a ilha, além de fácil defesa, servia de porto de abrigo para os navios na época das terríveis monções e constituía uma posição-chave em todo o raio de acção do comércio do Índico Ocidental, nomeadamente entre Kerala e o Guzarate. O que permitiria aos Portu- 26 GOA, ROMA DO ORIENTE gueses controlarem todo o Noroeste do mar Arábico e, recorrendo às frotas sediadas em Goa, dominarem toda a área económica entre o Malabar e o Guzarate. O sítio ideal para lançar as bases do futuro sistema imperial português. Na verdade, apesar do despotismo muçulmano, o Estado de Goa era próspero e opulento, gozava do estatuto de grande empório comercial exercendo um grande poder de atracção sobre indivíduos provenientes de todos os pontos do vastíssimo mundo do oceano Índico. Enquanto ali se instalavam, os Portugueses depararam com o espectáculo de uma sociedade organizada, estabelecida numa cidade bem construída, com edifícios, praças e jardins de arquitectura notável, como o palácio do xá Yusuf Adil Khan (Hidalcão), reputado pelos espaçosos e cómodos salões, pela arte da madeira lavrada e pela magnífica colecção de plantas aromáticas. Além disso, a pujança comercial, bem visível nos bazares, onde se negociava arroz, açúcar, ferro, pimenta, gengibre e outras especiarias, na actividade das ourivesarias, as mais prestigiadas em toda a Índia, nos registos dos estabelecimentos aduaneiros, que geravam enormes receitas, nos haréns de odaliscas e no florescente comércio de cavalos importados de Ormuz, cobiçados por todas as forças de cavalaria e infantaria. Percebe-se assim que Goa, antes da chegada dos Portugueses, tivesse sido cobiçada por muitos povos e por diferentes dinastias de reis e imperadores que a invadiram com os seus exércitos. Imediatamente Albuquerque reconstruiu a fortaleza e mandou cunhar moedas de prata e de cobre, numa das faces com a cruz de Cristo e na outra com a esfera armilar de D. Manuel. Três meses depois, estava ainda Albuquerque a traçar a nova organização de Goa e o novo governo das terras e dos habi- 27 HISTÓRIA DE GOA tantes, o sultão Yusuf Adil Khan reuniu os seus milhares de guerreiros e cercou a cidade. Queria a desforra. Estava-se no mês de Maio de 1510, início do Inverno naquela região (que decorre entre Junho e Setembro e cujas chuvas das monções inundam os territórios). O contra-ataque foi devastador, não só porque as obras de fortificação da cidade estavam ainda a meio, mas também devido à falta de solidariedade dos capitães portugueses, divididos em discórdias e lutas de interesses, considerando uma loucura permanecer em Goa à espera dos reforços que deveriam chegar de Cochim. Resultado: Albuquerque ofereceu fraca resistência e a 23 de Maio, depois de rejeitarem a paz que o Hidalcão lhes oferecera, os Portugueses foram avistados a abandonar a cidade recém-conquistada de Goa e a refugiar-se na sua frota, fundeada no rio Mandovi. Aí permaneceram ancorados durante o Inverno, dispondo de poucos mantimentos e passando as maiores privações (a miséria era tal, que até ratos e couro tiveram de comer). No limite das suas forças, os Portugueses aproveitaram uma melhoria das condições meteorológicas e a 15 de Agosto partiram primeiro para a ilha de Angediva – durante a viagem receberam o reforço de 10 navios enviados de Portugal e depois a notícia de que o príncipe árabe tivera de ausentar-se novamente de Goa – e depois para Cananor, para aí reorganizarem as forças e prepararem a estratégia da reconquista. De repente, Goa tornara-se o objectivo mais importante dos Portugueses, talvez porque a encarassem já como a futura cabeça do império luso no Oriente. O entusiasmo de Albuquerque era notório quando escreveu ao rei D. Manuel, a 17 de Outubro de 1510. Descrevia Goa como uma «Ilha cercada de água, de muita renda e muito proveitosa; barra de muita água, porto morto de todos os ventos, ilha de muitos 28 GOA, ROMA DO ORIENTE mantimentos e muita criação, veados tantos que é uma coisa de espanto». E continuava: Senhor, as coisas de Goa são tão grandes, que tocam tanto à segurança da Índia e a tudo o que nos compre e desejais, assim para gastos, despesas oficiais, madeira, ferro, salitre, linho, arrozes, mercadorias, roupas de algodão, que me parece que sem ela não poderei suster a Índia, porque os calafates e carpinteiros com mulheres de cá e trabalho em terra quente como passa um ano não são mais homens, e com Goa pode Vossa Alteza escusar os desses Reinos, porque há mais e melhores que os que cá andam… Reunida uma armada de 28 navios tripulados por 1700 homens, mais as tropas de Timoja (soberano do território de Onor, aliado dos Portugueses e inimigo dos Maometanos) e do rajá de Garsopa (o eixo de um dos Estados do rei de Bisnagar e relativamente próxima de Onor), partiram os Portugueses para nova batalha. A meio caminho, Albuquerque ordenou escala na ilha de Angediva, para reunir os capitães e fidalgos e consciencializá-los da importância da reconquista da cidade de Goa. Por fim, a 24 de Novembro, a frota entrou no porto de Goa e fundeou no vale de Banguinim. No dia seguinte – segunda-feira, dia de Santa Catarina de Alexandria, que por isso foi nomeada padroeira de Goa –, deu-se o ataque. Após violento combate, enquanto alguns Portugueses subiam às muralhas e sobre elas desfraldavam a bandeira das quinas, outros forçavam a entrada nas portas da cidade. Quanto a Albuquerque, estava posicionado com as suas forças num monte vizinho, a partir de onde dirigia a contenda. Pela segunda vez, a vitória era dos Portugueses, para o que muito contribuiu quer a aliança com Timoja, quer a desor- 29 HISTÓRIA DE GOA ganização do inimigo, dividido internamente pelas lutas de sucessão ao trono de Hidalcão, Yusuf Adil Khan, ou «Rei de Goa», que morrera pouco antes. No momento do assalto, quem ocupava o trono era o seu filho mais novo, xá Ismail Adil, inexperiente nas coisas da guerra. A batalha foi especialmente sangrenta para os mouros, que sofreram grande mortandade, cerca de dois mil homens (de um exército de quatro mil soldados). Do lado português os registos apontam para 40 mortes e cerca de 150 feridos. Assegurado o triunfo, Albuquerque desceu do seu posto e entrou na cidade, com a bandeira real a acompanhá-lo. Preparava-se para tomar posse de Goa, que passava assim a ser governada por cristãos europeus e pouco depois se converteria no centro regional de um império marítimo. Para afirmar o seu poder e como exibição de força bruta, Albuquerque quis ser exemplar nas primeiras medidas, ordenando a matança cruel de todos os muçulmanos acusados de refractários ou considerados factores de perturbação da ordem pública. Dando rédea livre à sua sede de vingança, os Portugueses saquearam a seu bel-prazer e assassinaram mais de seis mil seres humanos, entre homens, mulheres (algumas delas grávidas) e crianças de ambos os sexos, e destruíram e arruinaram muitas famílias. Muitos muçulmanos foram queimados vivos nas mesquitas ou lançados aos crocodilos – também chamados, na época, «lagartos de água» – e outros tantos foram massacrados sem dó nem piedade enquanto tentavam escapar. Nos anos seguintes, os maometanos ainda fizeram algumas investidas com o intuito de recuperar Goa, porém, nunca foram bem-sucedidos. A área conquistada por Albuquerque em 1510, designada simplesmente como «Ilhas», tinha 166 quilómetros 30