ras de duas águas, bem como pelas janelas e portas de
carepas com provável influência de Goa, tal como a
mobília e a própria tipologia.
O pequeno território da praganá de Nagar-Havelly,
junto a Damão, rico em florestas de teca, sua principal
riqueza, integra um pequeno conjunto de aldeias
maioritariamente hindus e ainda algumas famílias
católicas. As casas resguardam-se do calor sob a som­
bra de frondosas e protetoras árvores. Na aldeia de
Nardi, a caminho de Silvassa, ainda predominam as
casas de armação vegetal preenchida com terra e arga­
massa, por vezes integrando bosta e/ou palha. Algu­
mas apresentam forte cor alaranjada, acentuando a sua
presença entre o verde do arvoredo.
Nalguns casos, o alpendre protetor do calor e da
chuva é integralmente construído, talvez numa evo­
lução tipológica recente, ficando apenas a porta cen­
tral para acesso. De um modo geral, as coberturas são
cerâmicas de duas águas, e as zonas superiores das
empenas mantêm só a estrutura de madeira para ven­
tilar, mas protegidas com alas. A organização espacial
mantêm-se idêntica às outras aldeias de Damão.
(VM)
Diu (íNDIA)
ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E URBANISMO
Em 3 de fevereiro de 1509 travou-se na barra de Diu,
em plena costa do reino ou sultanato do Gujarate - ou
de Cambaia, como os portugueses o designavam a mais importante batalha naval na história da pre­
sença portuguesa no Oriente, pois abriu-lhes o domí­
nio do Índico durante tempo suficiente para estabele­
cerem o que veio a ser o Estado da Índia. Comandados
pelo vice-rei Francisco de Almeida, os portugueses
destruíram uma frota comandada por Mir Hussein
(Hussein Al Kurdi) e composta por forças do sultanato
mameiueo do Cairo e Alexandria, mercenários rumes
e efetivos do samorim de Calecute e do sultão de Guja­
rate, estes armados por Meliqueaz (Malik Aiyaz),
antigo escravo tártaro que era o governante de Diu e,
assim, vassalo daquele sultão. A coligação inimiga, que
há pouco mais de um ano patrulhava o Índico de forma
a contrariar os propósitos portugueses e assim prote­
ger os interesses mercantis muçulmanos, contava
ainda com o apoio das repúblicas (católicas) adriáti­
cas de Veneza e Ragusa.
Paradoxalmente, pelo menos para a historiografia
tradicional, esse marco estratégico na história da pre­
sença portuguesa no Oriente tem sido essencialmente
assumido como resultado de uma mera vingança pes­
soal do comandante português pela morte do seu filho,
Lourenço de Almeida, um ano antes, no encontro naval
entre as mesmas armadas frente a Chaul, cujo resul­
tado foi desastroso para os portugueses, asserção essa
que é suportada por factos e fontes credíveis. Na reali­
dade foi o seu último ato digno de nota enquanto vice­
-rei, aliás produzido em desobediência, pois já rece­
bera ordens expressas do rei para entregar o governo
a Afonso de Albuquerque. Foi, porém, uma ação coe­
rente com a estratégia que definira, de mero domínio
dos mares e combate às redes mercantis estrangeiras,
visando substituí-las sem desígnios de soberania sobre
os governos autóctones. Os feitos imediatos de Afonso
de Albuquerque em Goa (1510) e Malaca (1511) não
teriam sido possíveis sem a destruição desta primeira
frota de coligação muçulmana, com um mal disfarçado
apoio das repúblicas mercantis do Adriático.
No estabelecimento e estruturação de uma rede de
portos no índico os oponentes eram, de facto, os
muçulmanos e Diu era nisso um porto chave. Situada
no extremo da Península de Katiavar, na confluência
de territórios e de culturas diversas, era central em
relação aos fluxos comerciais entre o Golfo Pérsico, o
Mar Vermelho e todo o Hindustão, com especial des­
taque para a sua posição como ponto de acesso aos
BIBLIOGRAFIA: Brito, R. S., Goa e as praças do Norte, Lisboa, 1966.
Dahanu [Danu] (íNDIA)
ARQUITETURA MILITAR
>
FORTE
O pequeno porto de Danu localiza-se na margem
norte da barra do rio com o mesmo nome, cerca de cin­
quenta quilómetros a sul de Damão. A praganá de
Danú, ocupada em 1559 pelos portugueses, era uma
das subdivisões do distrito de Damão. A principal fun­
ção da posição costeira era defender as terras envol­
ventes dos ataques predatórios de piratas. Como tal,
cerca de 1635 resumia-se a uma casa fortificada, pro­
tegida por uma pequena muralha, e ainda um baluarte
saliente com algumas peças de artilharia. Para além da
estrutura defensiva, estava próxima à Igreja de Nossa
Senhora das Angústias, para assistência à pequena
comunidade de cristãos residentes na povoação.
Durante os vários conflitos com os maratas entre 1683
e 1739, existem escassas referências a Danu. Durante
o período marata, a estrutura foi· remodelada e assim
a encontraram os ingleses em 1817. Dessa fase resulta
o essencial da estrutura atual, usada para quartel de
forças da polícia: um perímetro retangular defendido
por quatro redutos nos seus cantos, com várias depen­
dências e um poço no seu interior. (SM)
112
.
P ATR IMÓN IO DE ORIGEM P OR TUGUES A N O M U N D O: A RQU ITETU R A
E
URBA NISMO
Forte (Baluarte
Cavaleiro e a
cidade vistos
da primeira linha
de mura"as)
foto: Nur.c:. Grancho
ricos portos do Golfo de Cambaia. Era ainda impor­
tante a sua fácil articulação náutica com a costa orien­
tai africana. Excelentes condições natl.ffais coroavam
a sua posição geográfica. Com efeito, Diu sendo uma
ilha separada do território continental gujarati por um
canal apenas navegável na entrada oriental, determi­
nou que a urbe e sistema fortificado se desenvolves­
sem nesse extremo da ilha, aliás de forma afilada e algo
alcantilada. Diu significa "luz':
Apesar da estrondosa vitórial o domínio sobre o
local não foi imediato. Os ensaios de conquista de
Afonso de Albuquerque, em 1513, e de Diogo Lopes de
Sequeira, em 1521, falharam. Pelo meio ficou a autori­
zação, obtida por Albuquerque em 1514, para a insta­
lação de uma feitorial que funcionou com enorme ren­
dimento precisamente até àquela última tentativa.
O controlo do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho tardava
e uma instalação mais sólida no litoral hindustânico
de soberania muçulmanafoi gradual e apenas assumi­
damente pretendida com a governação territoriali­
zante de Nuno da Cunha (1529-1538). Favoreceu-o a
pressão exercida pelo Império Mogol sobre o Gujarate,
que permitiu a ocupação dos territórios de Baçaim em
dezembro de 1534 e, em setembro seguintel a autori­
zação para uma instalação efetiva em Diu, especifica­
mente através da célere conformação de uma fortaleza
no extremo nascente da ilha. O sultão gujarati, Baha­
dUl� sofrera uma pesada derrota e refugiara-se com a
sua corte em Diu, solicitando aos portugueses apoio
para a defesa, pois o ataque mogol era iminente. Tal
como em Baçaim, o comando operacional foi de Mar­
tim Afonso de Sousa.
Por estas razões, os estatutos de cedência de Baçaim
e de Diu são muito diversos, e deram origem a situa­
ções urbanas necessariamente muito diferentes.
Do ponto de vista político-administrativo, Diu surgiu
como uma espécie de protetorado português de uma
pequena porção do sultanato gujarati, que acabaria por
ir integrando toda a ilha, a sua população el ainda, uma
Ínfima porção do território mais próximo no conti­
nente. O resultado imediato foi uma partilha de poder
entre o rei local, que se manteve soberano sobre o ter­
ritório continental e o Estado da 1ndia, que almejava
tutelar a soberania dos mares e o comércio nas portas
do Golfo de Cambaia. Ao invés de outras instalações
como Baçaim ou Goa, à instalação em Diu nunca
esteve subjacente qualquer desígnio de controlo e
expansão territorial, de senhorialização e rendimento
fundiário. A instalação era de controlo militar, marí­
timo e comercial, no que aliás cedo fraquejou, pois os
portugueses nunca lograram controlar o Golfo de
Cambaia - nem mesmo com a ocupação de Damão em
1559 e os muçulmanos desenvolveram alternativas.
Sob o domínio portuguêsl Diu exportava essencial­
mente a produção próprial pois do continente pouco
ali passou a afluir.
Porém, o entendimento do sultão sobre o negócio
que fizera era bastante diferente do dos portugueses e
I
-
PRovINClA DO
NORTE
I NORTE DA INDIA' DAMÃO " DIU · 1 13
Diu
I. Foruleude
São Tomo!
2. en. do Capitic
,�
3. Poru. e Caos
�. Ba.1u�rte de
SãoJ�(ou do:
São M:trtinho)
5. Baluarte de
Santo. Tere»
6. Baluarte de
Santo.lu�;a
7. Couraça Grand�
ou Balu3J"\e
da Barrn
e. Ba.lume Chato
9, Baluarte de
São TIago
IO,BaJuartede
São FHipe
II.Ba!uarte
CavJIero
(iOJeialmeme
de São Tomo!)
12.Ba.luartede
São Nicolau
IJ.B.aluartede
Menagem
(inicialmente
de São TIago)
1�.Baluanede
5.10 Domingo<
ou
da Madre
",O."
15.Poru. do
primeiro fone
portugutl:s
16,Muralha urbana,
cerca da cid.de
17.PortadoCampc
e Pra�a do
No..., Bazar
IS.Balu.rtc dos
Excomungados
19.Baluartedo Mar
20,Sitiodaprimt"..a
M.""
2I.Capl':Ia de
�o Martinho
e (adjacente)
sitiod.'8�
da MtSencórdi."l
n.Capebde
São TIago
23.�MauU
(�gi igrejadu
OnzeM�V�
e colégio jesuita)
H.lgf"elJ de
São Tomé
25,Recolhimento
de Santana
26,Sido do
con...em o dos
Dominicanos
27.lgreia e Convem,
de S�o Francisco
(actual hospital)
28.Sftio do Hospital
Real e ConventO
de SãoJ050
de Deus
29,s.ítio da g
I rej ade
Nossa Senhon
d<J bperaoça
30,Mesqu,(3
31.Tribu",,1
32.F'3lkiodo
"'"''''''''
33.l'1erndoe
--
3�,Sitioda MItIga
aIf.indeg�
35.Cais. arsenal.
gumdasle
36.Escola Régia
de Guren.te
37.Esc�a Feminina
Pani Bal
3S.Escola Poni Ba.i
39.Sitlo da cisterna
do Rei
<IO.Edifício de
Habju�ão
Colccdva
Momeplo
uma vez afastada, no imediato, a ameaça mogol e for­
mada a fortaleza, tentou livrar-se dos portugueses, o
que lhe valeu a morte em fevereiro de 1537, ou melhor,
o assassinato, pois tratou-se de um acidente simulado.
Mas de novo se formava uma armada turca e mame­
luca a partir do Cairo e ao longo do Suez para dar com­
bate aos portugueses, sendo Diu o objeto concreto e
imediato de ataque. Mais uma vez, estavam coordena­
dos com a resistência local gujarati. Os portugueses
reforçaram o dispositivo defensivo, preparando-se
para um cerco. Coube a António da Silveira comandar
a defesa do cerco, instalado em agosto de 1538. Os guja­
ratis ocuparam então a cidade, obrigando os portugue­
ses a confinar-se à fortaleza. A esquadra turca desem­
barcou um mês depois. Tudo parecia perdido, mas a
estrutura defensiva aguentou e em 5 de novembro os
turcos levantaram ferro e os gujaratis o cerco.
Em 1546 a história repetiu-se, sendo que desta vez o
ataque apanhou de surpresa as duas centenas de por­
tugueses colocados em Diu. O infernal cerco durou de
21 de abril a 11 de novembro, atravessando!oda a mon­
ção, o que impedia o socorro português, que necessa­
riamente tinha de chegar por mar. Os sitiantes conta­
ram com a colaboração de mercenários italianos,
designadamente engenheiros militares, e lograram rom­
per a cortina defensiva, dando azo a combates corpo a
corpo. De facto, mais uma vez tudo pareceu perdido,
"
mas finda a monção a chegada do vice-rei João de Castro com reforços resolveu o cerco numa semana. Ambas
as vitórias foram amplamente celebradas e deram ori­
gem a um gradual aumento de soberania portuguesa
sobre a ilha. Por exemplo, em 1554 passaram a arreca­
dar todas as receitas da alfândega, em vez do terço ql!\":.!
haviam negociado anteriormente. Claro que a oportu­
nidade foi determinada por mais um facto local que
gerou uma grande convulsão no Gujarate: a morte do
sultão Mahmud III. De 1570 a 1574 os portugueses inter­
vieram na muralha urbana, o que significa a assunção
do controlo global da cidade, então e sempre de uma
forma razoavelmente cordata, respeitando princípios de
identidade e liberdade religiosa de uma forma sem para­
lelo em qualquer outra posição no Hindustão.
Em tudo o que acima se tem vindo a relatar está não
apenas evidente a relevância que os muçulmanos atri­
buíam ao local, mas também subjacente o papel deter­
minante da fortaleza na sua defesa, sendo que a sua
conformação foi dinâmica, evolutiva. Depois do cerco
de 1546 seria submetida a uma reforma radical, pela
introdução de uma nova cava e de baluartes de ore­
lhões, o que, com pequenas aJterações,lhe daria a C011figuração que ainda hoje exibe, resistindo à ruína. De
tudo isso, bem como do seu interior, daremos melhor
conta na entrada seguinte. Vejamos entretanto algo
1 16
.
sobre a cidade em si, sendo que é desde logo imperioso
assinalar o carácter verdadeiramente excepcional e
único, no âmbito do património europeu na Asia, da
fortaleza e da igreja jesuíta, o que é tratado em entra­
das específicas.
Diu é uma ilhafusiforme, com cerca de quinze qui­
lómetros no seu eixo maior (este-oeste) e um máximo
de cinco na respectiva meridiana. A ponta continental
do outro lado do canal e da ponte é Gogolá, aldeia sobre
uma restinga de areia com cerca de dois quilómetros
quadrados, que sempre esteve integrada nos domínios
da ilha. Quando os portugueses ali se instalaram exis­
tiam duas pontes que faziam a ligação, mas que o vice­
-rei João de Castro, apesar de as elogiar efusivamente,
mandou destruir para isolar a ilha, aumentando a sua
segurança. Como já acima se disse, a cidade localiza*se
no extremo oriental da ilha e é cingida por uma cintura
de muralhas anteriores à presença portuguesa, que a
envolviam pela frente do canal e terra até ao século XIX.
Da banda do mar, apenas uma enseada necessitou de
fortificação, uma vez que a costa é abrupta, imprópria
para qualquer tipo de desembarque.
Os portugueses introduziram algumas alterações e
reforços na muralha gujarati, designadamente em
1574, mas o essencial manteve-se. Hoje, desse períme­
tro geral conserva-se apenas a cortina que atalha a
cidade do resto da ilha. A área muralhada é considerá­
vel, o que faz com que a maior parte não esteja nem
nunca tenha sido ocupada. Por outro lado, confirma o
facto de o núcleo urbano ser anterior ao seu amuralha­
menta. O território delimitado é acidentado, marcado
por alguns morros e barrancos, descendo mais suave­
mente junto à frente para O canal.
A cidade gujaratí - uma medina - desenvolve-se
densa e literalmente contra a muralha, centrada na
Porta do Campo, com distensão para a frente portuá­
ria, hoje em termos de movimento uma sombra de
outros tempos. Na sua estrutura geral não apresenta
de forma sistemática a morfologia habitual das cida­
des islâmicas, com adarves e impasses, mas uma
trama viária que, apesar de muíto irregular, flui orga­
nicamente por entre bairros onde aquela estrutura,
de facto, internamente se verifica. Para além da rele­
vante mistura hindu, parece assim óbvia uma inter­
venção da administração portuguesa, que ao longo
dos séculos terá impossibilitado um emaranhado viá­
rio a que, cultural e militarmente, era avessa, man­
tendo circuláveis artérias de atravessamento da
medina islâmica. O mesmo sucedia desde a Recon­
quista cristã na Península Ibérica nos séculos XII a XIII,
sempre que se ocupava uma cidade islamizada, indo*
-se aí bem mais longe nesse processo de reestrutura­
ção morfológica.
PAT RIMÓ NIO DE ORIG E M PORTUGU E S A NO MUND O: ARQU ITETU R A E U RBAN IS M O
Contudo, e apesar da profunda decadência de Diu
em relação ao seu passado, ainda hoje se presencia o
carácter artesanal e comercial em souk das principais
ruas da apertada malha urbana gujarati de Diu,
mantendo-se na toponímia e na atividade da zona com
mais comércio a presença dos baneanes, a numerosa
etnia dos comerciantes que mantêm a ligação de sem­
pre à costa oriental (suaili) africana. A verdade é que a
própria arquitetura autóctone, pela extroversão e exu­
berância volumétrica e decorativa, também trai o espí­
rito próprio das cidades islâmicas, o que constitui uma
variante regional, que nada tem de português, e tem
de ser levada em conta na contabilização da especifi­
cidade urbanística de Diu. Assinale-se ainda o facto de
a toponímia antiga denunciar o arruamento por tipos
de atividade.
No extremo leste da ilha localiza-se a fortaleza feita
pelo conhecido processo de atalho, ou seja, a constru­
ção de uma muralha que seccionou parte da cidade, a
qual passou a ser reservada como últimoreduto defen­
sivo. Foi dentro dela que desde logo se desenvolveu,
com maior identidade, intensidade e densidade, um
núcleo português. Mas a sua área de cerca de quatro
hectares, incluindo os maciços, cava interior e equipa­
mentos civis, religiosos e militares que ocupam três
quartas partes, jamais terá permitido o desenvolvi­
mento pleno de uma situação urbana, ideia instalada
pela absolutamente equívoca, mas deliciota, represen­
tação iconográfica inserida nas Lendas da India . . de
Gaspar Correia, matéria a que voltaremos na entrada
seguinte. O que hoje verificamos no local e o que surge
representado na demais cartografia e iconografia inclusive a algo anterior "Tavoa de Dio" (1539) inserta
no RoteirodeGoa aDiu de João de Castro - são a melhor
prova desta asserção. A "Tavoa" mostra-nos a cidade
gujarati correspondendo estrutural e proporcional­
.
mente ao que ela é, com a mesquita no local da atual,
bem como a muralha de terra, o porto e os estaleiros,
enfim a ribeira. Até o Baluarte do Mar está bem mais
próximo do que hoje é.
Contudo, dentro da fortaleza existiram inicial­
mente "muitas cazas [ ... ], muy nobres e fermozas, de
dous ou três sobrados, onde antiguamente moravão
muitos cazados portuguezes com suas famílias, os
quaes, pella ma vezinhança que lhe fazião os capitães
da fortaleza com seus criados e parentes, largarão as
dHas cazas e se paçarão a viver fora, deixando-as cair
e chegar aquele estado:' É o que relata António Bocarro,
a par com o também muito equívoco desenho de Pedro
Barreto Resende de 1635. Nunca terão ido a Diu, até
porque continuamos sem perceber como ali caberiam
essas "muitas" casas, com os respectivos arruamentos,
num escasso hectare. Mas temos a certeza, até porque
ainda há vestígios e cartografia fiável, que para além
da Igreja da Misericórdia (1542) e do respectivo hospi­
tal, ali estiveram a Igreja Matriz de São Tomé (1536), as
capelas de São Martinho (1546) e de São Tiago (1623),
a feitoria e o Paço do Capitão, este junto e controlando
a entrada aberta a um cais sobre o canal, com o Balu­
arte do Mar - localmente designado por Panikotha em frente. Todas essas estruturas ruíram ou arruinaram­
-se irremediavelmente, em especial ao longo do século
XIX, quando a urbanidade portuguesa se virou defini­
tivamente para a frente do canal entre a fortaleza e a
ribeira da cidade.
Um pouco recuado, ainda em Quinhentos, erguera­
-se o Hospital dos Pobres, equipamento assistencial de
pendor mais solidário que clínico, que alguma icono­
grafia coeva representa e do qual se conserva uma
lápide. Entretanto, os equipamentos religiosos católi­
cos foram surgindo de forma esparsa, mas formando
um arco com centro na fortaleza, delimitando a cidade
preexistente. Disso dá boa conta a fotografia de satélite
anexa, a cartografia antiga e as entradas seguintes que
lhes são específicas. Com eles, bastante casario para
portugueses e cristãos da terra, entretanto destruídos.
Como todos os equipamentos, as igrejas marcam a
paisagem urbana de Diu pela sua escala e expressão,
mas também pelo relativo isolamento em que se
encontram, num território urbanisticamente deserto
de uma cidade portuguesa, que se chegou a lançar
entre a nativa e a fortaleza, mas acabou por não resul­
tar. Não terá sido apenas pela falta de gente, mas essen­
cialmente por necessidades defensivas posteriores,
uma vez que temos notícias do arrasamento desse
tecido urbano. Segundo o relatório de António Bocarro
e Pedro Barreto Resende, no ano anterior e por ordem
direta do vice-rei, após relatório, já publicado por
Pedro Dias, dos três inspetores ali enviados para deter­
minar de que obras carecia a fortaleza - e a que Bocarro,
pelos dados meticulosos sobre a fortificação, inegavel­
mente recorreu - foram demolidas cento e trinta e sete
casas "muy nobres e grandes" existentes junto à forta­
leza, por forma a se garantir campo aberto à sua defesa
em caso de ataque. Já na ocasião se procedia ao des­
monte de um outeiro situado entre o Baluarte de São
Domingos ou da Madre de Deus e o convento domini­
cano daquela invocação, do qual a Planta daJortaleza
e cidade de Diu, levantada por João António Sarmento
em 1783 ]Biblioteca Pública e Municipal do Porto,
C. M.&A., Pasta 24(35)1 tem delimitado o perímetro.
Não se baixava a guarda, nem se poupavam esforços.
Apenas os conventos - franciscanos, jesuítas, domi­
nicanos, hospitalários - e as igrejas de Nossa Senhora
da Esperança e a paroquial de SãoTomé resistiram, ape­
sar de haver documentos em que, ao longo dos anos,
PRovfNCIA DO NORTE I NORTE DA fNDIA •
DIU ·
1 17
se dá conta dessa necessidade para todos eles, com
compreensível exceção para a paroquial, um pouco
maisdistante, mas alcandorada sobre um outro outeiro.
Na sua Década XIII, António Bocarra relata que Antó­
nio Pinto da Fonseca, o primeiro provedor-geral das for­
tificações da Índia, em meados da década de 1610 ten­
tou impedir a continuação das obras da casa jesuíta, o
que lhe valeu uma oposição feroz. Já os inspetores que
em 1634 ali estiveram não foram da mesma opinião,
considerando apenas como padrastos à fortaleza as
referidas casas e o outeiro.
De facto, as ordens contavam não apenas com o
peso que tinham junto das autoridades, mas essencial­
mente com o argumento de se terem implantado, como
era habitual, algo distanciadas da fortaleza - entre
quatrocentos e seiscentos metros - balizando o cresci­
mento da cidade portuguesa em formação e a sua fron­
teira com o núcleo urbano pré-existente. Assim se
explica o vazio urbano que persiste entre esses edifí­
cios, incluindo os que já desapareceram, e a fortaleza.
Num posto onde a presença portuguesa dependia da
segurança militar, era imperativa a esplanada sem
padrastos, requerida por toda a tratadística e prática
da engenharia militar moderna.
Coma decadência comercial e, assim, urbana, a nm­
ção defensiva adquiriu ainda mais relevância. Demoli­
das numa idade de decadência económica e gradual
despovoamento do posto, aquelas casas não seriam �
substituídas no imediato por um novo bairro noutra
posição. Alguns partiram, outros ocuparam casas dei­
xadas vagas por muçulmanos na medina. Atendendo
aos dados demográficos fornecidos por diversas fontes,
aquelas cento e trinta e sete casas (Bocarra refere cento
e trinta e cinco) estariam perto do pleno das residências
de portugueses e cristãos da terra, ou seja, com os con­
juntos religiosos eram a cidade portuguesa.
Com efeito, todo o século XVII foi de grandes dificul­
dades paraDiu, com secas, inundações, epidemias, guer­
ras, pirataria, etc., ao que António Bocarro acrescenta a
tirania dos capitães da praça, que asfixiavam as ativida­
des económicas com taxas e muita corrupção. Segundo
ele, fora da fortaleza já só então (1635) viviam cinquenta
e nove portugueses. Pelo final daquele século, apenas
viviam em Diu cerca de cento e setenta portugueses
(incluindo a guarnição) entre uma população de cerca
de 5.500 pessoas. Número que se manteve até meados
do século xx, com uma crescente diminuiç�o dos por­
tugueses até que foram forçados a partir em 1961.
Entre outros testemunhos, o acima referido levan­
tamento de 1783 dá-nos um excelente retrato de toda
essa singular situação urbanística, sendo nele mar­
cante a linha amarela que atravessa o conjunto urbano
do canal ao mar e, segundo a respectiva legenda,
I
18
.
PATRIMÓNIO
D E ORIG EM
PORTUGUESA NO MUNDO:
ARQU ITETURA E
"divide os christoens dos gentillos': É a confirmação de
uma separação que não é étnica, mas confessional, já
referida noutras textos deste volume. Mas também
confirma a existência, então apenas em mente, de uma
cidade portuguesa/cristã que entretanto fora demo­
lida, pois do lado cristão da linha é ralo o casario que
acompanha os já referidos edifícios religiosos, dos
quais metade entretanto também soçobraria - domi­
nicanos, hospitalários com o seu hospital e Igreja de
Nossa Senhora da Esperança - já apenas por mera
incúria e decréscimo de crentes. O documento só não
é absolutamente correto e expressivo porque repre­
senta o tecido da medina gujarati de uma forma esque­
mática, sem os adarves e impasses que a cartografia e
a fotografia aérea/satélite atuais ainda confirmam.
Caso contrário, o contraste morfológico e de densida­
des seria ainda mais evidente.
Pelo que aqui tem vindo a ser reunido, vê-se como
para Diu é hoje árduo invocar-se a temática da "cidade
portuguesa" do Primeiro Império. Com as especifici·
dades evidentes em outras na costa ocidental hindus­
tânica, é difícil vislumbrar-se uma Diu de Cima (que
seria a cidade preexistente) versus uma Diu de Baixo
(que poderia ter sido, ou efemeramente foi, a tal cidade
intermédia entre aquela e a fortaleza). Por outro lado,
não são conhecidos dados sobre a existência de uma
fidalguia ou senhorialismo portugueses ou de cristãos
da terra, goeses, etc. Seguindo um outro sistema de
prioridades e condicionados por um conjunto de situa­
ções adversas, em Diu os portugueses não lograram
preencher os requisitos mínimos do eventual arqué­
tipo do modo português de fazer cidade, dando-lhe
consistência urbana, demográfica e um quadro social
completo, assim lhe garantindo continuidade.
A questão que resta para uma investigação ainda
por empreender - uma monografia completa de Diu
elaborada segundo metodologia credível- é a de como,
até que ponto, por onde e como se desenvolveu, por
intervenção administrativa portuguesa posterior, um
tipo diverso de cidade a partir daquela que foi encon­
trada. Não uma cidade portuguesa, mas uma cidade
de influência portuguesa, sendo claro que, como vere­
mos de imediato, o seu carácter atuaI deve muito a
intervenções feitas nas últimas décadas da adminis­
tração portuguesa.
Após as razias urbanisticas de Seiscentos, os escas­
sos portugueses foram· se então recompondo de forma
rala no espaço intermédio entre a fortaleza e a medina,
com uma maior concentração ao longo do canal, sobre
a ribeira e porto. É ali que ainda hoje encontramos o
palácio do governador e um conjunto integrado de
novos equipamentos urbanos, resultado de uma ope­
ração desenvolvida no último quartel de Setecentos,
URBANISMO
Praça do
Novo Bazar
Foto: Walter Rossa
reflexo do frustre plano pombalino de "restauração"
do Estado da Índia, empreendido em 1774. São eles,
de este para oeste, entre outros afins: o mercado no
sítio da primitiva alfândega e com uma coluna monu­
mental servindo simbolicamente de pelourinho datado
de 1799, que substituiu um anterior localizado junto
da fortaleza; o novo cais urbano com a nova alfândega;
e o arsenal com o seu magnífico portal articulando os
respectivos armazéns, o cais privativo e o guindaste
datado de 1 782.
Tudo isso implicou o desmantelam�nto de parte
considerável da muralha que encerrava a cidade ao
canal, processo que seria concluído no início do século
xx. É uma evolução que já se nota no meio século com­
preendido entre o levantamento de 1783 acima refe­
rido e outro, a Planta do Casto Praça, e Cidade de Dio
de 1833 da autoria de José Aniceto da Silva (Gabinete
de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar
1227/2A-24A-III). Evolução monumentalizante, aliás
na linha de uma tendência, que nos parece de raiz
gujarati, para a celebração de factos e pessoas através
de monumentos urbanos, obeliscos, colunas, lápides,
patente da iconografia mais antiga até aos dias de hoje
no próprio museu arqueológico montado em 1904 na
Matriz de São Tomé, cuja epigrafia que já foi objeto de
estudos exaustivos.
O domínio britânico da índia pacificara a região e
Diu e os portugueses puderam abandonar a fortaleza
e, na medida do possível, urbanizar-se. Diu abriu-se
então definitivamente ao continente, com a muralha
na frente para o canal a dar lugar a um passeio em mar­
ginal entre o cais urbano e a fortaleza, passando pelo
mercado e pelo palácio e dotado de um varandim,
estrutura de sabor romântico inovador e então comum
a muitas outras cidades portuguesas. Foi o corolário
de um período em que os portugueses reaproveitaram
muitos elementos das construções entretanto demolio
das ou arruinadas, para se instalarem ao longo do canal
e junto aos conventos. Surgiriam alguns equipamen­
tos (escolas, tribunal), e até habitação coletiva para
funcionários.
Particularmente significativa é a abertura em 1857
da Estrada de Torres Novas - designação que homena­
geia o governador que a ordenou, António César de
Vasconcelos Correia, conde de Torres Novas (1855-1864) - um gesto de estruturação urbana que permi­
tiu a regulação do novo edificado que a conformou.
É uma autêntica rua direita entre o porto e as igrejas,
embora termine sem remate condigno num pequeno
largo junto ao edifício do tribunal. O seu traçado revela
a intenção de polarizar a efetiva ocupação do territó­
rio da cidade portuguesa e, consequentemente, a con­
solidação do largo do complexo jesuíta, dito de São
Paulo, como lugar central. Com todas as limitações é,
ainda hoje, o mais expressivo toque ocidental na mor­
fologia urbana de Diu. Mas não é o mais expressivo.
Esse é o insólito esboço de praça que nos surge
quando entramos na cidade pela Porta do Campo. Era
já um espaço urbano na cidade preexistente, mas adqui­
riu uma expressão italianizante, clássica, com a cons­
trução nos seus lados norte e este de dois pórticos em
arcaria de pedra lavrada em rústico (bugnato). Tudo
faria crer uma intervenção quinhentista ou seiscentista,
mas não. A sua construção e projeto são sinteticamente
relatados pelo seu autor, Miguel de Noronha de Paiva
Couceiro, quarto conde de Paraty e governador de Diu
entre 1948 e 1950, a páginas 135-136 do seu livro Diu e
eu. O que existia era "um largo, rodeado de muros que
vedavam terrenos particulares" e "os restos de uma
balaustrada barroca encastoando wna pedra de armas
Correios
Foto: Miguel de
Noronha de Paiva
Couceiro
Palácio do
Governador
Foto: Miguel de
Noronha de
Couceiro
PRovfNCIA DO NORTE I NORTE DA fND IA
•
DIU · I 19
Paiva
'I
Reais. E wn arco que dava para uma das ruas de acesso."
Ele, que era wn "grande amador de praças - o mais atra­
ente motivo de wna urbanização quando os arquitec­
tos o sabem aproveitar" revela que "Estava feito o plano
[com essas preexistências] e eu acordei com todos os
proprietários dos terrenos circundantes que abrissem
os seus muros com lojas, sob o mesmo risco de arcadas
e balaustradas tomado do modelo antigo. E chamou-se­
-lhe Novo Bazar'�
Miguel de Paiva Couceiro (1909-1979) foi governa­
dor de Diu nos anos em que se concretizou a indepen­
dência do Raj, com a separação, violenta e por razões
confessionais, entre Índia e Paquistão. A situação não
podia ser mais difícil, em especial numa possessão por­
tuguesa próxima daquele último país e encastoada em
território de maioria muçulmana. O seu governo de Diu
foi apenas de dois anos, pois a dinâmica que lhe impôs
e a ação que desenvolveu de aproximação aos indianos
valeu-lhe desentendimentos (e prováveis ciúmes) com
o governador-geraL A imprensa indiana considerava-o
o Mountbatten português, desejando que ascendesse
ao governo da então designada Índia Portuguesa.
Além disso, promoveu consideráveis reformas admi­
nistrativas' a melhoria das ligações ao exterior e das con­
dições sanitárias, bem como a instalação de um con­
junto de equipamentos assistenciais (hospital, centro
médico) e culturais, designadamente bibliotecas (Noro­
tom Mulgi e Revam Bai). Restabeleceu o apro�siona­
menta de água potável (abandonado há quarenta anos)
e fundou a primeira estação de rádio do Estado da Índia,
num pequeno edifício modernista junto do aeroporto,
recentemente demolido. Já para a nova estação de cor­
reios, o projeto determinou uma clara gramática neo­
clássica, rara nas províncias ultramarinas do Estado
Novo. Mas a sua impressionante ação não se pautou
apenas por um excepcional e modernizante desempe­
nho diplomático e governativo, pois o seu papel indivi­
dual como construtor, de claras opções revivalistas, não
se ficou pela Praça do Novo Bazar, acima referida.
Talvez mais marcante, ainda que hoje de percep­
ção difícil pela descaracterização e envolvente vegetal,
foi a sua ação de reabilitação do Palácio do Governa­
dor - no fundo uma verdadeira renovação - que tam­
bém relata no seu livro e que no jornal Anglo-Lusitano
de 24 de junho de 1950 mereceu a seguinte referência:
"Com fachada do século XVII, encimando os brazões
dos valorosos heróis de Diu, Nuno da Cunha, António
da Silveira, D. João de Mascarenhas e D. João de Cas­
tro, todo o mobiliário artistico característico de estilo
indo-português, os interiores e principalmente a 'Sala
de Parvati; enriquecidos com pedra e madeira lavrada':
Na realidade, Miguel de Paiva Couceiro não só incor­
porou inúmeras pedras de armas dispersas por ruínas
120
.
da cidade, como o encerrou fazendo-o neo-manuelino,
em especial através da lavra de colunas e pedras de
armas em ameias concheadas, arcarias com frisos de
bolas, etc. É uma surpreendente maravilha revivalista,
de óbvia temática colonial, que à primeira vista engana
na cronologia tanto quanto a nova praça. Na sua auten­
ticidade equívoca, é um dos paços que restam dos
governantes do velho Estado da índia.
Na década que se seguiu, o Estado Novo manteve
uma ação modernizadora, mas travando a sua última
batalha contra a inevitabilidade da integração de Diu e
dos demais territórios da então Índia Portuguesa na
Índia. Miguel de Paiva Couceiro travara e perdera só a
sua batalha de sinal oposto. Por fim, em dezembro de
1961, reagindo à invasão das forças armadas indianas,
também ali, em Diu, ingloriamente e pela última vez
portugueses lutaram e perderam a vida por algo que não
poderia continuar seu. Prevaleceram marcas múltiplas,
essencialmente de matriz cultural, edifícios e espaços
de cruzamento, uma morfologia urbana única, dados e
fontes históricas abundantes, tudo ainda por estudar
cabalmente. Mas no meio de tudo a maior expressão
advém da componente estratégica e militar, pois foi
sempre esse o desígnio e o paradigma para a presença
portuguesa em Diu. Por isso o território e a sua vocação
militar desenharam e conformaram a cidade, em vez de
ter sido a cidade a modelar o território. (WR, NG)
BIBLIOGRAFIA: Almeida, José Julião do Sacramento, "Igrejas, conventos e
capelas em Dio'; O Oriente Português, n.O 6, Nova Goa, 1936, pp. 67-79;
Antunes, Luís Frederico Dias, "Diu, espaços e quotidianos'; Espaços de um
Império: Estudos. Lisboa, 1999, pp. 149-159; Baiâo, António, Itinerários da
india a Portugal por terra, Coimbra, 1923; Boletim do Governo do Estado
da India, n.O 52, Nova Goa, 7 de Julho de 1857; Castro, Fernando de, Cro­
nica do Vice-Rei D. João de Castro, ed. Luís de Albuquerque e Teresa
Cunha Matos, Tomar, 1995; Couceiro, Miguel de Noronha de Pa
i va, Diu e
eu, Lisboa, 1969; Coutinho, Lopo de Sousa, Livro primeiro [-segundo} do
cerco de Diu que os turcos poseram àfortaleza de Diu, Coimbra, 1556; Dias,
Pedro, "Diu em 1634, documentos e notas para um retrato de uma praça
portuguesa no Guzarate'; Arte Indo-Portuguesa, capítulos da história,
Coimbra, 2004, pp. 187-259; Grancho, Nuno, Diu: a ilha, a muralha, afor­
taleza e as cidades (prova final de licenciatura apresentada à Universidade
de Coimbra), 2001; Grancho, Nuno, "Diu: uma tentativa de cidade'; Orien­
le, Lisboa, 2003, pp. 86-101; Lopes, Nuno Miguel de Pinho, As estruturas
fortificadns de Diu (dissertaçâo de mestrado apresentada à Universidade
de Évora), 2010; Moreira, Rafael, "A fortaleza de Diu e a arquitectura mili­
tar no fndico'; Espaços de um Império: Estudos, Lisboa, 1999, pp. 139-147;
Pereira, A. de Bragança, "Os Portugueses em Diu. A Fortaleza'; separata de
O Oriente Português, Bastará, 1938; Rivar a, Joaquim Heliodoro da Cunha,
Inscripções de Diu trasladadas das próprias emlaneiro de 1859, Nova Goa,
1865;
Quadros, Jerónimo, Diu: Apontamentos para a sua história e coro­
graphia, No va Goa, 1899; Quadros, Jerónimo, Catálogo do MuseuArqueo­
lógico de Diu, Nova Goa, 1907; Relaçam (Summaria) do que Obraram os
Religiosos da Ordem dos Prégadores na Conuersão das Almas e Prégação
do Sancto Evangelho em todo o Estado da lndia. .. , Lisboa, 1649, Biblioteca
Nacional, Cód.
177, pp. 322-370; Rivara, Joaquim Heliodoro da Cunha
Rivara, Inscripcoes de Dio Transladadas das Proprias em Janeiro de 1859,
Nova Goa: Imprensa Nacional, 1865; Summaria R.am do que obrarão os
Religiosos da Ordem dos Pregadores em todo o Estado da India, Goa, 1679,
Manuscritos da Biblioteca Nacional: 348; Teles, Ricardo Michael, "Epigr a­
fia de Diu'; O Oriente Português, n."'7-9, Bastorá,
P ATR IMÓN IO DE OR IGEM P ORTUGUES A NO MU ND O : A RQUITETURA E URBA NIS M O
1935, pp. 8-70.
ARQUI TETURA M I L I TAR
Além de escassos elementos pontuais - os fortins
situados em Brancavará (1774), Monacavará, Naroá
(1744) e Gogalá - o impressionante sistema fortifi­
cado de Diu é composto essencialmente por três ele­
mentos: a cerca gujarati preexistente, que encerra a
área urbana da cidade do resto da ilha; o Baluarte do
Mar - ou Panikotha - um forte plantado no meio da
entrada navegável do canal que separa a ilha do con­
tinente; e a fortaleza erguida no extremo nascente da
ilha. Impressionante não apenas pela expressão e
dimensão, mas por deter um conjunto de característi­
cas inusitadas e por se ter preservado o suficiente para
ainda se ter uma boa percepção de que como foi pen­
sado, executado e utilizado.
A muralha urbana preexistente cercava a cidade
pelo lado de terra e do canal, sendo que do lado do mar
apenas uma enseada necessitou da construção de dois
baluartes (sendo um o dos Excomungados) e cortinas,
pois o resto da costa era alcantilada e, assim, impossí­
vel para o desembarque. De tudo isso resta apenas o
longo tramo que se estende do canal ao mar. Sofreu
diversas intervenções portuguesas, muito em especial
a reforma empreendida entre 1570 e 1 574 que nela ficou
epigrafada e deu lugar a que muitos tudo consideras­
sem português. Não foram, contudo, ref�mas estrutuFosso entre
as dWlS linhas
fortificadas
Fete: Walter Re';a
rais, que lhe tenham alterado a expressão, sendo parti­
cularmente marcante a abertura de duas portas além
da única até então existente. Uma terceira seria aberta
mais tarde. Na porta primitiva, a do Campo, foi intro­
duzido um aparelho decorativo que a cristianizou.
Pese embora a sua marcante presença atual, é no
entanto necessário fazer um esforço para imaginar a
sua totalidade na origem, para o que a "Tavoa de Dia';
inserida no Roteiro de Goa a Diu de João de Castro dos
primeiros meses de 1 539, será o melhor ponto de par­
tida, mas à qual é necessário juntar, pela clareza do
traçado planimétrico, os conhecidos levantamentos
gerais da cidade de 1783 e 1833 (> entrada anterior).
A expressão global era claramente medieval, com
dezoito torres indiferenciadamente quadradas e semi­
circulares e, segundo o Livro das Cidades e Fortalezas
( 1 582) e a referida cartografia, teve uma cava inundá­
vel trinchada em rocha. Os panos são altos, com pla­
nos jorrantes até meia altura, e a Porta do Campo tem
um sistema decorativo de clara inspiração gujarate.
O Baluarte do Mar já existia à data da instalação
militar portuguesa em Diu. Foi, aliás, o primeiro posto
cedido pelo sultão aos portugueses, o qual funcionou
então como alojamento das chefias. Porém, com exce­
ção para o seu perímetro alongado, a sua feição atual
deve a expressão a diversas intervenções posteriores
ainda por apurar, estudar e estabelecer. É muito prová­
vel que a parte que se mantém mais próxima da versão
original corresponda ao corpo mais largo e arredon­
dado, situado a este, tendo a estrutura mais regular e
alongada, que o prolonga para oeste - uma couraça sofrido mais alterações, a mais determinante em 1 587.
Na articulação entre os dois está hoje um torreão - aliás
encimado por um farol - que poderá muito bem ser
uma reminiscência da torre de base quadrada clara­
mente representada no desenho de João de Castro
acima referido e também por ele detalhadamente des­
Crita no respectivo texto. No fundo, assume a silhueta
de um navio de guerra fundeado no meio da entrada
no canal, bem frente ao cais de acesso à fortaleza e ao
seu antigo centro de comando: a Casa do Capitão, pelo
que não só protegia a entrada do canal e a cidade, mas
também o ponto mais sensível da fortaleza.
Tinha, aliás, uma outra articulação defensiva com
a fortaleza, a qual é bem descrita por Fernão Lopes de
Castanheda (1552-1561): Diu "da banda da terra tinha
hü baluarte fundado nagoa, de que atravessava hüa
cadea de ferro muyto grossa aos muros da cidade, que
se levantavam e abaixavam com cabrestãte e cõ ella se
çarrava ho porto de maneyra que as náos questauã
detro ficauão muito seguras e pão podião entrar nele
outros estrangeyros sem lhe abayxarem a cadea." Uma
forte estacada de madeira sobre um molhe artificial
...
PROvfNCIA DO NORTE I NORTE DA fNDIA' DIU · 121
preexistente, desenvolvidos entre o Baluarte do Mar e
a Península de Gogolá, resolviam o problema do acesso
pelo lado norte do mesmo, dispositivo reforçado pelo
baluarte redondo que os portugueses cedo - em 1538 ali ergueram, depois de terem arrasado uma muralha
preexistente.
A construção da muralha urbana e do Panikotha
devem*se, muito provavelmente, à iniciativa de Meli­
queaz (Malik Aiyaz), o governante de Diu à data dos
assédios e da ocupação portuguesa, pois como relatou
João de Barros na Década Segunda da sua Ásia "era
homem experto, e prudente, com sua industria a fez
tão celebre, per trato de mercadoria, que alem do que
cada hum anno pagava a El*Rey de tributo, se fez um
riquissimo homem, com que fortaleceo e nobreceo a
Cidade de muros, torres, e baluartes principalmente
depois que nós entramos na Índia:'
Porém, o que fez a diferença para o verdadeira*
mente excepcional do sistema defensivo da cidade de
Diu não foram essas obras gujaratis, mas a fortaleza
que os portugueses começaram a erguer em 1535 no
extremo oriental da ilha e da cidade. Existia ali um dis*
positivo do sistema defensivo instalado sob o comando
de Meliqueaz. Gaspar Correia refere uma "torre da
barra, que está defronte do baluarte do mar': Em nossa
opinião, o que surge representado no desenho de João
de Barros e cuja construção não é referida por nenhum
dos cronistas, já lá estaria quando os portugteses se
lançaram na formação - pois assim não foi uma,cons­
trução integral - da fortaleza. Tal consiste, precisa*
mente, num dispositivo de terraços e cais - uma espé­
cie de dois baluartes que, na sua algo confusa descrição
de 1539, João de Castro cataloga como couraças e lajes
- articulados por uma alta torre do lado do canal frente
ao Baluarte do Mar. Por ali, num sistema que contro*
lava a entrada da barra, teria, segundo Lopo de Sousa
Coutinho, funcionado entre 1514 e 1521 a primeira fei­
toria portuguesa. Como veremos, todo esse sistema foi
reformado pelos portugueses em meados da década
de 1 540, dando-lhe a configuração que ainda hoje
apresenta.
O processo histórico que levou à instalação portu­
guesa em Diu ficou já atrás minimamente esclarecido:
as fontes, a cartografia e iconografia e os trabalhos
dados à estampa sobre esta fortaleza são muitos e pro­
lixos. A epigrafia é particularmente relevante para a
datação e responsabilização pelas ações, fazendo com
que na realidade este conjunto edificado conte a sua
própria história. Tudo isso facilita o conhecimento,
mas dificulta a seleção do que de essencial aqui é impe*
rativo registar, até porque, independentemente de
apresentarmos mais alguns contributos, continua por
apurar de forma cabal a correspondência entre o exis*
tente e as fases da sua concretização, para o que con*
tribui mormente a alteração de designação sofrida
pelos baluartes ao longo dos tempos. Optámos por
registar a informação suficiente para se perceber como
é que, de uma forma geral, o sistema se conformou
- o que ocorreu no século XVI - deixando de lado os
detalhes respeitantes aos seus ajustes desde então.
Essa ponta da ilha tem, como a cidade, um solo
rochoso, que se eleva numa plataforma sobre a linha
de água do mar e do canal. A configuração triangular
ditou a forma da fortaleza, tal como a evolução da arte
de fortificar ditou a sua expressão, a qual deve muito
da sua especificidade ao facto de ter evoluído mais por
adição que por substituição, renovação ou reforma.
Mas também é devedora do facto de as cortinas exte*
riores terem prolongado a falésia, que por sua vez tam*
bém foi adossada, de modo a que umas e outras se
tenham fundido funcional, construtiva e paisagistica*
mente. No fundo, muita da imponência do sistema
deve*se ao acentuar da escarpa construída pela escarpa
natural, o que é particularmente evidente nos dois
fossos que artificialmente ligaram o canal ao mar, iso*
lando o conjunto de terra e servindo de pedreira à
obra.
Uma vez feito o acordo com o sultão, em setembro
de 1535 Martim Afonso de Sousa - o negociador e
comandante português no terreno, ainda que o pró*
prio governador, Nuno da Cunha, também ali tenha
estado - ordenou a abertura de uma cava ligando o
canal ao mar, fazendo assim uma ilha artificial no
extremo da Ilha de Diu. Foi uma tarefa árdua, que
implicou a escavação de um fosso em rocha numa pro*
fundidade superior ao habitual, pois a altura da super*
fície do terreno em relação a um nível inundável em
qualquer maré em alguns pontos chega aos oito
metros. Como veremos, seria repetida pouco mais de
uma década depois. No mês seguinte marcou*se a for*
taleza, cuja construção teve início formal no dia de
122
URBANISMO
.
PATRIM Ó N I O DE ORIG EM PORTUGUESA N O MUN DO: ARQ U IT ETURA E
Baluarte de
São Filipe
Foto: Walter Rem
Baluarte do Mar
ou Panikotha
Foto: Walter Rossa
São Tomé, 21 de dezembro, com o lançamento da pri­
meira pedra do baluarte com essa designação pelo
próprio Nuno da Cunha. Com o tempo, passaria a ser
a designação do conjunto e da igreja matra, enquanto
o baluarte passava a ser designado como Cavaleiro,
por ser o mais proeminente do conjunto. O processo
foi descrito por alguns autores, entre os quais Lopo de
Sousa Coutinho no Livro primeiro [e segundo] do [l.']
cerco de Diu que os turcos poseram à fortaleza de Diu
(1 556), a quem passamos a palavra, pois é bem mais
claro do que lograríamos ser:
"Lãçouse hu pano de muro da costa do mar a hu
alto q se ali faz, & sobre eIle se fundou hu grande & fer­
moso Baluarte redõdo entulhado, o ql tinha noveta pal­
mos e diâmetro: & fezse pouco mais alto q o outro
muro: & pos se lhe nome São Tome, por ser começado
em seu dia. E dali se estende o outra vez ho muro
dereyto ao rio: & antes q chegasse a agua tres ou qua­
tro lanças acabou, fazedo outro grã Baluarte, q tinha
sessenta palmos e diâmetro, & pos se lhe nome o de
Santiago [depois Baluarte de Menagem]: & antre estes
dous baluartes, junto deste menor, ficou a porta da for­
taleza cõsua couraça, de rosto pera a cidade. Foy o
muro de grossura de. xxvij. & xviij. Pees: & de alto vinte
&. xxij a fora peyturil & ameas: cõ sua cava: a qual vinha
acabar de fenecer a meo rosto do Baluarte menor, q
està ao rio. Assi q ametade do dito Baluarte ficou sem
cava, porq o sitio abayxa ali tãto, q casi fica no andar
do rio. E assi mais ficou sem cava toda aqUa parte q cae
sobre o rio, des o dito Baluarte até a feytoria velha. No
qual espaço o dito rio nã chega ao muro senã de aguas
vivas. E todo o outro tepo fica duas lanças ou mais afas­
tado. E neste espaço q digo, pouco distante do dito
Baluarte menor, se fizera as casas pera os capitães da
dita fortaleza. As quaes nã acuparam todo o dito espaço
[ ... ] . O chão que acupa a dita fortaleza é em figura trian­
guiar. Em o meyo della avia hu gram cavouco, no qual
depois e tepo de António da Silveyra ser capitão, se fez
hua grã cisterna:'
O que nos surge na "Tavoa de Dia" corresponde a
essa primeira versão da fortaleza - que, como vimos,
integrava estruturas preexistentes - tudo ainda com
uma feição marcadamente medieval e sem ocupar o
extremo do triângulo, uma ponta baixa, mas rochosa,
que entrava na água, onde mais tarde veio a ser feita a
Couraça Grande com o seu baluarte. Foi a estrutura
acima descrita por Lopo de Sousa Coutinho, com muros
com cerca de nove metros de espessura, que resistiu ao
cerco de agosto a novembro de 1 538, que a deixou em
muito mau estado, o que fez com que não pudesse ser
aceite como solução definitiva, embora lá permaneça,
inclusive com a primitiva Porta de Terra, hoje servindo
apenas de acesso à ponte que atravessa o fosso inicial,
que também veio a ficar no interior do sistema.
No miolo, frente ao local onde esteve a Matriz de São
Tomé (erguida logo em 1 536) e junto ao barranco que
ocupa uma área considerável do espaço disponível e
pelo qual se fazia o caminho até aquela porta, lá está
PRovlNC IA D O N ORTE I NOR TE D A I NDIA • D IU , 123
aquele vice-rei enviou a D. João III: "As obras que fize­
rão sobre a fortaleza parecem mais que de humanas;
porque o proprio capitão, e moradores della me não
sabião dizer onde estavão os baluartes, e por onde cor­
rião os muros, e o lugar, onde jazia a cava: tamanhas
montanhas de pedra tinhão lansado em todas estas
partes, de maneira, que parecia impossivel, e hum tra�
balho incomportavel poder tirar esta pedra e terra, e
tornar a erguer a fortaleza palo luguar, por onde pri­
meiro estava. Polo que me foi forçado fazella de novo
per fõra da cava; assi porque se pudesse fazer neste
verão, como por ser por esta parte mais forte; por caso
de hus oiteiros altos, onde os baluartes caem. O que
me dera muito trabalho, senão acertara de vir do reino
Francisco Pires; porque não há offieial, que saiba nada.
E por esta rezão me cwnpre têllo que este verão, e não
no mandar a Moçambique. A maneira de que faço a
fortaleza he polia debuxo de Ceyta. Parece-me, que
espantaraa muito a gente desta terra, mayormente
depois que se fizer hua cava per fóra do muro novo;
porque então ficaraa Dyo com duas cavas, e duas mura­
lhas, remedeando se os muros velhos de maneira, que
fiquem em terraplenos sobre a cava antigua."
Diu seguiu, de facto, o modelo de Ceuta e para isso
seria fundamental a abertura em 1550 do novo fosso
por onde ainda hoje entra a água do mar ao canal.
A nova linha defensiva surgiu na frente da primeira,
com três possantes baluartes: o de São Nicolau ao
meio, com dois, São Filipe e São Domingos (ou da
Madre de Deus), nos extremos. Em Ceuta são apenas
dois. Tudo porque havia urgência e para a renovação
da linha anterior seria necessário desentulhar o que
resultara do pesado cerco, o que foi sendo feito poste­
riormente. Por isso temos duas linhas e dois fossos
paralelos, que são um relato explícito da extraordiná­
ria evolução da engenharia militar entre as fases arcaica
e moderna da era da pirobalística. É uma situação tão
insólita que levou o cuidadoso Gaspar Correia a publi­
car com as suas Lendas da Índia finalizadas por volta
de 1550 - um desenho que funde ambas as linhas
numa, representando ainda todos os baluartes como
redondos. Estivera em Diu antes, mas não poderia ter
representado o que não vira ali, nem em parte alguma.
Também por isso o não relata. Importava enviar uma
imagem ao rei, que em 1546 expressamente o pedira
para as principais fortalezas.
O que hoje ali vemos tem, obviamente, um enorme
conjunto de modificações introduzidas nos séculos
seguintes, em especial em Seiscentos, período em que
o sistema abaluartado, a par com a evolução da arti�
lharia, sofreu um enorme desenvolvimento. Por isso
em 1634 o viee-rei Miguel de Noronha, 4.° conde de
Unhares, enviou a Diu uma equipa de três inspetores,
a cisterna feita por António da Silveira "que levava
cinco mil pipas dagoa, muy bem lavrado edifício:' Em
1635, António Bocarra referiu vinte e quatro mil, pelo
que será uma outra. Aliás, a cartografia mais recente
denuncia a existência de várias cisternas.
Após esse primeiro cerco, sob o comando do novo
capitão de Diu, Manuel de Sousa de Sepúlveda, proce­
deu-se à reconstrução do dispositivo inicial, alargando­
-se para o dobro o respectivo fosso. Mas não só, poís foi
revisto o sistema de defesa e acesso por terra e mar - a
entrada da barra - através da construção de um com­
plexo dispositivo na frente para o canal, que pouco
aproveitou as plataformas gujaratis que já serviam o
Paço do Capitão e a feitoria. Foram então erguidos os
baluartes de São Jorge (1542) e Santa Teresa (1544) a
entrada sobre a meia-laranja, a couraça, as portas, o
cais, a ponte sobre a cava, etc. Hoje o mais interessante
de toda a resultante é que, com algumas modificações,
se mantém, pois a sua reforma escassos anos depois foi
feita através da introdução de uma nova linha avançada
para oeste, com nova cava e desta feita abaluartada,
compondo ambas um sistema com tanto de inexpug­
nável quanto de monumentalmente fantástico.
O facto de ter resistido mal ao cerco de 1546, tornou
evidente e urgente partir para uma solução diversa,
atualizada. Desde 1538 o conjunto reformara-se dentro
daquilo que os portugueses estavam a fazer um pouco
«
por todo o lado, mas com especial escopo experimental no Norte de Áfriea, procurando soluções para o sur­
gimento e evolução célere da artilharia, a famosa pas­
sagem da neuro- à pirobalístiea. A resposta teria que ser
segundo o que veio a ser designado por sistema aba­
luartado, caracterizado por estruturas avançadas de
frente angular aguda e não circular. Como em Marro­
cos, os baluartes redondos e quadrados até então ergui­
dos em Diu davam mau resultado. As obras gizadas por
capitães e mestres-pedreiros teriam de ser substituídas
pelas de engenheiros militares, o que corresponde a
uma complexa mudança de paradigma, aqui impossí­
vel de caracterizar, mas que foi sumariamente abordada
no texto de enquadramento do início do volume. A ciên­
cia e tecnologia eram de base italiana, mas os portugue­
ses foram precoces na sua posta em prática e desenvol­
vimento. Mazagão (1541) fora a primeira experiência,
logo seguida de Ceuta (1541-1544) e Diu (1547).
Foi Francisco Pires - um desses mestres-pedreiros
de transição para engenheiro, com"tirocínio nas reali­
zações marroquinas, mais precisamente em Ceuta quem conduziu as obras ordenadas em 1547 por João
de Castro, que também tivera papel determinante
naquele processo. É a este que passamos a palavra,
transcrevendo parte do relato, com o seu quê de exa­
gero (publicado por António Baião em 1923), que
124
PATRIM ÓNIO DE ORIGEM P ORTUGUESA NO MUND O: A RQ U IT ETURA
-
E
URBANISM O
encarregues de elaborar um relatório sobre o que era
necessário fazer-se para tornar a fortaleza inexpugná­
vel. O relatório - já publicado por Pedro Dias e que por
certo serviu de base à descrição de Diu que António
Bocarra fez na sua obra Livro das Plantas de todas..
do ano seguinte - propôs de facto uma série de medi­
das, entre as quais a radical demolição de cento e trinta
e sete casas e a remoção do outeiro situado entre o con­
vento e o Baluarte de São Domingos, ações já suficien­
temente caracterizadas na entrada anterior e com as
quais se formou a esplanada da fortaleza, que assim
deixou de ter padrastos. Também propôs obras de
monta no dispositivo já existente, de que destacamos,
entre outras, precisamente a reforma, concluída em
1639, ao Baluarte de São Domingos, da qual resultou
a sua possante configuração atual.
Não sabemos com precisão a data da execução da
Couraça Grande ou Baluarte da Barra - a generosa pla­
taforma sobre a ponta da ilha - mas na sua DécadaXIlJ
António Bocarra relata que foi da traça de António
Pinto da Fonseca, provedor-geral das fortificações da
índia, que por ali andou em meados da década de 1610,
dando início ao processo de planificação da esplanada,
matéria já referenciada na entrada antecedente. Aquele
relatório de 1634 dá-a como destruída, carecendo de
rápida reparação, o que terá sido cumprido, pois a
construção dos baluartes que a montante a defendem
tem datas conhecidas: Santa Teresa sobrff.o canal em
1652, e Santa Luzia a meio, sobre a dita couraça, em
1650. Pelas décadas de 1630 a 1650, o apuramento do
sistema estava ao rubro, porque ao rubro estava o
potencial assédio mogol, do qual a fortaleza foi sem­
pre o único e eficaz elemento dissuasor.
As obras de reforma, manutenção e melhoramen­
tos da fortaleza não parariam, nem os relatórios sobre
a ruína, que dada a ainda opulência do existente, hoje
se nos afiguram exagerados. Com efeito, o que ruiu,
por vezes até ao desaparecimento, foram as constru­
ções civis e religiosas. Os baluartes, as cortinas, as cou­
raças e as cavas continuam a postos, irradiando a
memória do mais resistente e impressionante conjunto
edificado português no Oriente. (WR, NG)
Igreja de
São Tomé
Foto: Nuno Gnncho
.
A R Q U I TETURA REL I G I O S A
No texto de enquadramento de Diu ficou assinalada
a relevância que os edifícios religiosos tiveram para o
lançamento e marcação do que se pretendeu que fosse
a cidade portuguesa a instalar entre a fortaleza e a
cidade gujarati preexistente. Nos textos relativos aos
conjuntos franciscano e jesuíta que se seguem
caracterizam-se os exemplares mais relevantes, sendo
o último surpreendente e único na sua estrutura com-
positiva e esfuziante decorativismo, na realidade, um
dos mais importantes itens neste volume. Impõe-se,
contudo, uma referência aos demais ainda existentes,
começando por deixar claro que, apesar da exiguidade
do território e da presença demográfica portuguesa, a
arquitetura católica de Diu - de origem portuguesa,
por conseguinte - não se restringe ao conjunto urbano,
pois não podemos deixar de registar a existência da
Igreja de Nossa Senhora de Fudam.
A exiguidade da comunidade católica acabou por
impor um relativamente baixo número de exemplares,
mais ainda o desaparecimento na segunda metade do
século XIX de alguns, de que se destacam, fora da for­
taleza, a Igreja de Nossa Senhora da Esperança e as
casas de São Domingos e de São João de Deus, esta com
o Hospital Real, que tinha a cargo. Da igreja domini­
cana da Madre de Deus guarda-se uma representação
numa gravura que dá conta de um edifício modesto
mas interessante, com uma torre sineira rematando a
capela-mar.
Compreensivelmente, a evangelização foi sempre
mais difícil e menos bem sucedida em territórios de
predominância islâmica, mesmo quando a tolerância
se logrou instalar, como é o caso de Diu. Com o fim da
soberania portuguesa em 1961 e, assim, com a saída
dos já poucos portugueses que ali permaneciam em
serviço, essa comunidade está reduzida a um número
PROV[NCIA DO NORTE I NORTE DA INOIA '
DIU ·
125
Igreja de
Nossa Senhora
de Fudam
Foto: Walter R.ossa
ínfimo, o que leva a que apenas um dos conjuntos, São
Paulo, mantenha o culto religioso como paroquial e a
sua escola, aliás frequentada por crianças e adolescen­
tes de diversas confissões, tendo as demais sido adap­
tadas a outros usos.
Além dos edifícios franciscano e jesuíta, dentro da
cidade apenas existem a Matriz de São Tomé e o Reco­
lhimento de Santana, este sem especial relevância his­
tórica ou arquitetónica. A primeira Igreja de São Tomé,
erguida dentro da fortaleza em 1536 por iniciativa do
governador Nuno da Cunha, desapareceu. Dela relata
Gaspar Correia nas Lendas da lndia que era "posta no
alto, muy forte, que d'eIla se podia tirar artelharia, se
comprisse: os muros de vinte pés de largo, os cubelos
abertos por dentro, moçiços até o primeiro andar
d'artelharia, e descobertos, argamassados, muy fortes,
que em cima tinhão outra artilharia':
Ali por perto, também as capelas de São Martinho
(fundada em 1 548 para celebrar a vitória de 1546) e São
Tiago (1623, sobre uma ermida das primeiras décadas)
erguidas no interior da fortaleza soçobraram, o mesmo
sucedendo com a Misericórdia, erguida em 1542 e des­
moronada em 1825. De tudo isso restam apenas ruí­
nas que não permitem a sua caracterização significa­
tiva, com exceção para São Tiago, que mantém intacta
toda a volumetria, incluindo a bordadura superior de
pináculos, mas sem a abóbada de canhão que cobria
a desenvolta nave única e cujo extradors8 estaria
exposto. Com a capela-mor à altura da nave, apresenta­
-se ainda com a escala de uma igreja, não de uma
capela. Como se encontra axialmente na continuidade
do baluarte do mesmo nome e com um dos alçados
laterais sobre a cortina da muralha que desce até ao
oceano, a entrada é feita lateralmente através de um
portal efusivamente decorado em baixo relevo, do qual
se destaca num grande medalhão a figura de São Tiago
cavaleiro.
126
.
A Igreja de São Tomé foí constnúda extra-muros em
1 598 por ordem do arcebispo Frei Aleixo de Menezes,
devendo funcionar como paroquial da cidade. Implan­
tada sobre uma colina isolada, com a capela-mororien­
tadaa poente (como todas as igrejas de Diu), tem a fron­
taria virada ao mar, impondo-se como .0 elemento
edificado de maior impacto paisagístico da cidade,
depois da fortaleza} claro. Impõe-se pela escala das suas
duas torres da frontaria, rematadas por uma estrutura
decorativa que contrasta com a fachada da nave, quase
sem ornamentação. São uma espécie de estelas de
sineira, prolongamentos do paramento fronteiro de
cada uma das torres, funcionando como simulação de
remate em calote esférica, falsa por conseguinte.
É particularmente relevante o facto de a cobertura
da nave denunciar no exterior a abóbada, com um
extradorso visível e cintado, todo ele caiado. É uma
solução que, além de São Tiago, faz lembrar igrejas que
se encontram no Coromandel, designadamente as
ligadas aos locais de martírio e sepultamento do orago,
São Tomé, em Meliapor (Madras), embora aqui o lan­
çamento vertical seja muito superior, longe do atarra­
camento daqueles modelos. Mas na realidade é uma
solução que se encontra em todas as igrejas existentes
em Diu e que, por certo, encontrará justificação e ori­
gem mais óbvia em tradições construtivas e expressi­
vas locais. Por exemplo, as coberturas em telha são
quase inexistentes, imperando as coberturas em ter­
raço.
Volumetricamente, a Igreja de São Tomé surge assim
como uma arca, apenas ultrapassada pelas torres e por
uma coluna de claro sabor islâmico, que irrompe a meio
da frontaria sobre o arco, aliás igual às que rematam as
torres. Para quem se aproxima da ilhaporleste, sobrepõe­
-se à fortaleza como uma espécie de remate e farol de
uma alvura conspícua. O interior é absolutamente des­
pojado, para o que contribui o facto de já não ter culto.
Funciona desde 1904 como museu arqueológico, onde
estão recolhidos múltiplos elementos arquitetónicos e
lápides de edifícios relevantes que têm vindo a desapa­
recer na cidade.
Também como paroquial foi erguida a Igreja de
Nossa Senhora de Fudam, aldeia situada a meio da
costa marítima da ilha. Não logramos encontrar qual­
quer informação sobre o edifício, o que só pode ser
falha nossa, pois dada a sua escala e expressão por
certo deixou registos documentais da sua fundação,
não podendo ter deixado de chamar a atenção de
quem se interessa por estas matérias. Pela sua gramá­
tica e composição terá sido erguida no século XVII.
A fachada tem uma expressão peculiar, pois encontra­
-se dividida em três partes sensivelmente iguais, sendo
que a fachada da nave, de estrutura retabular, ocupa o
PATRIMÓN I O DE O R IG EM P OR.TUGUESA N O M U N D O : A RQ U IT ETURA E URB A N IS M O
espaço equivalente ao de cada uma das torres, bem
lançadas, mas rematadas de forma demasiado contida,
desproporcionada em relação ao todo. Remate que,
aliás, repete a solução dos congéneres da Igreja de São
Tomé da cidade. É muito interessante o contraste da
expressão simultaneamente chã e imponente das tor­
res com a singeleza decorativa e a expressão algo esma­
gada do corpo central, para o que contribui o facto de
em altura se desenvolver em apenas cerca de dois ter­
ços do lançamento das torres.
No seu conjunto, a arquitetura religiosa de Diu não
dispõe de exemplares suficientes para se poder fazer
uma apreciação de conjunto, estabelecendo relações
e determinando especificidades, como a das cobertu­
ras das naves em abóbada de canhão aparente. Merece,
contudo, que se faça a reflexão da sua inserção no con­
texto da arquitetura religiosa portuguesa/católica da
Província do Norte do Estado da Índia, o que por razões
de estrutura e vocação desta obra aqui não pode acon­
tecer. (WR, NG)
> COLÉGIO DO EspíRITO SANTO E IGREJA
DE NOSSA SENHORA DA CONCEiÇÃO
OU DE SÃO PAULO
o documento escrito mais fidedigno sobre este edi­
fício foi visto por Cunha Rivara em janeiro de 1859: uma
inscrição pintada '1no corpo de uma janella tapada" na
igreja: "Aos 7 de Abril de 1601 no sabbe.do antes da
Dominga de Passione o Governadordesta Praça Duarte
de Mello com o Reverendo Padre Vigario da Vara
Manoel Fernandes lançarão a primeira pedra na
Capella desta igreja que delineou o Padre Gaspar Soa­
res da Companhia de Jesus, e pera lembrança se fez
este padrão no anno de 1710':
Recolhendo esta informação e outras publicadas
em Goa nos séculos XIX e xx, o padre Catão escreveu
que a igreja e o colégio foram construídos entre 1601 e
1606, que a igreja foi "reedificada" em 1807, "melho­
rada em 1873 e lageada em 1888':
Deste modo podemos assumir que a igreja e o colé­
gio dos jesuítas em Diu foram construídos entre 1601
e 1606, data indicada pelo padre Catão sem nota de
fonte; que o arquiteto da igreja foi o padre Gaspar Soa­
res (fundador - e traçador? - em 1606 do colégio da
Companhia em Rachai, Goa, como sabemos pela cró­
nica de Francisco de Sousa); que em 1710, por razões
desconhecidas, alguém resoh:-eu fazer recordar a obra
e o seu fundador fazendo colocar uma inscrição numa
das janelas da igreja; que houve obras de teor indiscri­
minado na igreja e/ou no colégio em 1807 e 1873; e que
a igreja foi pavimentada de novo em 1888.
É possível, todavia, avançar uma hipótese sobre a
obra que terá ocorrido em 1807.
o edifício do antigo colégio - hoje ocupado por
vários programas paroquiais - encosta-se ao flanco
norte da igreja. É um quadrilátero regular articulado
por um claustro quadrado com seis tramas por lado no
piso térreo. A fachada principal do colégio, paralela à
da igreja, está separada desta pelo espaço ocupado
pela escada que dá acesso ao piso superior do claus­
tro, uma escada de tipo espanhol, de lanços abertos
subindo numa caixa quadrada, sustentados por pila­
res, aparentemente a única deste tipo existente na
antiga Índia portuguesa. Esta escada exprime-se no
exterior por um tramo como que escavado a toda
a altura da fachada e rasgado por janelas quadradas.
O resto da fachada é absolutamente invulgar para um
edifício colegial dos séculos XVI, XVII ou XVlll: a nível
do piso superior abre-se uma arcaria de tipo loggia,
constituída por onze arcos separados por pilares, ter­
minando na esquina do edifício sem marcação do
cunhal.
A fachada onde se abre esta loggia e o conjunto de
portas e janelas colocadas irregularmente no piso tér­
reo parecem ter sido acrescentados ao quadrilátero do
colégio, porque as divisões a que correspondem dupli­
cam outras servidas diretamente pelas galerias do
claustro. É como se tivesse sido anteposta uma cortina
ou fatia nova à face nascente do colégio.
Uma panorâmica executada pelo engenheiro mili­
tar José Aniceto da Silva em 1833, atualmente no
Arquivo Histórico Ultramarino, representa a fachada
como a vemos hoje. Contudo, uma vista de Diu a par­
tir da fortaleza publicada pelo editor Arthus Bertrand
reproduzindo uma litografia de Eugene Ciceri - tam­
bém no Arquivo Histórico Ultramarino - mostra uma
fachada de seis janelas retangulares em cima sobre seis
portas em baixo, aparentemente separadas por pilas­
tras, composição habitual em alçados da era clássica.
PRovlNCIA DO NORTE
I
NORTE DA INDIA ' D I U ·
1 27
Igreja de
Nossa Senhora
da Conceição
Foto: Nuno Grancn<
o artista cujo nome vem impresso na gravura é
Eug/me Ciceri (l813-1890), um pintor francês de pai­
sagens, classificado por vezes como orientalista por ter
feito representações do Norte de África, mas de quem
nâo se sabe ter ido à Índia. O pai, Pierre-luc-Charles
Ciceri (1782-1868) era também pintor, cenógrafo e
especializava-se em panorâmicas de tipo diorama e
ciclorama, como uma outra de Diu que existe com o
nome do seu filho no já referido arquivo. É possível
levantar a hipótese de que em casa dos Ciceri existis­
sem representações de Diu, que estes artistas decidi­
ram transpor para litografia e fazer gravar em data e
circunstâncias desconhecidas. A vista de Ciceri mos­
traria portanto o colégio fundado pelos jesuítas como
era antes de 1833, a data da panorâmica de Aniceto da
Silva.
Aceitando-se como boa esta hipótese, seria 1807 a
data possível para a obra que substituiu a frente nas­
cente do edifício colegial por aquela que existe hoje.
1807 é o ano no qual se diz que a igreja foi reedificada.
Na igreja propriamente dita, atual Matriz de Diu,
não parece ter havido alterações importantes desde
os anos iniciais de Seiscentos, quando o padre Gaspar
Soares a traçou e foi construída. É um dos mais impor­
tantes edifícios da arquitetura indo-portuguesa, uma
das mais notáveis igrejas da Ásia e da arquitetura cristã
fora da Europa.
Trata-se de uma igreja de nave única, �oberta de
abóbada de canhão articulada por largos caixotões.
A capeia-mar, bastante mais baixa que a nave, tem o
mesmo tipo de cobertura. A nave é antecedida por um
nártex interior sob coro alto e tem, no piso térreo, em
cada lado, cinco nichos semicirculares cobertos com
meias cúpulas de concha, abrigando portas e janelas.
Em cima correm galerias com arcos onde se abrem
portas.
A importância excepcional da igreja não resulta só
da sua evidente beleza, mas do facto de ser a mais antiga
que se conhece no mundo de influência portuguesa,
com alçados laterais articulados por capelas semicir­
culares. Não sabemos se terá sido a primeira deste tipo
a ser construída, se a mais antiga que sobreviveu, se
terão existido outras, talvez em Goa, entretanto desa­
parecidas. Certo é ter sido construída, na mesma época,
apenas a Igreja do Espírito Santo de Margão, também
jesuíta. Este tipo de planta é praticamente inédito fora
da índia antigamente portuguesa, tendo existido em
raros lugares europeus Ce somente em épocas anterio­
res). Corresponde a uma ideia de Sebastião Serlio, por
ele publicada em 1547.
A igreja e o antigo colégio situam-se num dos luga­
res territorialmente mais importantes da parte oriental
de Diu, ou seja, da área urbanizada da ilha. A fachada
128
.
principal enfrenta o caminho que vem da fortaleza a
nascente. Este caminho entra no terreiro da igreja e
passa ao longo da sua fachada sul, seguindo para a
povoação guzerate a poente. O edifício articula, por­
tanto, a fortaleza, a povoação católica - que, a julgar
pela planta de Aniceto da Silva, se situava primordial­
mente a sul, com uma rua orientada para a fachada late­
ral da igreja - e a passagem para a povoação guzerate.
É por isso que o arquiteto traçou, tanto na fachada prin­
cipal da igreja como na fachada lateral sul, composi­
ções arquitetónicas e ornamentais altamente elabora­
das e eloquentes, que constituem outra razão para
considerarmos a igreja wn monumento excepcional.
A fachada principal é uma variação sobre o tema
da fachada do Bom Jesus de Goa, terminada precisa­
mente na altura em que tinha início a obra de Diu.
Paradoxalmente, porém, os jesuítas optaram em Diu
por uma fachada mais italiana e clássica em matéria
de proporção e ordens, mas menos europeia em maté­
ria de expressão ornamental. A fachada tem três ordens
apenas na secção central, contra as quatro de Goa, per­
mitindo assim adotar proporções mais conformes à
tratadística europeia. A ordem inferior é constituída
por pares de colunas soltas e as superiores por pares
de pilastras, uma composição menos variada mas mais
clara do que a de Goa. Os capitéis são todos compósi­
tos, mas o friso da ordem inferior é dórico. Já as largas
pilastras-contraforte de ângulo que enquadram a
fachada e desempenham o mesmo papel que as (muito
mais sóbrias) pilastras de laterite do Bom Jesus perten­
cem a uma ordem original, entre o jónico e o compó­
sito de folhas de palma. Esta ordem, talvez entendida
como ática, prolonga-se na fachada lateral sul. O topo
da fachada é também uma variação sobre temas do
Bom Jesus: a voluta-chacra, o frontão reta, o óculo
redondo com cartelas flamengas. Todos os temas orna­
mentais são de escultura mais simplificada que aque­
les que aparecem em Goa, e surge um tema novo nas
ombreiras das janelas do primeiro piso: os termos­
-atlantes.
Não sevê um único motivo não europeu, antes tudo
parece ter provindo de desenhos italianos ou flamen­
gos, mas a escultura simplificada e o tratamento com
cal branca fazem a fachada parecer menos europeia
que as composições do mesmo tipo que vemos nas
igrejas da Companhia em Goa e em Baçaim construí­
das na mesma época.
Na fachada lateral, vigorosamente articulada por
pilares separando os tramos, o arquiteto fez alternar
janelas retangulares e óculos no piso de cima. Um ele­
gante soco servindo de banco percorre a base da
fachada. No topo, corre uma balaustrada entre piná­
culos esféricos. (PVG)
P ATRIMÓNIO DE O RIG EM P ORTUGUES A N O M U N D O : A RQ U IT E TU RA E U RB A N IS M O
>
Cruzeiro e
g
I reja de
São Francisco
Foto: WaJter RO$sa
CONVENTO E IGREJA DE SÃO FRANCISCO
A fundação de um convento em Diu era um projeto
dos franciscanos desde a década de 1530, mas só se
concretizou em 1 592 ou 1 593, quando os franciscanos
recoletos da Custódia da Madre de Deus, muito ativos
na Província do Norte, conseguiram fundar a casa por
mão de Frei António dos Reis, com o empenhamento
ativo do governador da praça, Pedro de Anaia. O título
de fundação foi Nossa Senhora da Porciúncula, ou dos
Anjos. Os títulos de Nossa Senhora da Conceição ou
São Francisco de Assis são recentes.
No tempo em que Frei Paulo da Trindade escreveu
a crónica dos franciscanos no Oriente, a década de
1630, moravam no convento de Diu entre doze a
quinze frades. O convento serve hoje de hospital, e as
dependências conventuais estão muito maltratadas.
A planta de Diu, traçada em 1833 por Aniceto da Silva,
mostra o conjunto como ainda se encontra hoje no
essencial: a igreja vira a fachada principal a sul e tem
o convento a poente, articulado em volta de um claus­
tro. Um segundo claustro, mais pequeno, a norte do
primeiro, com uma banda edificada a poente, indi­
ciava o começo da expansão do convento, que acabou
por não se verificar.
Situado numa pendente suave a sul, o conjunto
eleva-se numa plataforma que é nobilitada por um
adro acessível por uma grande escadaria em L, que dá
•
acesso as duas fachadas da igreja: a lateral, a nascente,
e a frontal, a suL O cruzeiro assinala o canto do adro,
onde hoje cresce também uma grande árvore.
A fachada lateral da igreja é tão importante como a
fachada frontal, porque está voltada ao caminho que
vem da fortaleza e da povoação cristã. Articula-se em
seis tramas separados por contrafortes rematados a
pináculos esféricos. No terceiro tramo a contar da
fachada abre-se uma porta.
A fachada frontal é antecedida por uma galilé de
três arcos, tema que pode ter sido característico da cul­
tura projetual dos franciscanos na Índia, embora
tenham vindo até nós muito poucos casos: no norte, a
igreja conventual de Baçaim, São João Batista de Taná
(a julgar por fotografias antigas), Mahim de Bombaim
(de acordo com uma gravura inglesa); em Goa: Nerul,
Parrá. É provável que outras galilés isentas tenham sido
incorporadas no corpo das igrejas, com o acrescento
de coros altos (Pomburpa, Penha de França).
Apresentava uma galilé deste tipo a igreja-mãe da
Custódia da Madre de Deus na Índia, a famosa igreja
do Convento da Madre de Deus de Daugim, demolida
no século XIX e conhecida apenas por uma gravura
publicada por Lopes Mendes. Esta gravura mostra tam­
bém que a existência na igreja de Diu de um adro aces­
sível através de uma escadaria em L pode ter sido ins­
pirada pela desaparecida igreja de Daugim (Goa).
A igreja de Diu é de nave única, coberta por abó·
bada de canhão sem telhado exterior, como é hábito
neste território. A capela-mor, mais baixa, tem uma
abóbada do mesmo tipo, mas decorada de caixotões.
Em época posterior à da construção inicial, talvez no
início do século XVIII, os cantos da nave do lado da
cabeceira foram chanfrados por duas capelas em forma
de nichos semicirculares cobertos por meias cúpulas
concheadas, à maneira da igreja dos jesuítas.
O elemento mais notável do convento é atorre, loca­
lizada ao lado da capela-mar à maneira franciscana.
Tem dois pisos de altura e, como remate, wna cúpula
com lanternim. Vê-se de muito longe em Diu. A pers­
pectiva desenhada por Aniceto da Silva mostra-a com
quatro pisos abertos porjanelas, além do zimbório, mas
pode ter-se tratado de exagero expressivo. (PVG)
EQU I PAME N T O S E I N FRAESTRUTURAS
>
ESCOLAS
A instrução primária no território de Diu estava
dividida entre escolas de língua portuguesa e escolas
de gujarati. Ko final do século XIX existiam quatro esco­
las de português: duas situavam-se na cidade, no antigo
Convento de São Paulo e no Recolhimento de Santana;
duas fora da cidade, em Vanakbara e outra em Goghla,
ambas sem instalações próprias.
Em contrapartida, como a população não-católica
do te.rritório era mais afluente e maioritária (cerca de
98% em 1899) foram as escolas de gujarati que ganha­
ram relevo arquitetónico. Destacam-se três constru­
ções deste tipo, todas na cidade de Diu.
A primeira estrutura, a Escola Régia de Guzerate,
foi edificada em 1895 por iniciativa de Probudás Vir­
chande, comerciante em Moçambique, e localiza -se
PRovíNCIA D O NORTE
I
NORTE D A í ND IA ' DIU · 129
cerca de duzentos e cinquenta metros a sudoeste do
Mercado da Alfândega. É um ediffcio de dimensões
modestas, que reflete a influência dos bangalós da
administração britânica no subcontinente Indiano.
Rodeado por uma varanda particada, a sobriedade da
sua traça e a importância dada às aberturas e ventila�
ção revela a orientação higienista da época. Atual­
mente ainda é uma instituição de ensino.
A segunda escola foi aberta em 1927 e destinava­
-se ao sexo feminino. Recebeu o nome da sua funda­
dora, Pani Bai, mulher de Bhagvandas Laxmichand,
cujo nome figura sobre a entrada principal. Localizado
a cerca de quatrocentos metros a oeste da Igreja de
São Paulo de Diu, o edifício pode ter resultado da
reconversão de uma estrutura mais antiga. Apresenta
uma morfologia retangular alongada e desenvolve-se
em dois pisos. A fachada principal articula-se através
de tramas separados por pilastras, destacando-se a
zona central, com o acesso principal no piso térreo e
provida de uma varanda saliente no piso superior. Esta
varanda sofreu uma intervenção em 2008. Em redor
da entrada existem vários relevos e motivos decorati­
vos, pintados em tons vivos. No resto da fachada
abrem-se janelas em arco, sendo as de baixo igual­
mente decoradas com esculturas e relevos figurativos,
referentes à religião hindu. A rematar o volume, existe
uma balaustrada, elemento comum à maioria das edi�
ficações em Diu.
o terceiro edifício, construído cerca de 1931, está
igualmente associado à ação filantrópica de Pani Bai,
sendo também conhecido por este nome. Na porta
principal figura o nome de Amradal Jamnugás, prová­
vel benfeitor da construção. Situa-se duzentos e cin­
quenta metros a leste da porta principal da linha amu­
ralhada da cidade. O edifício, de forma retangular,
afasta-se da rua através de um pequeno jardim para o
qual se abre através de uma colunata. A cobertura é
plana e rematada por uma balaustrada. As fachadas
apresentam profusa decoração, que sobrevém nos ele­
mentos estruturais, onde figuram motivos vegetais e
geométricos de origem indiana. (ASF, SM)
>
MERCADO
Desde o início do século XIX exjstiam no local ime­
diatamente a sul do cais da alfândega de Diu um mer­
cado e uma praça, onde se encontrava o pelourinho,
que tem inscrita a data de 1770. A entrada neste espaço
era feita através de dois arcos: o da Porta de Mar e o da
Terra.
Segundo Miguel de Paiva Couceiro, governador de
Diu entre 1948 e 1950, o largo estava rodeado de muros
que vedavam terrenos particulares, e as estruturas anti­
gas encontravam-se em ruínas. Com o acordo dos pro­
prietários, foram derrubados os muros e construído
um novo mercado, seguindo o desenho das antigas
arcadas e balaustradas. O Novo Bazar, como era chaEstola Pani Bai
foto: Viclor Mestre
\ 30
.
?ATf'I.\M6N\O
DE
ORIGEM
PORTUGUESA NO
1'1UN D O: ARQUlTETURA E URBANISMO
várias diferenças face ao edifício atual, nomeada­
mente a supressão da platibanda e o redesenhar das
caixilharias. No lado poente existe uma pequena cis­
terna, presentemente atulhada de lixo.
A construção tem uma abordagem semelhante aos
edifícios públicos que seconstrllÍam em Goa, com mui­
tas afinidades com a arquitetura doméstica. (ASF, SM)
HABITAÇ Ã O
Mercado
Foto: NurlO Grançho
mado na época, terá ficado concluído pouco depois da
saída do governador.
a Mercado organiza-se em dois espaços comple­
mentares: praça, onde os comerciantes montam os
seus pontos de venda livremente, e edifício, que
encerra o espaço da praça para o lado do mar, onde se
organizam por debaixo das arcadas em bancadas que
se abriam para o exterior.
O edifício tem acrescentos para o lado da praça e,
recentemente, as arcadas do lado do mar foram encer­
radas com uma grelha que o tornou mais compacto e
alterou substancialmente o seu modo e:e funcionar.
Apesar de estas alterações terem complicado a leitura
das relações que a estrutura original criava entre a
cidade e o mar, continua a ser possível constatar ter
sido uma das obras arquitetónicas mais interessantes
do ultimo período de governação portuguesa em Diu.
(ASP, SM)
>
TRIBUNAL
a Tribunal da Comarca de Diu funcionou no antigo
Convento de São Paulo até à reconstrução da casa de
Luiz José, próxima da Alfândega, em 1866. Desde então,
esse edifício passou a albergar os Paços da Câmara, a
Conservatória e o Tribunal. Em data incerta dos inícios
do século xx, o Tribunal foi transferido para novo local,
na Rua do Conde de Torres Novas. Ali esteve até 1961,
numa estrutura de aparência residencial defronte de
um pequeno largo.
a edifício, de formaretangular, apresenta a fachada
principal no topo nascente, voltado para o largo nas­
cente. Por aí se acede ao primeiro piso sobreelevado
através de uma escadaria. Nova escada conduz ao piso
superior, onde funcionavam os gabinetes do magis­
trado e do procurador. Na fachada norte, contígua à
rua, rasgam-se diversas janelas de sacada, não exis­
tindo qualquer porta. Uma fotografia de 1955 revela
A cidade histórica de Diu mantém uma estável uni­
dade urbanística que a caracteriza desde praticamente
o seu assentamento, apesar de o núcleo inicial em
redor dos templos católicos e edifícios administrativos
se encontrar algo fragilizado pela descaracterização,
ruína de alguns edifícios fundadores e, sobretudo, pela
galopante urbanização de novos bairros incaracterís­
ticos, "invasores" de territórios outrora expostos à pai­
sagem de uma cidade europeia e agora em risco de
"dessacralização':
Alguns núcleos ou bairros permanecem contudo
estáveis, embora também aí se tenha iniciado a subs­
tituição de edifícios de reconhecida qualidade arqui­
tetónica, identitária desta cidade, por outros desqua­
lificadores da unidade urbana.
A casa torreada, associada a volume(s) com pátios
e açoteias, será sem dúvida a tipologia eleita, porven­
tura a que melhor expressa a arquitetura vernacular
deste lugar de encontro de culturas e de sínteses, entre­
tanto aqui apuradas e também difundidas. Métodos,
tecnologias de construção e sobretudo modos de habi­
tar associados à expressão da casa configuram uma
identidade própria a esta tipologia fortemente mar­
cada pelo islão, ainda que o hinduísmo tenha também
uma ancestral e pujante presença na cidade, havendo
assim influências mútuas.
A casa torreada identifica-se pela elevação sobre os
demais de um volume de base quadrangular, ainda
que, numa fase posterior, por associação de novos
compartimentos, também surja longitudinal. A proxi­
midade entre casas desta tipologia na unidade de quar­
teirão constitui um dos aspectos mafs relevantes na
expressão urbana. Por vezes circulamos por labirínti­
cas vielas que terminam frequentemente em becos,
rodeados de torreões. Apenas dois núcleos urbanos
distintos integram esta tipologia, respetivamente junto
ao Mercado e antigo Largo da Alfândega, constituindo
o núcleo de casas de famílias abastadas, e o núcleo de
casas de menor dimensão e condição social junto à
porta poente.
Estas casas-torre, da tradição dos portos mediter­
rânicos, ganharam o título de "avista-navios" nas ilhas
atlânticas e nalguns portos portugueses; em Diu estão
PRovfNC IA D O N ORTE I N ORTE DA f NDIA
•
D IU
13 1
2
também relacionadas com a vida marítima, funcio­
nando como indispensáveis mirantes de mar.
No bairro antigo, junto ao mercado, anda persis­
tem algumas importantes casas-torre como a da fami­
lia Bhasuber Grina Parsiwada, exemplo perfeito da
casa aristocrática hindu de Diu. A espacialidade
encontra-se devidamente hierarquizada a partir da
sala de entrada, onde se recebem as visitas resguar­
dando a intimidade da casa numa sucessão de espa­
ços. No piso térreo, o(s) pátio(s) regula(m) parte dessa
hierarquização, principalmente as atividades domés­
ticas, permitindo ainda a ventilação dos comparti­
mentos, sendo um destes, ainda não há muitos anos,
para alojamento da vaca (que fornecia leite fresco).
O torreão constitui, na continuidade do átrio, o núcleo
nobre da casa, e nesse sentido tanto as paredes como
os tetos, principalmente as imponentes vigas de
madeira, acolhem delicadas e coloridas pinturas
decorativas. A maior curiosidade destes torreões será
o piso intercalar, com 1,10 metros de pé-direito entre
a sala do piso térreo e o quarto do dono da casa, para
guardaras cereais. Funciona como sequeiro com ven­
tilação transversal, garantida através de frestas prote­
gidas com rede, e por se encontrar sobrelevado do
plano da rua, ficando assim também protegido dos
roedores e de outras pragas. As escadas "esculturais"
desenvolvem-se com altos e estreitos deiTaus até
alcançarem o alçapão de piso. Um último degrau, de
canto, com a dimensão de um pé, assinala o patamar
do quarto "mirante'�
As açoteias, utilizadas para secar especiarias e
outros produtos, recolhem também as águas pluviais,
comunicando entre si por orifícios junto ao pavi­
mento, apesar dos muretes elevados por unidade.
Estas casas são elevadas em alvenaria de pedra branca
calcária e os pisos constituídos por grandes vigas de
madeira onde assentam placas da mesma pedra arga­
massada e por vezes ladrilhada. A porta da rua, como
algumas do interior, é engradada, formando favos qua­
drangulares delicadamente lavrados, recebendo a
porta da rua pequenos pingentes em latão. No exte­
rior, destacam-se os baldaquinos ou molduras supe­
riores, repletos de composições profusamente lavra­
das com temas hinduístas; curiosamente alguns
exemplos, construídos em meados do século xx, inte­
gram temas art nouveau reinterpretados. Estas portas,
tal como outros aspectos desta tipologia com e sem
torre, transferiram-se para a Ilha de Moçambique,
onde se instalou uma importante colónia de famílias
provenientes de Diu.
A casa-torre de Diu terá ainda uma identidade fun­
dadora difusa europeia, presente em alguns exemplos
observados, nomeadamente na casa integrada no
1.32 ·
convento quinhentista de Santana, e no Fortim de
Patelwadi. Em ambos os casos, a torre organiza a cons­
trução em termos defensivos, localizando-se em ele­
vações de nítida vigiJânda sobre o território. No caso
conventual, a sua localização estará articulada com a
própria fortaleza da cidade, como ponto de observa­
ção privilegiado sobre o vasto oceano, contra a possi­
bilidade de um ataque corsário.
Outro tipo marcante é o das casas hindus com forte
influência da art nouveau europeia, que representam
uma parte significativa da atual identidade arquitetó­
nica e histórica de Diu, formada no século xx. Da mis­
cigenação cultural e respectiva estabilização de uma
certa gramática formal terá surgido um período fulgu­
rante, cuja presença física quase exclusivamente se
localiza no Bairro da Porta, a poente da cidade. Casas
de dois e três pisos apresentam varandas e alpendres
profusamente decorados com frisos, balaústres e rele­
vos figurativos, abstratizantes e realistas, além de ele­
mentos de composição oriental/hindu. Pátios com
arcadas de colunas e Hntéis exuberantemente decora­
dos, balcões autonomizados de delicada filigrana
dependuram-se nas fachadas e elegantes alpendres
com beirais rematados por lambrequins de madeira.
Interiormente, estas casas mantêm a tradição tipoló­
gica, quase sempre com pátio, ainda que tenham assi­
milado discretamente algumas nuances espaciais,
principalmente ao nível da drculação horizontal e ver­
tical. As salas e salões apresentam-se profusamente
decorados, fundindo a arte moderna com a tradicio­
nal arte oriental, onde o mobiliário procura acompa­
nhar a expressão arquitetónica.
As portas neste bairro atingem detalhes excecio­
nais: por um lado mantêm a solidez de uma fortaleza,
mas por outro acolhem delicados rendilhados deco­
rativos, tanto na caracterização das madeiras como
nas molduras alpendradas. As cores exuberantes
combinam-se num caprichoso jogo de tonalidades,
acentuando a presença da casa no plano da rua. Estas
casas pertencem a ricas famílias de comerciantes,
atualmente a viver em Bombaim, encontrando-se
quase praticamente encerradas desde a integração de
Diu na União Indiana.
Esta arquitetura vernacular combina diversas fon­
tes, provavelmente de forma empírica e por vezes ingé­
nua; contudo, imprimiu uma nova matriz identitária a
este lugar, ao reinventar a ancestral arquitetura urbana
local numa perspectiva de modernização da lingua­
gem formal, na introdução de novas escalas e harmo­
nias, impondo ainda uma revisão tipológica, atuando
como catalisador de um novo e derradeiro tempo de
mudança sociocultural. (VM)
PATR IM Ó N I O DE O R IG EM P OR TUGUESA ��o M U N D O : ARQ UITE TURA E URB A N IS M O
espaço de receber, comer e estar. A tardoz localiza-se
a zona de águas, onde a pequena cozinha integra uma
zona de lavagem de roupa e banho, enquanto o sani­
tário se individualiza.
Este bairro constitui uma experiência exemplar no
contexto dos conjuntos habitacionais projetados e
construídos no século xx nos territórios de influência
portuguesa, pela capacidade de fundir princípios do
modernismo internacional ao clima local e às exigen­
tes imposições programáticas e económicas e, ainda,
aos aspectos fundamentais da culturalocal, tornando-o
numa obra de elevada qualidade, caracterizada pelo
rigoroso cumprimento da sua função social e pelo
universalismo cultural da expressão arquitetónica.
(ASF, SM, VM)
Bairro da
Associação
do Momepio
da Polícia do
Estado da índia
fOIO; Viclor Mestre
>
BAIRRO DA ASSOCIAÇÃO DO MONTEPIO
DA POLíciA DO ESTADO DA íNDIA
Nos últimos anos da existência do Estado da Índia,
houve alguma preocupação em melhorar as condições
domésticas das populações menos favorecidas. No ter­
ritório de Diu subsistem dois exemplos das interven­
ções disso resultantes.
O Bairro da Associação do Montepio da Polícia do
Estado da Índia situa-se muito perto do antigo con­
vento franciscano da cidade. No contexto do território,
as suas características revelam-nos uma arquitetura
modernista marcada pela métrica, rept:!tição e ritmo
de uma fachada-grelha abstrata, interceptada longitu­
dinalmente por uma galeria em consola, terminando
nos topos com duas elegantes escadas, destacadas das
empenas.
Pelo menos formalmente, este bairro faz parte de
um conjunto de outras intervenções de habitação eco­
nómica para funcionários do Estado, como será o caso
do Bairro São Francisco Xavier, em Pangim, onde um
dos blocos também recorre ao tema da grelhagem qua­
drangular na fachada principal, embora de forma mais
modesta. Todo o conjunto aposta na repetição de
módulos (fogos), que se associam e sobrepõem for­
mando dois pisos, em unidades de pares de grelhagens
de modo a deixar vazios de idêntica dimensão entre
novos agrupamentos que marcam as entradas.
Verifica-se uma grande coerência entre tipologia e
expressão arquitetónica, que procura levar ao limite a
otimização do espaço útil interior, resolvendo de forma
ímpar o recato entre vizinhos no espaço privado exte­
riar, resguardado por detrás das grelhas. Esse espaço é
acessível por galeria, no caso do piso superior, e longi­
tudinalmente no recuo do passeio no piso térreo. No
fogo, a organização do espaço comum reduz a área de
circulação ao mínimo, resguardando a intimidade da
casa através de uma subtil parede de transição entre o
>
BAIRRO DOS PESCADORES DE BRANCAVARA
O Bairro dos Pescadores de Brancavara (Vanak­
bara), situa-se no extremo oeste da Ilha de Diu. Esta
povoação desenvolveu-se a partir de uma comunidade
de pescadores, vindo a tornar-se o terceiro núcleo
populacional do território, após a cidade de Dit,l e
Gogolá. Par volta de 1630, edificou-se a Igreja de Santo
André, e em 1774 houve necessidade de construir nova
fortificação para defender a povoação.
Construído nos derradeiros anos da presença por­
tuguesa, localiza-se a oeste da igreja, elemento agrega­
dor da comunidade. A organização urbana linear
resulta da associação da casa mínima, que introduz
uma escala e expressão arquitetónica contidas. Res­
ponde assim ao enquadramento saciocultural da
comunidade que lhe está na origem, bem como às limi­
tações económicas do projeto. A singular unidade
urbana do Bairro dos Pescadores resulta das ruas dis­
postas paralelamente à praia, próximas do areal,
acedendo-se ao mar por travessas perpendiculares
onde todo o bairro flui, tendo de permeio uma terra
comum utilizada como zona de despejo e seca de peixe.
PROV(NCIA DO NORTE I NORTE DA INDIA '
DIU · 1 33
Bairro dos
Pescadores
de Brancavara
Foto: Victor Mestrt
Uma estrutura palafítica elementar com passadei­
ras de madeira avança sobre o mar para acesso e amar­
ração dos barcos. Contudo, é em terra que a vida social
ligada à lida do mar decorre, nas ruas enquanto natu­
ral prolongamento das pequenas e estreitas casas, reco­
lhidas num alpendre que protege do clima e aconchega
a ínfima entrada, que constitui um discreto sinal de
composição repetido ao longo dos planos de fachada.
Este bairro remete-nos para o pioneiro bairro
modernista dos pescadores de Olhão, no sul de Portu­
gal, do arquiteto Carlos Ramos. Encontramos seme­
lhanças na unidade e composição urbana, com um
certo espírito modernista, e também nalguns aponta­
mentos como as escadas nos topos das ruas para acesso
às açoteias, apesar de as casas maioritariamente terem
cobertura de duas águas.
As paredes das casas do Bairro de Brancavara são
elevadas recorrendo à tecnologia tradicional, em blo­
cos de pedra de areia trabalhados à mão, argamassa­
dos, rebocados e caiados de branco. Pontualmente
observam-se cores fortes de pigmentos. As coberturas
são em armação de madeira protegida por telhas cerâ­
micas e abatidas, formando uma única cobertura que
acentua a horizontalidade do conjunto. Do alto do adro
da Igreja Matriz observa-se a dimensão e a organiza­
ção urbana do bairro, integrado numa orografia marí­
tima específica e autonomizado da urbanidade dis•
persa de Brancavara. (ASF, SM, VM)
BIBLIOGRAFIA: A Jornada Continua (30/12/59 a 39/12/60) 2 anos de Go­
verno do Estado da tndia do Sr. General Manuel A. Vassalo e Si/lia, Goa,
1960, pp. 276-277, 311-313.
A R Q U I TETURA RURAL
> A CASA TRADICIONAL
A planície domina praticamente todo o território,
quer na ilha, quer na pequena porção do continente
que até 1961 esteve sob dominação portuguesa. Nes­
sas grandes extensões de terreno aberto a escassez de
água faz-se sentir, devido à porosidade do solo, de tom
amarelado, resultante da desagregação dos calcareni­
tos oolíticos, pelo que os poços são a alternativa na
obtenção de água para rega, tornando extremamente
difícil a agricultura. Nalgumas localidades observam­
-se grandes eiras circulares e respectivas debulhas.
Pequenas matas de diferentes espécies cercam os
campos e aí se acolhem as aldeias ou pequenos aglo­
merados.
As palmeiras Garli e outras espécies bordejam
grandes extensões dunares, interrompidas pontual­
mente por salinas. Os núcleos mais significativos,
como PÓ drama, Bunxivará, Brancavará e Gogolá,
desenvolveram-se enquanto estruturas urbanas irre-
1 34
guiares, destacando-se nalgumas delas a igreja, o res­
pectivo adro e o acesso enquanto elementos estrutu­
rantes; nalguns casos terão constituído um tímido
núcleo embrionário de uma organização administra­
tiva, onde a igreja desempenhava uma função deter­
minante na coesão social, destacando-se das demais
Fudam e Brancavará.
As tipologias rurais são predominantemente de
piso térreo, com alpendre ao correr da fachada, por
vezes parcialmente ocupado com a adição de um com­
partimento num dos lados. Genericamente, as cober­
turas são de duas águas, proporcionando em algumas
o aproveitamento do desvão para arrumas diversos,
através de um improvisado estrado de varas e pranchas
que se apoiam em esteios e frechais de madeira, for­
mando o suporte da armação principal.
No caso das aldeias de Malála e Nagoá, as casas
agrupam-se encostadas entre si, formando planos de
ruas muito estreitos para proteção solar e da chuva da
monção. São os alpendres fronteiros que permitem
maior desafogo e consequentemente um lugar de con­
vívio entre familiares, saudação e conversação entre
vizinhos. Um singelo muro de alvenaria corrido} para­
lelo à fachada, não só delimita o espaço exterior coberto
privado como serve de banco e de suporte das colunas
em alvenaria rebocada, ou em toros de madeira. As
casas são elementares na sua estrutura tipológica: pra­
ticamente são divididas entre a zona de confecção, ou
seja, a cozinha sempre com fogo de chão em pequena
elevação formando uma fornalha e respectiva área de
comer em redor} tendo no lado oposto uma zona divi­
dida por um tabique rebocado. Nesta área guardam­
-se haveres diversos, como roupa, recipientes com pro­
dutos da terra, etc. Em ambos os espaços se observam
camas de estrado de corda tensionada entre travessas,
formando um quadro com pés de madeira. Em algu­
mas casas e apenas sobre a zona oposta à cozinha,
PA TRIMÓNIO DE ORIG EM PORTUGUESA N O MUNDO: ARQU ITETUR.A E URBANISMO
Casa tradicional
Foto: Victor Mestre
o estrado superior, quando totalmente compacto, per­
mite a sua utilização, através de um alçapão, para arru­
mas mais valiosos e pontualmente para dormir.
Nas aldeias de Patelwadi e Buchiwadi, as casas de
dois pisos destacam-se das demais pelas varandas cor­
ridas em madeira. Nesta como nas outras aldeias, as
atividades artesanais mantêm uma importante linha­
gem de família de artesãos, com destaque para os car­
pinteiros. Nas casas de sobrado, a escada é interior em
madeira e a compartimentação mantém-se elementar.
O piso sobradado é composto por vigas de madeira
colocadas no sentido da menor dimensão, recebendo
pranchas de forro ou placas de cantaria argamassada
sobre o vigamento, como nas casas da cidade de Diu.
As coberturas são de duas águas e porvezes rasgam­
-se vãos nas empenas em ambas as tipologias, respec­
tivamente de piso térreo e sobradadas. A elevação das
paredes exteriores e interiores, quando estruturais, é
feita em alvenaria de pedra calcária local, que se pre­
para com instrumentos de corte manual, como sucede
em Goa com a laterite, seguindo ancestrais bitolas.
As argamassas tradicionais de areia e cal estão atual­
mente a ser substituídas pelo cimento, mantendo-se
contudo as tintas de pigmento misturadas na cal de
cores fortes, ainda que o branco predomine.
A casa linear modesta de empena com porta e duas
águas, em acentuado desaparecimento, constituirá o
testemunho de uma tipologia primitiva'tlssociada às
hortas, aos campos da lavoura e respectivas eiras.
Extremamente baixa, esta casa mais parece um abrigo
temporário, ou um celeiro como os de Goa em laterite;
no entanto, até há bem pouco tempo constituía uma
prolífera tipologia, que com grande probabilidade terá
sido o modelo básico das tipologias elementares. Na
aldeia de Patelwadi, observamos esta pequena cons­
trução localizada fora do núcleo e junto do mesmo,
onde a porta da fachada de empena curiosamente
transita para a fachada lateral, proporcionando um
pé-direito mais favorável, em virtude da necessidade
de altear os frechais laterais. Ainda na mesma aldeia
observamos o que parece ser a continuidade da inova­
ção da mesma casa, em termos de escala, proporção e
compartimentação, com a introdução de um simplifi­
cado alpendre.
O território de Diu engloba ainda a península e a
aldeia de Gogolá, densamente povoada, com o núcleo
fundador junto ao arco da aldeia sobrepujado por uma
casa-torre, e o cruzeiro, símbolo do cristianismo neste
lugar. A maioria das casas é de piso térreo com cober­
tura de duas águas, ainda que na zona central tenha
dois e três pisos, algumas com varandas e outras com
açoteias. (VM)
BIBLIOGRAFIA: Brito, R. S .,
Goa e a s praças do Norte,
Lisboa,
Dongri [Dongrim] (íNDIA)
ARQUI TETURA REL I G I O SA
>
IGREJA DE NOSSA SENHORA DE BELÉM
Esplendidamente localizada num sítio ainda into­
cado pela urbanização de Salcete, a fachada virada a
norte, ao largo do rio de Baçaim, com a antiga cidade
escondida pelo coqueiral e a bruma na outra margem
a noroeste, a Igreja de Nossa Senhora de Belém de
Dongri mantém provavelmente o perímetro murário,
O tipo arquitetónico, O terreiro onde se localiza e a
situação relativamente ao povoado com que terá sido
fundada pelos jesuítas cerca de 1613. Esta data, apensa
à fachada já no século xx, corresponde à colocação
do primeiro pároco, Francisco de Azevedo, SJ.
A igreja é de nave única coberta de telhado e capela­
-mar com abóbada ou teta liso de canhão, rebocado}
mas é natural que seja ou tenha sido abóbada, a julgar
pela presença exterior de contrafortes. A fachada apre­
senta três tramos, três portas em arco, sendo a central
a maior, e duas sineiras a que correspondem mais dois
tramas muito estreitos.
O argumento essencial a favor de que o perímetro
murário da igreja seja ainda primo-seiscentista é a
forma interior de algumas janelas: redesenhadas
modernamente de forma gótica, mantiveram o carac­
terístico recorte em asa de cesto que encontramos por
toda a parte no norte e, aqui e ali, em Goa ou Kerala,
em edifícios de Quinhentos ou Seiscentos. Em 1902 foi
feita e cronografada com esta data a obra da escada
que, a sul, por detrás da sineira do mesmo lado, dá
acesso exterior ao coro alto sobre a entrada.
1966.
PRoviNC1A DO NORTE I NORTE DA IND1A
•
DIU " DONGRI .
1 35
Igreja de
Nossa Senhora
de Belém
(pormenor)
Foto: AceNO BOB.
UClOAAQ
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Diu: urbanismo, arquitectura militar e