UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA DÉBORA DA SILVA PAULA ULTIMI BARBARORUM: OU DA SUPERSTIÇÃO À LIBERDADE DE PENSAMENTO FORTALEZA - CEARÁ 2015 DÉBORA DA SILVA PAULA ULTIMI BARBARORUM: OU DA SUPERSTIÇÃO À LIBERDADE DE PENSAMENTO Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia do Programa de PósGraduação em Filosofia do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Filosofia. Área de Concentração:Ética. Orientador: Prof. Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso. FORTALEZA - CEARÁ 2015 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará Sistema de Bibliotecas Paula, Débora da Silva. Ultimi Barbarorum: ou da superstição à liberdade de pensamento [recurso eletrônico] / Débora da Silva Paula. - 2015. 1 CD-ROM: il.; 4 ½ pol. CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico com 100 folhas, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm). Dissertação (mestrado acadêmico) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortaleza, 2015. Área de concentração: Ética Orientação: Prof. Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso. 1.Superstição. 2. Barbárie. 3. Liberdade de pensamento. 4. Spinoza. I. Título. 2 3 4 Aqueles a quem a barbárie, o fundamentalismo e a intolerância retiraram a perseverança no existir. 5 AGRADECIMENTOS Inicialmente, meus sinceros agradecimentos a esta instituição: a Universidade Estadual do Ceará e ao Mestrado Acadêmico em Filosofia, representado pelas pessoas do Professor Doutor Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior e do Professor Doutor Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso, que foi também meu orientador e me confiou a tarefa de produzir mais este trabalho acadêmico. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de estudo que me permitiu dedicar-me inteira e exclusivamente à produção desta dissertação. Gostaria de agradecer ainda ao Professor Doutor André Menezes Rocha por ter aceitado, tanto a coorientação quanto a composição desta banca de mestrado; assim como ao Professor Doutor Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd que completou a composição desta. Após dois anos de estudos, o mestrado, além da possibilidade de receber o título de mestre, proporcionou-me algumas amizades que folha nenhuma de agradecimento seria suficiente para representar o quanto deste sentimento especial trago comigo, pois pessoas como Fabrícia e Jean foram essenciais nessa caminhada e estiveram sempre dispostos a trocar experiências filosóficas ou a “jogar conversa fora” nos momentos necessários. Obrigada! À Karine e Daniele, Daniel e Marcela e com eles, à todos os integrantes do grupo de pesquisa (até mesmo àqueles que há muito se debandaram para novos ares), grupo do qual faço parte desde os primórdios da minha graduação, agradeço pelos debates e troca de experiências acerca de Spinoza e de quaisquer outros assuntos. Agradecer à minha família é também indispensável! Eles que me forneceram estrutura e forças para concluir mais essa etapa de minha vida acadêmica. Aos meus pais, que me deram a vida e que são os responsáveis por eu ter tido coragem para chegar até aqui, por serem meu apoio, por confiarem sempre em minhas decisões e sempre me incentivarem a buscar aquilo que desejo. À minha irmã (minha quase irmã gêmea) por ser mais que somente uma irmã, por ser minha grande amiga, minha companheira e um apoio em todos os momentos, de sorrisos às lágrimas e também minha tradutora oficial. Amo vocês, obrigada! À minha irmã postiça Cibelle, pelos conselhos, pela amizade, pelo carinho, pela torcida, pelo seu amor de irmã. Obrigada. Além dela, há ainda muitas pessoas a quem eu gostaria de agradecer pela amizade que me foi sempre presente, torcendo por mais essa conquista e me incentivando a ir cada vez mais longe e ser cada dia melhor; entretanto, não quero omitir a 6 nenhum. Portanto, sintam-se agradecidos todos aqueles que sempre se fizeram presentes nesse período e sabem que o foram. Gostaria de agradecer ainda, ao Jefferson, meu companheiro, meu noivo e meu amigo. Seu carinho e incentivo, em todas as circunstâncias foram também essenciais para esse momento. Agradeço por tudo que me ensinou e pela dedicação que lhe é característica e uma de suas maiores qualidades. Amo você. Finalmente, gostaria de agradecer à Deus, o grande responsável pela minha vida, pelo sopro de vida que me possibilitou acordar todos esses dias e que me deu forças nas adversidades para que eu pudesse concluir mais esta etapa. Obrigada Deus, ou natureza, ou substância... 7 RESUMO O episódio que terminou por vitimar Joah de Witt juntamente com o seu irmão nas ruas de Amsterdã ocasionou uma das mais simbólicas atitudes de Spinoza: os cartazes escritos em latim que denunciavam a barbárie cometida pela multidão incitada pelos pastores calvinistas contrários ao governo dos de Witt. E foi tal atitude que incitou a produção desta dissertação. Segue-se disso que sua atitude nos possibilita ainda refletirmos sobre a simpatia que o pensador nutria pela república e de como a sua estrutura impossibilitaria a existência de quaisquer atitudes bárbaras. Na presente dissertação desenvolveremos um percurso argumentativo que se inicia com a questão dos afetos, de sua relação com o conhecimento e da relação destes com a superstição. Além disso, analisaremos o desenvolvimento do Tratado Teológico Político (1670), obra que nos serviu de base para toda a nossa argumentação. Assim ao compreendermos o método contido no Teológico Político e as leis apresentadas pelos profetas nas Sagradas Escrituras, passaremos a argumentar sobre a questão política em Spinoza, assim como suas teorias sobre as formas de governo. Todo esse percurso nos servirá como fundamento para compreendermos o pensamento de Spinoza acerca da barbárie e da liberdade de pensamento. Ambas são o ponto final do nosso caminho por toda essa questão política em Spinoza. Palavras chave: Superstição. Barbárie. Liberdade de Pensamento. Spinoza. 8 ABSTRACT The episode that killed Joah de Witt together with his brother in the Amsterdã streets caused one of the most simbolyc attitude of Spinoza: the written posters in latin that denuncied the barbarism committed by the crowd encouraged by the Calvinist pastors contrary to government of the Witt. It was this attitude that urged th production this dissertation. So his attitude allows us think over the appreciation that the thinker has by the republic and how her formation make it impossible the existence any barbarism attitude. In this dissertation we will develop as argumentative rout that begin with the matter of affects, of her relation with the knowledge and of their relation with the superstition. Futhermore, we will analyse the development of Political Theological Treatise, work which served us as basis for all the our argumentation. So to understand the method contained in Theological Political and the laws submitted by the prophets in the Holy Scriptures, we will argue about the politic matter in Spinoza, as well as his theories about forms of government. All this route, it will serve as foundation for understand the Spinoza’s thinking about the barbarism and freedom of thought. Both it is the full stop of our route for all this politic matter in Spinoza. Keys-words: Superstition. Barbarism. Freedom of thought. Spinoza. 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11 2 SOBRE CONHECIMENTO, ERROS E SUPERSTIÇÕES ................................. 20 2.1 DO ERRO ................................................................................................................ 22 2.2 CONHECIMENTO E SUPERSTIÇÃO .................................................................... 26 2.3 ESPERANÇA, MEDO E SUPERSTIÇÃO ............................................................... 31 3 O TRATADO TEOLÓGICO POLÍTICO E SEUS PERCURSOS .......................... 35 3.1 O MÉTODO HISTÓRICO CRÍTICO ....................................................................... 36 3.2 OS PROFETAS E AS LEIS ..................................................................................... 43 3.3 AS FORMAS DE GOVERNO E O PERIGO DO ESTADO TEOCRÁTICO ........... 50 3.4 OS PERIGOS DA UTOPIA ..................................................................................... 54 4 O INDIVIDUO ÉTICO-POLITICO EM SPINOZA ............................................ 59 4.1 OS FUNDAMENTOS POLÍTICOS EM SPINOZA ................................................. 61 4.2 OS AFETOS E O CONATUS .................................................................................. 66 4.3 A VIRTUDE ............................................................................................................ 70 5 O ULTIMI BARBARORUM ................................................................................... 75 5.1 A POLÍTICA DA BARBÁRIE ................................................................................. 77 5.2 O ESTADO DEMOCRÁTICO FACE À BARBÁRIE .............................................. 82 5.3 DA LIBERDADE DE PENSAMENTO.................................................................... 87 6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 91 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 96 10 1 INTRODUÇÃO No ano de 1670 em Amsterdã1, um homem de descendência judia com traços portugueses, traz a público, mas sem identificar-se, uma de suas principais obras que viria a se tornar alguns anos mais tarde um instrumento de estudo, mas também de temor de muitos homens por todo o mundo. O homem a quem nos referimos era o filósofo holandês Benedictus de Spinoza (1632 – 1677), o ateu de sistema, excomungado do judaísmo pela sinagoga portuguesa na Holanda; e a obra se trata tão somente do seu Tratado Teológico Político, o livro que examinou as Escrituras Sagradas e que foi considerado por muitos como tendo sido forjado nas portas do inferno. O livro escrito pelo ateu de sistema apresentava (e ainda apresenta) argumentos, análises e indagações acerca das profecias e dos profetas apresentados nos diversos livros contidos nas Sagradas Escrituras. Além disso, nos capítulos finais da obra, o pensador buscou argumentos para separar a teologia da filosofia e buscou, por fim, algo que viesse a garantir dentro de uma sociedade o livre pensar de seus cidadãos. Tais argumentos, certamente, acabaram por incomodar tanto os religiosos quanto os políticos que viam nas passagens bíblicas e num governo teocrático a garantia da obediência dos súditos. Seu método de interpretação bíblica, chamado de método histórico crítico, que procurou se basear na historicidade das escrituras, também buscava abranger a linguagem hebraica para que com isso pudesse garantir uma melhor compreensão do que nos era apresentado, dessa maneira: “A tarefa da interpretação destina-se, pois, a tentar fazer a história do texto através da história da língua hebraica e da história dos que os escreveram, dos que selecionaram e daqueles a quem foi primeiramente dirigido.” (AURÉLIO, 2004, p.86). Sendo-nos possível alcançarmos as compreensões da língua e da história hebraicas, teríamos a possibilidade de adentramos nas Escrituras de um modo nunca antes conseguido. Estaríamos diante de uma interpretação que podemos afirmar como sendo mais clara e distinta, pressupostos que para Spinoza nos forneceriam maior verdade acerca das coisas. Mas, pensar um método que interpretasse a bíblia sobre um outro aspecto não representou uma empreitada que pudesse ser bem aceita pelos contemporâneos do pensador 1 Na biografia de Spinoza que foi escrita pelo pastor calvinista Jean Colerus, poderemos nos certificar de que na primeira impressão feita do Tratado Teológico Político, Spinoza optou por colocar como local de publicação da obra a cidade de Hamburgo na casa do senhor Henri Conrad. Mas, segundo as investigaçõesdo biógrafo, veremos que na verdade a obra teria sido publicada sim na capital Amsterdã na casa do senhorChristophe Conrad. É certo que o filósofo alterou o local de publicação porque temia ser descoberto como o autor da obra, uma vez que como sabemos, ele optou por publicá-la anonimamente, em virtude do conteúdo que ela apresentava. 11 holandês, que se espantaram não somente com a interpretação das Sagradas Escrituras, mas também com o pensamento do autor. A celeuma e o horror em torno da interpretação empreendida levaram a obra e o autor a ficarem durante muito tempo relegados ao esquecimento2: Para muitos leitores da Bíblia dos tempos recentes, a noção de que seus autores foram simples humanos lidando com as contingências sociais e políticas de sua época pode parecer absolutamente corriqueira, mas as conclusões de Espinosa sobre as origens das Escrituras e sobre a história e as implicações de sua transmissão escandalizaram seus contemporâneos tanto quanto sua concepção sobre os milagres. (NADLER, 2013, p.140). Dessa maneira, a crítica teológica política empreendida pelo filósofo holandês na obra, representa tão somente uma crítica às superstições em todas as instâncias nas quais elas se encontram inseridas. Superstições essas que ensandecem os homens em virtude do medo (ou da esperança) que dão fundamento a ela, pois: “A que ponto o medo ensandece os homens!” (TTP, Pref. § 5). Assim, segundo o que Spinoza nos afirma muitas das superstições serão provenientes das más interpretações que os homens fizeram das Escrituras e daquilo que Deus lhes ordenou durante todo este tempo, interpretações essas que geravam inseguranças ou esperanças infundadas. E, portanto, essa crítica segue um percurso que visa nos afastar da ideia do Deus judaico cristão, nos encaminhando, então, ao Deus que é causa de todas as coisas que existem e que pode ser racionalmente compreendido por meio dos segundo e terceiro gêneros de conhecimento (também chamados razão e intuição): “Nós nos deleitamos com tudo que compreendemos por meio do terceiro gênero de conhecimento, com uma alegria que vem, certamente, acompanhada da ideia de Deus como causa.” (E5P32). Ora, vemos que é na Ética: Demonstrada em Ordem Geométrica3(1677), sua obra maior, que o pensador holandês irá desenvolver sua argumentação acerca do Deus sive natura que percorre todo o emaranhado ético do pensador. 2 Sabemos que durante muitos anos o nome de Spinoza e com ele algumas de suas obras, juntamente com muitos outros autores e obras, se encontraram listadas no índex de livros proibidos(Index LibrorumProhibitorum)que fora desenvolvido pela Igreja Católica. Nesta lista continham livros, obras filosóficas ou literárias, que logicamente, eram consideradas impróprias pelos sacerdotes cristãos ou com conteúdo que ia contra os dogmas da igreja. 3 A Ética é considerada a principal e também a maior obra que nos apresenta geometricamente o pensamento desenvolvido pelofilósofo holandês.Muito embora ela seja assim considerada, a obra somente veio a ser publicada no ano de 1677, algunsmeses depoisdo falecimento deseu autor;ela foi inserida nachamada OP (Opera Posthuma) juntamente com outras obras de sua autoria que foram compiladas pelos amigos do pensador. 12 Spinoza era um grande leitor de outros autores, dentre os que ele se aprofundou e acabaram por influenciar bastante em sua escrita, temos o francês René Descartes e Euclides, ambos voltaram seu olhar para o modo geométrico de desenvolver o pensamento, influenciando assim o autor do TTP, que também escreveu sua obra maior pela maneira geométrica. Já Spinoza vai utilizar o método e a ordem demonstrativa das matemáticas, à maneira dos Geômetras, ou seja, vai demonstrar e expor, ou redigir, em ordem sintética, na ordem própria dos Geômetras, conforme os Elementos de Euclides. (FRAGOSO, 2011, p.155) 4. Segue-se disso que, toda a obra se encontra, portanto, tão geometricamente engendrada que todas as proposições nela contida pressupõem uma proposição anterior que irá argumentar a fim de explicar a primeira e o mesmo acontece com os escólios, as demonstrações e os corolários, e,assim, reunidos irão constituir todo o aparato ético do autor. E essa interligação entre os argumentos acaba por influenciar também toda a filosofia do pensador, ou afirmando mais especificamente, uma vez que o pensamento de Spinoza é interligado, todos os temas por ele abordados também o serão. Assim, não poderemos falar de política sem fazermos referência aos afetos ou a qualquer tema que envolva o percurso ético do autor. Dessa maneira, o percurso que desenvolveremos no presente trabalho também será influenciado pelo desenrolar da argumentação spinozana. Isso porque, mostra-se necessário que compreendamos primeiramente certos aspectos de sua filosofia, como os afetos e o conhecimento, antes que passemos então a compreendermos a questão política como um todo e que possamos chegar assim ao nosso ponto final que é a barbárie e a liberdade de pensamento. Assim, para que possamos afirmar de que maneira a política spinozana se encontra relacionada com os afetos que atingem o homem, principal personagem desse contexto, precisamos inicialmente compreender esse afetos e como eles nos atingem. Assim sendo, veremos que os afetos apresentados por Spinoza na Terceira Parte da Ética e a nossa servidão a eles, apresentada na Quarta Parte da citada obra, influenciam não somente as nossas relações com os outros indivíduos, como também o nosso conhecimento e a expansão de nosso conatus. 4 Segundo Fragoso, Spinoza recebeu influência tanto de Descartes quanto de Euclides ao utilizar o método geométrico na Ética. Mas é provável que o método tenha se aproximado mais de Euclides do que do francês. 13 Essa expansão acontece, como veremos mais adiante, em virtude dos afetos, isto é, daqueles afetos ditos ativos que passam a existir quando estamos nos terceiro gênero de conhecimento; mas ela também acontece em virtude dos demais afetos que inundam o nosso imaginário por paixões como a alegria, a tristeza e também o desejo: “Qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de alegria, de tristeza ou de desejo.” (E3P15). Mas sabemos que a imaginação não se nutre apenas das alegrias, mas também, dos afetos tristes, aqueles que nos rebaixam e nos levam a crermos seja no que for para afastar a ideia de um mal maior e aproxima qualquer ideia de bem que nos traga segurança, logo: “Se a mente foi, uma vez, simultaneamente afetada de dois afetos, sempre que, mais tarde, for afetada de um deles, será também afetada do outro.” (E3P14). É, dessa maneira, o que faz conosco, por diversas vezes, a superstição, uma vez que somos tomados pelo medo, assim como pela esperança, pois: “O medo é, pois, a causa que origina, conserva e alimenta a superstição.” (TTP, Pref. § 6); e sempre quando estes dois afetos nos atingirem, ela, a superstição, nos irá nos levar a acreditarmos em algo com a finalidade de excluir a ideia de um ou de outro, ou ainda a existência de ambos. Como vimos, Spinoza procurou empreender no Teológico Político uma ferrenha crítica às superstições e tal empreitada acontece através do método histórico crítico. Dessa maneira, o que podemos observar nessa nova exegese bíblica é que os profetas, inundados pela imaginação, ansiavam garantir que o povo fosse submisso a eles e aos seus governantes; uma vez que, os hebreus desde sua saída do Egito não recebiam bem as ordens dadas por Moisés: O que acontece é que Moisés, conhecendo o caráter e o ânimo insubmisso da sua nação, vê com toda a clareza que só com grandes milagres e com o especial auxílio externo de Deus é que eles poderiam levar a bom termo a obra iniciada. (TTP, cap.III, § 53). Grande parte dos capítulos do TTP se direcionam a essa análise que o pensador faz acerca da questão teológica, análise essa que desemboca na política, isto é, na maneira como a teologia se embrenha em meio a ela e passa a influenciar ou até mesmo a governar impérios ou repúblicas. Moisés, por exemplo, através do mandato divino governou durante muito tempo o povo hebreu; ele atribuía a Deus a grande maioria das leis, assim como da sorte com a qual os hebreus vinham convivendo desde sua saída do Egito. O que Moisés precisava era de um povo submisso, que pudesse obedecer aos seus comandos: “A razão por que pede a Deus um auxílio externo especial é, pois, porque o povo é 14 insubmisso.” (TTP, cap. III, § 53) e, dessa maneira,ele se utilizava disso para convencer os hebreus; além disso, o que ele queria, principalmente, era o que povo conseguisse estar unido diante das adversidades que não raras vezes aconteceram durante todo o tempo em que estiveram caminhando pelo deserto e após ele também. Spinoza nasceu em Amsterdã no ano de 1632 e foi chamado Baruch5 em virtude da tradição judaica a qual pertencia toda a sua família. Seus pais eram judeus portugueses que haviam fugido de Portugal para a Holanda6 para evitar a conversão à qual o povo judeu vinha sendo obrigado a se submeter em toda a Península Ibérica. Durante sua infância e logo depois em sua juventude o pensador, mostrou possuir uma curiosidade e um anseio por aprender muito aguçados: “Spinoza revelou desde sua infância e ainda melhor depois, em sua juventude, que a natureza não lhe havia sido ingrata. Reconhece-se facilmente que ele possuía a imaginação viva e um espírito extremamente ágil e penetrante.”7. Por isso foi que desde muito cedo ele passou a tomar aulas de latim, passando posteriormente a aprender sobre a teologia, assim como sobre a física. Segue-se disso que, sua crítica aos livros sagrados, mais especificamente aos do Antigo Testamento8, acontece muito em virtude desse seu interesse pela teologia. Spinoza adquiriu ainda conhecimento na língua hebraica e chegou até mesmo a escrever um Compêndio de gramática da língua hebraica (Compendium grammatices linguæ hebreæ); e por tal motivo é que o pensador afirmou que para o seu método obter alguma eficácia interpretativa das Escrituras, seria necessário compreendermos além da história, a língua hebraica que nos permitiria evitar possíveis confusões causadas por ambiguidades da língua que se estendiam às Escrituras. Entretanto, antes mesmo que Spinoza pudesse escrever quaisquer linhas a respeito de suas críticas à teologia e à maneira como as Escrituras foram e continuavam sendo interpretadas, o pensador já carregava consigo uma ideia de Deus, completamente apartada da compreensão judaica. Trata-se do Deus que mencionamos anteriormente, que é causa de todas as coisas, que age e existe necessariamente e que não é afetado por nossos apelos: “Deus está 5 Após a sua excomunhão, Spinoza deixa de usar o nome hebraizado Baruch e passa a assinar como Benedictus, um termo em latim que possui o mesmo significado que o termo em hebraico. 6 Na Holanda, a cidade de Amsterdã era chamada de Nova Jerusalém pelos judeus, pois estes acreditavam que nela poderiam encontrar a liberdade que necessitavam para viver sua religiosidade. A Holanda seiscentista era conhecida por receber e permitir que todas as religiões vivessem suas crenças. Podemos citar, segundo Alcântara Nogueira, a presença de católicos, calvinistas, luteranos e judeus. 7 COLERUS, Jean. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. Disponível em: <http://www.benedictusdespinoza.pro.br/colerus_17.html>. Acesso em: 17 mar. 2015. 8 Muito embora o autor da Ética concentre os seus esforços em interpretar o Antigo Testamento, o Novo não passou despercebido ao olhar crítico do filósofo, recebendo dele suas considerações, principalmente no que tange à figura de Cristo. 15 livre de paixões e não é afetado de qualquer afeto de alegria ou de tristeza.” (E5P17). Ora tal afirmação, vai contra tudo o que nos é afirmado nas Escrituras Sagradas que nos apresentam um Deus que ama os homens, mas que também os pune por seus erros, um Deus que os afetos alcançam e que é afetado por nossas ações. Na época de sua excomunhão, Spinoza ainda não havia escrito a Ética, mas já guardava consigo as primeiras ideias deste Deus que o pensador nos apresentar na obra. Mas foi o seu distanciamento da sinagoga e da comunhão judaica, que fez com que o filósofo passasse a ser perseguido por judeus fervorosos9 e pelos rabinos da sinagoga portuguesa: “Assim que ele se separou dos judeus e de sua comunhão, estes o perseguiram juridicamente segundo suas leis eclesiásticas e o excomungaram.” 10 . E foi tal fato que levou o pensador, posteriormente, a criticar ainda mais as doutrinas religiosas e a afirmar suas intenções como buscando exclusivamente à obediência dos indivíduos. Spinoza foi excomungado em 27 de agosto de 1656, tendo recebido o pior tipo de excomunhão existente entre os judeus, o Harém, que amaldiçoa e que relega o indivíduo excomungado ao esquecimento. Como podemos perceber Spinoza teve uma vida sempre voltada para o conhecimento, indo além do que a sua religião apresentava. Por tal motivo, a excomunhão não foi recebida pelo pensador com surpresa ou se tornou motivo de tristeza para Spinoza, isso porque após esse momento o pensador se retirou para outra localidade na Holanda, para que, segundo ele, pudesse melhor desenvolver os seus estudos, de modo mais tranquilo e sem quaisquer intromissões. Ele passou, ainda, por duas cidades até vir a se instalar, finalmente, em um quarto na residência do senhor Henri Van der Spyck em Haia, onde permaneceu até o seu falecimento em 21 de fevereiro de 167711. Foi, portanto, a partir desse período que o autor da Ética passou a desenvolver seu pensamento filosófico, momento em que muitas de suas obras foram escritas, como o Tratado Teológico Político, o Tratado Político (1677), que ficou inacabado, os Pensamentos Metafísicos (1664) e o Tratado da Reforma do Intelecto (1662). Além disso, durante sua vida 9 Uma noite quando Spinoza saía da velha sinagoga portuguesa, ele foi atacado por um judeu que estava com um punhal. O homem se aproximou dele e tentou golpeá-lo com a arma, mas o filósofo se esquivou e somente suas roupas foram atingidas. Spinoza acreditava que a intenção do judeu era de matá-lo. Após esse momento o pensador se afastou ainda mais da sinagoga. 10 COLERUS, Jean. Vida de Spinoza. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. Disponível em: <http://www.benedictusdespinoza.pro.br/colerus_17.html>. Acesso em: 17 mar. 2015. 11 Segundo Colerus, Spinoza sofria de um mal nos pulmões causado pelo pó que saía das lentes que ele polia. No dia de seu falecimento o pensador estava em seu quarto na companhia de seu médico. Sobre as circunstâncias da morte, Colerus nos diz: “[...] diz-se também que tinha perto de si suco de mandrágora preparado, ao qual ele usaria quando sentisse aproximar a morte; que em seguida correu as cortinas, perdeu toda consciência, caindo em um profundo sono, e que foi assim que ele passou desta vida à eternidade [...]”. Assim segundo Fragoso, a presença do médico no momento de seu falecimento representa que o pensador optou por uma morte assistida. 16 o pensador trocou correspondências com muitos amigos e conhecidos, tais cartas continham em sua grande maioria explicações acerca dos pensamentos do filósofo. Explicações essas que nos possibilitam compreendermos melhor o que nos afirmou Spinoza. Como podemos perceber grande parte das obras de Spinoza envolvem política, ética e teoria do conhecimento. Segue-se disso que, podemos afirmar que politicamente o pensador simpatizava com as possibilidades que uma república livre oferecia aos seus cidadãos, uma vez que: O fim da república, repito, não é fazer os homens passarem de seres racionais a bestas ou autômatos, é, pelo contrário, fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles usem livremente da razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem sejam intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim da república é, de fato, a liberdade. (TTP, cap. XX, § 241). Por acreditar na república como um governo que visa à liberdade de seus cidadãos, Spinoza visualizou no modo de governar empreendido pelos irmãos de Witt a possibilidade de se chegar a uma república e democracia nos moldes acima citados. Isso porque os irmãos implantaram na Holanda uma república na qual todos os indivíduos possuíam direito a expressão e a viverem os preceitos de seu credo com tranquilidade e liberdade. Entretanto, foi uma dessas religiões, insatisfeita com as decisões do governo e os rumos da guerra em que a Holanda estava envolvida, que incitou seus adeptos à violência contra Joah de Witt e seu irmão. A nossa argumentação foi motivada, portanto, por esta simpatia de Spinoza, que levou o filósofo a tentar denunciar a barbárie cometida contra os de Witt em Amsterdã com cartazes que chamavam de últimos dos bárbaros a multidão e aqueles que incitaram a sua atitude: No dia 20 de agosto de 1672, os irmãos De Witt são massacrados pelo povo nas ruas de Amsterdã. Espinosa escreve num cartaz: Ultimi barbarorum("Últimos dos bárbaros"), mas é impedido por um amigo de colá-lo nos muros da cidade. Termina a república e tem início a monarquia constitucional holandesa. (CHAUÍ, 1995, p.29). Mas, além deste episódio simbólico envolvendo o autor, outro momento, agora no interior de sua argumentação filosófica nos proporcionou motivação para tal percurso. Tratase do artigo sete do primeiro capítulo do Tratado Político, no qual Spinoza afirma o seguinte: “[...] uma vez que todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde quer que se juntem 17 formam costumes e um estado civil [...]”(TP I, § 7).Assim sendo, esta compreensão de Spinoza acerca de um Estado, e sua menção ao Estado bárbaro, a saber, um Estado que age e governa com base na violência contra os seus cidadãos, também nos servirá da base para a nossa argumentação. A partir de tudo isso, dois questionamentos nos saltam aos olhos. Primeiramente, de que maneira podemos estruturar no interior da filosofia de Spinoza uma compreensão da barbárie e de sua atuação; e, ainda, em que lugar ficaria a liberdade dos indivíduos de pensarem e agirem como lhes couber dentro de um Estado no qual a religião é a principal influenciadora dos governantes ou mesmo da maioria da população. Buscaremos, com isso, esclarecer tais questionamentos através do pensamento de Spinoza e de seus comentadores que nos fornecerão argumentos necessários para compreendermos até que ponto a violência pode estar presente nos indivíduos. Para tanto, a nossa argumentação, além de abranger, como já apresentamos, os afetos, bem como a relação que eles estabelecem com os gêneros de conhecimento e, assim como a relação que ambos possuem com a superstição, faz-se necessário que discorramos ainda sobre aqueles profetas presentes nas Escrituras e, juntamente com eles as leis apresentadas; assim ambos deveriam ser, segundo o pensador, analisados pelo viés histórico crítico. Mas não são esses profetas, assim como os sacerdotes e pastores atuais, que enxergam os homens através da utopia? Sim, para o autor da Ética, as religiões e seus religiosos olham para os homens e só conseguem enxergá-los e compreendê-los por meio da idealização que fazem de como os indivíduos devem ser e não como eles realmente são: “Com efeito, concebem os homens não como são, mas como gostariam que eles fossem.” (TP I, § 1). Mas, como veremos, o pensador procura sempre fugir dessa utopia ao observar os homens como eles realmente são: “A experiência, na verdade, ensinou-lhes que, enquanto houver homens, haverá vícios.” (TP I, § 1), isto é, tomados por seus vícios e pelos afetos que são parte de sua natureza. Veremos, então, como as utopias resultam em perigo para os indivíduos particulares e em geral (inseridos nas sociedades) quando ela (a utopia) vier associada aos governos teocráticos. Porque ela aliada às superstições inspiraria nos indivíduos o sentimento de barbárie, de violência que leve e já levou muitos a guerrearem entre si e a matarem de modo indiscriminado justificando tais atitudes nas ditas promessas divina. 18 A partir disso analisaremos os fundamentos políticos e as formas de governo que Spinoza nos apresentou no Tratado Político, muito embora a última delas, a democracia, tenha ficado inacabada em virtude de seu falecimento. E será a democracia o nosso último passo em direção ao arremate de nossa argumentação, uma vez que, ela representa para o filósofo holandês a mais natural de todas as formas de governar, por ela ser um governo da multidão, que visa os interesses desta e, principalmente, por se constituir a partir do conatus de todos os indivíduos particulares, realizando um conatus inteiramente novo, que alcança toda a sociedade, mas que garante ainda a manutenção do esforço individual. E é esse esforço, o esforço que nos impulsiona a permanecermos existindo que faz de nós indivíduos cada vez mais virtuosos. Isto é, seremos ditos virtuosos sempre que agirmos em vista de nossa sobrevivência, ou ainda: “Com efeito, quanto mais cada um busca o que lhe é útil e se esforça por se conservar, tanto mais é dotado de virtude [...]”(E4P35C2). Assim nosso esforço por conservar a nossa existência determinará o quão virtuosos nós seremos. Por conseqüência, quanto mais virtuosos nós formos, mais estaremos sendo conduzidos pela razão e mais livres nós seremos, pois: “Por tudo que foi dito, compreende-se que o retrato do homem livre, para Espinosa, seja o homem que não faz o mal justamente porque o ignora — é o homem que age para além do bem e do mal [...].” (CHAUÍ, p.XIX, 1989). E assim chegamos à liberdade, o fim de toda a nossa argumentação, a liberdade de pensar, julgar e agir como convêm a cada um independentemente de sua religião ou pensamento crítico. 19 2 SOBRE CONHECIMENTO, ERROS E SUPERSTIÇÕES Sobre conhecimento, erros e superstições, visa tratar estritamente de questões que são básicas e pertinentes para a compreensão de toda a argumentação que desenvolveremos nos capítulos seguintes e que irão nos encaminhar à nossa reflexão final acerca da barbárie,assim como da liberdade de pensamento. Desse modo, para que possamos entender como o estado de barbárie se estabelece em determinados governos, faz-se necessário compreendermos como as superstições se encontram inseridas no contexto do conhecimento e dos afetos, servindo assim de motor para as religiões, uma vez que: “[...] não há nada mais eficaz que a superstição para governar a multidão.” (TTP, Pref. § 6). Essa problemática vai gradativamente obtendo maior espaço na filosofia de Spinoza, posto que a interpretação que o pensador desenvolverá acerca da Sagrada Escritura e do tratamento que sacerdotes e profetas dão a ela, mostrará precisamente que por diversas vezes foram sendo utilizadas interpretações errôneas das profecias e das mentes imaginativas dos profetas para garantir com isso a obediência e a fidelidade, inicialmente do povo hebreu, e posteriormente de todos os que passaram a ter a religião como sua âncora: O profeta, sustenta Espinosa, não é um homem de demonstração, é um homem de imaginação. Ora a imaginação é o domínio da simples afecção, das paixões, dos efeitos ocasionais, que não envolvem o conhecimento exato da sua causa e, por isso, são alvo de uma fé, não de uma certeza racional. [...] A bíblia, por exemplo, que é um discurso da imaginação, não apresenta Deus como causa de si próprio nem capta nenhum dos seus atributos essenciais: é apenas um registro de impressões, índice de contatos dos homens com os seus iguais e com as circunstâncias de lugar e tempo. (AURÉLIO, 2004, p.50/51). Somado a tudo isso observamos que a eficácia do recurso supersticioso se apresenta a partir do momento em que a imaginação, que é a principal causa de erro e de falsidade, começa a implantar em nós o medo e a esperança de coisas futuras, das quais nós não possuímos certeza de que acontecerá ou não, posto que: “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro [...], jamais seriam vítimas de alguma superstição.” (TTP, Pref. § 5). A dúvida será, certamente, um dos fatores determinantes em toda essa relação, porque a incerteza do que virá, isto é, do futuro, possibilitará uma forte atuação das doutrinas religiosas. Dessa maneira, com os afetos tanto de medo quanto de esperança nós oscilaremos sempre entre um e outro, isto é, iremos sempre de alto a baixo, como se estivéssemos em uma 20 gangorra sendo que a superstição, em determinados momentos, será a responsável por nos oferecer um equilíbrio, muito embora este venha a ser sempre falso e instável, posto que os homens: “[...] estão sempre prontos a acreditar seja no que for [...]” (TTP, Pref. § 5). Na Ética vemos, então, que Spinoza vai nos apresentar a uma definição mais ontológica da imaginação no momento em que nos coloca diante dela como estando ligada tanto ao corpo quanto a mente, podendo ser ainda superada pela razão sempre que: “[...] a mente compreende as coisas como necessárias [...]” (E5P6); logo ela não será de todo negativa para o conhecimento, mas possuirá sim algo que o pensador considerará como positivo para nossa compreensão das coisas. A imaginação poderá ser considerada, ainda, como nos é apresentado na introdução do Tratado Teológico Político, uma representação dos mais diversos signos, sendo que é através desses signos que inúmeras interpretações das profecias e das leis serão criadas para que tanto a dominação quanto a obediência sejam, dessa maneira, fundamentadas, posto que:“Toda a Escritura se poderia resumir nesse trabalho de aprisionamento dos signos através da sua inscrição em ‘tábuas de pedra’ [...]” (AURÉLIO, 2004, p.70); e ainda, que: “[...] a fé esteja reduzida a crendice e preconceitos. E que preconceitos estes, que de racionais transformam os homens em bestas, que impedem por completo que cada um julgue livremente [...]” (TTP, Pref. § 8). O que veremos também é que a superstição refere-se aquilo em que acreditamos, seja facilmente em virtude da esperança ou dificilmente em virtude do medo, pois:“[...] por natureza, somos constituídos de maneira a acreditarmos facilmente nas coisas que esperarmos e, dificilmente, nas que tememos, e a estimá-las, respectivamente, acima ou abaixo do justo.” (E3P50S). Ela, a superstição, terá origem a partir dessas circunstâncias e tendo, por conseguinte, terreno fértil nas instituições religiosas e políticas, estando estas aliadas aos ideais religiosos. Ora, o que queremos explicitar com isso é que a superstição está diretamente relacionada com a imaginação e consequentemente com os afetos, fato, portanto, que exigirá de nós, para que se complemente a nossa argumentação, uma análise das paixões, dos afetos que como esperança e medo determinam muitas vezes o agir humano. Segue-se disso que, para falarmos de superstição, principalmente estando esta relacionada com a barbárie, faz-se necessário que passemos ainda por uma análise das instituições, por isso: “[...] concluí que as leis reveladas por Deus a Moisés não eram senão o direito do singular Estado hebraico [...]” (TTP, Pref. § 10); além disso, é certo que: 21 [...] convirá aqui confirmar também pela autoridade da Escritura o que acabamos de dizer, para mostrar depois, de maneira ainda mais nítida, porquê e como serviam as cerimônias para a manutenção e a defesa do Estado dos Judeus. (TTP, cap. V, § 69). Percebemos, dessa maneira, com a citação que foi anteriormente apresentada que Spinoza empreende uma investigação, sendo que esta se encontra relacionada com o Estado hebreu e tal fato nos permitirá, então, compreendermos de que modo um governo teocrático aliado à superstição interfere nas relações sociais tanto dentro quanto fora do Estado. 2.1 DO ERRO O vocábulo erro12 é resultante da palavra latina errare, que significa, entre outras coisas, cometer uma inadequação. Assim, se reportarmos a nossa investigação a respeito do erro para o pensamento de Spinoza, veremos que o erro se encontra diretamente relacionado com aquilo que é inadequado, mais especificamente, com as chamadas ideias inadequadas13. Uma ideia inadequada representa aquela ideia que não possui ainda uma propriedade de ideia verdadeira. O que queremos afirmar é que ela ainda não pode explicar a si mesma sendo, portanto, considerada inexpressiva, como nos afirma Gilles Deleuze: “[...] é a ideia inexpressiva e não explicada: a impressão que ainda não é expressão, a indicação que ainda não é explicação.” (DELEUZE § 136). E por ser tanto inexpressiva quanto não explicada, é que podemos considerar que essa ideia nos conduzirá ao erro, onde nos veremos impedidos ainda de alcançarmos um conhecimento mais verdadeiro e adequado das coisas; logo, ele virá a representar também, para a filosofia de Spinoza, tanto uma privação de conhecimento quanto uma negação. É o que nos afirma o próprio pensador holandês quando desenvolve as proposições 33 e 35 da Parte II da Ética e que Victor Brochard reitera em sua obra Do erro,onde em uma de 12 O erro é uma situação presente no entendimento e no dia a dia dos indivíduos, assim como nas inquietações filosóficas de alguns pensadores; ele recebeu de teóricos como Platão, Descartes e Spinoza reflexão quanto a sua existência, a sua conceituação e a sua pertinência em diversas situações. Entretanto, segundo Victor Brochard: “[...] suas opiniões quanto à segunda (teoria do erro) estão muito divididas [...]” (BROCHARD, 2006, p.28, grifo nosso), isto é, a complexidade de compreensão dessa questão os levou por caminhos diferentes a fim de conseguirem resolvê-la. 13 Se uma ideia inadequada se apresenta como sendo algo inexpressivo, podemos entender, então, que uma ideia adequada poderá representar, assim: “[...] uma ideia que, enquanto considerada em si mesma, sem relação com o objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira.” (E2Def.4). 22 suaspartes ele analisa a teoria do erro em Spinoza. Observemos então o que falam as proposições supracitadas. Ele poderá ser dito uma negação: “[...] se considerarmos a ideia falsa em si [...]” (BROCHARD, 2006, p.85), isto é, quando não existe nada de positivo nela que possibilite a exclusão de toda e qualquer falsidade que a compõe, sua composição envolverá, assim, falsidade: “Não há, nas ideias, nada de positivo pelo qual se digam falsas.” (E2P33). Muito embora, a imaginação seja uma negação, existirá nela algo que podemos afirmar como positivo: “Portanto, as imaginações não se desvanecem pela presença do verdadeiro, enquanto verdadeiro, mas porque se apresentam outras imaginações mais fortes que excluem a existência presente das coisas que imaginamos [...]” (E4P1S), isto é, não é o verdadeiro o responsável pela extinção das imaginações, mas sim, a presença de outra imaginação mais forte, que poderá vir a ser racionalizada instigando em nós o desejo de conhecer adequadamente. De modo mais específico, o que há de positivo na imaginação é que ela não é de todo falsa, mas está sim incompleta, mutilada e sem uma explicação verdadeira, como afirmou Deleuze, mas nada do que a imagem nos apresenta será sempre falsa, isto é, por mais que conheçamos a aparência verdadeira, o que acontece é que a imagem inicial ainda se fará presente em nossa mente: [...] quando olhamos o sol, imaginamos que ele está a uma distância aproximada de duzentos pés, erro que não consiste nessa imaginação enquanto tal, mas em que, ao imaginá-lo, ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa imaginação. Com efeito, ainda que, posteriormente, cheguemos ao conhecimento de que ele está a uma distância de mais de seiscentas vezes o diâmetro da Terra, continuaremos, entretanto, a imaginá-lo próximo a nós. (E2P35S). Segue-se disso que, o erro representará uma privação a partir do momento em que se compara a ideia falsa com a ideia verdadeira: “[...] a mente não erra por imaginar, mas apenas enquanto é considerada como privada da ideia que exclui a existência das coisas que ela imagina como lhe estando presentes.” (E2P17S); enquanto imaginamos o sol próximo a nós sem conhecermos sua verdadeira distância, estamos sendo privados da verdadeira distância do sol. Falsidade e erro encontram-se, portanto, num entendimento que não se aproxima do conhecimento adequado de Deus, isto é, num entendimento que apenas imagina, pois:“O conhecimento de primeiro gênero é a única causa de falsidade [...]”(E2P41); ou ainda, como 23 vimos anteriormente, numa mente que se encontra privada de uma ideia capaz de excluir o que imagina como presente. Dito isso, observemos o seguinte: toda privação de conhecimento, bem como toda negação do verdadeiro, estão intrinsecamente relacionadas com a potência que os afetos exercem sobre a mente dos homens enquanto ainda são passivos, isto é, enquanto ainda são afetados pela imaginação que eles suscitam: “A força de uma paixão ou de um afeto pode superar as outras ações do homem, ou sua potência, de tal maneira que este afeto permanece, obstinadamente, nele fixado.” (E4P6). Eles serão ditos então impotentes, uma vez que, tais causas exteriores impossibilitarão que ele venha a suprimir as imaginações e racionalizá-las. Essa impotência não representa nada além do que a chamada servidão humana (servitute humana), uma vez que, as ideias inadequadas e a imaginação irão somar-se aos afetos fazendo do homem um escravo destes: “Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o acaso [...]” (E4Pr.). Dessa maneira, esse homem irá procurar, sempre que estiver ao comando do acaso, por aquilo que lhe é mais nocivo, muito embora ele esteja consciente de suas ações e daquilo que certamente é o mais útil para ele. Ora, se o homem se encontra sob o comando do acaso, deixando de lado a razão, quaisquer crenças, supostos milagres ou promessas divinas serão aceitas, uma vez que: “[...] estão sempre prontos a acreditar seja no que for: se têm dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali [...]” (TTP, Pref. § 5); sendo assim, estas crenças ou milagres serão capazes de formar na mente dos homens uma imaginação quase que verdadeira, uma vez que, nunca se está seguro de nada que irá lhes acontecer: “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro [...], jamais seriam vítimas de alguma superstição. Mas, como se encontram frequentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão-de tomar [...]” (TTP, Pref. § 5). Ele se tornará, por conseguinte, um ser impotente diante de seus apetites tornando-se, consequentemente, menos virtuoso. E o que é capaz de tornar um homem menos virtuoso segundo a filosofia de Spinoza? O filosofo holandês afirma, na Terceira Parte da Ética, que o conatus representa o nosso esforço por perseverar na existência, sendo também a nossa essência atual e a nossa maior virtude. Sendo assim, como veremos mais especificamente no capítulo III, o que pode vir a retirar do homem a sua virtude é a sua incapacidade de se esforçar por perseverar na existência: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” 24 (E3P6). Quanto menos potência14 o homem tiver a fim de perseverar na existência, menos ele será virtuoso e mais longe ele se encontrará de conhecer as coisas de maneira adequada, o que facilitará a presença das superstições em suas decisões. Mas é possível nos perguntarmos o seguinte: se somos parte do intelecto divino, que é infinito e perfeito e que por nada pode ser afetado, como nós ao fazermos parte de algo perfeito, podemos ter ideias tão inadequadas e envoltas em erro? Como dito, o intelecto divino é perfeito, Deus não pode ser afetado por nenhum de nossos afetos, portanto, o erro não o alcança. Para Deus não existe limitação, ele é a causa de si mesmo (causa sui)15 e é também a causa de todas as coisas. Nós, por conseguinte, temos ideias erradas porque não conhecemos as verdadeiras causas e efeitos das coisas: “Pois se estas ideias são falsas ou inadequadas, é porque nós enxergamos apenas uma parte das causas e dos efeitos [...]” (BROCHARD, 2006, p. 86); isto é, o que temos não é nada além de um conhecimento parcial das causas das coisas. Acreditamos estar nos utilizando do nosso entendimento quando na verdade é somente a imaginação que nos guia. Mas Deus, ou a substância, é o único que pode ser considerado como livre, uma vez que nada o determina, nem o limita; diferentemente de nós que nos julgamos livres como Deus, quando, na verdade, nem próximos da liberdade nos encontramos, porque somos limitados, afetados e determinados por demais causas externas. Em resumo: Todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas; [...] disso se segue, em primeiro lugar, que, por estarem inconscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se crêem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõe a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram. (E1Ap.). Assim, desconhecemos também que Deus é causa de todas as coisas e acabamos por errar, em virtude do desconhecimento de todas as demais causas primeiras, isto é, o nosso conhecimento quando envolve o erro é parcial e inadequado. E por ser assim, acreditamos sermos livres e acreditamos também que em toda e qualquer superstição que nos é apresentada. E, como veremos mais adiante, é a partir desse momento que as religiões e os governos, estando amparados pelas superstições, passam a dominar os homens. 14 É válidosalientarmos que Spinoza compreende virtude e potência como sendo uma só e a mesma coisa: “Por virtude e potência compreendemos a mesma coisa, isto é, a virtude, enquanto referida ao homem, é sua própria essência ou natureza, à medida que ele tem o poder de realizar coisas que podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis de sua natureza.” (E4Def.8). 15 Por causa de si, ou ainda: “Por causa sui compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente.” (E1Def.1). 25 Mas só nos tornamos realmente livres a partir do conhecimento adequado das causas das coisas e de Deus, isto é, a partir do momento em que nos permitimos sermos conduzidos pela razão e, consequentemente, adentramos no campo da intuição. Assim, se conhecermos adequadamente a Deus, quaisquer outras interpretações sobre ele não passarão de falso conhecimento. 2.2 CONHECIMENTO E SUPERSTIÇÃO O gênero de conhecimento em Spinoza representa, segundo, Deleuze uma maneira de viver que passa inevitavelmente pelos afetos e que, segundo o próprio filósofo holandês, nos encaminha, consequentemente e na grande maioria das vezes, a uma servidão. Mas é certo que, dependendo do gênero de conhecimento em que nos encontramos, esses mesmos afetos poderão nos atingir agora positivamente, de maneira que nós passaremos a agir mais e padeceremos menos. O mesmo se aplica às superstições que não raras vezes nos cercam. Ela relaciona-se com os afetos, atingindo-nos quando ainda nos permitimos afetar pelas causas que são exteriores a nós. Três são, portanto, os gêneros de conhecimento que nos são apresentados na Ética pelo pensador holandês, entretanto, somente dois deles irão envolver ideias adequadas que são aquelas ideias que, contrariamente as ideias inadequadas, nos possibilitam um conhecimento claro e distinto das coisas. Um deles é o segundo gênero de conhecimento, que como sabemos, refere-se às ideias adequadas das propriedades das coisas, ou seja, podemos através dele, compreender que a alma se encontra unida ao corpo, ou podemos compreender ainda o efeito de uma coisa por meio da causa que essa coisa nos apresenta; ou ainda: “Por termos, finalmente, noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este modo me referirei como razão e conhecimento de segundo gênero.” (E2P40S2)16. O segundo gênero de conhecimento representa, tão somente, a razão, aquela que Spinoza nos apresenta como a responsável por nos permitir agirmos mais movidos pelas 16 No Tratado da Reforma do Entendimento (TIE), o conhecimento de segundo gênero seráainda tratado como uma percepção, percepção essa que nos retira do erro que está contido nas percepções anteriores: “[...] a coisa é percebida unicamente por sua essência quando, por saber algo, sei o que é saber alguma coisa [...]” (TIE§22). 26 ideias adequadas das coisas do que mesmo por aqueles afetos que nos cercam a todo instante17: Pois quando dizemos que uma ideia se segue, na mente humana, de ideias que nela são adequadas não dizemos senão que existe, no próprio intelecto divino, uma ideia da qual Deus é a causa, não enquanto é infinito, nem enquanto é afetado das ideias de muitas coisas singulares, mas enquanto constitui unicamente a essência da mente humana. (E2P40D). Assim, quando começamos a conhecer as coisas de maneira adequada, por meio dessas ideias adequadas que estão inseridas no próprio intelecto divino fugimos do erro, o que torna cada vez maior o anseio de conhecer mais perfeita e adequadamente. Isto é, conhecer adequadamente implica em conhecermos as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento, isto é: “[...] existe ainda um terceiro (gênero), como mostrarei a seguir, que chamaremos de ciência intuitiva” (E2P40S2, grifo nosso), também chamado de intuição. Tratada como quarto modo de percepção18 no TIE, a intuição é, por sua vez, o conhecimento que acontece quando a coisa vem a ser percebida unicamente pela sua essência ou ainda por sua causa próxima19: “Este gênero de conhecimento parte da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para chegar ao conhecimento adequado da essência das coisas.” (E2P40S2); em outras palavras, passamos a conhecer a Deus adequadamente, passando assim a conhecer adequadamente também as coisas. Assim, por obtermos o conhecimento adequado das coisas é que desejaremos procurar sempre mais utilizá-lo, isto é: “Quanto mais a mente é capaz de compreender as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento, tanto mais deseja compreendê-las por meio desse mesmo gênero.”(E5P26)20. Isto é, através dessa compreensão da essência das 17 A razão será representada no TIE pelo terceiro modo de percepção, aquele modo que nos oferece a possibilidade de percebermos as coisas sem o temor de cairmos em erro, mas que, entretanto, ainda não nos proporciona alcançarmos a perfeita percepção das coisas. 18 Segundo Livio Teixeira, o quarto modo de percepção não é dedutivo como o terceiro por se tratar de uma visão imediata da verdade. Em outras palavras, diferentemente do modo anterior, este representa um modo indutivo, uma intuição: “Quanto ao quarto modo, Espinosa o caracteriza como uma visão, uma intuição desacompanhada de qualquer operação do espírito, isto é, sem dedução.” (TEIXEIRA, 2001, p.32). 19 Causa próxima representa tão somente uma causa que é imediata, isto é, que não necessita de outra causa para produzir quaisquer efeitos. No Breve Tratado, Spinoza afirma Deus como causa próxima de todas as coisas: “Deus é a causa próxima das coisas que são infinitas e imutáveis, e das quais dizemos que foram criadas imediatamente por Ele [...]”. (KV, cap. III § 2). 20 Segue-se disso que: “Só o quarto modo compreende a essência adequada da coisa e sem perigo de errar; por isso devemos usá-lo ao máximo.” (TIE§29). 27 coisas é que perceberemos alguma coisa por ela mesma, sem que necessitemos de quaisquer intermediários para esclarecer a nossa compreensão21. Mas é importante percebermos que além desses dois conhecimentos, teremos ainda o conhecimento de primeiro gênero, que precede quaisquer dos conhecimentos anteriores e que irá envolver nele as ideias inadequadas, pois: “Dissemos [...] que pertencem ao conhecimento de primeiro gênero todas aquelas ideias que são inadequadas e confusas.” (E2P41D). Neste gênero de conhecimento, nós apenas imaginamos e essa imaginação por envolver inadequação envolverá também erro e falsidade. Segue-se disso que, dos três gêneros de conhecimento que nos são apresentados pelo pensador holandês, a relação entre a superstição e o conhecimento irá se estabelecer especificamente nesse primeiro gênero de conhecimento, que é um dos responsáveis por nossa servidão aos afetos. Assim, como pudemos afirmar anteriormente, a imaginação refere-se, tão somente, ao mundo dos signos: “O que forma a unidade do primeiro gênero do conhecimento são os signos” (DELEUZE § 269); sendo que estes signos: “[...] se à luz do entendimento se revelam como pura equivocidade aberta ao jogo e à guerra das interpretações, ao nível do primeiro grau de conhecimento assumem a univocidade das leis.” (AURÉLIO, 2004, p.70). Ele é, ainda, o gênero ao qual Deleuze atribui o chamado estado de religião: “A esse primeiro gênero deveríamos até mesmo acrescentar o estado de religião, isto é, o estado do homem em relação a um Deus que lhe dá uma revelação [...]” (DELEUZE § 269), uma vez que, ele se fundamenta tanto nos signos quanto nas interpretações que darão origem às leis proferidas pelos sacerdotes, as quais garantiriam assim a obediência dos fiéis. Segue-se disso que, aos profetas caberia a imaginação que possibilitava a eles uma gama de interpretações, ao passo que, para o povo ela oferecia, através desses mesmos sacerdotes e governantes, somente a interpretação que lhes convinha a respeito das leis contidas nas Escrituras Sagradas: eis uma das compreensões da imaginação no interior do TTP: Toda a Escritura se poderia resumir nesse trabalho de aprisionamento dos signos através da sua inscrição em ‘tábuas de pedra’ onde a letra suspende a inconstância do imaginário, onde a palavra encarna a lei e se separa daqueles que a pronunciam e aos quais passa a dominar. (AURÉLIO, 2004, p.70). 21 Com a apresentação deste terceiro e último gênero de conhecimento, Spinoza vai afirmar que, com isso, alcançamos a felicidade, o amor intelectual a Deus ou ainda o sumo bem; ele mais do que clareza e distinção nos possibilitará uma investigação da verdade, afastando-nos assim de qualquer erro que venha a atrapalhar nosso intento. Nele já não mais padecemos, mas temos os afetos positivamente fazendo com que ajamos mais. 28 Seguidamente, como veremos de maneira mais aprofundada no capítulo II, os profetas e os sacerdotes, possuíam uma mente fortemente imaginativa, fato que lhes possibilitava interpretar tanto as revelações, quanto a própria Escritura Sagrada de inúmeras maneiras. Entretanto, por diversas vezes essas interpretações estavam quase que completamente alheias àquilo que elas realmente queriam apresentar; mas o certo é que visavam sempre alcançar a obediência dos hebreus. Sendo assim, vejamos: na Ética o campo da imaginação refere-se àquilo que nós ouvimos dizer sobre milagres ou guerras travadas em nome de Deus, ou quando ouvimos dizer que determinadas religiões disputam a predileção de Deus, ou ainda, quando ouvimos dizer sobre o nosso nascimento e não duvidamos daquilo que nos é dito: “A partir de signos; por exemplo, por ter ouvido ou lido certas palavras, nós nos recordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas por meio das quais imaginamos as coisas.” (E2P40S2)22. Ela, isto é, a imaginação se refere ainda ao temor que nós possuímos da morte, uma vez que, estamos conscientes de que a morte representa o fim de todo e qualquer indivíduo vivo somente por termos observado em um determinado momento outros indivíduos morrerem. Elavai se referir ainda ao fato de temermos um mal maior e, com isso, nos apegamos a quaisquer rituais que nos são apresentados na esperança de que ele (o mal maior) não venha a nos atingir23. Mas afinal, o que podemos compreender por imaginação? De que maneira ela se constituirá na mente humana? Como ela irá compor a influência supersticiosa existente nas religiões e governos? Inicialmente, Spinoza irá nos responder algumas dessas perguntas de modo mais especifico na parte II da Ética. Assim sendo, no escólio da proposição 17, observamos que: Daqui em diante, e para manter os termos habituais, chamaremos de imagens das coisas as afecções do corpo humano, cujas ideias nos representam os corpos exteriores como estando presentes, embora elas não restituam as figuras das coisas. E quando a mente considera os corpos dessa maneira, diremos que ela os imagina. 22 Ou ainda como é possível observarmos no TIE: “Pelo ouvido tão somente, conheço o meu natalício, sei que tive tais progenitores e coisas semelhantes, de que nunca duvidei.” (TIE§20). 23 Esse ouvir dizer e essa experiência vaga juntos irão compor genericamente um só e mesmo gênero de conhecimento dentro da obra maior de Spinoza: a Ética; isto é, eles irão comporo chamado conhecimento imaginativo. No Tratado da Reforma do Entendimento, no entanto, eles representam dois modos de perceber distintos, sendo que cada um será responsável, à sua maneira, pela nossa percepção do mundo e das coisas. 29 Em outras palavras, podemos afirmar que a imaginação representará tudo aquilo que a mente consegue perceber como estando presente. Então observemos o seguinte: não é isso o que acontece quando nos apegamos às superstições? Isto é, somos tomados por algo que acreditamos estar presente ou que se encontra na iminência de acontecer e, com isso, lançamos mão de ritos, ofertas, sacrifícios ou orações visando tornar ausente aquilo que anteriormente tínhamos como presente. Segue-se disso que, ela (a imaginação) acabará por se compor em nossa mente como uma ideia das afecções do corpo, sendo que essa ideia que irá favorecer o conhecimento da mente por si mesma: “A mente não conhece a si mesma senão enquanto percebe as ideias das afecções do corpo.” (E2P23). Mas, certamente podemos perceber que a mente conheci a si, tão somente, por intermédio dessas afecções, precisando ainda conhecer o corpo, os afetos e as outras coisas de modo maisadequado. Vejamos ainda o seguinte, o que pretendemos afirmar é que a mente, à medida que se utiliza do recurso imaginativo24, isto é,à medida que a nossa mente imagina, ela passará, então, a ter das afecções do corpo somente um conhecimento dito inadequado: Quando a mente humana considera os corpos exteriores por meio das idéias das afecções de seu próprio corpo, dizemos que ela imagina. E a mente não pode imaginar os corpos exteriores como existentes em ato de nenhuma outra maneira. Portanto, à medida que imagina os corpos exteriores, a mente não tem deles um conhecimento adequado. (E2P26CDem.). Com isso fica claro que, a ideia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve um conhecimento adequado dele: “A ideia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve o conhecimento adequado do próprio corpo humano.” (E2P27);além de que, como já demonstramos anteriormente, a imaginação envolve na mente um conhecimento inadequado acerca do corpo e de todas as coisas. Mas o imaginar não nos apresenta o corpo exterior em seu estado presente, isto é: “[...] uma imaginação é uma ideia que indica mais o estado presente do corpo humano do que a natureza do corpo exterior, não distintamente, é verdade, mas confusamente. Diz-se, por isso, que a mente erra.” (E4P1S); ou seja, em virtude da confusão na qual o corpo se encontra 24 O conhecimento imaginativo é um conhecimento inadequado das ideias das afecções do corpo e por assim o ser ele é também um conhecimento inadequado das causas das coisas e de Deus, e por tal motivo é que Spinoza vai afirmar que por compreenderem as coisas naturais como meios é que vão atribuí-las à deuses que governam a natureza, sendo que estes possuíam uma inclinação semelhante a nossa por desconhecerem a deles. E assim por desconhecerem as causas inicias, compreendendo apenas os meios, buscam saber as causas finais das coisas, julgando-se livres quando nem próximos da liberdade se encontram: “[...] por estarem conscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se crêem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram.” (E1Ap.). 30 e por estar envolvido pela presença dos afetos, ele erra por ser incapaz de alcançar as causas iniciais das coisas. Seguidamente, podemos constatar acerca da imaginação que ela representa um conhecimento que vem acompanhado do erro e da falsidade, uma vez que estes dois aqui se inserem porque eles envolvem sempre ideias inadequadas. Assim sendo, esse entendimento não poderá se aproximar do conhecimento adequado de Deus enquanto não se afastar da falsidade que a imaginação envolve, logo:“O conhecimento de primeiro gênero é a única causa de falsidade [...]”(E2P41); ou se falarmos ainda: “[...] a mente não erra por imaginar, mas apenas enquanto é considerada como privada da idéia que exclui a existência das coisas que ela imagina como lhe estando presente.” (E2P17S). Dessa maneira, as superstições irão gradativamente se afastar do entendimento humano, à medida que esses gêneros de conhecimento passarem a estar relacionados com um conhecimento mais adequado das coisas. Ou se dissermos de outra maneira, sempre que passamos a recusar o erro presente na faculdade de imaginar e passamos a agir e pensar mais livremente. 2.3 ESPERANÇA, MEDO E SUPERSTIÇÃO Não foram poucas às vezes em que observamos os homens se apegarem a determinadas situações que se apresentavam seguras diante de algo que aparentemente lhes parecia incerto. Assim podemos citar, por exemplo, que temendo um fracasso ainda maior da Alemanha, muitos alemães apoiaram o partido nazista na esperança de verem seu país restabelecido econômica e moralmente; por medo do comunismo muitos brasileiros apoiaram o golpe militar de 1964, na esperança de que o sistema socialista de governo não dominasse o país. Observamos com isso que, os homens permanecem sempre a oscilar entre o medo de que algo ruim lhes aconteça e a esperança na qual se agarram, seja ela qual for para obterem a segurança diante do medo que os atormenta naquele instante. Ao retornarmos a nossa investigação para a Ética, na qual se fundamenta grande parte da filosofia de Spinoza, veremos que existem dois afetos dos quais não podemos falar de um sem mencionar o outro: são a esperança e o medo. Queremos afirmar com isso que, não podemos falar de esperança sem medo, nem muito menos de medo sem esperança, posto que a existência de um irá pressupor a existência do outro, ambos estando relacionados a algo 31 futuro, sendo que aquela representará uma alegria instável e enquanto este uma tristeza instável, uma vez que: [...] supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a realização de uma coisa imagina algo que exclui a existência da coisa futura e, portanto, dessa maneira, entristece-se. [...] Quem, contrariamente, tem medo, isto é, quem tem dúvida sobre a realização de uma coisa que odeia, também imagina algo que exclui a existência dessa coisa e, portanto, alegra-se. (E3Def.Af.13). Eles são ditos instáveis porque envolvem dúvida, que nos leva sempre a oscilarmos de um a outro, uma vez que, qualquer coisa pode vir a se tornar causa de esperança ou de medo para nós25:“As coisas que são, por acidente, causas de esperança e de medo são chamadas de bons ou maus presságios.” (E3P50S). Dessa maneira, ambos andarão sempre lado a lado, fazendo com que homens de quaisquer posições sociais e idades ensandeçam diante da dúvida de que algo bom se fará presente ou de que o mal não venha a os atingir. Os afetos, por sua vez, são inerentes ao próprio ser humano e possuem relação direta com o conhecimento do qual tratamos anteriormente. E por serem essenciais aos seres humanos é que não poderão, em vias ontológicas, terem a sua extinção decretada. O que queremos afirmar com isso é que, por exemplo, medo e esperança não poderão ser extintos quando é estabelecida uma relação com outro afeto; o que acontece aqui é que eles somente serão superados por afetos contrários e mais potentes do que eles. Pois, segundo a Ética: “Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado.” (E4P7). Dessa maneira, os afetos sempre persistirão nos homens, uma vez que, um somente poderá ser anulado por outro, que continuará a afetar o indivíduo, agora à sua maneira. Em outras palavras, o que pretendemos afirmar é que o medo poderá dar lugar à esperança, se algo que lhe causava tristeza tornou-se alegria, podendo a esperança dar lugar à segurança ou ao desespero, a partir do momento em que a dúvida, inerente aos afetos de medo de esperança, for extinta. Com isso, vemos que os alemães extinguiram o medo e a esperança, passando a se sentirem seguros quando Hitler subiu ao poder promovendo seu ideal político. É certo que, dentro desse contexto, surgem-nos então situações às quais nos apegaremos, uma vez que elas nos trazem a ilusão de que o mal não se aproximará ou de que o bem rapidamente se fará presente. Falamos aqui da famigerada superstição, que tantos 25 Segue-se disso que, se antes existia o medo, por parte dos alemães, de que a Alemanha continuasse a ser humilhada pelos demais países europeus, este medo foi então se transformando em esperança à medida que o partido nazista ascendia ao poder, disseminando a ideologia de que os alemães seriam a única“raça” pura e que todas deveriam ser exterminadas e que para isso o ataque aos demais países se mostrava necessário e iminente. 32 governos e religiões se utilizam, pois: “[...] não há nada mais eficaz que a superstição para governar a multidão. Por isso é que esta é facilmente levada, a pretexto da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los [...]” (TTP, Pref. § 6); vemos assim que governantes e sacerdotes visavam com isso tão somente a obediência daqueles que os seguem. Mas porque nos apegamos tanto a ritos, oferendas ou a sacrifícios, que são provenientes da superstição? Isso ocorre em virtude da dúvida, tal apego irá, portanto, acontecer porque nunca estamos seguros de nosso futuro, isto é, raras vezes uma situação irá se apresentar como sendo verdadeiramente favorável a nós, pois quando olhamos ao redor, muitas vezes nos vemos acuados com situações que nos geram dúvidas e acabamos sendo levados como um barco à deriva pelos meios que a superstição nos apresenta: Mas, como se encontram frequentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão-de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar seja no que for [...]. (TTP, Pref. § 5). Vejamos ainda este mesmo argumento, apresentado agora sob o ponto de vista da Ética, sua obra maior: As coisas que são, por acidente, causas de esperança ou de medo são chamadas de bons ou maus presságios. [...] Ademais, segue-se da prop. 25 que, por natureza, somos constituídos de maneira a acreditarmos facilmente nas coisas que esperamos e, dificilmente, nas que tememos, e a estimá-las, respectivamente, acima ou abaixo do justo. É essa a origem das superstições [...]. (E3P50S).26 Percebemos assim que os homens por diversas vezes procuram fazer um bem, não por acreditarem que fazê-lo seja importante, mas porque possuem a simples intenção de evitar que quaisquer males venham a se fazerem presentes em sua vida. Em outras palavras, o que queremos afirmar é que eles não fazem o bem porque a razão lhes conduziu a empreender tal ação27, mas tão somente para evitar que algum mal maior e futuro possa vir a atingi-lo. 26 Vejamos então o que nos é apresentado pelo filósofoholandês nesta proposição 25 da Ética: “Esforçamo-nos por afirmar, quanto a nós e à coisa amada, tudo aquilo que imaginamos afetar, a nós ou a ela, de alegria; e contrariamente, por negar tudo aquilo que imaginamos afetar, a nós ou a ela, de tristeza.” (E3P25). 27 “Pois o homem submetido aos afetos não está sob eu próprio comando, mas sob o do acaso [...]” (E4Pr.). Isso por que: “As ações da mente provêm exclusivamente das ideias adequadas, enquanto as paixões dependem exclusivamente das ideias adequadas.” (E3P3). Segue-se disso que, as ideias adequadas nos proporcionam um conhecimento mais adequado do que apenas ‘o ouvir dizer’, elas (ideias adequadas) estão no nível da razão e da intuição, conhecimentos que nos permitem padecer menos e compreender as coisas mais adequadamente. 33 Ora, como vimos anteriormente, se estamos sendo conduzidos somente por nossos afetos estamos ao domínio do acaso e, consequentemente, nos encontramos então no âmbito da imaginação (que é causa de falsidade e de erro); e é exatamente neste terreno da falsidade e do erro que a superstição encontra o seu campo de atuação através do trabalho das doutrinas religiosas e de seus sacerdotes: A maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria, [...] se estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja [...] (TTP, Pref. § 5). A superstição nos apresenta como mal aquilo que nos traz alegria e como bom aquilo que nos traz tristeza. O vulgo passa então a ter a convicção de que certos fardos como a piedade, a penitência ou as leis ditadas pela religião são necessárias para que punições após a morte venham a ser evitadas. Sabendo de como o vulgo teme a morte e o que vem após a ela, muitas religiões, na figura de seus sacerdotes associam a ideia de pecado e castigo a esse contexto, oferecendo-lhes a esperança ou até mesmo a segurança através de superstições. Como já afirmamos anteriormente, o que se visa aqui é tão somente a obediência e porque não falarmos o controle dos fiéis e de uma determinada sociedade, como é visto, por exemplo, nas teocracias. No Tratado Teológico-Político, Spinoza faz inúmeras objeções às profecias e aos profetas que as disseminam, buscando contrariar toda e qualquer dominação exercida pelas más interpretações e superstições disseminadas pelos sacerdotes e pelos próprios governantes, isso porque, como afirmamos, o filósofo considerava ser a superstição a melhor arma para se conseguir êxito no governo de grandes sociedades: “[...] não há nada mais eficaz que a superstição para governar a multidão.” (TTP, Pref. § 6). 34 3 DO TRATADO TEOLÓGICO POLÍTICO E SEUS PERCURSOS O Tratado Teológico Político é considerado por estudiosos da filosofia de Spinoza, como o português Diogo Pires Aurélio, como uma obra de caráter panfletário, uma vez que: “A sua sintaxe, a maioria das vezes, é estereotipada; o vocabulário é reduzido e frequentemente contaminado de neologismos trazidos das línguas modernas ou do hebraico [...]” (AURÉLIO, 2004, p.113). A obra foi escrita e publicada anonimamente pelo pensador porque ele temia as possíveis retaliações que uma obra como ela traria. Para produzi-la Spinoza precisou interromper a produção de sua obra maior a Ética,tornando possível assim chegar até nós seu pensamento acerca da religião e da política. Os percursos que o TTP busca percorrer possuem como principal objetivo nos encaminhar à liberdade de pensamento que Spinoza mais prezou durante todo o tempo em que ele desenvolveu seu pensamento, tanto nesta obra como na Ética ou ainda no Tratado Político. No TTP, o filósofo holandês percorreu um caminho que envolveu política e teologia, posicionando-se sempre contrário a relação que se estabelecia entre ambas. Spinoza resolveu então, interpretar as Escrituras Sagradas por um viés que se diferenciava de quaisquer outras interpretações teológicas já empreendidas antes e para isso, como veremos, foi necessário uma investigação tanto da língua quanto da própria cultura hebraica: “Filologia e história surgem, portanto, como elementos imprescindíveis para a compreensão do texto bíblico.” (AURÉLIO, 2004, p.86). Além disso, o filósofo holandês empreendeu uma investigação acercadas profecias e das revelações apresentadas pelos profetas ao povo hebreu;tal investigação se fez necessária, pois segundo o pensador, alguns desses profetas possuíam uma mente predisposta à imaginação, isto é, uma mente fortemente imaginativa: “O profeta, sustenta Espinosa, não é um homem de demonstração, é um homem de imaginação.” (AURÉLIO, 2004, p.50). E por este motivo, muitas de suas revelações, poderiam não estar em concordância com o que Deus lhes havia revelado, podendo em determinados momentos serem mais um sonho do que mesmo uma revelação. Os profetas, ao que sabemos, eram pessoas piedosas e justas e Deus se utilizou deles para demonstrar sua piedade para com os homens, pois: “Deus, efetivamente, nunca engana os piedosos e os eleitos [...], Deus serve-se dos piedosos como instrumentos de sua piedade [...]” (TTP, cap.II, § 31). 35 Sabemos ainda que, alguns indivíduos passaram realizarinterpretaçõesdas revelações dos profetas para o povo; mas é certo que, alguns desses indivíduosinterpretavamtais revelações o com claro intuito de garantir a obediência28 do povo, que conhecia as leis e profecias somente por intermédio desses interpretes, bem como dos sacerdotes. Assim, durante grande parte da história hebraica, bem como a de outros povos também, a religião procurou estar sempre envolvida com os governos, indicando-lhes a sorte que viriam a ter, ou garantindo-lhes a obediência do povo. Com isso, governos teocráticos foram sendo estabelecidos, ao passo que a liberdade política, religiosa e de pensamento foram sendo deixadas de lado. Mas, como veremos, somente com a democracia e a república livre, pensar, crer e agir seriam práticas livres de quaisquer perseguições. 3.1 O MÉTODO HISTÓRICO CRÍTICO Quando Spinoza inicia o seu Tratado Teológico Político, ele afirma que os homens jamais se tornariam vítimas da superstição se tivessem sempre como decidir por aquilo que lhes é seguro e favorável. Entretanto, é certo que não o podem e assim o medo de perder algo que lhes é caro sempre os assombra e buscando evitar tal situação é que procuram um amparo na religião e naquilo que ela possui de mais forte para conseguir a obediência do povo: a esperança. Dessa maneira, eles oscilam constantemente entre o medo e a esperança29, equilibrando-se nessa gangorra sustentada pela religião. 28 A obediência aqui está relacionada com a religião, com a necessidade dos líderes religiosos e dos líderes teocráticos de obterem do povo submissão às suas leis e normas. Mas, no interior da filosofia de Spinoza, a obediência tomada em sentido geral se apresenta com uma certa contradição. Isso porque ela refere-se ao estado de passividade em que os homens se encontram quando a aceitação, servindo para a formação do Estado, que é viabilizado visando à liberdade desses indivíduos. As paixões, é óbvio, compõem esse contexto. Porque para Spinoza obedecemos tão somente por medo ou por esperança; por medo de alguma punição, ou na esperança de que aquele Estado lhe proporcione algum benefício. Pois, como nos diz Diogo Pires Aurélio: “Obedecer, sendo iniludivelmente manifestação de passividade e dos limites da potência individual, sendo, em suma, paixão, pode, nesta perspectiva, não ser forçosamente uma paixão triste.” (AURÉLIO, 2004, p.102); isto é, nem toda passividade nos remete às paixões tristes, mas também às paixões alegres que elevam nossa potência e que podem por fim nos conduzir à razão. Com isso, a obediência ao Estado se mostra viável, inicialmente, em virtude da necessidade de se estar em sociedade como forma de garantir a sobrevivência e, posteriormente, por ser ela, a sociedade, que nos facilita alcançarmos a razão e os conhecimentos adequados. 29 “[...] não há esperança sem medo, nem medo sem esperança.” (E3Def.Af.13).Medo e esperança são dois afetos que juntos atingem o homem diante daquilo que ele mais preza ou teme. Assim, não podemos falar de medo sem esperança nem de esperança se medo, o que seria um erro posto, que todo medo, por exemplo, de sair de um estado de conforto, gerará a esperança em algo que (independente de ser bom ou ruim) manterá esse estado. 36 Com isso, muito se utilizou da Escritura ou das profecias como meio para se obter a obediência daqueles que buscavam segurança na religião: “Quer seja por palavras, quer seja por visões, a profecia reduz-se ao plano da imaginação e da passionalidade, conduzindo sempre a uma atitude de obediência e não de ciência.” (AURÉLIO, 2004, p.399). E através dessa obediência, muitos conflitos foram sendo instaurados entre diferentes nações e até mesmo dentro delas próprias, pois, segundo Pires Aurélio, todas as religiões, dentro de sua própria lógica fazem da guerra um fato inevitável: “ [...] o problema não tem solução de um ponto de vista religioso, uma vez que todas as religiões e seitas vão forçosamente, pela sua lógica intrínseca, reconstruir o mecanismo de exclusão que torna a guerra irremediável.” (AURÉLIO, 2004, p.80). Em se tratando da obediência, as interpretações e ações dos teólogos e estudiosos da Escritura, estavam corretas, uma vez que, como acredita Spinoza, Deus revelava aos profetas segundo a mente imaginativa que possuíam, mas os posteriores intérpretes tinham o intuito de alcançar a submissão de seus adeptos e formar um Estado teocrático sólido, capaz de resistir a diversos conflitos; logo, quando chegavam aos ouvidos dos hebreus, as revelações já vinham enredadas por toda uma carga interpretativa voltada para que essa obediência se concretizasse; é por tal motivo que muitos erros podem e são encontrados na própria Escritura, bem como nas interpretações que são feitas a respeito de diversos assuntos; pois: “[...] se os homens fossem sinceros quando falam da Escritura, [...] as suas mentes não andariam com tanta discórdia, não se combateriam uns aos outros com tanto ódio [...]” (TTP, cap. VII, § 97). Percebemos então, que não há, tanto por parte do vulgo, quanto por parte dos próprios teóricos da Sagrada Escritura, um desejo em viver e compreender corretamente os seus ensinamentos, fazendo assim, cada um, a sua própria interpretação, segundo suas próprias vivências e temperamentos, buscando tão somente a coação dos demais que não conhecem ou que não compreendem verdadeiramente a Sagrada Escritura30. Diante de tudo isso, questionamo-nos como poderemos acreditar numa possível divindade contida na Sagrada Escritura, uma vez que ela nos é apresentada em meio a interpretações tendenciosas e repletas de erros, posto que muitos dos milagres e revelações nela apresentados, estavam adaptados às opiniões e ao temperamento dos profetas? Mas não há, para Spinoza, qualquer questionamento possível que diminua a divindade contida na 30 Tais argumentos se mostram tão atuais quanto os próprios ensinamentos contidos na Escritura, uma vez que, não é difícil encontrarmos atualmente, pessoas interessadas em conquistar a fé de outras pessoas através do falso conhecimento que possuem das Escrituras, verbalizando barbaridades que nem mesmo eles praticam; são situações que visam, ao fim de tudo, o lucro e consequente enriquecimento pessoal dos primeiros. 37 Escritura Sagrada, pois essa se conclui pelo fato dela ensinar a verdadeira virtude31: “Por conseguinte, a divindade da Escritura deve concluir-se unicamente do fato de ela ensinar a verdadeira virtude.”(TTP, cap. VII, § 99); virtude esta contida nas entrelinhas dos ensinamentos morais. O método histórico crítico diferentemente dos métodos de exegese bíblica teológica, requer mais do que somente a mente imaginativa de seus intérpretes; ele exige que adentremos nas entrelinhas do texto sagrado e compreendamos a história que nele esta inserido. São dados históricos que precisam ser interpretados e que em grande parte passam despercebidos; dados essenciais para o desenvolvimento do trabalho interpretativo. Mas, todo estudo histórico de um povo requer também um estudo linguístico deste; requer ainda mais um envolvimento imediato com a língua em questão. Para Pierre François Moreau, a língua representa algo que é imanente a própria potência social de cada sociedade, por isso: É preciso apreender a importância da dimensão coletiva da linguagem. Sob a língua há uma comunidade. Esta vive e fala segundo leis imanentes à sua existência mesma e a ignorância destas leis conduz a reconstruir uma língua imaginária exatamente como fazer uma política a partir da ignorância das leis da natureza humana conduz a sonhar com a idade do ouro ou com o reino da Utopia. (MOREAU apud ROCHA). Desse modo, o método histórico crítico exigirá de nós uma compreensão da história e da língua referentes aos textos sagrados, pois: “Só assim se poderá, com efeito, examinar todos os sentidos que cada frase pode ter de acordo com o uso corrente da língua.” (TTP, cap. VII, § 100). Disso se segue que, este método requer um aprofundamento que esteja centrado na própria Escritura, em suas nuances e seus percursos, ultrapassando assim as meras interpretações do senso comum, que se encontram cercadas por preconceitos e que tem como base outros livros que não a própria Escritura Sagrada. Segundo Alcântara Nogueira, Spinoza ao se utilizar deste método procurou afastar-se de certas interpretações alegóricas e artificiosas que vinham até então sendo feitas por rabinos, clérigos ou quaisquer sacerdotes que a interpretavam sob esse viés; para Nogueira, o pensador holandês procurou: “[...] discutir e interpretar, em termos sistemáticos, a Bíblia sob o prisma crítico-histórico [...]” (NOGUEIRA, 1976, p.78). 31 Essa verdadeira virtude, como podemos observar em alguns capítulos mais adiante do TTP, assim como na Ética, representa o conhecimento intelectual de Deus;que é um conhecimento além do conhecimento sobrenatural que os profetas acreditavam possuir. Um conhecimento que segundo a Ética consiste em compreender a natureza e, consequentemente, toda a natureza por elas mesmas. 38 Desse modo, com sua veemência em afirmar a exatidão do método histórico crítico, Spinoza afastou-se da interpretação que, por exemplo, o pensador judeu Moisés Maimônides32 fazia da Sagrada Escritura. Maimônides, como um praticante da religião judaica, não compreendia a Escritura como um documento histórico; sua concepção de verdade condiz com as causas dos fenômenos naturais, por isso defendia que as interpretações dos textos sagrados deveriam estar sempre adequadas: “[...] às exigências de natureza racional.” (NOGUEIRA, 1976, p.86). O método interpretativo da Escritura proposto por Maimônides contrariava a educação para obediência que as Escrituras possuíam, método que para Spinoza poderia admitir inúmeras interpretações e sentidos, esbarrando assim em dois graves defeitos: o primeiro deles se devia ao fato de que sua aplicação não se baseava na regra universal de que todo conhecimento da Escritura deve ser obtido a partir dela mesma; já o segundo, e talvez o mais importante, seja que os métodos de interpretação da Escritura e da natureza não diferem um do outro. As objeções de Spinoza ao método interpretativo de Maimônides nos mostram o quanto ele se afastou da tradição judaica e do quão próximo ele buscou estar da compreensão do seu Deus sive natura33. Já demonstramos anteriormente que toda compreensão de Deus na filosofia spinozana perpassa um conhecimento de si próprio e das coisas por suas verdadeiras causas. Mas, para alcançarmos a verdadeira causa existente nas Escrituras esbarramos, ao utilizarmos o método histórico crítico, em determinadas dificuldades que não empobrecem o método, mas tornavam, pelo menos à época de Spinoza, a investigação mais laboriosa; uma das, e talvez a principal delas, é a própria língua hebraica. Mais do que uma interpretação crítico filosófica, Spinoza fez um diálogo entre filologia e história, uma vez que não há como separar ambos, pois somente assim poderíamos chegar à correta compreensão dos textos. Entretanto, até a época de Spinoza, os estudiosos, não possuíam um conhecimento mais aprofundado do hebraico, como hoje podemos observar; tal fato tornava a tradução e a interpretação das Escrituras um trabalho árduo, pois é certo que: “A nação hebraica perdeu todas as suas glórias e pergaminhos (o que não admira, depois de 32 Maimônides nasceu na cidade de Córdoba em meados do século XII d.C.; era médico, mas também filósofo e teólogo judeu. Adepto de Aristóteles até o ponto em que este não convergia com sua religião,era também um profundo conhecedor da lei judaica; ele acreditava na razão e na Filosofia como aliadas à Teologia. Seus estudos chamaram a atenção de pensadores modernos como Spinoza principalmente, por sua veracidade frente à ética judaica, fato que não impediu Spinoza de contrariá-lodiante da interpretação bíblica e da questão teológica. 33 Essa concepção de Deus apresentada na Ética destoa do Deus judaico cristão abordado no TTP a partir das Escrituras Sagradas. Esse Deus é considerado natureza, uma vez que, ele está em todas as coisas, posto que é causa de tudo o que existe. 39 ter sofrido tantos desastres e perseguições) e não conservou senão uns poucos fragmentos da língua e de uns tantos livros.” (TTP, cap. VII, § 106). É exatamente por não se ter acesso a verdadeira história do povo hebreu que encontramos diversas ambiguidades na interpretação das Sagradas Escrituras. Algumas dessas ambiguidades podem ser observadas através da obscuridade que encontramos em determinadas frases da Bíblia, situação que é gerada inclusive pelo fato de que algumas letras eram confundidas umas com as outras, em virtude de serem utilizadas pelos mesmos órgãos da fala; em outras palavras, elas possuem fonemas semelhantes que ao serem pronunciadas acabavam ocasionando tal confusão: Assim, por exemplo, as letras Aleph, Jeth, Ayin e He chamam-se guturais e, tanto quanto sabemos, empregam-se indiscriminadamente uma pelas outras. Assim, el, que significa para, toma-se muitas vezes por al, que significa sobre, e vice-versa. Daí que todas as partes da proposição se tornem muitas vezes ambíguas ou como sons sem qualquer significado. (TTP, cap. VII, § 107). Ora, como anteriormente toda a tradição era transmitida oralmente, o que foi passado de geração após geração até o momento da transcrição dessas histórias para a confecção do livro sagrado, sofreu inúmeras mudanças, inclusive no momento da escritura; logo, é perfeitamente claro que tais controvérsias ocasionaram determinadas confusões de sentidos. Há ainda um segundo ponto de ambiguidade contido nas frases; esta ocorre, principalmente, através da multiplicidade de significados existentes nas conjunções e nos advérbios da língua hebraica; seguidamente, e ainda com relação à gramática hebraica34, observamos que os verbos no indicativo não possuem tantas variações em seus tempos verbais como acontece no português. Por fim, existem ainda outras duas ambiguidades no hebraico que se devem à falta de vogais e ao fato de não serem usados sinais de pontuação nas frases. Todas essas ambiguidades acabam gerando controvérsias na leitura e interpretação da Escritura, gerando conclusões maliciosas a respeito das profecias e dos ensinamentos, caso não exista entre seus intérpretes uma pesquisa aprofundada da língua e da história desse povo. A história, por sua vez, também possuirá algumas divergências; estas se referem ao tempo cronológico de determinados livros ou da incompletude de alguns outros; ora, a 34 Spinoza foi um grande estudioso da língua hebraica. Como muitos dos hebreus, ele teve seus estudos acompanhado por rabinos e professores judeus. Mas assim como no TTP, em que o pensador holandês faz uma interpretação da Bíblia baseado em fatos históricos e culturais do povo hebreu, ao escrever a Gramática da Língua Hebraica, Spinoza procura fazer uma apresentação diferenciada das nuances dessa língua. 40 incompletude de alguns livros pode ser explicadas,pois: “A nação hebraica perdeu todas as suas glórias e pergaminhos (o que não admira, depois de ter sofrido tantos desastres e perseguições) e não conservou senão uns poucos fragmentos da língua e de uns tantos livros.” (TTP, cap. VII, § 106). Quanto ao tempo cronológico, tomamos como exemplo os cinco livros do Pentateuco, onde as histórias foram sendo contadas sem que se seguisse uma ordem cronológica adequada: “[...] só nos resta examinar estas narrativas, ou seja, a sua ordem e o seu encadeamento, as diversas repetições e, enfim, a sua discrepância no cômputo dos anos, para assim se poder ajuizar do resto.” (TTP, cap. IX, § 130); tais situações acabam por gerarem confusão, uma vez que os desordenamentos dos fatos levam a interpretações múltiplas tanto do que se afirma nos textos sagrados, quanto aos motivos de tal desorganização. Mais fácil se tornaria o esclarecimento das narrativas se pudéssemos conhecer quem foram, o que pensavam e o que queriam os historiadores responsáveis pela produção dos livros sagrados. Entretanto, como tal fato não nos é completamente possível, Spinoza vai tentar elucidar, pelo menos, quem foram os historiadores que escreveram a Escritura Sagrada. O principal deles talvez tenha sido Esdras que colaborou com grande parte dos livros sagrados: “Ora a Escritura não menciona ninguém que se tenha evidenciado nessa altura, a não ser Esdras, que aplicasse todo o seu esforço ao estudo e comentário da lei de Deus e fosse um escritor experimentado na legislação mosaica.” (TTP, cap. VIII, § 127). Ora esse esclarecimento de quem seriam os autores dos livros sagrados se mostra necessário uma vez que Spinoza não acredita serem os verdadeiros autores, aqueles a quem a autoria dos livros sagrados é atribuída, isso é afirmado em virtude de inúmeros motivos, como por exemplo, a controvérsia cronológica que se estabelece, uma vez que, o tempo mencionado em alguns livros se mostra completamente diferente do momento em que eles realmente foram escritos35; é possível que vários fatos tenham sito passado as diversas gerações antes de serem escritos pelos historiadores. Dentro desse contexto de autoria temos ainda os textos atribuídos a Moisés, que muito provavelmente não escreveu nenhum dos livros a ele atribuídos, onde o principal argumento para isso, é que grande parte dos livros do Pentateuco foram escritos em terceira 35 Um claro exemplo disso é a contagem de tempo que Spinoza faz, desde a saída dos hebreus do Egito, até a construção do templo de Salomão. Segundo a Bíblia se passaram 480 anos entre esses dois momentos, mas segundo o somatório feito pelo filósofo, a partir de fatos ocorridos entre esses momentos, apresenta-nos um total de 580 anos. O que nos mostra claramente a controvérsia tanto na produção da Bíblia, quando na própria contagem de tempo entre os fatos nela narrados. 41 pessoa: “Ora, Moisés era um homem muito humilde, o mais humilde dos homens que havia na terra.”36. Além disso, esses livros narram também a morte e o enterro de Moises, bem como o luto de trinta dias feito pelos hebreus por sua morte. Fica claro, com isso, a presença de um segundo narrador que foi responsável por transcrever os passos de Moisés, citando em alguns momentos possíveis falas do profeta, isso porque encontramos momentos em que a narração se apresenta em primeira pessoa: “[...] no Deuteronômio, onde se transcreve a lei que Moisés escrevera e explicara ao povo, o mesmo Moisés fala e narra os seus feitos na primeira pessoa.” (TTP, cap. VIII, § 121). Podemos observar, ainda, nos Livros Sagrados fatos como a omissão de determinados acontecimentos históricos ou ainda de que alguns livros não passam de fragmentos recolhidos de outras obras escritas pelos profetas, como os livros dos profetas: Examinando-os com atenção, noto que as profecias que aí se encontram foram coligidas de outros livros e que nem sempre vêm transcritas segundo a ordem pela qual foram pronunciadas ou escritas pelos próprios profetas, além de que não estão lá todas, mas unicamente as que foi possível encontrar aqui ou ali. Tais livros constituem, portanto, apenas fragmentos das obras dos profetas. (TTP, cap. X, § 142). Tanto estas quando as situações anteriores, independentemente de que sejam as históricas ou as linguísticas, acabam por dificultar uma interpretação mais idônea da Escritura. Assim sendo, como então é possível retirar um ensinamento correto e verdadeiro de tais textos diante de erros como os que foram questionados por Spinoza? O que acontece é que para o pensador holandês, nem todos os livros sagrados apresentavam doutrinas ou leis confusas e inadequadas. Os livros do Novo Testamento estão repletos de ensinamentos morais37; além disso, argumenta Spinoza: “Nunca existiu um livro que não trouxesse erros. Alguma vez alguém suspeitou, lá por isso, que eles estejam errados da primeira à última linha? (TTP, cap. X, § 149); isto é, não podemos com isso desconsiderar toda a Escritura em virtude de algumas contradições em seus livros. Segundo Alcântara Nogueira, o método pretende, após superarmos as dificuldades apresentadas anteriormente, nos encaminhar a uma interpretação da bíblia que seja verdadeira e exata: “[...] para encontrar na História o verdadeiro apoio e a verdadeira exatidão para 36 Nm 12, 3. Segundo o próprio autor, estes ensinamentos morais vieram de Jesus Cristo, que não tinha os mesmos ideais políticos de Moisés, a saber: instituir um Estado forte capaz de enfrentar muitas guerras sem sucumbir. Jesus queria apenas difundir os ensinamentos morais, que nos levariam ao verdadeiro conhecimento de Deus, o conhecimento intelectual, do qual nos fala Spinoza na Ética, onde é chamado de Amor intelectual a Deus ou Amor Dei Intelectualis. Dessa forma, Jesus Cristo seria o verdadeiro filósofo, dentre todos os profetas que encontramos na Bíblia. 42 37 interpretar a Bíblia.” (NOGUEIRA, 1976, p.87); isto é, pretende-se evitar que mais interpretações errôneas dos textos sagrados sejam realizadas, como as que foram feitas durante muito tempo pelos hebreus, que acabou gerando tensões e guerras por interpretarem que os textos sagrados representavam uma regra de vida prescrita somente a eles, excluindo todos os outros povos que não pertenciam à religião judaica. 3.2 OS PROFETAS E AS LEIS Os primeiros capítulos do TTP nos apresentam a toda uma interpretação que Spinoza busca fazer dos textos da Sagrada Escritura; isto é, trata-se de um percurso que perpassa as profecias, os profetas, as revelações, os milagres e as leis, passando também pelos possíveis equívocos cometidos pelos profetas, bem como pela destinação das leis que foram apresentadas principalmente no Antigo Testamento. Dessa forma, o que temos é uma preparação para a cisão que Spinoza pretende fazer alguns capítulos adiante, quando trata da política afirmando que ela é melhor e mais justa quando se encontra separada de qualquer influência religiosa38. Nesse contexto, analisar as profecias, assim como as leis que foram citadas através daquelas, significa compreendermos de que maneira a religião se estabelece no interior de um Estado, tornando-o teocrático assim como aconteceu por diversas vezes no decorrer da história da humanidade e que como sabemos é perigoso sob inúmeros pontos de vista. Assim, figuras como Moisés, Samuel entre outros, foram essenciais no contexto da Escritura para legitimar as leis que, segundo eles, foram estabelecidas por Deus e que, para Spinoza, serviram apenas para fortalecer o poder político: “[...] o objetivo da Escritura não foi ensinar as ciências, daí se podendo facilmente concluir que ela não exige dos homens senão a obediência e condena a insubmissão [...]” (TTP, cap. XIII, § 168). Assim sendo, nós podemos observar que os profetas representavam aquelas pessoas que interpretavam as revelações que Deus39 lhes fazia e que eram destinadas aos hebreus; como no caso de Isaías, Ezequiel, Samuel ou ainda do próprio Moisés; eles recebiam 38 Spinoza era adepto da democraciaestando ela completamente separada da religião e que possibilitasse aos seus cidadãos a liberdade de pensamento. É dela que o filósofo fala no TTP e desenvolve, ainda que inconclusivamente, uma argumentação no Tratado Político. 39 Uma revelação de Deus é tão somente uma profecia que, segundo Spinoza, representa todo o conhecimento de algo revelado por Deus; é um conhecimento natural ditado pela natureza divina. 43 as revelações de Deus por meio de imagens, palavras ou imagens e palavras ao mesmo tempo, que aconteciam conforme eles estivessem dispostos a elas. Assim, por imagens vemos como foi revelado à Davi a ira de Deus contra Jerusalém: “Erguendo os olhos, Davi viu o Anjo de Iahweh entre a terra e o céu, tendo na mão a espada desembainhada, voltada contra Jerusalém.”40; por palavras, como à Moisés com o Decálogo: “Iahweh falou conosco face a face, do meio do fogo, sobre a montanha.”41; ou ainda por meio das duas ao mesmo tempo, como em Isaías: “Nisto, um dos serafins voou para junto de mim, trazendo na mão uma brasa que havia tirado, com uma tenaz, do altar[...] Em seguida ouvi a voz do Senhor que dizia: ‘Quem hei de enviar?’ [...]”42. Essas passagens nos mostram de que modo cada um dos profetas recebiam as revelações de Deus; entretanto, elas não faziam deles mais sábios que os outros judeus, uma vez que todos estavam predispostos à revelação, isto é, eles possuíam sim uma imaginação mais viva, onde as profecias iriam variar de acordo com essa imaginação e com o temperamento de cada profeta: “[...] os profetas não perceberam a revelação divina senão através da imaginação, isto é, mediante palavras ou imagens, as quais ora eram verdadeiras, ora imaginárias.” (TTP, cap. I, § 28). Isto é, conforme fosse a disposição dos profetas, tendo certas ideias ou imagens acerca de Deus, as profecias eram reveladas a eles da maneira que lhe implicasse mais certeza. Por isso mesmo é que Deus não se apresentava a eles face a face 43, mas aparecialhes em sonhos, ou através das formas que eles próprios constituíam em sua mente de como e quem seria Deus: “Isaías vê Deus vestido e sentado num trono real, Ezequiel vê-o como uma chama. Ambos o viram, sem dúvida, mas conforme cada um costumava imaginá-lo.” (TTP, cap. II, § 34). Assim, conforme fosse a imaginação ou o temperamento do profeta, mais ou menos nítida seria a revelação, o que obrigava aos profetas exigirem de Deus sinais que os certificassem de que aquele sonho, visão ou voz era mesmo Dele. Como aconteceu, por exemplo, com Moisés a quem Deus revelou por meio de uma voz verdadeira, que o profeta sempre reconhecia quando encontrava com Deus: “O que mostra que Deus se serviu de uma verdadeira voz, já que Moisés, sempre que queria, encontrava ali Deus pronto para lhe falar.” (TTP, cap. I, § 17). Suas profecias eram, portanto, 40 1Cr 21,16. Dt 5,4-5. 42 Is 6, 6.8. 43 Somente Cristo, segundo Spinoza, foi capaz de assumir a sabedoria divina em sua natureza humana, posto que ele se comunicava com Deus mente a mente: “[...] enquanto Moisés falava com Deus face a face, tal como um homem fala habitualmente com um companheiro [...] Cristo comunicou com Deus de mente para mente [...]” (TTP, cap.I, §21); assim sendo, nessa relação não havia qualquer influência proveniente da imaginação. 44 41 inferiores ao conhecimento natural e não tornavam o profeta mais sábio, pelo contrário, muitas vezes eles ficavam muito mais equivocados acerca do que lhes era revelado. Eles ficavam tão equivocados com relação ao que apresentavam as profecias, que pediam a Deus algum sinal de que eles estavam realmente a recebendo ou era tudo um sonho: “E Gedeão lhe disse: ‘Se encontrei graça aos teus olhos, dá-me um sinal de que és tu quem me fala.’”44; os sinais que serviam, então, para persuadir os homens de que as profecias eram de Deus e elas variavam de acordo com as ideias que os profetas possuíam em sua mente: “Por isso, os sinais variavam consoante o profeta.” (TTP, cap. II, § 32). Segue-se disso, que em todo esse processo, Deus usou-se de sinais e prodígios, para que os hebreus o temessem e esperassem pela terra prometida, obedecendo assim a tudo que Ele apresentava a Moisés, como por exemplo, o conjunto de dez leis45 que, segundo Spinoza, serviram mais para reger o povo hebreu do que mesmo para lhes possibilitar alcançar o bem supremo. Ora, um desses meios foi, segundo Diogo Pires Aurélio, através da punição e da proteção dada ao povo hebreu, onde Deus estaria se utilizando do que o autor chamou de uma mentira pedagógica para converter e submeter o povo hebreu, que segundo o próprio Spinoza, era insubmisso e desobediente: “Ao povo, Deus teria dito como que uma mentira pedagógica, apresentando-se ora como colérico ora como bondoso, para o converter através do medo e da esperança.” (AURÉLIO, 2004, p.75). Assim, Deus tentava o povo hebreu por meio de sinais e milagres, condicionando-o ora através da esperança quando lhes prometia algo bom exigindo deles a obediência, ora através do medo, quando estes faltavam com a obediência, mostrandose como um Deus severo e que pune. Os milagres, ditos fatos insólitos da natureza, são considerados pelos homens como algo que Deus faz em virtude do amor que nutre pelos homens, isto é, os indivíduos acreditam serem a causa final desses fenômenos naturais que se aproximam das coisas naturais e que ultrapassam a compreensão humana: [...] podemos uma vez mais concluir que o milagre, contra a natureza ou acima da natureza, é simplesmente um absurdo. Por essa razão, nos livros Sagrados, não pode entender-se por milagre senão um fato natural que ultrapassa ou é suposto ultrapassar a compreensão humana. (TTP, cap. VI, § 87). 44 Jz 6, 17. A passagem acima trata do momento em que Gedeão pede a Deus um sinal de que é realmente Ele quem está a lhe falar. 45 Esse conjunto de leis representa, tão somente, os dez mandamentos contidos nas Escrituras e que foram entregues por Deus à Moisés, onde este, por sua vez, deveria repassar tudo que ali estava escrito aos hebreus e convencê-los a seguirem. 45 Mas para que alguns milagres se concretizassem ou ainda como forma de agradecê-los, uma vez que, como afirmamos, os homens consideram a existência deles em virtude do amor que Deus sente pelos homens, as cerimônias foram sendo instituídas dentro do Estado hebreu e elas acabaram por legitimar não somente a obediência a Deus, como também ao próprio Estado. Tal atitude é também empreendida pelos governantes e sacerdotes com seus cidadãos e seguidores. Para os teólogos afirmar que Deus promete a vida eterna no paraíso cria a esperança nos fiéis, que é facilmente abalada pelo medo quando se afirma que com uma vida de pecados e sem arrependimento só resta o inferno e a punição eterna. Os governos por sua vez fazem o mesmo papel, garantindo a segurança de seu povo do ataque de outros povos, mas exigindo a obediência deste através da coação. Todo este artifício demonstra que Deus não queria escolher somente um povo entre todos os povos, mas queria sim garantir a obediência deles, ao passo que para os profetas era importante formar um Estado forte e seguro, que sobrevivesse a quaisquer conflitos, através exatamente dessa obediência às leis supostamente divinas. Ora tal empreitada não encontrava dificuldades principalmente porque a maioria dos homens não busca compreender a finalidade para qual foram estabelecidas as leis, isso porque estão sempre movidos pelas paixões e pelos seus próprios interesses. Além disso, é certo que todos nascemos ignorantes das causas das coisas e assim agimos segundo nossos apetites e vontades: [...] cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e sua insaciável cobiça. (E1Ap.) Assim sendo, é fácil compreendermos porque durante toda a narrativa bíblica os profetas e os sacerdotes interpretaram as revelações e os decretos divinos de acordo com a sua própria imaginação e interesse, incutindo no imaginário hebreu a certeza de que eram o povo escolhido de Deus, estabelecendo um pacto para com Deus e com suas leis. Se, de maneira geral, a lei se trata de um vocábulo que designa uma regra responsável por legitimar o poder de uma autoridade soberana, para Spinoza, veremos que em seu sentido absoluto ela representará tudo aquilo que leva os indivíduos à agirem de uma maneira certa e determinada, isto é: “[...] significa aquilo em conformidade com o qual cada indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma espécie, agem de uma certa e determinada 46 maneira.” (TTP, cap. III, § 57). As leis podem depender tanto da necessidade da natureza quanto de uma decisão do homem. Então vejamos: para Spinoza as leis naturais derivam da própria natureza, bem como da definição da própria coisa; elas são, portanto, eternos decretos de Deus, que demonstram a sua eternidade, a sua verdade e a sua necessidade, como no caso da lei universal dos corpos46. Assim, quando Thomas Hobbespensa a respeito das leis, vemos que ele afirma ser a lei natural uma regra geral que nos proíbe de fazer algo contra a nossa própria preservação, ou ainda de omitir aquilo que contribui para essa preservação; uma delas dita sobre o esforço em buscar a paz: “[...] todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la [...]” (HOBBES, 1988, p.78). Essa lei natural que dita sobre a paz, acaba por implicar muitas outras leis naturais que impulsionaram os homens, segundo Hobbes, a buscarem sempre a paz e a defesa de si mesmo; vejamos uma delas que afirma: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. (HOBBES, 1988, p.79). Seguidamente, podemos perceber que a ideia de lei natural apresentada por Hobbes se aproxima mais do que Spinoza pensou como sendo as leis dos homens, que representam uma regra de vida que foi prescrita com a finalidade de que se tenha uma vida mais segura e também mais cômoda. A partir de toda essa discussão, Spinoza vai destrinchando todo seu argumento conceitual acerca das leis divinas, naturais e humanas; embora sejam leis elas possuem conceitos e finalidades distintas. A primeira representa a finalidade das leis que pelos homens é ignorada em virtude das paixões. Trata-se da lei divina que é: [...] universal e tanto se refere ao homem isolado como aos homens em sociedade; dispensa a fé nas narrativas históricas, [...] não obriga a cerimônias ou a quaisquer ritos instituídos; [...] visa, enfim, o sumo bem (summum bonum) e não os simples bens. (AURÉLIO, 2004, p.65). Em resumo a lei divina é aquela que os indivíduos seguem quando procuram conhecer e amar a Deus, por meio de um conhecimento intelectual; ou ainda, quando se 46 Sobre a lei universal dos corpos ver Segunda Parte da Ética, proposição 13, escólio. 47 encontram no terceiro gênero do conhecimento, chamado na Ética de intuição ou amor intelectual a Deus(amor Dei intelectualis): “Assim, essa doutrina, além de tornar nosso espírito inteiramente tranquilo, também nos ensina em que consiste nossa suprema felicidade, ou seja, nossa beatitude: unicamente no conhecimento de Deus.” (E2P49S). Assim sendo, podemos afirmar que a lei divina se diferencia substancialmente daquelas leis que foram prescritas por Deus à Moisés e ao povo hebreu. Ela refere-se, unicamente, à busca do indivíduo pelo conhecimento verdadeiro e, portanto, adequado de Deus, livrando-se das paixões, ou melhor ainda, aprendendo a refreá-las. Mas quando o pensador holandês fala de Deus no contexto de sua Ética, ele nos fala de um ser imanente que é chamado de Deus, natureza ou substância47. Logo, Deus e natureza são uma só e mesma coisa. Assim sendo, o que dizermos das leis divinas e das leis naturais? Há diferença entre ambas? No âmbito do TTP, em virtude dos profetas e do próprio povo hebreu possuírem uma mente fortemente imaginativa, observa-se que eles acreditam que ambas são distintas, pois, segundo suas interpretações a natureza fica inativa no momento da ação de Deus, ao passo que Deus se ausenta no momento em que a natureza resolve agir. Como já demonstrado anteriormente, a lei divina é universal e visa sempre o alcance do sumo bem. Já a lei natural, por sua vez, representa aquela lei responsável por indicar a infinidade, a eternidade e a imutabilidade de Deus, elas são eternos decretos de Deus. Um exemplo disso é a lei universal do movimento dos corpos: “[...] todos os corpos, quando encontram outros mais pequenos, percam tanto movimento quanto o que lhes transmitem, é uma lei universal dos corpos que decorre da necessidade da natureza.” (TTP, cap. III, § 57). Contrariamente a tudo isso, a lei humana diz respeito ao direito civil que se estabelece a partir da constituição de uma sociedade, de um Estado. Portanto, podemos afirmar que ela é prescrita com a clara finalidade de se manter a segurança tanto do indivíduo quanto da sociedade que ele habita. Logo, o medo e a esperança cerceiam toda a lei humana, o que legitima a ação e o poder da política. Essa lei representa, portanto, uma lei particular, que existe em um determinado tempo e para um determinado povo, nunca alcançando a humanidade por inteiro. Tal lei visa um bem que não é o bem supremo, mas sim o bem que diz respeito aos interesses políticos: 47 Compreendemos Deus como um ser que exprime uma essência eterna e infinita e que é, portanto, absolutamente infinito. Já enquanto substância, Deus é compreendido como um ser que existe por si mesmo e por si mesmo é concebido, não precisando de nada mais para existir. E por fim, Deus enquanto natureza é considerado como causa livre que possui uma essência eterna e infinita e existi por si mesmo, que é também chamado de natureza naturante. 48 (A lei) vive da fé e da imaginação, pois desconhece a verdadeira finalidade da vida; implica cerimônias e rituais, para suprir a falta de um conhecimento intelectual das coisas; visa os bens, ou seja, e em termos políticos, a segurança do indivíduo e da coletividade e não o bem supremo. (AURÉLIO, 2004, p.66, Grifo nosso). Se as leis humanas visam os bens políticos e, também, particulares, delas só pode resultar o direito civil, que rege e controla toda e qualquer ação dentro de uma sociedade. É fácil explicarmos tal lei, através do exemplo dos judeus que durante todo o tempo em que estiveram unidos em comunidade sobre a égide de Moisés, estiveram submissos a tais leis, mas que após o perecimento dessa grande comunidade e dispersão do povo pelo mundo, eles já não mais estavam obrigados para com elas. Entretanto, a comunidade acabou, mas o povo e o sentimento hebreu permaneceram e se estendem até os dias atuais e com isso, perdura também o cumprimento das leis impostas por Moisés. Acresce-se a isso, que essas, foram tão corretamente engendradas que são obedecidas pelos hebreus até os dias atuais, legitimando ainda a crença de que somente eles teriam sido o povo escolhido por Deus, ideia que deixava os demais povos a mercê da própria sorte. Essa crença na predileção se deve, inclusive, a todo o processo de libertação, proteção, bem como a legislação dos hebreus, quando de sua saída do Egito, sob a custódia de Moisés que seguia sob as ordens e a proteção divinas. De tudo o que foi dito, é certo que as leis se constituem sempre com alguma finalidade; divinas, naturais ou humanas todas possuem o seu fim. Mas somente uma delas nos encaminha para um aperfeiçoamento do nosso entendimento e, portanto, para um conhecimento mais perfeito de Deus. Entretanto, diante de um povo insubmisso e desobediente muitos intérpretes viram na distorção do sentido de certas revelações uma maneira de apreender a atenção desse povo. O medo e a esperança cercam então essa distorção ao oferecerem, por um lado, a segurança enquanto exigem por outro a obediência. 49 3.3 AS FORMAS DE GOVERNO E O PERIGO DO ESTADO TEOCRÁTICO Quando pensamos, no interior da filosofia de Spinoza, acerca de um Estado que seja perfeitamente constituído devemos ter em consideração que, qualquer que venha a ser o Estado e a sua constituição, este sempre partirá de algo muito mais anterior e que é inerente a cada um de seus indivíduos, antes mesmo que esse venha a se tornar um cidadão. Tratamos aqui do esforço que, como demonstraremos no capítulo seguinte, chama-se conatus, tendo sido definido na Ética como a essência atual de cada indivíduo: “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual.” (E3P7). Esse mesmo indivíduo possui um direito que lhe é intrínseco e que o faz livre para agir como bem entender tendo em vista a sua existência; é o direito natural, que somado ao conatus permite ao homem fazer tudo quanto estar em seu poder para permanecer existindo: [...] o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua potência determinada. E, uma vez que a lei suprema da natureza é que cada coisa se esforce, tanto quanto esteja em si, por perseverar no seu estado, sem ter em conta qualquer outra coisa a não ser ela mesma, segue-se que cada indivíduo tem supremo direito a isso, ou seja [...], a existir e agir conforme está naturalmente determinado. (TTP, cap. XVI, § 189). Sendo assim, conatus e direito natural estão intrinsecamente relacionados, uma vez que, ambos envolvem um desejo, isto é, ambos persistem enquanto o esforço de permanecer existindo fizer o indivíduo agir determinadamente. Segue-se disso, que para uma sociedade se constituir sem que haja qualquer prejuízo ao indivíduo e ao seu direito natural é necessário que todos transfiram para essa sociedade, por sua própria vontade, o seu supremo direito de natureza48, passando assim a obedecer a este Estado maior, seja livremente ou ainda por medo da punição. Um clássico exemplo dessa obediência ao Estado se encontra no povo hebreu: nas sagradas escrituras a formação desse povo é narrada, mostrando-nos o comando de Moisés e também como a nação era obediente e temerosa a Deus. Isto é, Deus falou, portanto, ao povo hebreu, pois queria deles a obediência e a devoção, mas isso só ocorreu através da constituição de uma nação com representantes que 48 Ao conceder o seu direito natural em nome do bem estar social, o homem o abranda quando passa a ser governado pelo direito civil que se estabelece. Entretanto, ele jamais se desfaz por completo de seu direito natural, isso porque todo e qualquer indivíduo, por mais obediente que seja às regras civis, possui consigo o conatus, o esforço que o leva sempre a decidir pelo que lhe preserva a existência. Assim, sempre que esta for ameaçada o indivíduo, retoma o seu direito natural em nome de sua própria preservação. 50 lhes dominasse o direito natural. Logo, o estabelecimento de um direito comum a todos tinha em vista que o povo que o formava obedecesse e fosse sempre submisso: [...] é necessário mostrar primeiro que o conhecimento intelectual, isto é, exacto de Deus não é um dom comum a todos os fiéis, como é a obediência; em segundo lugar, que o conhecimento que Deus, por intermédio dos profetas, exigiu a todos sem excepção e que cada um é obrigado a possuir não é senão o conhecimento da divina justiça e caridade. (sic.) (TTP, cap. XIII, § 168). Durante muito tempo Moisés e, consequentemente, o povo hebreu acreditou ser o povo mais amado e escolhido por Deus em virtude das promessas que ele havia feito aos israelitas. Isso levou a nação judaica a acreditar que Deus lhes deu os mandamentos para que esse povo fosse superior aos demais em termos de beatitude. Entretanto, já afirmamos anteriormente que nenhuma das revelações ou profecias tornaram mais sábios os profetas e o próprio povo, uma vez que: “[...] a verdadeira felicidade e beatitude de um homem consiste apenas na sabedoria e no conhecimento da verdade[...]” (TTP, cap. III, § 44). E isso é claro, gerou disputas e também ódio entre o povo hebreu e os demais povos, que eram considerados inferiores diante dos israelitas, pois Deus havia escolhido estes e não aqueles. É aqui, pois que se estabelece a violência, a barbárie; mas é aqui também que se abre o questionamento: Até que ponto a teologia pode ser interessante para o controle do Estado? É o que Spinoza procura responder ao separar a religião do Estado e quando nos apresenta a melhor forma de governo diante de suas análises das demais. Como dito anteriormente, para a constituição de uma sociedade é necessário que o homem conceda o seu direito natural ao indivíduo que será governante desta sociedade, conservando apenas o que ele julgar necessário para a sua sobrevivência, uma vez que, o conatus não nos permite fazermos quaisquer coisas que venham a prejudicar nossa existência, assim: A condição para que uma sociedade se possa constituir sem nenhuma contradição com o direito natural e para que todo o pacto seja sempre observado com a máxima fidelidade é, pois, a seguinte: cada um deve transferir para a sociedade toda a potência que possui, de forma a que só ela detenha, sobre todas as coisas, o supremo direito de natureza, isto é, o poder supremo, ao qual cada um é obrigado a obedecer, livremente ou por receio da pena capital. (TTP, cap. XVI, § 193). Do que foi dito, percebemos que a liberdade do individuo que era anteriormente garantida por seu direito natural, vai passar a ser agora delimitada pela sociedade; posteriormente esse direito que se constituicom a sociedade terá suas determinações 51 submetidas a um soberano, que também está sob a influência dos indivíduos: “Tanto um indivíduo como um estado encontram-se mais ou menos sob a sua própria jurisdição conforme o grau de potência de que dispõem para impedir o estarem totalmente sob jurisdição alheia.” (AURÉLIO, 2009, p.18). Além disso, as leis e as instituições são mantidas em uma sociedade por seus cidadãos tão somente em virtude das punições que lhes são constantemente, apresentadas por aqueles que foram escolhidos como representantes dessa sociedade. Mas, é certo que, durante muito tempo e por diversas vezes no decorrer da história humana ocorreu o controle do Estado pelos religiosos; sendo esse controle coordenado, como já demonstrado, pela relação afetiva da esperança e do medo, que originam a superstição, onde esta por sua vez, proporciona o estabelecimento de um Estado teocrático, perigoso inclusive para a liberdade de pensamento de seus cidadãos. Em uma leitura atenta do Tratado Político49, vemos Spinoza discorrer acerca das formas de governo e de suas fundamentações, mas procurando sempre afastar a influência religiosa das decisões do governo. Spinoza, ao que nos parece era defensor da república livre; o pensador simpatizava e apoiava os ideais estabelecidos na Holanda pelos irmãos De Witt50. Por tais motivos acreditava que a república aliada à democracia seria a melhor forma de governo, uma vez que regida pela reta razão, e não pela teologia, todos teriam direito ao pensamento livre e estariam mais próximos da liberdade que a natureza concede a cada um. Mas, aristocracia e monarquia deveriam também estar afastadas de qualquer influência que a teologia poderia vir a exercer sobre as decisões políticas do Estado. Tanto na monarquia quanto na aristocracia a religião deveria estar em seu lugar, isto é, apartada das decisões do rei ou do soberano; ela não deveria nunca intervir no Estado de maneira que viesse a estabelecer por suas próprias opiniões novos direitos, a não ser que estes tivessem por finalidade revolucionar os fundamentos da cidade: “[...] a menos que sejam sediciosas e subvertam os fundamentos da cidade.” (TP, cap. VI, §40). Na monarquia, por exemplo, um conselho era instituído pelo rei, escolhido para estar diretamente em contato 49 Nesta obra o pensador holandês não busca definir qual das três formas de governo é a melhor, mas busca sim demonstrar o que cada uma possui de melhor. A referida obra ficou inacabada pelo filósofo, tendo este interrompido sua produção exatamente no capítulo em que trata do estado democrático. Muito embora tenha ficado inacabada esta obra não deixa de ter seu valor diante de toda a filosofia de Spinoza. 50 Os irmãos De Witt, foram assassinados em 20 de agosto de 1672, na prisão onde Cornelius De Witt estava preso acusado de conspiração contra o príncipe Guilherme III. Os irmãos De Witt eram oposição ao príncipe Guilherme II, príncipe de Orange, e conseguiram chegar ao poder com a morte deste. Em virtude disso, os republicanos passaram 20 anos no poder. Quando da invasão dos franceses à Holanda, os orangistas acusaram os De Witt da infelicidade à nação, assassinando-os. 52 com ele, sendo responsável por decidir sobre os direitos e os deveres dos cidadãos, sobre a justiça e sobre as guerras nas quais a cidade iria se envolver. A democracia por sua vez, implantada em uma república livre, possibilitaria aos homens o agir e o pensar também livres e se afastaria da influência religiosa que em determinados momentos desembocou em governos teocráticos. Assim, para que o soberano e seu povo vivam cordialmente e em paz é necessário, segundo Spinoza, estarmos num estado democrático, uma vez que: O estado democrático é a resposta racional às necessidades naturais. Na sua constituição são determinadas quer a razão quer a natureza. Mas só com a razão se constrói uma verdadeira solidariedade, só ela estabiliza. Por ela percebemos que os diferentes poderes nada mais são do que manifestações parcelares de uma potência comum. (FERREIRA, 1997, p.517). Maria Luiza Ferreira resume aqui o que Spinoza nos apresenta no capítulo XVI, parágrafo 194 do TTP. Dentro dos limites da razão a democracia alicerça toda a comunidade, abrandando os apetites da minoria evitando assim que a toda edificação desabe diante dos conflitos que se estabelecerão a partir da insatisfação dos demais membros da comunidade. Mas, é necessário questionarmos qual motivo levou Spinoza a considerar a democracia como a forma de governo, dentre as três citadas, a mais eficaz para a liberdade de pensamento. A fim de responder a tal questionamento, voltemos ao TTP e aos capítulos nos quais o pensador fala de teologia, filosofia e política. Se as escrituras sagradas foram escritas com o intuito de garantir a obediência de um povo insubmisso, então é certo que a fé contida nas escrituras não buscava que os homens pensassem como homens livres de qualquer influência religiosa, ou seja: “A fé [...] concede a cada um a máxima liberdade de filosofar [...]. Os únicos que ela condena como heréticos e cismáticos são os que ensinam opiniões que incitam a insubmissão [...]” (TTP, cap. XIV, §§ 179/180). A religião condenava então todo pensamento que viesse a contrariar a obediência que se deveria ter para com Deus. A filosofia,de modo contrário, favorecia o pensamento livre e independente de qualquer obediência. Por isso, elas deveriam estar separadas e pelo mesmo motivo a religião não deveria interferir na política sob nenhuma hipótese. Nenhum estado violento e autoritário com os seus indivíduos vive bem. A república, que não governa os homens pelo medo, mas pela liberdade aproximando cada um de seu direito natural, permite que cada indivíduo faça: “[...] com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles usem livremente da razão[...]”(TTP, cap. XX, § 241). 53 3.4 OS PERIGOS DA UTOPIA A utopia representa algo que sempre esteve presente no imaginário popular e filosófico dos indivíduos; muito embora o termo só tenha sido utilizado a partir de Thomas Morus (1478-1535), ela refere-se a algo que idealizamos ser de uma determinada maneira, ainda queesse algo se afaste inteiramente da nossa realidade. Dessa maneira, quando pensamos em utopiaestamos a imaginar, de maneira geral, algo que busca estar numa perfeição ou numa organização tal que a possibilidade de sua concretização não se apresenta tão iminente, referindo-se mais a uma idealização, ou ainda, uma fantasia do que mesmo a uma realidade. Assim, quando idealizamos, por exemplo, uma sociedade inteira com organização política e social impecáveis acabamos, por consequência,idealizando também que seus cidadãos estariam ajustados a realidade da sociedade em que estão inseridos. Desse modo, podemos compreender que o termo utopia, pode vir a designar também um: “[...] lugar que ainda está por existir.” (COLLINS, 2012, p.19). Entretanto, ambas as situações são difíceis de serem pensadas e mais complicadas ainda de serem concretizadas: “O problema é que, antes de mais, esse cidadão ideal não passa disso mesmo, isto é, de um ideal de cidadão, visto a componente afetiva dos indivíduos jamais se anular.” (AURÉLIO, 2004, p.101). Assim, quando observamos todo o percurso da história da Filosofia encontramos alguns pensadores que teorizaram acerca da utopia idealizando tanto cidades, quanto cidadãos bem como leis bem estruturadas, onde justiça, harmonia e bem estar social estavam em comum acordo; entretanto, algumas dessas idealizações visavam criticar o modelo social vigente. Dessa maneira, desde o pensamento antigo de Platão, com a República, até os modernos com suas obras consideradas mais literárias do que filosóficas,como Tommaso Campanella (1568-1639) com sua A cidade do Sol, ou o próprio Morus, criador do termo utopia, com a sua obra de mesmo nome, todos buscaram sempre imaginar o homem e suas organizações sociais da maneira que se espera que eles sejam.Mas é certo que, muito embora se considere estes dois últimos como tendo escrito obras literárias, para Campanella e Morus, trate-se mais de uma crítica do que de uma idealização. 54 Morus, por exemplo, apresenta-nos em sua obra os relatos de Rafael Hitlodeu sobre a sua viagem juntamente com Américo Vespúcio a uma ilha afastada do continente europeu51. Nela todos os habitantes falavam a mesma língua e viviam sob as mesmas leis: Na Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida. (MORE, 1972, p. 203). Além disso, é certo que se podia observar uma perfeita harmonia entre os utopianos52; e que, além disso, era desestimulado o ócio improdutivo: “Vede que na Utopia a ociosidade e a preguiça são impossíveis. Não se vêm nem tabernas, nem lugares de prostituição, nem oportunidade para deboches, nem antros ocultos, nem assembléias secretas.” (MORE, 1972, p. 242); dessa maneira, não havia nenhum espaço entre eles para o estabelecimento daquele. Campanella, por sua vez, apresenta-nos uma sociedade onde a divisão dos serviços e da produção era igual para todos, uma vez que não havia espaço na cidade do Sol para a propriedade privada, uma das principais causadoras da desigualdade:“[...] porque todos obtêm da comunidade o necessário e os magistrados velam para que ninguém receba mais do que merece (sem que nunca o necessário lhe seja negado) [...]” (CAMPANELLA, 1960, p.274). De modo análogo aos pensamentos de Platão, Campanella coloca a cidade sob os cuidados de um sacerdote sábio: “Estamos tão certos de que um sábio pode ter aptidões para o bom governo de uma república quanto vós, que preferis homens ignorantes”(CAMPANELLA, 1960,p.276), acompanhado de outros três pontífices. A cidade era ainda tecnologicamente desenvolvida e seus cidadãos também viviam em harmonia. Campanella e Morus escreveram suas obras “utópicas”e estas se tornaram clássicos da literatura mundial, muito embora não devamos considerá-las apenas pelo viés cênico pelo qual elas são apresentadas. Desse modo, elas representamidealizações que serviram como um alerta para a maneira como as sociedades da época, assim como as atuais, vinham sendo organizadas favorecendo, assim, o estabelecimento de críticas quanto a essas organizações, se elas seriam realmente justas ou não.E indo um poucoalémdessa afirmação, a Utopia de Morus, por exemplo, acredita-se ter representado a aplicação dentro da sociedade 51 A narrativa da viagem que nos é apresentada na obra de Morus pode não ser verídica, uma vez que, trata-se de uma obra literária; entretanto, afirma-se entre aqueles que estudam as obra dele, que a ilha apresentada poderia se encontrar localizada mais próxima à costa americana do que mesmo da costa européia. 52 Utopianos é a denominação atribuída àqueles que nasciam e viviam na cidade de Utopia. 55 dos conceitos filosóficos que a muito se discutia sem se alcançar com isso uma realização deles. Assim, muito embora as obras utópicas acima citadas tenham sido escritas nos moldes literários e representem para muitos um sonho, uma fantasia, por apresentarem sociedades e indivíduos sob um ponto de vista que normalmente não os observamos, estas obras envolvem em si uma certa racionalidade e uma reflexão, uma vez que como já demonstramos, elas representam uma crítica às sociedades nas quais viviam os autores. Spinoza, por sua vez, na contramão do percurso que seguiram Morus e Campanella, escreveu no capítulo I do Tratado Políticouma crítica a alguns filósofos53 e com eles determinadas religiões e políticos que concebem os homens não como eles realmente são, mas como se gostaria que eles fossem: Os filósofos concebem os afetos com que nos debatemos como vícios em que os homens incorrem por culpa própria [...] Creem, assim, fazer uma coisa divina e atingir o cume da sabedoria quando aprendem a louvar de múltiplos modos uma natureza humana que não existe em parte alguma e a fustigar com sentenças aquela que realmente existe. (TP, cap. I, § 1). O filósofo holandês vai, dessa maneira, empreender uma crítica aos ditos filósofos normativos que acabam por cair em uma utopia por não enxergarem nos homens as suas paixões, os afetos que costumeiramente os atingem e determinam sua relação com os outros indivíduos. É certo que, Spinoza procurou sempreem sua filosofia compreender o homem da maneira que ele é, uma vez que, partiu sempre da compreensão da potência que os afetos exercem sobre ele, isto é, de como ele pode ser e é afetado inúmeras vezes por causas que são externas a ele: “Qualquer coisa pode ser, por acidente, causa de alegria, de tristeza ou de desejo.” (E3P15). Assim sendo, a todo momento podemos vir a ser atingidos por afetos de alegria, tristeza ou desejo, que nos fazem padecer nos tornando assim, menos virtuosos e menos perfeitos também: “Assim, não encarei os afetos humanos [...] como vícios da natureza humana, mas como propriedades que lhe pertencem [...]” (TP, cap. I, §4). Diante disso, Spinoza vai gradativamente se afastando de qualquer possibilidade de desembocar seu pensamento em uma utopia. 53 A crítica de Spinoza não é à Morus ou à Campanella, mas sim a alguns teóricos normativos que não colocavam os homens no patamar que lhes era devido, isto é, eles não os enxergavamatravés dos afetos que estão sempre a afetar os indivíduos e suas relações com os demais. 56 Segue-se disso que, estamos sempre sendo levados de um lado a outro por esses afetos, estamos sempre na incerteza do que virá a ocorrer ou mesmo de como a sorte se fará presente ou não, por desconhecerem, como demonstramos anteriormente, as verdadeiras causas das coisas. Estes homens acabam sempre se entregando as superstições e sonham a todo instante com situações utópicas, uma vez que a dificuldade de concretizarem um determinado ideal não é iminente. Ora, o que cerceia esse pensamento supersticioso, é claramente o medo e a esperança, o medo, por exemplo, do que vem após a morte e a esperança de se alcançar uma vida eterna após a morte: “[...] somos constituídos de maneira a acreditarmos facilmente nas coisas que esperamos e, dificilmente, nas que tememos, e a estimá-las, respectivamente, acima ou abaixo do justo.” (E3P50S). E em virtude disso, como já demonstramos anteriormente, muitos homens fazem o bem simplesmente por temer o mal que virá após a morte. Com a política também não acontece diferente. Politicamente, espera-se que os homens transfiram à sociedade civil todo o seu direito natural para legitimar o direito civil constituído. Mas é certo que o homem não pode se desfazer completamente de seu direito natural54: “Há, por conseguinte, que reconhecer que cada um reserva para si uma boa parte do seu direito [...]” (TTP, cap. XVII, § 202) e, portanto, ele apenas o abranda para que o civil se sobressaia nessa relação. Assim, as religiões, os governos teocráticos e alguns governos não teocráticos, tendem, em determinados momentos, a entregarem sua compreensão do homem e de suas relações políticas à pensamentos utópicos por não considerarem os homens como eles são. Mas afinal, como são os homens? Somos a parte infinita e imperfeita de um todo eterno, perfeita, infinito e imutável. Somos, segundo o pensador holandês, os modos finitos, as coisas singulares que são: “[...] aquelas coisas que são finitas e que têm uma existência determinada.” (E2Def.7). E por sermos finitos é que, como já demonstramos anteriormente, seremos constantemente afetados por inúmeras paixões e, consequentemente, pelas superstições. E essas superstições, foram e ainda são, em determinados momentos e de certa maneira, como já demonstramos no capítulo anterior, responsáveis por situações de conflitos entre os indivíduos. Não foram raras as vezes em que o homem chegou à extremos em virtude 54 É preciso compreendermos, ainda, que o indivíduo não cede o direito natural por completo à sociedade; isso acontece em virtude de seu conatus, do esforço que exige de todos os indivíduos que estes perseveremos sempre em seu existir,evitando com isso todo e qualquer mal que venha a atentar contra a sua existência. 57 de algo que idealizavam, fazendo disso uma verdade absoluta. E muitos desses extremos, podemos afirmar, tratam-se de situações de violência, de barbárie. 58 4 O INDIVÍDUO ÉTICO POLÍTICO EM SPINOZA Em virtude de nossas associações com os demais indivíduos, vemos filósofos como Aristóteles desenvolverem o argumento de que os homens estão naturalmente dispostos a se reunirem em sociedades: “[...] a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social [...]” (ARISTÓTELES, 1253a), essas associações vão se desenvolvendo tendo em vista as necessidades primordiais dos indivíduos. A primeira dessas associações é a família que agrupada a outras formará as sociedades, as cidades, a pólis que representa, para a filosofia grega, o maior bem para os indivíduos. Aristóteles, assim como Platão, pensou a política e a ética tendo em vista o bem da pólis, uma vez que, a organização social grega era voltada para a vida na cidade, para a felicidade que se alcançava num bem estar dentro da comunidade. Portanto, a política tem por finalidade garantir a justiça a todos os cidadãos aceitos pela polis, para que assim se alcançasse o bem estar dentro dela. A partir das argumentações dos filósofos gregos, vemos no decorrer da história da filosofia, se desenvolver inúmeras outras argumentações acerca da política e de seus arranjos. Desse modo, os pensadores modernos desenvolveram seu pensamento político por um caminho distinto do percorrido pelos gregos. Tão certo é, que quando Spinoza escreve o seu Tratado Político, ele busca compreender as formas de governo e qual dentre eles seria o mais adequado para se governar com segurança, paz e tendo em vista a liberdade dos indivíduos; vemos, com isso, o filósofo nos apontar como o mais próximo disso a democracia em uma república livre. Assim, enraizados nesse contexto político, mas também ético, do pensador holandês estaria o que podemos chamar de ponto chave para compreensão da política spinozana: o esforço do indivíduo por perseverar em sua existência; isso porque, esse esforço aliado às paixões irá influenciar diretamente nas relações com os demais indivíduos e com o soberano, bem como as decisões deste. Desse modo, para que possamos compreender o indivíduo ético e político em Spinoza precisaremos compreender inicialmente a política num âmbito mais geral para o pensador, política essa que envolve não somente o homem, mas também a relação que ele mantém com a Natureza, uma vez que: “Com efeito, o ser da substância não pertence à essência do homem. Ela é, portanto, algo que existe em Deus e que, sem Deus, não pode existir nem ser concebida [...]” (E2P10D). Ou seja, nós somos parte da Natureza, também chamada de substância e por isso somos determinados a existir e a agir por ela. 59 Assim, estando a política relacionada com as paixões, não poderemos desvencilhar os homens delas, sejam eles soberanos ou não; isso porque os afetos não poderão ser destruídos da natureza humana, mas apenas abrandados pelos conhecimentos adequados que obtemos das coisas: “[...] esse conhecimento (terceiro gênero) 55 , se não os suprime (os afetos) inteiramente, à medida que são paixões, faz, pelo menos, com que constituam a menor parte da mente.”(E5P20S, grifos nossos). E não podendo ter sua extinção decretada as paixões acabarão por influenciar as relações e as decisões que os homens tomarão no âmbito social em que se encontram inseridos. Dentro dessa relação que se estabelece entre a política e as paixões vai existir ainda um segundo fator envolvido nesse contexto: o conatus; ele que é tão somente aquele nosso instinto de preservação que nos leva a agirmos seja de que maneira for para que permaneçamos existindo: “E, uma vez que a lei suprema da natureza é que cada coisa se esforce, tanto quanto esteja em si, por perseverar no seu estado [...]” (TTP, cap. XVI, § 189). É ele que nos impedirá de sermos alheios a algo praticado pelo soberano ou por qualquer outro indivíduo que venha a violar o nosso existir. Isso acontece porque, como nos é apresentado por Spinoza na terceira parte da Ética, esse conatus representa, tão somente,a nossa essência atual: “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual.” (E3P7); essência essa que só poderá ser determinada a partir da existência desse algo, pois segundo afirma Deleuze: “O conatus em Espinosa é, portanto, apenas o esforço para perseverar na existência, uma vez que esta foi dada. Ele designa a função existencial da essência, isto é, a afirmação da essência na existência do modo.” (DELEUZE §§ 209, 210); isto é, a partir do momento em que a existência é dada a algo, nós passaremos então a afirmar tal essência. É, portanto, essa essência a responsável por fazer do homem alguém mais virtuoso. Isso porque, segundo o autor da Ética, não há nada além desse esforço de conservação que permita concebermos a virtude: “O esforço por ser conservar é o primeiro e único fundamento da virtude. Com efeito, não se pode conceber nenhum outro princípio que seja primeiro relativamente a este e, sem ele, não se pode conceber virtude alguma.” (E4P22C). Assim sendo, a virtude do homem se efetivará sempre em seu esforço por perseverar na existência. 55 Esse terceiro gênero de conhecimento foi tratado no capítulo I deste trabalho no qual trabalhamos o conhecimento e a superstição. Naquele momento, o primeiro gênero de conhecimento, a imaginação, foi peça fundamental para compreendermos o desenrolar da superstição, ficando a apresentação do terceiro gênero, a intuição, mais como uma demonstração do que é cada um deles. Ele é o gênero do qual mais obtemos clareza e distinção das coisas, é o gênero que nos permite compreendermos Deus mais perfeitamente. 60 4.1 OS FUNDAMENTOS POLÍTICOS EM SPINOZA Poderíamos iniciar esta argumentação acerca da política demonstrando diretamente de que maneira o direito natural e o direito civil se engendram a fim de constituir um Estado que beneficie a todos, segundo a política de Spinoza. Entretanto, essa argumentação, no percurso filosófico spinozista, exige que compreendamos grande parte da edificação ontológica desenvolvida pelo pensador holandês, que passa necessariamente pelos modos finitos da substância infinita, modos esses que se encontram diretamente relacionados com os direitos natural e civil. O homem, principal personagem na formação da sociedade, é antes de qualquer coisa um modo finito de um ser infinito, eterno e imutável, ou se dito de outro modo, somos parte da substância única e indivisível, somos parte de Deus, somos parte da Natureza: “[...] a mente humana é uma parte do intelecto infinito de Deus” (E2P11C). Parte essa que compreende dos atributos divinos56, somente dois: o pensamento e a extensão. Isso porque somos constituídos por um corpo e por uma mente, responsáveis pela nossa compreensão do mundo, das coisas e das pessoas, bem como da natureza e de tudo o que nos cerca. E é desta Natureza, enquanto considerada como ser livre que possui supremo direito a tudo, que recebemos, portanto, a nossa potência de existir e agir:“Uma coisa que é determinada a operar de alguma maneira foi necessariamente assim determinada por Deus [...]”57 (E1P26). Assim, quer nós estejamos sós ou quer nós estejamos unidos a outros indivíduos, teremos sempre o direito de agir e de existir, em vista de nossa sobrevivência, até onde possa se estender essa potência. Assim sendo, esse homem, que inicialmente se encontra sozinho e buscando a sobrevivência por suas próprias forças, precisará, em um momento posterior, buscar a convivência com os demais seres humanos para que possa assim se realizar, isto é, para que possa se desenvolver: [...] as partes do corpo humano são indivíduos altamente compostos, cujas partes podem separar-se do corpo humano e transmitir seus movimentos a outros corpos, 56 A substância é composta por atributos: “Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência.” (E1Def.4); ou melhor dizendo, por infinitos atributos: “Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente.” (E1P11). 57 Lembremos que, Deus para Spinoza é também chamado Natureza, uma vez que, o filósofo afirma que Deus se encontra em todas as coisas e é, portanto, causa de tudo que existe. 61 segundo outras proporções, conservando o corpo humano, inteiramente, sua natureza e forma. (E2P24D). Ora, com a citação acima percebemos que os corpos estão sempre transmitindo partes de si a outros corpos, seja por meio das ideias que se tem de um corpo ou das coisas, seja ainda por meio do próprio corpo humano através dos movimentos e das modificações que os outros corpos nos impõem. E essas relações (ou mesmo a própria convivência), entretanto, podem e vão sofrer com os problemas ou com os contratempos que resultarão da influência que os afetos exercem sobre os seres humanos; afetos esses que são de certo modo essenciais para os homens, uma vez que: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída [...]” (E3Def.3). Como demonstramos no capítulo anterior, Spinoza considera os homens como eles realmente são e não em uma utopia: “[...] sem compreender que com essa imagem ignoram o essencial, isto é, a naturalidade dos afetos e que alguns deles efetivamente arrastam um mesmo homem em direções contrárias.” (CHAUÍ, 2003, p.155). Por isso, para o filósofo os afetos vão estar sempre presentes nas relações sejam elas sociais ou mesmo particulares que se estabelecem entre os homens, bem como no Estado que se forma a partir daquelas relações sociais: Assim, o afeto comum, que se gera no interior de uma determinada multiplicidade de indivíduos e do qual surge um certo grau de estabilidade no respectivo interrelacionamento, só é eficaz enquanto for superior à diversidade de afetos individuais e grupais que conspiram contra ele e fomentam a divisão. (AURÉLIO, 2009, p.22). Os afetos, como o de esperança e de medo, levam os homens para lados opostos, causando quando em grupo, diversos conflitos: “[...] os homens estão necessariamente sujeitos aos afetos. [...] Donde se resulta que, [...] acabem em contendas, se esforcem quanto podem por oprimir-se uns aos outros.” (TP I, § 5). O que queremos demonstrar é que esses afetos encaminham o homem de um lado a outro principalmente em virtude da sua preservação; se dito de outro modo, todos nós temos um esforço de preservação, chamado por Spinoza de conatus, ele, anteriormente à constituição do Estado, é quem vai determinar nossas ações e decisões. Cada pessoa, portanto, vai agir como pode para garantir sua sobrevivência: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.”(E3P6); e é isso o que pode e em determinados momentos, vai acabar gerando conflitos. 62 Nesse contexto, o que vai ocorrer é que os indivíduos irão ver como necessária a existência de uma potência que venha para manobrar os afetos dos homens de modo geral. Em outras palavras, o Estado será então formado, constituindo essa potência que é criada para refrear os afetos e as conseqüências dos conflitos que eles causam: Tiveram, por isso, de estabelecer e pactuar firmemente entre si que tudo seria regido pelo ditame da razão [...], refrear o apetite sempre que ele sugere algo que redunde em prejuízo de outrem, não fazer a ninguém o que não quer que lhe façam a si e, finalmente, defender o direito alheio como se do seu se tratasse. (TTP, cap. XVI, §192). Dessa maneira, veremos Spinoza afirmar que: “[...] todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde quer que se juntem formam costumes e um estado civil [...]” (TP I, § 7). Isto é, independentemente do local, do hábito ou da cultura que possuam, todos os indivíduos possuem a capacidade de se reunirem em grupos constituindo assim uma sociedade civil. Mas é certo que, tanto Estado (na figura do governante), quanto povo compartilhariam sempre dos mesmos afetos, isto é, ambos pertencem à mesma natureza. E por esse motivo, então, os afetos vão influenciar a maneira como os homens vão se relacionar com os demais, as decisões que serão tomadas individual e coletivamente, assim como as decisões, dos sacerdotes, e as do próprio soberano: “Dado que os homens, como dissemos, se conduzem mais pelo afeto que pela razão [...]” (TP VI, § 1). E por serem determinadas pelos afetos essas decisões nem sempre atenderão aos anseios mais comuns dos indivíduos, fato que Spinoza contestará ao buscar o tipo de governo mais adequado e que priorize a liberdade de pensamento. Ora, se um Estado vem a ser constituído com o intuito de garantir que as paixões sejam refreadas num âmbito mais geral, é necessário que se estabeleça um acordo entre os indivíduos que compõem essa sociedade e aquele que se tornará o responsável por geri-la e por buscar uma igualdade de direito a todos os envolvidos: [...] qualquer que seja a sua gênese ou discurso legitimador, o Estado forja-se sempre no domínio da imaginação, projetando-se como potência extrinsecamente exercida sobre o agregado e, nessa medida neutralizando os efeitos destruidores contidos nas potências individuais obrigadas a coexistirem. (AURÉLIO, 2004, p.101). Assim sendo, é certo que todos estes indivíduos, inclusive o soberano, possuem um direito que lhes é próprio. O direito natural, também chamado de instituição da natureza, 63 representa aquelas: “[...] regras da natureza de cada indivíduo, regras segundo as quais nós concebemos cada um como determinado naturalmente a existir e a agir de uma certa maneira.” (TTP, cap. XVI, § 189). Ora, a potência do indivíduo58 é, portanto, agir e existir segundo a sua própria natureza, mas como somos sempre mais afetados pelas paixões do que conduzidos pela razão esse direito natural se baseará sempre naquelas para que ajamos em prol de nossa sobrevivência. No TTP, vemos que o contrato59vai se estabelecer a partir do momento em que cada indivíduo particular concordar em ceder o seu direito natural ao soberano, sem extirpá-lo por completo60, para que com isso o direito civil venha a determinar as ações futuras em prol da segurança e da liberdade de todos os indivíduos envolvidos: “[...] os homens guiados pela razão decidem abandonar suas forças nas mãos de um protetor que os defenda [...]” (OLASO, 1988, p.94, tradução nossa)61. Trata-se, portanto, de um pacto que foi racionalmente firmado e que visa beneficiar a todos os indivíduos que o firmaram, uma vez que, como veremos, não como se manter um pacto sem que existam benefícios. O que acaba por se originar a partir da instituição desse direito civil é um conatus coletivo, que visa à preservação de um estado ou de uma situação, preservação essa que se refere ao: “[...] indivíduo coletivo singular [...]” (CHAUÍ, 2003, p.164), que se forma, também denominado por multitudo ou potência da multidão62. E essa multitudo mantém em si o 58 Como vimos anteriormente, recebemos essa potência de Deus, uma vez que, somos coisas naturais, que fazem parte da Natureza: “Tudo o que existe exprime a natureza de Deus, ou seja, exprime a sua essência de uma maneira definida e determinada [...]” (E1P36D). 59 No TTP, Spinoza nos apresenta a formação do Estado através de um contrato que se estabelece entre os indivíduos, como apresentamos acima. Entretanto, a fundamentação do Estado não ocorrerá somente por meio daquele. No TP, o filósofo nos apresenta a tese de que o Estado pode se constituir também em virtude das paixões: “A isto acresce que o estado civil é naturalmente instituído para eliminar o medo comum e afastar as comuns misérias, visando portanto maximamente àquilo por que, no estado natural, ainda que em vão, se esforçaria cada um dos que se conduzem pela razão.” (TPIII, § 6). Isso porque, como já demonstramos anteriormente, os homens são constantemente atingidos pelas paixões e Spinoza ao considerá-los como parte da integrante da gênese política, não poderia deixar de colocar em questão essas paixões, pois: “[...] a multidão – em si mesma, sem a metamorfose contratualista e mantendo na íntegra a sua carga intrinsecamente constituída de razões e paixões – como capaz de configurar uma comunidade politicamente organizada.” (AURÉLIO, 2009, p.33). 60 O direito natural é, juntamente com o conatus, uma potência que não pode ser completamente extinta do homem, uma vez que ambas visam à preservação dele. Assim sendo, quando se estabelece o Estado e com ele o direito civil, o direito natural vem a ser abrandado, mas pode vir a ser retomado no momento em que nada se mostrar mais favorável ao indivíduo. 61 “[...] los hombres guiados por la razón deciden abandonar sus fuerzas em manos de um protector que los defienda [...]” 62 Segundo Pires Aurélio, a multidão designa por si só uma multiplicidade de elementos: “A multidão é, por conseguinte, neste contexto, um outro nome para designar uma certa multiplicidade de elementos, um número grande mas impreciso e ilimitado [...]” (AURÉLIO, 2009, p.25), mas não nos serve para compreendermos o infinito, permitindo apenas: “[...] à imaginação apreender a substância, os seus atributos e modos.” (AURÉLIO, 2009, p.25). 64 imperium que representa toda essa massa unida, que é: “[...] a ação coletiva ou a potência coletiva [...]” (CHAUÍ, 2003, p.164), ou ainda, o corpo e a mente desse poder que se constitui. Assim sendo, essa potência coletiva que é constituída como um direito natural coletivo implica no Estado que Spinoza afirma se constituir a partir do pacto firmado63; sendo que, tal pacto deve visar à segurança dos indivíduos que dele compactuam, uma vez que: “[...] não há ninguém que não deseje viver, tanto quanto possível, seguro e ao abrigo do medo, coisa que não pode verificar-se enquanto a cada um for lícito fazer tudo quanto quiser [...]”(TTP, cap. XVI, § 191). Segue-se disso que, seja o estado uma democracia (governada por uma multidão comum), seja uma aristocracia (governada por alguns indivíduos eleitos), seja uma monarquia (governada por um só indivíduo), o que se distribui como podemos observar é o direito de exercer o poder, pois segundo Chauí: “O imperium é intransferível.” (CHAUÍ, 2003, p.171). Poder esse que é exercido pelo soberano: “Com efeito, esse direito de impor o que quiserem só compete, como mostramos, aos soberanos, na medida em que eles detêm realmente a soberania [...]” (TTP, cap. XVI, § 194). Contudo, é necessário que compreendamos que o direito natural representará sempre uma ameaça ao direito civil. Isso porque, como já afirmado, ninguém se desfaz completamente de seu direito natural, podendo retomá-lo juntamente com os demais indivíduos, quando a justiça não prevalece (ou quando prevalece ainda a justiça do mais forte, como afirmado por Trasímaco no diálogo platônico64), aumentando, se necessário for, suas forças a ponto de tomar o poder. Segue-se disso, que essa prevalência da justiça do mais forte ocorre no momento em que, por ser também afetado pelas paixões, o soberano fraqueja diante do bem comum e se volta à sua própria utilidade: “Ninguém, com efeito, é tão vigilante que não adormeça de quando em vez, [...] ninguém pode conseguir de si mesmo, a saber, que vele antes por outrem do que por si, que não seja avaro, nem invejoso, nem ambicioso [...]” (TP VI, § 3). Ora, a multidão só eleva suas forças acima do poder, por não se sentir mais obrigado a permanecer com o pacto anteriormente firmado, uma vez que ele deixou de ser vantajoso e seguro para eles: “[...] ninguém efetivamente cumpre um contrato se dele não continuar a esperar qualquer benefício [...]” (AURÉLIO, 2004, p.106); isto é, ninguém rompe 63 “Esse direito que se define pela potência da multidão costuma chamar-se estado. E detém-no absolutamente quem, por consenso comum, tem a incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e abolir direitos, fortificar as urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc.” (TP, cap. II, § 17). 64 “De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda a parte: a conveniência do mais forte.” (PLATÃO, 339a). 65 com o pacto a não ser que seja para alcançar um bem maior ou evitar ainda um mal possivelmente maior, ou se dele não provir utilidade alguma: “[...] um pacto não pode ter qualquer força a não ser em função da sua utilidade [...]” (TTP, cap. XVI, § 192). Essa possibilidade que Spinoza apresenta, de a multidão ou o indivíduo particular não precisar continuar obrigado ao pacto se apresenta como o contratualismo do pensador holandês. Por fim, é certo que um contrato firmado, busca sempre beneficiar ambas as partes. Os indivíduos experimentam a obediência à outro como forma de garantir a harmonia entre eles, enquanto o Estado garante a sobrevivência e a proteção desses indivíduos. Spinoza afirma que se não há mais benefícios em uma das partes ninguém mais precisa ser obediente ao contrato. Assim, se os indivíduos não regulam mais seu estado de natureza, o Estado pode intervir a fim de retomar a harmonia que possuíam antes; se o Estado, por sua vez, fraqueja e é tomado pelo doce sabor do poder, a multidão, como já demonstramos, pode e vai: “[...] aumentar suas forças a ponto de tomar para si o poder e com ele identificar-se.” (CHAUÍ, 2003, p.172). As duas situações, cada uma a seu modo e com as suas respectivas forças e superstições, irão desembocar em situações de barbárie. 4.2 OS AFETOS E O CONATUS Como vimos, a questão do individuo ético político em Spinoza passa inevitavelmente pela relação que se estabelece entre os afetos e o conatus, uma vez que, estamos a todo instante sendo afetados, o que acaba por influenciar também nas relações que estabelecemos, sendo os afetos, por diversas vezes determinantes para que situações como a barbárie venham ou não a acontecer. Segue-se disso que, em virtude do conatusprocuramos sempre nos esforçarmos seja de que maneira for para permanecermos existindo:“Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” (E3P6); e esse esforço nos leva até mesmo a agirmos de acordo com a nossa natureza, sempre que algo se mostra perigoso para a nossa sobrevivência. Ora, esse esforço é, claramente, o responsável pela manutenção da nossa existência. Muito embora na Ética o termo conatus seja tratado como um esforço, uma força que nos impulsiona a permanecermos vivos,dentro do TTP, ele irá representar uma lei 66 suprema, que por ser suprema oferece aos homens o supremo direito de existir, assim como de agir segundo seu estado natural65, isto é: E, uma vez que a lei suprema da natureza é que cada coisa se esforce, tanto quanto esteja em si, por perseverar no seu estado, sem ter em conta qualquer outra coisa a não ser ela mesma, segue-se que cada indivíduo tem supremo direito a isso, ou seja [...], a existir e agir conforme está naturalmente determinado. (TTP, cap. XVI, § 189). De maneira mais específica, para que possa se conservar em seu estado atual, por diversas vezes o homem irá recorrer a determinados artifícios visando, tão somente, a sua sobrevivência, mesmo que ele tenha de retornar ao seu estado natural para poder efetivá-la. Entretanto, muitos desses homens encontram-se tomados pelo medo constante e pela dúvida, eles, então, ensandecem em virtude dela e apelam para as mais diversas atitudes bárbaras, usando como justificativa para tais ações, exatamente esse anseio por permanecer existindo. Mas antes mesmo de apresentar-nos diretamente ao conatus como esse esforço de perseverar na existência, Spinoza afirma no início da terceira Parte da Ética,através do paralelismo 66, que mente e corpo possuem forças ou princípios ativos próprios que irão determinar cada um a agir de determinada maneira: [...] o que determina a mente a pensar é um modo do pensamento e não da extensão, isto é, [...] não é um corpo. Isso quanto a primeira parte. Em segundo lugar, o movimento e repouso de um corpo devem provir de um outro corpo [...]. (E3P2D). São essas forças, isto é, a mente determinando o pensar e o corpo determinando o agir, cada uma à sua maneira e independentemente uma da outra que impulsionarão o indivíduo a se esforçar pela preservação de seu ser, uma vez que sabemos que: “A mente, quer enquanto tem ideias claras e distintas, quer enquanto tem ideias confusas, esforça-se por perseverar em seu ser [...] e está consciente de seu esforço”. (E3P9). Segue-se disso que, esse agir e esse esforço por permanecer existindo, representam também uma busca por uma perfeição maior, ou ainda, por um aprimoramento, resultado de um aumento da potência do individuo. Perseverança no existir e aprimoramento 65 Vimos que a partir do momento que o homem passa a fazer parte de um estado civil, posto que passou a compor junto com outros homens uma sociedade, fez-se necessário que ele abrandasse seu estado de natureza em prol da sociedade em que estava inserido. Ora, o estado de natureza, não pode ser extinto do homem, pois é preciso que ele permaneça para ser retomado em alguma situação que prejudique sua autopreservação. 66 O paralelismo psicofísico é um termo que foi inicialmente pensado por Deleuze, mas nunca antes utilizado por Spinoza. Ele diz respeito à questão que o filósofo holandês estabelece entre mente e corpo que apesar de estarem unidas são independentes uma vez que pensamento só pode ser afetado por outro pensamento e que corpo somente pode ser afetado por outro corpo, não podendo um afetar ao outro sob hipótese alguma. 67 são inicialmente compreendidos como uma contradição67 na filosofia de Spinoza, entretanto, é possível compreendermos um como completando ao outro, isto é, esse aprimoramento seria necessário exatamente para que se consiga a autopreservação, uma vez que aumentará com isso nossa capacidade de agir, diminuindo, obviamente, o padecer. Nesse contexto de ação e paixão, Spinoza nos define os conceitos de vontade, apetite e, por consequência, o de desejo. Assim, poderemos falar em vontade quando tivermos o conatus se referindo somente à mente: “Esse esforço, à medida que esta referida apenas à mente, chama-se vontade [...]” (E3P9S); ao passo que só poderemos falar de apetite quando o conatus se referir tanto à mente quanto ao corpo, concomitantemente: “[...] mas à medida que está referido simultaneamente à mente e ao corpo chama-se apetite.” (E3P9S). Sendo que, esse apetite é que garantirá a vitalidade da mente e do corpo, isto é, a produção de ideias por parte da mente e de movimento por parte do corpo. Seguidamente, o apetite (appetitus) será um desejo (cupiditas) a partir do momento em que passarmos a ter consciência desse apetite, isto é: “[...] o desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem.” (E3P9S). Ora, sendo o desejo a consciência que temos de nosso apetite, ele será então a consciência que nossa mente possui do esforço por permanecer produzindo mais ideias ou do corpo em produzir mais movimento. Assim sendo, é valido ressaltarmos que esse mesmo desejo será aliado aos afetos de alegria e de tristeza sendo considerado assim um afeto primário, isto é, sendo a alegria a passagem de uma perfeição menor para uma maior e a tristeza sendo o seu contrário e sendo o desejo, ainda o: “[...] apetite de que temos consciência, é a essência atual do homem. [...] É a pulsação de nosso ser entre os seres que nos afetam e são por nós afetados.” (CHAUÍ, 2011, p.46), qualquer uma delas associada a alguma ideia exterior à mente ou mesmo uma imagem, resultará em um afeto que atingirá a mente humana a sua maneira; ou seja, eles são assim chamados porque todos os demais afetos que conhecemos existirão a partir desses três. Dessa maneira, o que poderemos compreender por afeto no interior de todo o emaranhado ético político desenvolvido por Spinoza? Um afeto é uma afecção referente ao corpo que será responsável por aumentar ou diminuir, bem como refrear ou estimular a potência de agir deste corpo, onde podemos ser causa adequada ou ainda causa inadequada de tais afecções. 67 Para Ferdinand Alquié esses dois aspectos que possivelmente se aplicam ao conatus, a autopreservação e o aprimoramento, se mostram de difícil conciliação, uma vez que não se pode querer passar de uma perfeição menor para um maior sem que queira, por conseguinte, permanecer nessa perfeição maior. Mas se analisarmos cuidadosamente, essa objeção de Alquié nos leva diretamente ao que apresentamos acima. 68 Sempre que nós agirmos por percebermos as coisas de maneira clara e distinta, passaremos a ser causa adequada de tais afecções, logo, se trata do que Spinoza convencionou chamar de ação68: “[...] quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação [...]” (E3Def.3Ex.).Mas se, contrariamente, nós formos tomados por ideias inadequadas que nos farão padecer, colocando-nos como causa inadequada dessas afecções estaremos sendo conduzidos pelas paixões: “[...] em caso contrário, uma paixão.” (E3Def.3Ex.). Os afetos estão sempre relacionados com a imaginação, que é o primeiro gênero de conhecimento, isso porque não é possível falarmos dos afetos sem mencionarmos as imagens que incitam em nossa mente o amor, o ciúme, o ódio e etc. Essa relação também acontece, porque, não raras vezes, a potência que uma imagem possui sobre nossa mente, determinará quão forte seremos atingidos pelos afetos: Ora, uma imaginação é mais intensa enquanto não imaginamos nada que exclui a existência presente de coisa exterior. Logo, igualmente, um afeto cuja causa imaginamos, neste momento, nos estar presente, é mais intenso ou mais forte do que se imaginássemos que ela não está presente. (E4P9D). Segue-se disso que um afeto não atingirá dois indivíduos de uma mesma maneira, uma vez que: “Um afeto qualquer de um indivíduo discrepa do afeto de um outro tanto quanto a essência de um difere da essência do outro.” (E3P57); isto é, a essência de cada indivíduo, que são diferentes, determinará de que maneira os afetos irão atingi-lo. Assim sendo, se temos um afeto, que porventura venha a afetar a mente de maneira a diminuir ou a aumentar o nosso conatus,ele somente poderá provir de uma causa dita externa; ora, se todo afeto provêm de uma causa externa, Spinoza determina com isso ser impossível que qualquer afeto provenha da própria essência do indivíduo, uma vez que esta busca sempre afirmar-se, isto é, busca sempre perseverar na existência. Assim sendo, aqueles afetos responsáveis pelo padecimento da mente só poderão ter sua origem fora dela, isto é: “À medida que uma coisa pode destruir uma outra, elas são de natureza contrária, isto é, elas não podem estar no mesmo sujeito.” (E3P5); ou ainda: “ Uma idéia que exclui a existência de nosso corpo não pode existir em nossa mente, mas lhe é contrária.” (E3P10); ora, com isso percebemos que a nossa essência (o conatus) buscará 68 A ação, nesse caso, acontecerá quando passarmos a conhecer as coisas adequadamente, através do terceiro gênero de conhecimento. Neste gênero, todo afeto que nos atingia negativamente, nos atingirá agora de modo positivo, posto que agora conhecemos as coisas por meio do amor intelectual a Deus. 69 sempre a existência, sendo portanto contrário a nossa natureza, posto que algo que possa extingui-la não pode provir dela mesma, mas sim de causas externas69. Mas é certo que os homens não conseguem se desvencilhar com tanta facilidade da influência exercida pelos afetos sobre a nossa mente como acreditava, por exemplo, o pensador francês René Descartes. O filósofo nos propõe, ainda que erroneamente 70 que o homem tem a possibilidade de se desvencilhar do domínio das paixões, pois para Descartes os homens seriam as causas primeiras das afecções das coisas, na qual a mente possuiria um domínio absoluto sobre esses homens, isto é, seria possível ao homem se livrar do domínio dos afetos toda vez que assim o quisessem, sendo preciso para isso apenas um empenho maior em dominá-las: Ora, essas coisas são úteis de saber para encorajar cada um de nós a aprender a observar suas paixões; pois, dado que se pode, com um pouco de engenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos de razão, é evidente que se pode fazê-lo melhor ainda nos homens, e que mesmo aqueles que possuem as almas mais fracas poderiam adquirir um império absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las. (DESCARTES, 1983, Art.50, p.247). Diferentemente de Descartes, o que Spinoza quer afirmar é que não há nenhuma possibilidade de deixarmos de sermos atingidos pelos afetos, eles existem e são essenciais aos seres humanos, o que acontece com os afetos quando passamos a conhecer as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento é que nesse momento passamos a conhecer as coisas mais clara, distinta e adequadamente, o que faz com que toda paixão se torne agora uma ação. 4.3 A VIRTUDE Pela definição três da terceira Parte da Ética, que nos apresenta o conceito de afetos: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada [...]” (E3Def.3), percebemos que esses afetos são em muito responsáveis tanto pelo aumento,quanto pela diminuição da nossa potência de 69 Ao afirma tais proposições, Spinoza nega em sua ética a possibilidade do suicídio representar um desejo interno do indivíduo que o comete. O filósofo afirma que são as causas externas as responsáveis pela exclusão da existência do indivíduo por ele mesmo, ele resulta de uma serie de causas externas que atingem a mente sucessivas vezes:“[...] o esforço pelo qual uma coisa existe não envolve, de maneira alguma, um tempo definido, mas, pelo contrário, ela continuará, em virtude da mesma potência pela qual ela existe agora, a existir indefinidamente, desde que não seja destruída por nenhuma causa exterior.”(E3P8D). 70 Spinoza considera tal afirmação de Descartes como errada, por acreditar que os homens não são de modo algo causa primeira das coisas, pois isso faria deles Deus, uma vez que Deus é a causa de todas as coisas que existem, logo isso seria absurdo segundo Spinoza. 70 agir, sendo que esse agir vai muitas vezes ocorrer em prol de nossa preservação. Eles (os afetos) interferem, portanto, como já demonstramos anteriormente, no conatus que é a essência atual de cada indivíduo. Assim sendo, não podemos atribuir ao homem a possibilidade de se desvencilhar dos afetos, uma vez que, pela citação acima vemos que eles são essenciais para a natureza humana. Isso porque, sejam eles passivos (como, por exemplo, uma alegria) ou ativos71, eles irão nos possibilitar a elevação do nosso conatus, tornando-nos bem mais virtuosos do que anteriormente éramos: “Com efeito, quanto mais cada um busca o que lhe é útil e se esforça por se conservar, tanto mais é dotado de virtude [...]” (E4P35C2). A virtude, para Spinoza, é virtù, é uma palavra latina que etimologicamente irá designar potência; isto é,trata-se da potência que nos possibilita elevarmos o nosso conatus. Dessa maneira, por associar virtude à força, o autor da Ética acaba por estabelecer essa correspondência entre a virtude e a potência 72, uma vez que, todo esforço que empreendemos, será sempre nossa potência para alcançar o bem e para nos afastar do mal73: Assim, o bem é o que procuramos para aumentar nossa potência; o mal, aquilo de que fugimos porque diminui nossa potência. Que é virtude? É virtù. É vis. É força: é o próprio conatus se expandindo. A virtude, dirá o livro V, não é o preço da felicidade, mas a própria felicidade. (CHAUÍ, p.XIX, 1989). A virtude vai designar, dessa maneira, a expansão de nosso conatus; e ele se expande, isto é, ele aumenta sempre que nós buscamos o bem, sempre que nos alegramos. Desse modo, agir absolutamente por virtude representa, tão somente, agir racionalmente: “Agir absolutamente por virtude nada mais é, em nós do que agir, viver, conservar o seu ser (estas três coisas têm o mesmo significado), sob a condução da razão [...]”(E4P24). Dessa 71 Nós, normalmente, tendemos a compreender os afetos como passivos, porque eles são paixões, através das quais não agimos racionalmente. Entretanto, quando passamos a conhecer e a compreender as coisas por meio de sua essência formal, isto é, por meio por sua própria natureza (no terceiro gênero de conhecimento), passamos a ter um conhecimento mais adequado das coisas agindo assim de modo mais adequado. Assim sendo, a alegria (laetitia), por exemplo, que foi antes conhecida como um afeto passivo que nos jogava a servidão será agora considerada como ativa, ao passo que, são explicadas por nossa própria essência; dessa maneira:“As alegrias do terceiro gênero são alegrias ativas: a verdade, elas são explicadas pela nossa própria essência e são ‘acompanhadas’ sempre pela ideia adequada dessa essência.” (DELEUZE § 284). 72 “Por virtude e potência, compreendo a mesma coisa, isto é, a virtude, enquanto referida ao homem, é sua própria essência ou natureza, à medida que ele tem o poder de realizar coisas que podem ser compreendidas exclusivamente por meio das leis da natureza.” (E4Def.8). 73 Segundo Deleuze, o mal representa sempre uma decomposição, ou ainda, a destruição das relações que nos compõem: “E ainda podemos dizer que a diminuição de nossa potência de agir só é um mal porque ameaça e reduz a relação que nos compõe.” (DELEUZE § 225). Mas, ainda segundo ele, não existe na Natureza, nem bem nem mal, mas apenas o que é útil ou nocivo ao indivíduo. Assim, na ordem das relações, diz Deleuze, o mal não representa nada, pois: “[...] na ordem das conexões, há tão somente composições. Não diremos que uma composição qualquer de relações seja um mal: qualquer composição de relações é boa, do ponto de vista das relações que se compõem, ou seja, unicamente do ponto de vista positivo.” (DELEUZE § 227). 71 maneira, não é possível concebermos nada além disso que possa vir a nos tornar mais virtuosos. Mas, é certo que nós nos encontramos constantemente submetidos aos afetos, fato que acaba por nos submeter também a outras situações que terminam por nos privar temporariamente desse nosso esforço, dessa nossa conservação. A barbárie é, entre outras, uma dessas situações na qual nós somos privados de nosso perseverar na existência; sempre que agir barbaramente se mostra uma solução, perdemos, pelo menos naquele instante, a possibilidade de aumentar o nosso conatus, uma vez que, estamos sendo atingidos por afetos tristes. A servidão é, portanto, a nossa incapacidade de moderarmos esses afetos tristes, é: “[...] a impotência humana para regular e refrear os afetos.” (E4Pref.); e é essa servidão que Spinoza irá analisar em todo o percurso que ele empreende na quarta Parte da Ética, nela o pensador holandês irá argumentar sobre as causas dessa servidão, argumentação que nos permite compreendermos, também, como podemos alcançar a liberdade. Assim: “Não existe na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer, existe uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída.” (E4Ax.); logo, sempre que o homem busca dominar os afetos, quando o que deve e precisa fazer é compreendê-los para assim os moderar, ele vai ser “derrotado” pelos tais, posto que são mais fortes e mais potentes. Mas, porque os afetos são tão mais potentes? Porque sabemos e concordamos com o que é melhor para nós, e ainda assim acabamos sempre fazendo o que é pior para nós mesmos? A primeira indagação se responde pela citação anteriormente acima, os afetos são mais potentes que o homem e, além disso, sempre haverá um afeto mais potente que o anterior e assim até o infinito: “A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas exteriores.” (E4P3). Assim, as causas exteriores que definem um afeto possuem uma potência maior do que a nossa própria potência. Segue-se disso que, nós somos sempre desconhecedores das causas adequadas e iniciais das coisas, pois: “[...] todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas [...], mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites [...]” (E1Ap.). E, assim, uma vez que não somos conscientes dessas causas, ficamos então vulneráveis aos afetos passivos e nos encontramos, portanto, ao domínio do acaso: “Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o comando do acaso 72 [...]” (E3Pref.). Isso faz com que busquemos sempre o que nos é útil ou se apresenta como tal, mas em determinados momentos esse útil será o que é pior para nós. Seguidamente, todos aqueles que se conduzem pela razão são ditos virtuosos, porque toda ação que empreendem, é em conseqüência do conhecimento adequado que possuem das coisas, não se deixando conduzir tanto por aqueles afetos tristes que diminuem seu conatus, mas por aquele conhecimento mais adequado das coisas, adequação essa que nos permite compreendermos as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento que Spinoza convencionou chamar de intuição74: O terceiro gênero de conhecimento procede da ideia adequada de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas. E quanto mais compreendemos as coisas dessa maneira, tanto mais compreendemos a Deus. E, por isso, a virtude suprema da mente, isto é, sua potência ou natureza, ou seja, seu esforço supremo consiste em compreender as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento. (E5P25D). Assim, quanto mais conhecemos por meio do terceiro gênero, mais desejamos conhecer as coisas por meio dele, pois: “Quanto mais a mente é capaz de compreender as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento, tanto mais deseja compreendê-las por meio desse mesmo gênero.” (E5P26). E, com isso, nos deleitamos cada vez mais com a alegria ativa a que nos referimos anteriormente, isso porque essa alegria vem acompanhada da ideia de Deus, sendo ela: “[...] a maior alegria possível, a qual vem acompanhada da ideia de si mesmo e, consequentemente, também da ideia de Deus como sua causa.” (E5P32); essa alegria acompanhada da ideia de Deus irá originar, portanto, o amor intelectual a Deus75. Sabemos que do amor intelectual a Deus resulta a nossa beatitude, a nossa felicidade, pois esse amor é o mais perfeito que existe; é dele e por ele que passamos a compreender as coisas racional e adequadamente:“[...] em que consiste nossa suprema felicidade, ou seja, nossa beatitude: unicamente no conhecimento de Deus.” (E2P49S). E não é a beatitude, senão, a própria virtude? Sim, pelo que demonstramos acima a mente quando possui esse amor para com Deus, age, e o agir nesse caso nos leva ao que é mais útil e bom 74 Explicamos mais amplamente tanto a imaginação, quanto a razão e a própria intuição, ou seja, os três gêneros do conhecimento nos capítulosanteriores. Mas, faz-se necessário sabermos que, os gêneros do conhecimento são momentos nos quais nos encontramos que direcionam nossa mente ao conhecimento verdadeiro de Deus, sendo que a intuição representa o gênero do conhecimento mais adequado, uma vez que com ela passamos a possuir um conhecimento adequado da essência das coisas por meio da essência formal dos atributos de Deus. 75 O amor intelectual a Deus, citado anteriormente, vai ser tratado nos livros sagrados, nos diz Spinoza como glória, quando ele pode ser perfeitamente chamado de satisfação do ânimo, o que é o mesmo que glória, pois ambos, enquanto afetos, são alegrias que se referem às nossas ações, um enquanto a consciência que temos delas e o outro da consciência que achamos que os outros possuem. 73 para nós; logo, seremos sim mais virtuosos sempre quando agirmos em prol do nosso crescimento. Um homem virtuoso, portanto, será considerado, por consequência, um homem livre, uma vez que ele aprendeu a refrear os afetos passivos que o impulsionam a agir tendo em vista o nocivo, é um homem que age sempre em prol de sua conservação: Por tudo que foi dito, compreende-se que o retrato do homem livre, para Espinosa, seja o homem que não faz o mal justamente porque o ignora — é o homem que age para além do bem e do mal porque age apenas pela força interior de seu desejo e de sua compreensão. (CHAUÍ, p.XIX, 1989). Ora, por compreensão o homem dito livre, não pensa na morte com tanto afinco quanto pensa na vida, pois este pensa segundo a razão. Por desejar sempre: “[...] agir, viver, conservar seu ser com base na busca da própria utilidade.” (E4P67), a virtude desse homem livre será, portanto, tão grande em conseguir evitar, quanto é em conseguir superar os perigos. Logo, compreendermos as coisas adequadamente, nos permite agirmos de maneira mais positiva frente à nossa preservação, frente a nossa perpetuação. Se não buscamos o que é útil para tais situações perdemo-nos em meio aos afetos passivos. E é a barbárie fomentada por esses afetos tristes ou passivos uma das responsáveis pelo nosso distanciamento de um existir mais virtuoso. No TTP, Spinoza vai então buscar argumentar sobre esses afetos e essas situações que nos impedem de compreendermos as coisas adequadamente e que acabam por nos privar de nossa virtude. Nele o filósofo holandês, como já demonstramos, analisa as profecias e revelações que faziam dos homens obedientes ao Estado e às instituições religiosas. Estes apresentavam virtudes que nem de longe se referiam à virtude da qual Spinoza trata no decorrer de sua Ética. Nesta obra, o pensador busca uma passagem das paixões à ação através do conhecimento adequado, e porque não dizer correto, das Sagradas Escrituras. Fugindo das paixões seria possível, afinal, fugirmos dos conflitos, das guerras e do estado de barbárie que criamos devido às superstições: É precisamente porque o vulgo permanece sempre na mesma miséria que ele nunca está por muito tempo tranquilo e só lhe agrada o que é novidade e o que ainda não o enganou, inconstância esta que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras atrozes. (TTP, Pref. § 6). 74 5 ULTIMI BARBARORUM O termo “Ultimi barbarorum”76 representa a expressão da frustração, ele é a expressão do fim bárbaro de um governo adequado à liberdade, e a consequente e iminente retomada de um governo que anteriormente não satisfazia aos anseios da maioria. Este termo quando escrito em cartazes por Spinoza representava o clamor de um pensamento que acreditava que um Estado, para garantir a liberdade e a segurança dos seus, não pode se utilizar da violência para com eles. Assim, o termo “Ultimi barbarorum” representa neste capítulo o último passo de um percurso. Um percurso que envolveu a análise e a compreensão do conhecimento e das superstições e do erro que elas envolvem, um caminho que nos levou ainda pelos afetos, pelo conatus e pela virtude. Um percurso que precisou analisar a fundamentação política e os tipos de Estado, para que, com isso, chegássemos a essa questão central de nossa argumentação: a barbárie. A multidão, cujo termo latino é multitudo e que se forma a partir da constituição do estado civil, é ainda a expressão do indivíduo, mas agora de um indivíduo coletivo singular, com seu conatus coletivo, que permite ao estado ser possuidor de um corpo e de uma mente que o potencializa. A multitudo é originada da soma de todas as potências individuais, onde o estado vai garantir o refreamento das paixões de cada indivíduo. A multidão precisa então ser governada. O que é mais eficaz para governar a multidão? “[...] não há nada mais eficaz que a superstição para governar a multidão.” (TTP, Pref. § 6), nos diz Spinoza no prefácio do Teológico Político. E sendo ela, portanto, o meio mais fácil e infalível para conseguir o que se anseia da multidão, as religiões irão utilizá-la para transformar reis em deuses ou demônios com habilidosa facilidade: “Por isso é que esta é facilmente levada, a pretexto da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo o gênero humano.” (TTP, Pref. § 6). Eis um dos males que levam os homens às guerras e conflitos: os preconceitos e superstições incutidos no imaginário dos súditos: “Sei, efetivamente, quão arraigados estão na mente os preconceitos que o ânimo abraçou como se de piedade se tratasse; sei, além disso, que é impossível libertar o vulgo da superstição como do medo [...]” (TTP, Pref. § 12). 76 Ultimi barbarorum é um termo em latim, em português ele designa os últimos dos bárbaros. Spinoza escrevia em latim e o termo foi pintado em cartazes pelo pensador como forma de protesto, para demonstrar sua decepção e frustração frente à derrota da democracia, acontecida com o assassinato dos de Witt. 75 Em se tratado de mal Spinoza nos diz que, para as relações, o mal não representa nada, uma vez que elas são sempre composição. Dito de outro modo, o mal não pertence à natureza do homem, em virtude de nosso esforço por permanecermos existindo; ele é, desse modo, resultante de causas externas que nos atingem. Assim, optar por uma atitude violenta é um mal, que não provem do indivíduo, mas é externo a ele, muito embora o conatus seja violento devido ao esforço que ele implica77. Então se o mal não pertence à natureza humana, como se estabelece uma política da barbárie? Veremos que não raras vezes alguns indivíduos detentores do poder (seja ele ideológico ou político) disseminam ideias entre os cidadãos que acabam por gerar sentimentos como o de superioridade, capaz de arrancar o ódio dos povos que não pertencem àquela sociedade. Observemos a seguinte citação: A principal citação que eles vão buscar ao Antigo Testamento para confirmar, pela autoridade deste, a sua opinião é aquela passagem do Êxodo, XXXIII, 16, onde Moisés diz a Deus: de que modo se reconhecerá que eu e teu povo achamos graça diante dos teus olhos? Certamente quando fores conosco e eu e o teu povo formos separados de todos os povos que existem à superfície da terra. Como disse, é daqui que eles pretendem inferir que Moisés pediu a Deus que prestasse assistência aos Judeus, que lhes revelasse profeticamente e que não concedesse esta graça a nenhuma outra nação. (TTP, cap. III, § 53). Com a citação podemos perceber uma das situações que propicia o nascimento do ódio de uma nação para com a outra. Os hebreus consideravam-se o povo escolhido de Deus, ao passo que as demais nações teriam sido preteridas por Ele. É nesse momento, portanto, que os artifícios supersticiosos, entre eles as próprias interpretações das revelações, são utilizados com a finalidade de fomentar essa ideia de povo escolhido. Assim, além desta muitas outras situações, como veremos no decorrer deste capítulo, possibilitarão o estabelecimento de uma política da barbárie. Mas, Spinoza acredita que em um governo mais justo e sem qualquer ligação com a teologia haveria então a possibilidade de não se cair em um estado de violência ou barbárie. Não que o pensador esteja com isso negando a possibilidade de haverem conflitos, mas estes serão mais brandos em virtude da união que este regime político implica. Trata-se, portanto, do regime democrático, que como veremos, representava para o autor do TTP o mais eficaz para se implantar em uma república livre. Isso porque ele é um 77 O perseverar na existência é proveniente da própria natureza, isto é: “A energia que o anima é ainda a da natureza [...]” (AURÉLIO, 2004, p.101). E ele é, por conseguinte, o maior esforço intrínseco ao indivíduo; em virtude dele fazemos tudo o que for necessário e até onde for necessário para permanecermos existindo. Isso, portanto, torna o conatus violento, uma vez que, a sua potência exige que ele assim o seja. 76 governo da maioria e para a maioria. Nele o que é mais visado é a união dos desejos que são comuns em cada indivíduo pertencente ao regime. E tal fato vai fazer com que cada vez menos ocorram conflitos internos entre os cidadãos da sociedade que o aderir: [...] pelo próprio fundamento e finalidade da democracia, que como também já mostramos, não é senão evitar os absurdos do apetite e conter os homens, tanto quanto possível, dentro dos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz. (TTP, cap. XVI, § 194). E assim, ao estarem conduzidos pela razão e, consequentemente, conscientes de seus afetos, vivendo cordialmente com os demais indivíduos da sociedade, sob o comando de um governo que preza os anseios comuns de todos os envolvidos, teremos cidadãos mais livres e em plena execução de sua liberdade de pensamento, isto é: “[...] deixando a cada um a liberdade de pensar aquilo que quiser e de dizer aquilo que pensa.” (TTP, cap. XX, § 247). 5.1 A POLÍTICA DA BARBÁRIE Quando nós iniciamos os primeiros capítulos deste trabalho 78, mostrou-se necessário empreendermos uma investigação concisa acerca das nuances que envolvem a superstição, isso porque a nossa intenção era, tão somente, que pudéssemos demonstrar com os argumentos expostos anteriormente, de que maneira o artifício supersticioso, aliado aos afetos, acabam por influenciar em situações que, por conseqüência, terminaram em violência contra outros indivíduos, fazendo da guerra um fato inevitável para muitas nações, inclusive para a judaica que até os dias atuais vive esse espírito de barbárie. Observamos, ainda, que sempre que somos tomados pelo afeto de medo, seremos, consequentemente, tomados também pelo de esperança, posto que: “Segue-se, dessas definições, que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança.” (E3Def.Af.13). A afirmação pretende especificar, portanto, que a existência de um pressupõe necessariamente a existência do outro e ambos existem sempre em consequência da dúvida, pois: “[...] supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a realização de uma coisa, imagina algo que exclui a existência da coisa futura e, portanto, dessa maneira, entristece-se.” (E3Def.Af.13E). 78 Os capítulos anteriores, tanto I e II quanto o capítulo III desenvolveram um percurso pelo pensamento ético e político de Spinoza que visava nos trazer até este capítulo, no qual abordaríamos a visão do pensador holandês quanto à questão da violência. 77 Ora, é possível nós afirmarmos isso, uma vez que, os homens se encontram quase que constantemente cercados de dúvidas quanto ao futuro que lhes espera e por tal motivo eles temem ou esperam que algo lhes aconteça ou que alguém gere qualquer bem ou mal. E por isso nunca se encontram perfeitamente tranquilos e acabam se apegando sempre ao que há de novo: É precisamente porque o vulgo permanece sempre na mesma miséria que ele nunca está por muito tempo tranquilo e só lhe agrada o que é novidade e o que ainda não o enganou, inconstância esta que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras atrozes. (TTP, Pref. § 6). A dúvida é, portanto, um fator determinante para temermos ou esperarmos por algo. Como vimos, em virtude do medo e da esperança os homens acabam se apegando à superstição: “As coisas que são, por acidente, causas de esperança ou de medo são chamadas de bons ou maus presságios. [...] É essa a origem das superstições [...].” (E3P50S). E, por diversas vezes, é da superstição que podemos ver nascerem as mais cruéis formas de violência contra outros indivíduos: “[...] a fé esteja reduzida a crendice e preconceitos. E que preconceitos estes, que de racionais transformam os homens em bestas, que impedem por completo que cada um julgue livremente [...]” (TTP, Pref. § 8). Certamente, podemos afirmar que medo, esperança e superstição são aliados e sempre que alguém estiver cercado pela dúvida que aqueles dois envolve, o trabalho de certos indivíduos que incitam a barbárie será então facilitado, porque bastam apenas poucas palavras, que estejam carregadas pelo sentimento de ódio contra outras nações ou mesmo de um sentimento de predileção ou superioridade para que conflitos e guerras despontem facilmente em algumas nações. Um claro exemplo disso vemos em alguns religiosos que ficam a instigar no imaginário dos indivíduos crenças que os levam a atitudes como a da multidão enraivecida que assassinou os irmãos De Witt79 em 20 de agosto de 1672. Neste momento, os pastores calvinistas (e também partidários do retorno do príncipe da Casa de Orange) aproveitaram-se da invasão francesa à costa da Holanda, para assim conseguirem desacreditar o grande pensionário e retornarem ao poder. Com isso, a leva de seguidores temeu que os franceses novamente invadissem o país, temeram que com a permanência deles os franceses chegassem 79 Spinoza conhecia o pensionário Johan de Witt. O filósofo, extremo admirador das demonstrações geométricas, ensinara à de Witt matemática. Spinoza defendia ferrenhamente o tipo de governo instituído pelos de Witt enquanto estavam no poder da Holanda. O assassinato dos irmãos foi motivo de intensa revolta para o autor do TTP, que pintou cartazes contra o ato cometido para fixar no local do crime. O pensador, no entanto, foi detido pelo dono da casa onde Spinoza alugava um quarto. 78 até a cidade de Amsterdã80. Deixando de ser uma república e retomando seu antigo regime monárquico, para eles a Holanda voltaria a ser uma cidade novamente segura; e foi na esperança de que estivessem novamente seguros que a multidão assassinou os irmãos nas ruas de Amsterdã. Dentro desse contexto, Spinoza que era um ferrenho defensor da maneira como o pensionário Johan de Witt governava, viu na atitude da multidão enraivecida a barbárie ser personificada: “Espinosa, amigo de Witt, viveu intensamente todo o conflito. Partidário de sua política e horrorizado com o crime, quis pregar nas paredes de Amsterdam um cartaz que dizia ‘Últimos dos Barbáros’ [...]” (CHAUÍ, 1989, p.10); o pensador holandês viu os últimos dos bárbaros porem fim à república livre, principal responsável por permitir a todos os indivíduos o livre pensar, forma de governo que buscava a união dos anseios mais comuns entre cada participante da sociedade. A atitude dos pastores calvinistas81 em incitarem a multidão contra os irmãos foi claramente uma atitude tomada por interesses políticos. Mas, podemos exemplificar, ainda, as atitudes e as ideias de alguns líderes religiosos que acreditavam ser a sua religião a única capaz de garantir a salvação dos indivíduos; para tanto, eles perseguiam e obrigavam à conversão aqueles que não faziam parte da sua religião. Foi assim que muitos judeus acabaram tendo que se converter ao cristianismo: “Quando outrora o rei da Espanha os obrigou a abraçar a religião do reino ou exilarem-se, a maior parte deles adotou a religião dos papas.” (TTP, cap. III, § 56) 82. Contudo, a conversão dos judeus ao cristianismo não ocorreu somente em virtude do anseio cristão de obter novos seguidores; se deveu e muito em razão do ódio que as outras nações nutriam e ainda nutrem até hoje pelos judeus. O fato narrado na citação anterior exprime uma das muitas perseguições pelas quais os judeus tiveram que passar em suas andanças pelo mundo; essa perseguição, especificamente, atingiu diretamente a família Spinoza, que era judia. 80 Nesse momento, os holandeses se encontravam em meio a uma guerra travada entre França e Holanda e o medo que havia de que Amsterdã fosse invadida pelos franceses se deve ao fato que, em um momento anterior ao assassinato dos de Witt, a França teria tentado ocupar os Países Baixos, porém sem muito sucesso. 81 Os pastores calvinistas possuíam forte influência em toda a Holanda, principalmente porque o governo dos de Witt possibilitava essa liberdade religiosa não somente a eles, mas a quaisquer outras formas de culto. Entretanto, antes de incitarem a multidão, os calvinistas já vinham atacando o atual governo, acusando-os de acordo com os franceses e ingleses, em virtude da recusa dos de Witt em promover excomunhões e censuras. 82 Tanto na Espanha quanto em Portugal podemos encontrar muitas comunidades hebraicas; o período referido acima se refere ao momento em que os reis de ambos os países passaram a exigir a conversão deles. Muitos como a família de Spinoza fugiram da Espanha para Portugal e posteriormente para Holanda a fim de evitarem ter que optar pela conversão. 79 Vejamos ainda o seguinte: os hebreus acreditavam, em virtude das revelações que foram sendo apresentadas a eles, tanto antes quanto após a sua fuga do Egito, que seriam um povo escolhido ao qual Deus preferiu, eles: “[...] acreditaram que o seu reino era o reino de Deus e que só eles eram filhos de Deus [...]” (TTP, cap. XVII, § 214). E não foram poucos os prodígios que, segundo a Sagrada Escritura, Deus empreendeu com a finalidade de provar aos hebreus o quanto eles estavam seguros diante do olhar de Deus e da governança de Moisés e dos profetas e sacerdotes que a ele se seguiram. O próprio Moisés foi responsável por legitimar essa crença na predileção, vemos isso quando em um de seus muitos diálogos com Deus, Moisés pede a Ele proteção irrestrita à sua nação, não concedendo, por conseguinte, tal graça a nenhuma outra nação existente sobre a face da terra: A principal citação que eles vão buscar ao Antigo Testamento para confirmar, pela autoridade deste, a sua opinião é aquela passagem do Êxodo, XXXIII, 16, onde Moisés diz a Deus: de que modo se reconhecerá que eu e o teu povo achamos graça diante dos teus olhos? Certamente quando fores conosco e eu e o teu povo formos separados de todos os povos que existem à superfície da terra. (TTP, cap. III, § 53). Ora, essa pretensa preferência divina, gerava entre os judeus um espírito de união e harmonia, união essa que permaneceu mesmo após o fim do estado hebreu. Assim sendo, essas duas situações: a crença na preferência divina e a união entre toda a nação acabou por alimentar nas demais nações existentes, que ficaram supostamente preteridas, um sentimento de ódio contra os hebreus, sentimento esse que possibilitou diversos conflitos entre os seus povos e perseguições funestas aos judeus. Além disso, nós podemos observar, ainda, que existiram governos, que sempre que se encontravam em momentos de crise, apelavam para as opiniões de seus sacerdotes ou adivinhos (mesmo não se tratando de governos teocráticos), a fim de prever a sorte que lhes esperava diante de alguma situação que era decisiva em suas conquistas políticas: “[...] vejase Alexandre, que só começou a convocar, supersticiosamente, os adivinhos quando, às portas de Susa, temeu pela primeira vez a sorte [...]” (TTP, Pref. § 6). Muitos deles, como o próprio Alexandre, estavam sendo guiados pela crença que depositavam na superstição e, por tal motivo, tem muitas de suas vitórias relacionadas a grandes episódios de barbárie, de guerra intensa contra outras nações. Existem ainda aqueles soberanos que sempre governaram seus súditos pelo medo ou pela esperança, pois o que querem: “[...] é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser mantidos, para que combatam pela 80 servidão como se fosse pela salvação [...]” (TTP, Pref. § 7). Assim, eles conseguiam engendrar os indivíduos em suas ideias levando-os a combaterem por medo das punições que lhes eram impostas ou ainda pela esperança de que a sua salvação se encontrasse exatamente na sua luta e morte em combate. Além desses casos que citamos anteriormente, podemos observar ainda os governos teocráticos (dos quais tratamos no capítulo II) que governavam seus súditos ou cidadãos, por meio da fé ou da crença que eles possuíam. As leis e os preceitos instituídos visavam à obediência (algumas vezes cega) desses súditos: “A fé pode salvar, não por si mesma, mas só em função da obediência [...]” (TTP, cap. XIV, § 175). O próprio Egito de onde os hebreus fugiram, era uma teocracia, assim como o estado hebreu se tornou posteriormente, como afirma Spinoza na seguinte passagem: “Foi por esta razão que Moisés, por virtude e mandato divino, introduziu a religião na república, a fim de que o povo cumprisse o seu dever, não tanto por medo, como por devoção.” (TTP, cap. V, § 75) 83. Muitos desses líderes políticos, que eram também líderes religiosos buscavam sempre legitimar as leis ou os decretos que apresentavam aos súditos, no poder divino: “[...] a religião adquiriu entre os Hebreus força de lei graças unicamente ao direito do Estado e que, destruído este, ela nunca mais pôde ser considerada como lei de um Estado particular, mas sim como ensinamento universal da razão.” (TTP, cap. XIX, § 231). Assim, no estado hebreu, principal instrumento de investigação do pensador no TTP, a religião terá sua influência no Estado até o momento em que este existiu, ao sucumbir, ela deixou de influenciar. Todas essas situações que acabamos de demonstrar, são realidades que inevitavelmente terminaram facilitando ou mesmo desembocando em atitudes de barbárie, de extrema violência. O episódio dos irmãos de Witt que terminou em um assassinato brutal; a crença na predileção por parte dos hebreus e a sua intensa união que gerou o ódio e a perseguição das outras nações contra eles e que por diversas vezes na história hebraica terminou em assassinato, ou extermínio. As próprias cruzadas cristãs representaram verdadeiros episódios de barbárie, ontem até crianças chegaram a participar. Com tudo isso, percebemos que a política da barbárie se instaura, portanto, a partir da ambição, isto é, do anseio pelo poder de indivíduos que exercem influência, seja política, seja ideológica. Dessa maneira a política da barbárie é a política da obediência cega e 83 Segundo Spinoza, Moisés introduziu a religião, bem como o direito divino dentro do estado hebreu, exclusivamente por dois motivos: o primeiro deles seria a insubmissão de seu povo, que não estava sujeito a se submeter pela força e que por esse motivo não cumpria a sua obrigação; já o segundo seria a iminência da guerra, onde se mostrava necessário exaltar os soldados para que estes lutassem pensando sempre na honra e na virtude do que mesmo no medo de quaisquer castigos que possivelmente pudessem vir a receber. 81 da verdade absoluta; a política de quem quer manter-se no poder a todo custo, de quem visa retomá-lo; a política da barbárie é a política dos líderes religiosos que se embriagaram pelo doce sabor do poder e que dele não querem mais se despojar. Mas podemos afirmar ainda que, alguns indivíduos buscavam fazer a guerra por acreditar ser ela o único caminho para a paz e que outros ansiavam apenas pela manutenção de seus próprios interesses. De toda maneira, seja qual for a justificativa, a barbárie será sempre um fato lamentável para os homens, assim: “[...] se a servidão, a barbárie e o isolamento se devem apelidar de paz, então não há nada mais miserável para os homens do que a paz.” (TP VI, § 4). Assim, para Spinoza, a paz nunca esteve relacionada com a ausência da guerra. Mas ela é sim uma situação na qual os indivíduos conseguem viver em harmonia e concórdia quanto aos seus principais anseios. Além disso, Spinoza nos diz no último capítulo do TTP que: “Se fosse tão fácil mandar nos ânimos como nas línguas, cada um reinaria em segurança e nenhum Estado seria violento [...]” (TTP, cap. XX. § 239), isto que dizer que, se os homens soubessem controlar suas paixões, muitas discórdias e com elas também muitas guerras e disputas poderiam ter sido evitadas. Mas, já vimos que a grande maioria dos indivíduos é mais guiado pelos afetos do que pela razão e, por isso, em muitos momentos a barbárie acabou se estabelecendo. Se somos então guiados mais pelos afetos do que pela razão e se com isso não conseguimos unir nossos interesses com os dos outros indivíduos, a discórdia e os conflitos vão aos poucos se instituindo em um meio, em uma sociedade. Fato que como vimos vai gerar a violência e que legitimará toda e qualquer atitude bárbara seja dos cidadãos, seja dos soberanos, seja de ambos os envolvidos. Spinoza, visando fugir dessa política, buscará analisar que tipo de regime pode oferecer a harmonia e a concórdia entre os indivíduos para que a liberdade de pensamento e de culto sejam garantidas. 5.2 O ESTADO DEMOCRÁTICO FACE À BARBÁRIE Vimos que a barbárie esteve sempre inserida em inúmeras situações, bem como nos mais diversos contextos históricos da humanidade; regimes teocráticos ou totalitários em diversos momentos intensificaram a sua realização, uma vez que, priorizavam quase sempre os interesses de uma minoria, para não dizermos de somente um indivíduo. E com isso Spinoza percebeu a necessidade de encontrar e definir um governo que fosse naturalmente 82 constituído e que pudesse favorecer os anseios mais comuns de cada indivíduo, dificultando assim a prevalência da barbárie e de influências que a ocasionavam. No Tratado Político84, bem como nos cinco últimos capítulos do Tratado Teológico Político, Spinoza procurará argumentar acerca dos regimes de governo, buscando com isso demonstrar quais dentre eles que se apresentavam como sendo o mais eficaz para que fosse possível, então, governar com segurança e paz,mas que também oferecesse aos cidadãos o direito de pensar livremente. Dessa maneira, dos três regimes políticos apresentados pelo pensador, a saber: monárquico, aristocrático e democrático, somente o último se enquadraria mais perfeitamente em uma república livre, sendo possível assim governar com mais eficácia. Dessa maneira, observemos o seguinte: no TTP, Spinoza aproxima lei e direito, e por tal motivo a democracia representará, segundo ele, uma união que permite que os homens possuam supremo direito a tudo, isto é: “O direito de uma sociedade assim chama-se democracia, a qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o supremo direito a tudo o que estiver em seu poder.” (TTP, cap. XVI, § 193); e, dessa maneira, a sociedade estará inteiramente de acordo com o direito natural, uma vez que: “[...] cada indivíduo tem o supremo direito a tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua potência determinada.” (TTP, cap. XVI, § 189). Desse modo, a democracia85 desponta, como já dissemos, por ela basear-se na lei e no direito que emana de cada indivíduo, ao passo que tanto na monarquia quanto na aristocracia os interesses de uma minoria, ou ainda de somente um indivíduo hereditariamente escolhido, é que serão colocados em primazia em relação a todos os demais indivíduos que compõem essas sociedades; e é por tal motivo que estes últimos não se mostraram tão adequados para uma república que visa, obviamente, à liberdade de seus cidadãos. Segue-se disso que, onde reina o desejo de uma minoria, vemos que a segurança e o livre pensar já não mais imperam, uma vez que, em se tratado dos seres humanos, ou ainda, 84 Spinoza estava em processo de produção do Tratado Político, quando veio a falecer em 21 de fevereiro de 1677. A obra ficou, em virtude disso,inacabada, incompleta exatamenteno capítulo em que o pensador argumenta acerca da democracia; dessa maneira, acabamos por ter que imaginar quais viriam a ser as pretensões do filósofo com relação a este tema. 85 Inicialmente, a democracia pensada por Spinoza parece não diferir da democracia pensada por outros pensadores, isso porque todos concordam que a totalidade de indivíduos dificilmente poderá participar ativamente do processo. Entretanto, Spinoza subverte toda a tradição filosófica que acredita ser a democracia um governo que não funciona na prática. 83 dos modos finitos da substância, é perfeitamente possível que estes venham a vacilar e acabem sendo tomados pelas paixões que por diversas vezes o poder vai implicar: Ninguém, com efeito, é tão vigilante que não adormeça de quando em vez, nem houve jamais alguém de ânimo tão potente e tão íntegro que não estivesse alguma vez [...] enfraquecido e se deixasse vencer. E, sem dúvida, [...] ninguém pode conseguir de si mesmo, a saber, que vele antes por outrem do que por si, que não seja avaro, nem invejoso, nem ambicioso [...] (TP VI, § 3). Mas, antes mesmo de influenciarem aos soberanos pela ambição ou pela inveja, as paixões, segundo Maria Luíza Ferreira, empurram os homens à vida em sociedade, uma vez que: “[...] para manter os homens há que os subordinar a uma paixão forte. […] A passagem do estado de natureza à sociedade civil prende-se com um trabalho sobre instâncias não racionais.” (FERREIRA, 2007, p.492). A autora afirma isso uma vez que, segundo Spinoza, todos os homens temem, entre outras coisas, encontrarem-se em algum momento com a solidão, isto é: Como, porém, o medo da solidão existe em todos os homens, porque ninguém na solidão tem forças para poder defender-se e reunir o necessário para a vida, segue-se que os homens desejam por natureza o estado civil, não podendo acontecer que eles alguma vez o dissolvam por completo. (TP VI, § 1). Como vimos, na democracia os homens tem supremo direito a tudo em virtude de terem cedido o seu direito natural para o todo naturalmente constituído a partir desse momento de ‘despojamento’. É isso que faz da democracia um regime naturalmente constituído, uma vez que ela parte do direito natural de cada indivíduo. Entretanto, devemos lembrar que não é possível ao homem se desfazer por completo de seu direito natural, mas este se encontrará em um estado de letargia até o momento em que o indivíduo julgar necessário retomá-lo: [...] ninguém transfere o seu direito natural para outrem ao ponto de este nunca mais ter de o consultar daí em diante: transfere-o, sim, para a maioria do todo social, de que ele próprio faz parte, e, nessa medida, todos continuam iguais, tal como acontecia anteriormente no estado de natureza. (TP XI, § 1). Das menções que Spinoza faz à democracia86, a primeira delas, se encontra no TTP; é nela que o filósofo nos apresenta ao conceito de multitudo, da qual tratamos 86 Segundo o Prof. Dr. Fernando Dias Andrade, Spinoza menciona a democracia em três de suas obras: no Tratado Político, no Tratado Teológico Político e na Ética: “Espinosa fala pouco da democracia nos seus textos. O Tratado político (que seria o texto onde ele falaria em mais detalhe; ele morreu bem quando começou o 84 anteriormente, e que representa um conatus coletivo, um conceito que designa a estruturação de um indivíduo também coletivo que representa: “[...] o corpo e a mente de todo o estado [...]” (TPIII, § 2). É desse todo coletivizado que obtemos a característica mais abrangente da democracia spinozana: um governo para a multidão, um governo que visa à maioria, que visa os interesses comuns de seus cidadãos. Falando de outro modo, na democracia transferimos o direito natural ao todo social, que é representado pela multitudo, e com isso todos os indivíduos serão tornados iguais perante a sociedade. E assim, por conseguinte, os anseios que são comuns entre cada um dos indivíduos serão levados em consideração, numa busca constante pela união e pela justiça entre todos os que compõem o todo social. Ora, vemos com isso o quanto a democracia volta seu olhar para a igualdade dos indivíduos, situação na qual: “[...] não existe razão alguma para que alguém esteja na condição de dar ordens e, assim, reduzir a liberdade dos demais.” (AURÉLIO, 2009, p. 57). Assim, a democracia como um governo que viabiliza a igualdade entre a maioria, acaba por ser considerada mais do que somente um simples regime, ela pode representar, em virtude de suas nuances, uma prática política possível de ser inserida em quaisquer outros regimes políticos estabelecidos, sendo assim: “[...] se esta incumbência pertencer a um conselho que é composto pela multidão comum [...]” (TP II, § 17); em outras palavras, isso pode vir a acontecer, sempre que essa prática política for viabilizada por um grupo de indivíduos pertencentes à multidão que juntos constroem direitos em vista dos desejos comuns dos cidadãos. Ora, se todos os homens são considerados sob a mesma ótica, isto é, se todos possuem em virtude de seu direito natural a mesma igualdade de direitos, então é improvável falarmos em maiores conflitos entre os cidadãos ou entre o próprio estado, uma vez que essa igualdade gera a concórdia e a justiça. Sendo que, a justiça representará consequentemente: “[...] a disponibilidade constante para atribuir a cada um aquilo que, de acordo com o direito civil, lhe é devido [...]” (TTP, cap. XVI, § 196). Se, consequentemente, a segurança e a preservação de cada indivíduo não se encontram entre as prioridades do Estado, veremos que o conatus, bem como o direito natural particulares podem e vão ser retomados em vista dessa perseverança no existir: “[...] ninguém transfere o seu direito natural para outrem ao ponto de este nunca mais ter de o consultar daí em diante [...]” (TP XI, §1). Diogo Pires Aurélio nos diz que o conatus em virtude da energia capítulo 11, sobre a democracia) só tem doze menções à democracia. O Tratado teológico-político tem dezesseis; e a Ética tem uma.” (ANDRADE, 2010, p.49). 85 que o anima, posto que: “[...] é ainda a da natureza [...]” (AURÉLIO, 2004, p.101), será violento, uma vez que, trata-se de um esforço empreendido pelos indivíduos em virtude do seu perseverar na existência. Dessa maneira, compreendemos que a violência já se encontra intrinsecamente inserida nos homens em virtude de sua natureza, que é a responsável por exigir que preservemos sempre a nossa existência. Por conseguinte, sempre que um governo os prioriza, ele vai garantir, como já demonstramos, a simpatia de seus cidadãos e evitar qualquer violência que se justifique por meio do conatus. Dito isso, podemos compreender que existe dentro da democracia que Spinoza nos apresenta, uma impossibilidade de se estabelecerem atitudes de barbárie, ou ainda, de extrema violência. Isso acontece porque na democracia se criam direitos, que partem sempre do anseio que é comum em todos os indivíduos daquela sociedade, uma vez que se reconhece a natureza passional que constitui a todos esses homens pertencentes a essa sociedade. Segue-se disso que neste tipo de governo há uma: “[...] participação de todos na formação direta das decisões [...]” (AURÉLIO, 2009, p.56), isto é, todos participam e se tornam desse modo soberanos desse Estado. Tal fato exclui, portanto, qualquer possibilidade de dominação e onde a multidão vem a: “[...] coincidir, sem quaisquer mediações, com a sua própria configuração como potestas 87 .” (AURÉLIO, 2009, p. 56). Onde não há dominação não vai existir, por conseguinte, quaisquer atitudes violentas. Toda violência provem, portanto, da dominação, ou ainda, de um sentimento de pertença que existe dos dominantes sobre os dominados. E todo sentimento de dominação sobre o outro, nos diz André Rocha, parte do anseio de não ser dominado: “O desejo de dominar, em cada ânimo individual, não existe senão em relação ao desejo de não-ser dominado.” (ROCHA, 2011, p.124). Assim, por tudo que acabamos de demonstrar fica claro que um governo democrático além criar direitos que abrangem os anseios que os indivíduos possuem de mais comum entre eles, ainda possibilita a todos governarem e a opinarem sobre o que é ou não melhor para a sociedade, com isso a soberania passa a ser popular, isto é, ela se modifica permitindo a participação dos cidadãos. Essas circunstâncias permitem que os indivíduos pensem livremente sobre diversos assuntos, excluindo assim qualquer possibilidade de violência. 87 Potestas para Spinoza é um termo que designa poder. É o poder que se constitui a partir da constituição de um Estado, seja ele qual for, poder esse que os indivíduos passam, consequentemente, a temer e a obedecer:“[...] cada um dos indivíduos passou a temer um só e o mesmo poder – uma potestas – e por isso a ter de obedecer.” (AURÉLIO, 2009, p.50). 86 5.3 DA LIBERDADE DE PENSAMENTO É certo que todos nós possuímos discernimento suficiente para compreendermos que, mesmo que estejamos influenciados pelo domínio de outro indivíduo, ainda sim podemos pensar com nossas próprias convicções e definir até que ponto as paixões poderão imperar em nossa mente e em que momento a razão será nossa aliada. E assim: “[...] se cada um é senhor dos seus próprios pensamentos por superior direito da natureza [...]” (TTP, cap. XX, § 240), nenhum Estado poderá ser considerado como menos violento, ou mesmo autoritário, se retirar dos homens o direito que lhes é próprio de pensarem o que lhes convêm: “Assim, quanto menos liberdade de julgar se concede aos homens, mais nos afastamos do estado mais natural e, por conseguinte, mais violentamente se reina.” (TTP, cap. XX, § 245). Assim, é necessário garantir que essa liberdade seja ativamente exercida; para tanto, é que o pensador holandês procurará fugir completamente da influência teológica, uma vez que o pensador desenvolve em todo o TTP argumentos para demonstrar de que modo o artifício teológico e supersticioso visa afastar os indivíduos dos mecanismos filosóficos que possibilitam a cada homem alcançar um pensamento adequado e livre: “O objetivo da filosofia é unicamente a verdade; o da fé, como ficou abundantemente demonstrado, é apenas a obediência e a piedade.” (TTP, cap. XIV, § 179). Desse modo, nos capítulos iniciais da obra, veremos argumentos, análises e reflexões que desembocarão precisamente na separação da teologia tanto da filosofia quanto da própria política. A análise das Sagradas Escrituras que foi desenvolvida por meio do método histórico crítico 88 visava compreender até que ponto as profecias e revelações despontavam em direção à obediência dos súditos. Segue-se disso que, os profetas, sacerdotes e até mesmo alguns governantes, utilizaram-se dos artifícios teológicos e supersticiosos como forma de garantir essa obediência ocasionando em determinados momentos situações de extrema violência, como a barbárie cometida contra os irmãos de Witt na Holanda. É certo, ainda, que os indivíduos são livres à medida em que passam a pensar e conhecer as coisas racional e adequadamente89: “[...] chamo totalmente livre ao homem na 88 O método histórico crítico foi pensado por Spinoza com a finalidade de se compreender as Sagradas Escrituras além da influência teológica com a qual ela sempre havia sido interpretada. O pensador buscou compreender os livros sagrados por meio de elementos que segundo ele seriam imprescindíveis para a compreensão adequada destes, a saber: filologia e história. A partir disso, o filósofo pode sustentar as bases que separariam a teologia da filosofia. 89 Essa racionalidade e, consequentemente, essa liberdade passam inevitavelmente pela questão do conhecimento que apresentamos no capítulo I. Não é possível alcançarmos a liberdade seja ela de pensar ou não, se não compreendemos como o conhecimento é essencial para esse processo. A liberdade apresenta-se, dentre os três 87 medida em que ele é conduzido pela razão, visto que assim ele é determinado a agir por causas que só pela natureza se podem entender adequadamente [...]” (TP II, § 11). E que esses indivíduos racionalmente pensantes, requerem de um Estado que ele garanta a seus cidadãos essa liberdade anteriormente adquirida. Se, por conseguinte, escolhemos racionalmente ceder o nosso direito natural, isto é: “Uma vez que eles se submeteram incondicionalmente, e isto, conforme mostramos, não apenas porque a necessidade obrigava mas também porque a razão aconselhava [...]” (TTP, cap. XVI, §§ 193, 194), é dever do Estado garantir que a razão não nos aconselhe o contrário, que seria retornar ao direito natural para garantir com isso a nossa segurança. Ora, se não há qualquer garantia de que o indivíduo coletivo garantirá a segurança e a preservação dos indivíduos particulares, é certo que o nosso próprio esforço de preservação nos indicará a retornarmos ao nosso direito natural90 que nos permite fazermos tudo quanto estiver em nosso alcance para garantirmos a nossa sobrevivência: “[...] segue-se que cada indivíduo tem o supremo direito a tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua potência determinada.” (TTP, cap. XVI, § 189). Assim, fica claro que o que foi renunciado aqui foi o direito de agir por suas próprias leis tendo em vista a sobrevivência e não o direito de pensar, raciocinar e julgar como e o que quiser. Segue-se disso que, como vimos anteriormente, Spinoza busca compreender as formas de governo, tanto aquelas que priorizam o bem estar de todos os indivíduos, quanto aquelas que buscando somente a obediência retira deles a liberdade que lhes é própria, esquecendo-se até mesmo do direito natural e do conatus que são intrínsecos aos indivíduos e ditos violentos, uma vez que, requerem dos homens agir seja de que modo for pela preservação de sua existência. Como vimos, nenhuma das formas de governo que o pensador analisa é tão eficaz para garantir a segurança, liberdade e igualdade dos indivíduos quanto a democracia. Ela, apesar de ser vista pela grande maioria dos teóricos como um regime que na prática não funciona, tem de Spinoza um outro olhar que a coloca muito além de um simples regime, gêneros de conhecimento, no terceiro naquele que é o mais adequado que nos permite até mesmo conhecermos a Deus. 90 Vimos no capítulo III que o direito natural é cedido ao estado quando de sua constituição, mas não o é completamente. Pois, ele não pode ser completamente extinto, assim como o conatus, uma vez que ambos são essenciais para a sobrevivência dos indivíduos. O que acontece é que eles são abrandados, para garantir que o todo social aja em prol da sociedade. 88 sendo que ela vem sim a ser compreendida como uma prática política que é capaz de estar inserida em quaisquer regimes políticos. Não podemos negar que a liberdade de pensamento é mais útil à república do que mesmo nociva a ela. Mas, porque seria a liberdade mais útil se muitos soberanos a temem ao ponto de suprimi-la a todo custo? Porque, segundo Spinoza, o que muitos soberanos não conseguem compreender é que a liberdade de pensamento traz muito mais segurança ao governo do que qualquer perigo ao mesmo. Por isso, suprimir a liberdade de pensamento faz de um governo, violento e até mesmo autoritário. E todo governo autoritário, nos diz Maquiavel, esta fadado a perder o poder que lhe convêm para os indivíduos, à quem se encontra obrigado: “Costumam estes principados correr perigo quando saltam da ordem civil para a ordem absoluta.” (MAQUIAVEL, 2004, p.46). Por outro lado, para Spinoza, quanto mais um governo vem a suprimir os direitos particulares, bem como a própria liberdade de pensar dos indivíduos, tanto mais assim um soberano estará nas mãos de seu povo. Isso porque, eles não alcançarão a concórdia que é própria da democracia, uma vez que: [...] pelo próprio fundamento e finalidade da democracia, que, como também já mostramos, não é senão evitar os absurdos do apetite e conter os homens, tanto quanto possível, dentro dos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz. (TTP, cap.XVI, § 194). Segue-se disso que, os indivíduos que pensam livremente anseiam ter seus desejos atendidos pelo soberano que os governa e assim, quando observam que seus anseios estão sendo levados em consideração, estes indivíduos passam a se sentirem comprometidos com o pacto firmado (aquele que instituiu o direito civil) e com isso a concórdia passa a imperar: “Cada um pode ter esta mesma liberdade sem perigo para a paz e sem que daí venha algum inconveniente que não possa facilmente neutralizar-se” (TTP, cap. XX, § 246). De fato, sempre que os homens se comprometem com o pacto e concordam com o que vem a ser comumente decidido, será possível governar com menos intolerância e mais apego ao que de novo qualquer indivíduo possa vir a querer introduzir na república sem que tal ação venha a ocasionar prejuízos ao direito de cada um em particular, pois: “Esta liberdade pode ser concedida a cada um sem prejuízo do direito e da autoridade do soberano, podendo cada um conservá-la sem prejuízo desse mesmo direito.” (TTP, cap. XX, § 246). Segue-se disso que, se a principal virtude do homem é a liberdade, então o pensar livremente se faz necessário para que a paz na república venha a ser constante. Virtuoso, o 89 homem já não é afetado constantemente pelas paixões que lhe bagunçam os ânimos e assim, por tudo que já apresentamos anteriormente, quanto mais ele se aperfeiçoa nas paixões menos elas imperam em nós, mais adequadamente conhecemos as coisas e mais afastados da discórdia e do ódio nós estaremos. Ora, por tudo que foi dito, podemos concluir, uma vez que sabemos que:“O verdadeiro fim da república é, de fato, a liberdade.” (TTP, cap. XX, § 241), que a democracia em uma república livre vai garantir a liberdade de pensamento dos indivíduos, uma vez que esta república esteja separada da influência religiosa em sua política, posto que, as influências religiosas se mostraram uma ameaça tanto para a liberdade quanto para a paz de um Estado. 90 6 CONCLUSÃO Por fim, podemos afirmar que todo o percurso reflexivo que foi empreendido neste trabalho, tinha o intuito, que possivelmente já é perceptível, de compreendermos a questão da violência muitas vezes personificada na barbárie e que em um determinado momento foi de encontro ao pensamento ético e político desenvolvido por Spinoza em suas obras. O filósofo da felicidade que sempre pensou a essência dos indivíduos positivamente e que retira de sua filosofia qualquer possibilidade de violência do indivíduo contra si mesmo, irá enxergar a violência como uma diminuição da virtude que nos é própria: “Agir absolutamente por virtude nada mais é, em nós do que agir, viver, conservar o seu ser (estas três coisas têm o mesmo significado), sob a condução da razão [...]” (E4P24). Se falarmos mais especificamente, podemos dizer que sempre quando optamos pela violência negamos a nós mesmos e aos outros a possibilidade de estarmos em plena conservação, de garantirmos a expansão do nosso conatus. Entretanto, nós não poderíamos apresentar a nossa investigação como estando completa, se a nossa finalização acontecesse, somente, ao apontarmos os argumentos que envolvem a questão da barbárie. Pretendíamos compreender, sobre a questão da liberdade de pensamento, aquela que é tão prezada por Spinoza, pois: “É impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem aquilo que pensam.” (TTP, cap. XX, § 246); liberdade essa que só pode ser alcançada em um governo, após se extinguir de dentro dele qualquer política que venha a se desencadear num sentimento de barbárie generalizada entre os indivíduos pertencentes a esta sociedade: [...] jamais eles poderão, contudo, fazer com que os homens não julguem as coisas segundo o seu próprio engenho [...]. É certo que tem o direito de considerar como inimigos todos aqueles que não estiverem absolutamente de acordo consigo em todas as matérias [...]. Admito que tenham direito a reinar por meio da violência e a condenar cidadãos à morte pelos motivos mais fúteis [...]. Além disso, como é impossível fazê-lo sem por em grave risco todo o Estado, podemos até negar que tenham absoluta potência para fazer essas e outras coisas parecidas e, por conseguinte, que eles tenham o direito absoluto. (TTP, cap. XX, §240). Dessa maneira, podemos observar que somente um governo que venha a governar regulando, por intermédio das leis, aquelas instituições que detémem suas mãos a violência, poderá oferecer a liberdade de pensamento aos indivíduos; isso porque, estas instituições não terão condições de retirar, por meio do sentimento de medo que eles implantam nos homens, 91 essa liberdade que lhes foi anteriormente concedida. Logo, um governo que passa a se utilizar do terror contra os seus súditos, para com isso retirar deles a liberdade, encontra-se mergulhado no contexto da barbárie da qual tratamos nesta argumentação. Segue-se disso que, no momento em que se estabelece o pacto entre os indivíduos se compõe, por consequência, um compromisso mútuo de utilidade para ambas as partes: “[...] ninguém efetivamente cumpre um contrato se dele não continuar a esperar qualquer benefício [...]” (AURÉLIO, 2004, p.106); ora, esse benefício se refere tão somente a garantia de segurança dos cidadãos, assim como para o próprio Estado, o que termina por garantir a paz dentro daquela sociedade. Retirados esses benefícios, assim como a própria liberdade dos indivíduos a discórdia vai então se instaurar. Entretanto, pensar uma política da barbárie em Spinoza representou de certa maneira um trabalho complexo, uma vez que, apesar de o autor abordar no TP e em uma de suas correspondências, questões referentes às guerras e aos seus soldados, o pensamento do nosso pensador vai representar sempre um pensamento que visa à expansão da essência do indivíduo, através da expansão do seu conatus e nunca um pensamento de destruição que é a ação que a barbárie mais empreende sempre que ela se instaura. Ainda assim, não nos foi impossível, uma vez que Spinoza nos mune de inúmeros argumentos que nos permitem fundamentar nossas indagações. Para tanto, ao tratarmos da política, foi necessário que nós tratássemos também dos afetos, uma vez que toda política se faz com homens e estes são costumeiramente afetados pelas paixões: “Se a mente foi, uma vez, simultaneamente afetada de dois afetos, sempre que, mais tarde, for afetada de um deles, será também afetada do outro.” (E3P14); segue-se disso que, eles não poderão se desvencilhar dos afetos nem mesmo quando passam a compreender as coisas racionalmente: “A mente não está submetida aos afetos que estão referidos às paixões senão enquanto dura o corpo.” (E5P34). E não nos foi possível falarmos dos afetos sem especificarmos sua atuação em nosso conhecimento: “Quando a mente imagina aquelas coisas que diminuem ou refreiam a potência de agir do corpo, ela se esforça, tanto quanto pode, por se recordar de coisas que excluam a existência das primeiras.” (E3P13), ou seja, os afetos atuam em nossa mente principalmente através da imaginação, mas se encontram ainda presentes na razão e na intuição91. 91 Tanto na razão quanto na intuição, ainda somos atingidos pelos afetos, uma vez que não nos é possível nos desvencilharmos deles, mas podemos compreendê-los mais adequadamente, principalmente através da intuição, em que conhecemos a Deus mais perfeitamente. 92 Segue-se disso que, ao afetarem nossa mente os afetos atuarão também sobre o nosso esforço de conservação, o nosso conatus: “A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas exteriores.” (E4P3). Em ambos os casos, os afetos exercerão sobre nós a sua influência e nos levarão a lados ou conhecimentos vários dependendo da sua intensidade ou de como nós os compreendemos. Vimos, também, que dois desses afetos, a saber: a esperança e o medo, possibilitarão a atuação da superstição em nosso imaginário. E todos eles facilitaram que o sentimento de barbárie viesse a ser difundido em nossa imaginação, por meio de idealizações como a ideia nazista de raça pura, ou a ideia de povo escolhido por Deus a qual os hebreus tanto se apegaram no decorrer de sua história: “Porque, depois de transferirem o seu direito para Deus, acreditaram que o seu reino era o reino de Deus e que só eles eram filhos de Deus [...]” (TTP, cap. XVII, § 214). Tratamos ainda, enquanto fundamentávamos a política de Spinoza, do direito natural responsável por nos permitir agir e existir de acordo com nossa própria natureza; é, portanto, esse direito natural pertencente a cada um dos indivíduos envolvidos, que na constituição de uma sociedade irá constituir o chamado direito civil, que por representar um direito que provêm de todos os outros direitos naturais, ele deverá considerar os anseios que são mais comuns entre os indivíduos para que seja possível governar com segurança. Afetos, conatus, conhecimento, direito natural; todos são, portanto, de algum modo responsáveis pela forma como nos comportaremos em toda e qualquer estrutura social ou política na qual os indivíduos se encontrem inseridos. Mas por qual motivo, estes termos são assim considerados? Primeiramente, porque todos se encontram interligados, isto é, um de alguma maneira acaba por influenciar ao outro que juntos terminam por influenciar a todos os indivíduos. Além disso, todos eles, vão inevitavelmente fazer dos homens, indivíduos mais ou menos virtuosos, que buscam ou não a sua virtude. Segue-se disso que, quanto mais buscamos compreender e refrear a maneira como os afetos nos atingem, mais agimos adequadamente e em vista da nossa conservação: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” (E3P6). Ora, demonstramos aqui que sempre que agimos tendo em vista a nossa sobrevivência, isto é, impulsionando este nosso esforço por permanecer existindo, estaremos exercendo a nossa principal virtude: “O esforço por se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude. Com efeito, não se pode conceber nenhum outro princípio que seja primeira relativamente a este e, sem ele, não se pode conceber virtude alguma.” (E4P22D). 93 As religiões, por diversas vezes, apresentam para os homens, como virtudes toda e qualquer atitude que nos afasta dos vícios que nos são comuns. Ou seja, o que elas fazem é enxergar os indivíduos pela ótica da utopia, ou ainda, elas veem os homens como se espera que eles sejam e não como eles realmente são: “Com efeito, concebem os homens não como são, mas como gostariam que eles fossem.” (TP I, § 1). Vimos, no entanto, que Spinoza, procurou fugir das teorias utópicas em seus escritos, uma vez que, sempre observou nos homens a presença dos vícios e dos afetos como situações que são propriedades que a eles pertencem:“Assim, não encarei os afetos humanos, como o amor, o ódio, a ira, a inveja, a glória, a misericórdia e as restantes comoções do ânimo, como vícios da natureza humana, mas como propriedades que lhe pertencem [...]” (TP I, § 4). Ao apresentar este argumento Spinoza buscava com isso demonstrar que o erro de muitos sacerdotes e mesmo de muitos políticos, foi sempre o de considerar os homens a partir da utopia que criam em suas mentes, governando o povo por meio desta, sem compreenderem que é muito mais vantajoso e seguro conhecer aquilo que é próprio dos indivíduos para assim se governar em consonância com os anseios da multidão, fugindo, desse modo, dos interesses particulares. Assim, fez-se necessáriocompreendermos inicialmente como ocorre o trabalho da superstição e da utopia no imaginário dos indivíduos comuns e dos governantes; passamos, em seguida, a compreender as formas de governo apontadas por Spinoza e qual delas garante uma governança que abrange os interesses da maioria evitando, com isso, situações como as apresentadas acima. Dessa maneira, dos três tipos de governo, a saber: “[...] o democrático, o aristocrático e o monárquico [...]” (TPIII, § 1), vimos que o democrático é o que mais se aproxima da natureza e que governa tendo a vista os anseios que são comuns a cada indivíduo; por isso foi o que mais chamou a atenção de Spinoza, muito embora tenha ficado inacabada a sua argumentação. A democracia, como foi anteriormente apresentado, é um governo no qual a violência é abrandada em virtude das leis, isso porque as forças armadas trabalham em defesa das leis comuns e não de si próprias; com isso, é possível permitir aos indivíduos a liberdade de pensar o que lhe convêm como lhe convêm. Ela vai, portanto, dirigir os exércitos para evitar assim que a barbárie, que representa uma violência política exercida por alguns Estados através das superstições. Em segundo lugar, ela vai evitar, ainda, o uso da violência contra seus cidadãos uma vez que empreende todo seu engenho em vista de conter os apetites dos homens, pois: 94 [...] segundo, pelo próprio fundamento e finalidade da democracia, que, como também já demonstramos, não é senão evitar absurdos do apetite e conter os homens, tanto quanto possível, dentro dos limites da razão, para que vivam em concórdia e paz. (TTP, cap. XVI, § 194). Além disso, exatamente por governar para a maioria e por buscar, com isso, a justiça através da garantia de que os anseios comuns a todos os indivíduos serão garantidos é que a liberdade de pensamento terá o seu espaço: “[...] mostramos que esta liberdade, não só pode ser concedida sem risco para a paz da república, a piedade e o direito do soberano, como inclusivamente o deve ser, se quiser preservar tudo isso.” (TTP, cap. XX, § 247). Ora, com isso, concluímos que a liberdade de pensamento é necessária a qualquer governo, uma vez que ela possibilita a preservação da paz e da concórdia dentro dele. Desse modo, podemos afirmar que a presente dissertação se propôs a pensar, assim como a compreender o percurso ético que se encontra envolvido em toda a questão política desenvolvida por Spinoza, uma vez que, como estamos a afirmar desde o início desta, não podemos pensar, nem muito menos argumentar quaisquer temas na filosofia spinozana sem que tenhamos que buscar fundamento, ou justificação em outros temas. E assim, conclusivamente, percebemos que não poderemos falar em liberdade de pensamento em um governo tomado pela injustiça e pela barbárie. Governos que administram por meio destas não se incomodarão em retirar de seus cidadãos a liberdade de pensamento. 95 REFERÊNCIAS ABREU, Luis Machado de. Spinoza – a utopia da razão. Lisboa: Veja, 1993. ALQUIÉ, Ferdinand. Le rationalisme de Spinoza. 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