13 “M eu neto, filho de meu filho ser Piero, nasceu no dia 15 de abril [de 1452], um sábado, às três horas da noite. Ele recebeu o nome de Leonardo. O padre Piero di Bartolomeo, de Vinci, o batizou [na presença de] Papino di Nanni Banti, Meo di Tonino, Piero di Malvolto, Nanni di Venzo, Arigho di Giovanni Tedescho, monna Lisa di Domenicho di Brettone, monna Antonia di Giuliano, monna Niccholosa del Barna, monna Maria, filha de Nanni di Venzo, monna Pippa di Previchone.” CAPÍTULO PRIMEIRO ERA UMA VEZ, EM VINCI... D emonstrando bastante desprezo por aqueles que não são “filhos do amor”, Leonardo escreve, para acompanhar este desenho (à esquerda): “O filho gerado pela enfadonha luxúria da mulher, e não pela vontade do marido, será medíocre, vil e de espírito grosseiro. O homem que consuma o coito com reticência e desgosto faz filhos irascíveis e covardes.” Aqui ao lado, um baixo-relevo romano proveniente da paróquia de Sant'Ansano, onde Leonardo passou a infância. 14 ERA UMA VEZ, EM VINCI... N esta prancha, Leonardo não desenha apenas a anatomia de um feto em posição “sentada”, ele abre o útero como um fruto mecânico, um “ovo cósmico”, representando o ventre e o cordão umbilical, que se enrola como uma serpentina. Mas ele acrescenta as camadas observadas em um útero bovino. A recente descoberta de um documento no qual Antonio da Vinci, avô de Leonardo, atesta os laços que unem a criança à sua família esclarece os equívocos e pretensos mistérios relativos à infância do artista. Sabemos a hora do nascimento de Leonardo: “três horas da noite”, ou seja, três horas após a ave-maria, às 22h30, de acordo com o sistema atual, do sábado, 15 de abril de 1452... Filho do amor O filho é ilegítimo, mas nada é feito para manter seu nascimento em segredo ou para dissimular suas origens. Evidentemente, ele não é considerado como “fruto do pecado”, mas como um filho “do amor”. O que Leonardo irá lembrar mais tarde, em um conjunto de desenhos anatômicos: A chancela notarial de ser Piero (à esquerda), pai de Leonardo, é simples e elegante. A CIDADE EM FESTA PARA LEONARDO 15 “E se o coito é consumado com grande amor e grande desejo, de um e do outro, então o filho terá grande inteligência e será cheio de espírito, vivacidade e graça.” Dois pais, cinco mães e dezoito irmãos No vilarejo de Vinci, os vizinhos comemoram o nascimento de Leonardo e participam da cerimônia do batismo. Extraordinariamente, a criança tem cinco madrinhas e cinco padrinhos, todos da cidade, dentre os quais está Arrigo di Giovanni Tedesco, o capataz muito benquisto dos Ridolfi, nobres florentinos grandes proprietários de casas e terras em Vinci. Desde os primeiros instantes, a criança foi recebida com alegria na residência paterna, em frente à Loggia del Comune, e de forma alguma foi deixada à margem da família. A mãe da criança se chama Caterina, mas seu nome de família permanece incerto. Será ela “di buon sangue”, como escreveu o primeiro biógrafo de Leonardo? Será ela filha de um lenhador, um certo Boscaiolo di Cerreto Guidi? Ela com certeza é de uma das famílias que freqüentam a casa do pai de Leonardo. Alguns meses depois, ela se casa, não com ser Pietro, mas com um de seus amigos, Antonio di Piero Buti del Vacca da Vinci (com o “d” minúsculo). Ele trabalha na olaria do convento de São Pedro Mártir, que mais tarde será reformado e administrado pelo pai de Leonardo e seu tio, Francesco. Antonio del Vacca carrega um sobrenome eloqüente: l’Accattabriga, o brigão. Caterina irá morar com ele em Campo Zeppi, na vizinha paróquia de San Pantaleo. Pouco mais de um ano após o nascimento de Leonardo, ela dá à luz O avô de Leonardo, Antonio, não seguiu a tradição da família Da Vinci (com “D” maiúsculo, que distingue o sobrenome de uma mera menção à cidade de origem). Ele não é notário, ainda que, muitas vezes, redija certidões e até mesmo contratos. Mas o documento abaixo, onde se lêem todas as informações sobre Leonardo, é escrito, em seu nome, por ser Piero, seu filho. 16 ERA UMA VEZ, EM VINCI... uma filha, Piera, e depois tem mais quatro filhos. O pai de Leonardo é ser Piero Fruosino di Antonio Da Vinci. Ele tem vinte e cinco anos e ao menos há quatro anos é notário, principalmente em Pisa, mas também em Florença. Alguns meses após o nascimento de Leonardo, ele se casa com uma jovem de dezesseis anos, Albiera degli Amadori – de uma rica família florentina –, que morre de parto em Florença, em 1464. No ano seguinte, ser Piero se casa de novo com Francesca di ser Giuliano Lanfredini, que morre em 1473, sem darlhe filhos. O primeiro irmão por parte de pai de Leonardo nasce em 1477. A mãe, Margherita di Francesco di Jacopo, então com dezoito anos, terá mais cinco filhos. Finalmente, Piero casa-se, em 1485, com Lucrezia di Guglielmo Cortigiani, que terá sete filhos. Com cinqüenta anos, Leonardo ainda a chamará de “querida e doce mãe”. Vinci: um nome, um emblema Os documentos dos arquivos mostram que Leonardo, filho ilegítimo, sempre foi chamado de “di ser Piero Da Vinci”, isto é, “filho de Piero”. É assim que, aos vinte anos, ele será registrado como pintor profissional no livro da Compagnia di San Luca. O Da Vinci não significa que ele é original daquela cidade: se tivesse nascido em Florença, também se chamaria “Lionardo di ser Piero Da Vinci”. A família Da Vinci é conhecida em Florença desde o século XIII. O bisavô de Leonardo, também chamado Piero (mas “di ser Guido”, ou seja, “filho de Guido”) Da Vinci, sobressaiu-se como notário, chanceler e embaixador da República Florentina. Vinci é uma cidade rural, um território que foi etrusco, depois romano, entre Montalbano e o vale do Arno, com o castelo medieval dos condes Guidi, a igreja de Santa Croce, um hospital e algumas casas. “Vinci é um castelo cuja origem remonta àquela UMA MISTURA DE NATUREZA E ARQUÉTIPOS 17 N a chancela medieval da cidade de Vinci figura um castelo (página da esquerda). Florença adquirira, em meados do século XIII, o castrum Vinci. Sua forma, funcional e simbólica, é a de uma amêndoa, como um navio cujos mastros seriam as torres do poder militar e religioso. Esta planta do século XVI mostra o conjunto da cidade, em que se pode identificar a muralha medieval, o córrego que aciona os moinhos, a estalagem (ostaria), os poços (pozo) e a Loggia del Comune (a prefeitura). Embaixo, em uma foto atual, o castelo, a torre e o campanário da igreja de Santa Croce. 18 ERA UMA VEZ, EM VINCI... desses gigantes que, com grande zelo e arrogância, se armaram contra o céu, que acabou por castigá-los causando-lhes grande vergonha.” Esta frase, escrita nos antigos códigos municipais, lembra as fábulas de Leonardo, pequenas alegorias morais sobre o orgulho castigado nas quais, com metáforas muitas vezes teatrais, ele mistura conhecimentos científicos à sabedoria popular, por exemplo, a evocação “meteorológica” da água do mar, que quer se elevar acima do céu, mas deve penetrar a terra, presa por um longo castigo. O nome de Vinci é originário dos vinchi, esses juncos que são trançados nos campos toscanos e que nascem à beira de um riacho, o Vincio. Esse nome, que evoca sua terra natal e sua família, irá se tornar o emblema de Leonardo: ele irá se identificar com os entrelaçados dos vinchi, representando-os em seus códex e em suas obras como A Dama do Arminho e A Gioconda. Erudição e cultura campesina Durante a infância de Leonardo, a experiência prática prevaleceu sobre a formação teórica. Ele vive em meio à família de um notário, mas em contato direto com a cultura campesina, em um mundo O s vinchi, juncos, entrelaçados, em seis gravuras de Leonardo, tornam-se elementos decorativos (acima) e o emblema de sua Achademia. ARABESCOS DA VIDA COTIDIANA 19 rural onde são produzidos vinho, óleo, farinha... Seu avô, Antonio, é proprietário de terras trabalhadas por ele próprio, seu tio preferido, Francesco, será dono de um moinho, e seu irmão, Giovanni, trabalhará como “estaleiro e açougueiro”. O futuro artista das engrenagens mecânicas observa a terra pressionada por seus pés e as “ínfimas partículas de orvalho” para tentar entender a natureza do universo. “La sinistra mano” “Vinci tinha o hábito de escrever com a mão esquerda, como os judeus...” Desde a mais tenra idade, Leonardo escreve espontaneamente espelhado: ele usa a mão esquerda, inicia as linhas à direita, como as civilizações mais antigas e como ainda o fazem os árabes. Muitas vezes, em seus cadernos, começa pela página da direita, depois a da esquerda. Ele não tem nenhuma intenção de dissimular nada, ele nada tem de um “escritor do diabo”, trata-se simplesmente de um defeito de percepção muito freqüente que não fora corrigido na infância – uma prova da liberdade dada à criança, mas também das limitações de sua instrução literária: ele continua sendo filho ilegítimo e não tem acesso à carreira das letras. Leonardo também treina a caligrafia “normal”, mas com menos facilidade e sobretudo em casos especiais, que exigem clareza, como em algumas cartas topográficas ou quando relata a morte do pai. D ono de uma intuição extraordinária, Leonardo desenha “máquinas” de quebrar pedras (página da esquerda, embaixo), enxadas e alambiques, moinhos de água, turbinas, arados “para andar em linha reta em distâncias longas” e “sem bois”, sistemas para moer grãos ou pigmentos para a pintura (no alto). Ele interrompe as anotações de geometria pelas seguintes palavras espelhadas (acima): “Etc. porque a sopa está esfriando.”