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UNIFAVIP/DeVry
CENTRO UNIVERSITÁRIO DO VALE DO IPOJUCA
COORDENAÇÃO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PSICOLOGIA
STÉFFANIE COSTA DE ALBUQUERQUE
MAR DE SENTIMENTOS:
Navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no pré-cirúrgico
CARUARU
2014
2
STÉFFANIE COSTA DE ALBUQUERQUE
MAR DE SENTIMENTOS:
Navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no pré-cirúrgico
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao
Centro Universitário do Vale do Ipojuca –
UNIFAVIP/DeVry, como requisito parcial
para a obtenção do título de Bacharel em
Psicologia.
Orientadora: Prof.ª Ma. Ana Maria Sá Barreto
Maciel
CARUARU
2014
3
Catalogação na fonte Biblioteca do Centro Universitário do Vale do Ipojuca, Caruaru/PE
A345m Albuquerque, Stéffanie Costa de.
Mar de sentimentos: navegando pela infinidade dos sentidos
e percepções expressos por pacientes no pré-cirúrgico / Stéffanie
Costa de Albuquerque. – Caruaru: UNIFAVIP | DeVry, 2014.
47 f.
Orientadora: Ana Maria Sá Barreto Maciel.
Trabalho de Conclusão de Curso (Psicologia) – Centro
Universitário do Vale do Ipojuca.
Inclui anexo e apêndice.
1. Pré-cirúrgico. 2.
Acolhimento. I. Título.
Humanização.
3.
Cuidado.
4.
CDU 159.9[14.2]
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário: Jadinilson Afonso CRB-4/1367
4
5
Dedico aos meus pais, que são minha
fortaleza e minha fonte de inspiração.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por toda força que me fez ter para continuar em busca do meu sonho mesmo nos
momentos mais difíceis.
A minha mãe, por ser meu maior exemplo de Mulher, por sua dedicação incansável, por seu
apoio indispensável e por seu amor incondicional sobre mim, enfim, por ser a responsável
pela minha formação humana.
Ao meu pai, por me ensinar a partir do seu modo de ser, sobre sensibilidade e por deixar em
mim o legado de gostar da boa música, fazendo dela um elemento essencial na minha vida.
Ao meu companheiro, por toda compreensão e ajuda, pelo respeito aos momentos de angústia
e fragilidade, por ter seguido ao meu lado nessa caminhada sem hesitar, fazendo das minhas
realizações seu motivo de alegria.
Aos meus primos Alessandra e Elias, por me ajudarem nos momentos decisivos da finalização
dos meus deveres enquanto estudante.
Aos demais familiares e amigos, pelas palavras de apoio e incentivo, pelo carinho e até pelo
respeito compreensivo sobre minhas ausências em determinados momentos.
As minhas amigas Nívea Richelly, Nívia Morganna e Márcia Cristina por tornarem minha
caminhada durante estes cinco anos mais leve e verdadeira, pelos risos compartilhados nos
momentos mais estressantes, pelos abraços aconchegantes e pelas parcerias indestrutíveis que
muitas vezes causaram desconforto naqueles que não compreendiam a força de uma
AMIZADE.
A minha orientadora Ana Barreto, por saber compartilhar seu conhecimento e por se tornar
referência na minha vida enquanto exemplo de profissional e ser humano, pela intensidade
com que se presentificou na minha existência.
A Andréa Lins, por ter sido luz em vários momentos durante a construção deste trabalho e por
sua alegria contagiante.
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A supervisora de estágio Walkyria Freire, por seu acolhimento, sua sensibilidade e seu
“sorriso largo” que sempre nos recepcionava calorosamente.
Aos colegas de estágio, em especial Ana Carolina, Jácia, Wendy, Laécio e Carlos, pelos
lindos momentos de vida que foram compartilhados, pelas angústias divididas e pelas
conquistas comemoradas.
E por fim, aos colegas da 1002, por estarem sempre juntos enfrentando os desafios de uma
vida acadêmica intensa e por saberem festejar cada momento de realização coletiva, por ser
um grupo de verdade com todos seus opostos, mas principalmente com muita alegria.
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Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem
sentido, se não tocarmos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser: colo que
acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que
contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que
promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz
com que ela seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira,
pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.
Cora Coralina
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RESUMO
Este trabalho propõe uma reflexão acerca do acolhimento, visando-o como uma atitude
mobilizadora, capaz de transformar a práxis nos hospitais, baseando-se na crença de que o
acolher já configura um ato de cuidado. Esta pesquisa procura compreender os sentidos
vivenciados e expressos por pacientes no momento pré-cirurgico em um hospital da rede
pública do interior de Pernambuco. Foi realizada uma pesquisa de campo qualitativa
descritiva exploratória, numa perspectiva fenomenológica existencial. Utilizando-se da
Analítica do Sentido de Dulce Critelli, que a partir de uma pergunta norteadora, desvelaramse, revelaram-se, testemunharam-se, veracizaram-se e autenticaram-se os sentidos dados pelas
colaboradoras na iminência cirúrgica. Foram entrevistadas três mulheres, que estavam
internas aguardando por procedimentos cirúrgicos. Através dos relatos, foi possível
compreender que, neste momento de espera, emoções diversas e ansiedades são vivenciadas,
dando a ele a condição de se caracterizar como um marco existencial na vida dos que o
experenciam. Também foi compreendido que no pré-operatório se manifesta e se evidencia a
condição de finitude do Ser-aí. A cirurgia revela a possibilidade da morte e incita sentimentos
e reflexões sobre o modo de Ser no mundo. Este momento inspira sensibilidade e cuidado por
parte dos profissionais de saúde, para que possam reconhecer as reações e sentimentos
expressos pelos pacientes, buscando o acolhimento como via de estabelecimento do cuidado
humanizado nos hospitais.
Palavras-chave: Pré-cirúrgico; Humanização; Cuidado; Acolhimento.
10
ABSTRACT
This inherent work reflects on the host, aimed as a mobilizing attitude, able to transform
práxies in hospitals, based on the belief that the host has already set up a care act. This
research seeks to understand the experienced felt and expressed by patients before surgical
time in a public hospital in the interior of Pernambuco. A descriptive exploratory qualitative
field research was carried out in an existential phenomenological perspective. Using
Analytical Dulce Critelli direction, that from a guiding question, if unveiled-have proved
witnessed, if veracizaram-and authenticated-way data by collaborating in surgical imminent.
Three women, who were waiting for internal surgical procedures were interviewed. Through
the reports, it was possible to understand that at this time of waiting, many emotions and
anxieties are experienced, giving him the condition of being characterized as an existential
milestone in the life of the experenciam. It was also understood that preoperative manifests
and reveals the finiteness condition of Being-there. Surgery reveals the possibility of death
and encourages feelings and reflections on Being so in the world. This moment inspires
sensitivity and care by health professionals so that they can recognize the reactions and
feelings expressed by patients seeking care as establishing means of humanized care in
hospitals.
Keywords: Pre-surgical; Humanization; Watch out; Reception.
11
SUMÁRIO
1
Navegante ao mar: O des-velar de uma dor como ponto de partida ...................................... 10
2
Humanização: Elemento norte-a-dor da prática em saúde ..................................................... 14
2.1
Do cuidar ao acolher: O caminho para o processo de humanização no Hospital ..................... 19
3
A dor da espera: O silêncio revela(dor) dos pacientes ............................................................. 23
4
A rota da navegação .................................................................................................................... 28
4.1
O experienciar do tornar-se mar ............................................................................................... 30
4.1.1
Pacífico ..................................................................................................................................... 31
4.1.2
Índico ........................................................................................................................................ 35
4.1.3
Atlântico ................................................................................................................................... 40
5
Um mar de possibilidades ........................................................................................................... 46
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 48
APÊNDICE .......................................................................................................................................... 51
ANEXO ................................................................................................................................................ 54
10
1
Navegante ao mar: O des-velar de uma dor como ponto de partida
A ideia para realizar o presente trabalho surgiu a partir de experiências vivenciadas por
mim em um Hospital da rede particular, do Interior de Pernambuco, quando fui passar por
procedimentos cirúrgicos e deparei-me com formas de atendimento que não expressaram
maneiras de acolher o meu sofrimento, por parte da equipe de saúde.
Minha primeira experiência ocorreu no ano de 2007, quando, aos 15 anos, fui
internada para realizar minha primeira cirurgia, quem me atendeu foi um médico-cirurgião
experiente, conhecido por sua competência, porém, extremamente técnico, voltado
exclusivamente para os procedimentos necessários para a assistência médica, e indiferente ao
acolhimento para com seus pacientes, atitude repercutida também pelos demais membros da
equipe.
Eu esperava e as horas pareciam não passar, enquanto aguardava minha entrada no
bloco cirúrgico vivenciei momentos de tensão, pensava que poderia morrer durante a cirurgia
e a ansiedade tornou-se parte de mim. Quando entrei no bloco cirúrgico, novamente o medo
da morte me atormentava, a equipe conversava como se eu não estivesse ali, até o momento
em que me disseram que iria tomar a anestesia, e, então, acordei no final da cirurgia, quando
ainda faziam o curativo. Despertei lentamente e fui levada para a sala de recuperação, onde
senti uma grande alegria por estar viva.
Pensar a vida em sua finitude às vezes é assustador e, após essa experiência de vida,
alguns questionamentos surgiram em minha mente: como se sente um paciente que não é
acolhido pela equipe que o acompanha? De que forma a falta de atenção dos cuidadores pode
influenciar nos sentimentos dos pacientes, que enfrentam esse momento de sofrimento em sua
existência? E, como a relação de cuidado entre equipe-paciente pode intervir no
enfrentamento dessa situação?
Alguns anos depois, em 2012, novamente fui submetida a outro procedimento
cirúrgico, rapidamente procurei um médico-cirurgião que tivesse alguma referência, embora a
lembrança da primeira experiência não me deixasse confortável com a ideia. Para minha
surpresa, no dia da consulta, o médico foi muito receptivo e atencioso, o que me fez sentir
mais segurança, porque percebi o comprometimento dele comigo naquele momento, me senti
acolhida e respeitada em meu sofrimento.
No dia em que fui internada, recebi a visita da equipe que iria me acompanhar durante
o período no qual estivesse hospitalizada: enfermeiras, instrumentador e o próprio médico me
explicaram o que iria acontecer durante a cirurgia, e, o mais surpreendente para mim,
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procuraram saber como eu estava me sentindo e falaram comigo sobre esses sentimentos, o
que me deixou tranquila e até confortável naquele ambiente hospitalar. As explicações dos
procedimentos em si não fizeram muita diferença diante da minha expectativa pela cirurgia,
porém, a intenção que eles tiveram em me acolher e me tranquilizar surtiram efeitos e me
senti segura nas “mãos” daquela equipe de profissionais.
Essas experiências nunca saíram de minha mente e, com o decorrer da minha
graduação em psicologia, deparei-me com os sentimentos vividos a cada vez que ouvia falar
na importância do acolhimento, do nosso compromisso de cuidar do outro e da necessidade de
um atendimento humanizado nos hospitais.
Minhas experiências durante o curso de psicologia sempre me direcionaram na busca
de ser alguém melhor e isto diz de uma postura que pretendo assumir diante da vida, pois é
assim que compreendo a perspectiva fenomenológica, a qual escolhi para guiar minha prática
profissional. Mais do que uma teoria, ela é uma filosofia de vida e, a partir do meu
entendimento sobre esse modo de ser-no-mundo, questionei-me: como profissionais, que se
propuseram a cuidar de vidas, tornam-se tão negligentes no cuidado para com elas? A
dificuldade em acolher diz de uma falha do Sistema de Saúde ou da dificuldade de relacionarse com o outro? O que provoca o distanciamento afetivo na relação profissional-paciente?
Dessa forma, movida pelo desejo de fazer parte de um modo de atendimento acolhedor
nos hospitais, motivei-me a desenvolver esta pesquisa, acreditando que a maneira como o
profissional se dispõe a estar junto com o paciente pode intervir positivamente na sua forma
de enfrentar e superar esse momento de sofrimento. Então, parti da seguinte questão: de que
modo os pacientes atribuem sentidos ao momento pré-cirurgico, a partir de suas relações com
a equipe de saúde?
No mar do conhecimento despontei em busca de novas possibilidades, tendo como
bússola o meu amor pela psicologia e a forma como sinto o meu compromisso de psicóloga e
de pessoa, pois me sinto responsável por modificar aquilo que for possível e permitido, tendo
em mente que este é apenas o início de um longo caminho, que se modifica, se reinventa e
nunca termina. Lancei-me nessa busca com esta certeza, consciente de que nem sempre será
fácil chegar ao ponto determinado, mas este será sempre o meu objetivo.
Através do curso de psicologia, pude compreender melhor aqueles sentimentos tão
divergentes que vivenciei, correlacionando-os com a forma de atendimento prestada pelas
equipes de saúde e aprimorando a ideia de que o acolhimento é um caminho para o processo
de humanização dos serviços de saúde, especialmente nos hospitais, tendo em vista que,
atualmente, há a falta de condições dignas de um atendimento básico nos serviços de saúde, o
12
que evidencia as condições precárias de trabalho, que também fragilizam os cuidadores e
consequentemente, seus modos de estabelecer relações com os pacientes, familiares e colegas
de trabalho, pois, como já afirmou OLIVEIRA e MACEDO et al Knobel (2008), a
humanização não está apenas baseada na “boa relação”, mas no fato de melhorar as condições
de trabalho para o profissional da saúde, abrangendo não apenas infraestrutura, mas também a
cultura organizacional.
Um fato constatado é que, a maior parte dos pacientes que precisam passar por
cirurgias apresentam formas de enfrentamento à situação que vão emergir de acordo com a
experiência subjetiva de cada um, compreendendo-se que cada momento de existência gera
sentidos diferentes, que podem ajudar o paciente a se reorganizar diante da doença ou da
forma de tratamento proposto.
A iminência cirúrgica dá início a um processo adaptativo, cujo impacto emocional será
real e singular a cada paciente, podendo levar a reavaliações de seus valores, do seu modo de
vida, de suas relações e podendo, portanto, gerar verdadeiras crises existenciais. O cuidado
com os pacientes no pré-cirurgico é essencial. Tendo em vista que este momento é envolvido
por uma carga emocional muito forte, a afetação daqueles que estão diretamente ligados a este
momento é inevitável e, por isso, a escuta compreensiva neste momento faz grande diferença.
Há uma série de aspectos que podem influenciar a cirurgia e o pós-operatório dos
pacientes cirúrgicos, no que diz respeito às reações psicológicas. Esses aspectos
podem ser decisivos para a evolução, a recuperação do paciente e sua futura
reabilitação. (ISMAEL; OLIVEIRA et al Knobel, 2008, p. 85)
Diante destas constatações e da minha vontade de atuar junto a outros profissionais de
saúde, surgiu o questionamento: como o cuidado humanizado pode contribuir para o
fortalecimento emocional dos pacientes no momento pré-cirúrgico?
Assim, me propus a buscar os sentidos dados a este momento, pelos pacientes,
compreendendo os sentimentos vividos através da forma de assistência prestada pelos
profissionais de saúde no âmbito hospitalar, compreendendo também o quanto o acolhimento
e a escuta diferenciada podem intervir positivamente no processo de adaptação emocional de
pacientes que aguardam cirurgias.
Essa investigação tornou-se relevante para mim, por acreditar que o hospital é um
lugar onde luta-se pela vida e, por isso, o acolhimento é um fator de extrema importância na
prática dos profissionais, porque esta deve ser baseada em valores humanos, técnicos e
terapêuticos, pois os profissionais da área de saúde se propõem a cuidar da existência-
13
sofrimento e, por isso, precisam manter, permanentemente, uma postura ética no cuidar da
vida. Ao lançar-me nesta descoberta enriqueci minha prática profissional, no sentido de firmar
um compromisso ético e de responsabilidade com aqueles que me permitirem estar junto ao
seu sofrimento, sendo ele de que ordem for.
Ser humano é ser humano na vida, dentro e fora de um hospital, de um centro de
saúde, ou de um consultório. Não há como dissociar. É um exercício contínuo. O
encontro, a potência do encontro, é a vivencia e a riqueza desse exercício, que nos
toca humanamente quando se está em um encontro genuinamente humanizado com
o outro”. (OLIVEIRA; MACEDO et al Knobel, 2008, p.180).
No contexto científico, esta pesquisa é relevante porque pode proporcionar reflexões
para as equipes de saúde e políticas públicas, contribuindo para a reformulação da prática de
assistência técnica nos hospitais e demais serviços de saúde, podendo contribuir também para
o aumento de produção literária numa área que ainda possui poucas referências sobre o tema.
Essas informações não contribuem apenas com a ciência psicológica, mas com todas as
ciências afins que correlacionam-se com o âmbito da saúde.
A importância da presença de um profissional de psicologia junto a profissionais de
outras áreas da saúde em ambiente hospitalar também é justificada com esta pesquisa , tendose em vista que o psicólogo poderá direcionar e alertar o grupo, no sentido de qualificar a
escuta, construindo uma equipe humanizada e centrada nas necessidades dos pacientes. A
relevância social dessa investigação revela-se pelo fato desta assistência acolhedora
possibilitar que o paciente se adapte e aceite mais facilmente sua condição durante o período
pré-cirúrgico e, consequentemente, no pós-operatório, facilitando sua relação com os
profissionais, com os familiares e com suas novas possibilidades, promovendo uma reflexão e
ressignificação de sua realidade, além de colaborar com a elevação dos níveis de assistência
qualificada nos serviços de saúde, tendo-se em vista que de acordo com a Política Nacional de
Humanização (PNH), o fator humanização é umas das estratégias para se alcançar a
qualificação da atenção e da gestão em saúde no SUS, transformando-a numa diretriz política
transversal, que deverá se traduzir em ações nas diversas práticas de saúde.
Nesta pesquisa, é relatada a experiência de pacientes que aguardavam por cirurgias e a
compreensão dos sentidos revelados por estas pacientes no enfrentamento desta situação que
exige complexa adaptação emocional. Com estas informações torna-se possível lançar uma
reflexão acerca do modo de se pensar e prestar assistência pelos profissionais de saúde nos
serviços públicos e privados.
14
2
Humanização: Elemento norte-a-dor da prática em saúde
O presente capítulo se preocupa em discorrer sobre o conceito de humanização
inserido no ambiente hospitalar, para tal feito tornou-se necessário conhecer a etimologia da
palavra, bem como conhecer de que forma o cuidado humanizado é inserido no Sistema de
Saúde no Brasil, o que foi possível através do conhecimento sobre a Política Nacional de
Saúde (PNH) e através das construções bibliográficas do autor Elias Knobel.
Também apresenta informações sobre a historicidade do Hospital, destacando pontos
que podem ser considerados essenciais para justificar a atual forma de assistência oferecida
nos hospitais, além de ressaltar a importância do cuidado com o outro como possível
alternativa para a inserção da humanização no meio hospitalar, utilizando Campos (1995) e
Camon (2006) para embasar tal concepção.
Ao pensar nos serviços de Saúde não é difícil remeter-se às condições precárias e
desumanas, as quais se tornaram as principais características dos serviços prestados no Brasil,
especialmente no ambiente hospitalar. É importante destacar que o termo desumanização aqui
está sendo expresso para enfatizar a forma inapropriada com a qual estão se dando os
atendimentos nos hospitais, estes destacam-se pela inexistência de acolhimento e cuidado que
possibilite a escuta e a compreensão da dor dos usuários. A partir de tal cenário, torna-se
possível perceber o quanto é necessária e urgente a busca pela efetivação do cuidado
humanizado nesta área.
Etimologicamente a palavra humanização diz do ato ou efeito de humanizar (se), dar a
condição humana a, ou seja, fornecer condições mínimas de respeito à dignidade das pessoas
e a garantia de seu direito fundamental à vida e à saúde1.
A humanização dos serviços é algo tão importante e necessário que tornou-se uma das
prioridades de inovação do Sistema Único de Saúde, através da Política Nacional de
Humanização (PNH), implementada no início dos anos 2000, que visa efetivar os princípios
do SUS, qualificando a saúde pública no Brasil, no cotidiano das práticas de atenção e gestão,
incentivando as trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários.
De acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, a PNH tem a intenção de operar
transversalmente em toda rede do SUS, portanto, essa política exige mais do que nunca, que a
“atitude humanizadora” seja o eixo através do qual serão articuladas as demais políticas,
1
HUMANIZAÇÃO. Disponível em: <http://www.significados.com.br/humanização/humanizasus>. Acesso em:
18 abr. 2014.
15
dando-se destaque aos aspectos subjetivos presentes em toda prática humana nos serviços de
saúde.2
Algumas ações, como debates sobre os modelos de gestão e execução do controle
social, bem como a formação dos profissionais, são medidas que apresentam-se necessárias e
urgentes para que se possa garantir o direito à saúde digna para todos, a fim de se consolidar
um compromisso ético dos profissionais de saúde em defesa da vida.
Trata-se, sobretudo, de investir na produção de um novo tipo de interação entre os
sujeitos que constituem os sistemas de saúde e deles usufruem, acolhendo tais atores
e fomentando seu protagonismo. (BRASIL, 2004, p.08)
Apesar das iniciativas governamentais, o fato é que a inserção do cuidado humanizado
nos serviços de Saúde ainda é algo distante da realidade, embora esse devesse ser uma
premissa básica desses serviços. De acordo com Campos (1995), isso acontece porque o
modelo biomédico, fruto do pensamento positivista, que trata o paciente sem considerar a
totalidade do corpo e o contexto social, ainda é predominante na assistência hospitalar.
Devido à influência desse modelo, pode-se perceber uma procura cada vez maior pela
especialização. Os profissionais ficam mais restritos à parte ou função do corpo humano que
apresenta problemas e essa fragmentação origina uma forma impessoal de atenção ao usuário
e faz com que o profissional desconsidere os demais aspectos implicados no processo de
adoecimento.
Observa-se que a maioria dos profissionais das áreas da saúde é formada para
manter o foco na patologia, recebendo uma adequada carga de conhecimentos
técnicos. Contudo, esses conhecimentos tendem a ser veiculados sem o seu
necessário complemento e amparo, que é o desenvolvimento da habilidade
interacional e a sensibilidade para ver o ser humano na sua integridade e
complexidade. (BRAGANÇA, 2006, p.38)
O conceito de humanização leva a crer que devemos esperar dos seres humanos aquilo
que eles têm de melhor, em qualquer contexto, mas principalmente no hospitalar, em que a
fragilidade emocional e a vulnerabilidade são fatores explicitados em cada atitude, em cada
gesto, em cada olhar, em cada grito ou silêncio.
Através da etimologia da palavra hospital, percebe-se uma grande ironia no que se
refere ao seu significado com relação à sua atual dinâmica. Segundo Lima Gonçalves (1983) e
Borba (1985) apud Campos (1995), vem do latim “hospes”, que significa hóspede, ou seja, se
2
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Disponível em:
<http://www.portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretaria/sas/
16
a palavra em si exercesse influência sobre o funcionamento da instituição, já seria um grande
avanço, pois quando somos hóspedes em algum lugar ou hospedamos alguém, queremos
receber ou oferecer um mínimo de conforto, acolhimento, segurança e bem-estar.
Apesar da denotação do Hospital sugerir que ele seja um lugar acolhedor, sabe-se que
é comum encontrar instituições que não oferecem tal acolhimento e, por isso, torna-se tão
importante a mobilização pela execução do cuidado humanizado nesse contexto, embora não
seja algo simples e imediato.
Que o processo de humanização é algo complexo e lento, isso é fato, e se deve a
fatores históricos que culminaram no surgimento do Hospital. Ainda segundo os autores
supracitados, pode-se afirmar que, antigamente, o Hospital exercia uma função de depósito,
no qual se acumulavam pessoas doentes e sem recursos. Historicamente, o Hospital surgiu no
ano 360 d.C. e recebeu influência direta da religião cristã.
No século XVIII, os doentes eram acolhidos nos hospitais com o único objetivo de
excluir o indivíduo da sociedade, com o intuito de não disseminar a doença, ou para
esperar a morte, procurando para este fim instituições como as Irmandades Santas
Casas de Misericórdia que eram dirigidas por religiosos inspirados pela parábola do
Bom Samaritano; estes acolhiam os doentes por amor a Deus, dedicavam-se ao
cuidado e doação ao próximo (RAVAZZI; DIAS; OLIVEIRA; BARALHAS, 2009,
p.3-4).
Com os avanços da medicina e da tecnologia, os hospitais foram evoluindo e se
modernizando, porém, sua função foi se estreitando e tomando características meramente
curativas, o que pode ser uma explicação para o modelo de atendimento tecnicista vigente nos
hospitais, como afirma Nogueira-Martins e Macedo apud Knobel (2008, p.183):
[...] o trabalho na área da saúde vem enfrentando há alguns anos, uma crise de
legitimação ante o desenvolvimento da tecnologia e do saber científico, por estar
desconsiderando valores humanistas fundamentais para a atenção à saúde.
Felizmente, a preocupação com o estabelecimento do cuidado humanizado nos
hospitais vem ganhando espaço, embora o pensamento cartesiano ainda seja muito forte e se
perceba, frequentemente, profissionais tratando de doenças sem levar em conta o ser humano
e seu contexto de vida, tratando-o como objeto. Mas, esse tipo de atitude faz manter a
esperança necessária para se continuar na busca das transformações, por menores que elas
sejam.
Acreditar nessa busca é legitimá-la, porque ela não depende da concretude das
instituições, mas sim da transformação subjetiva de cada ser humano envolvido nesse
17
processo. Então, a concretização deste conceito navega no mar infinito das possibilidades
humanas e pode ancorar a cada momento, inclusive agora, no porto da transformação, que se
chama consciência e que habita em cada ser.
Embora estejamos nos referindo a um campo de atuação profissional, no qual o
número de variáveis para um atendimento humanizado é grande, existe uma
dimensão na qual a humanização é mais do que uma forma de se atuar
profissionalmente, é uma atitude diante da vida. (OLIVEIRA; MACEDO et al
KNOBEL, 2008, p.180)
O processo de humanização possui um caráter complexo, amplo e demorado porque,
para que ele possa ser efetivado, é necessário haver mudanças no contexto geral das
organizações, abrangendo-se as circunstâncias éticas, educacionais, psíquicas e sociais. O que
significa que cada profissional precisará passar por um processo singular de humanização,
como aponta Barros e Cypriano et al Knobel (2008), e várias instâncias deverão estar
envolvidas nessa transformação, inclusive os formuladores de políticas públicas, entidades
formadoras e conselhos profissionais, ou seja, esse processo envolve mudanças de
comportamento e por isso, seu conceito precisa ser compreendido por todos.
Não há humanização sem projeto coletivo em que toda a organização se reconheça
e, nele, se (re)valorize. É seu objetivo fundamental resgatar as relações entre
profissional de saúde e usuário, dos profissionais entre si, da instituição com os
profissionais e do hospital com a comunidade. (BARROS; CYPRIANO et al
KNOBEL, 2008, p.201)
Com a internalização do conceito de humanização, feito por cada profissional da área
de Saúde, se tornará mais fácil o estabelecimento da relação entre equipe-paciente, o que será
de extrema importância para o reestabelecimento emocional dos pacientes diante das
desestabilizações causadas pela hospitalização e pela espera da cirurgia. Essa relação poderá
ter efeitos terapeutizantes.
Camon (2006) afirma que, com o vínculo estabelecido entre equipe e pacientes, existe
a possibilidade concreta de se desenvolver os sentimentos de confiança e autorização. Tais
sentimentos são imprescindíveis para o bom prognóstico emocional da relação do sujeito com
a cirurgia e, consequentemente, com o processo de pós-operatório e reabilitação.
O autor também aponta que a questão da autorização e da confiança remete a um
aspecto muito importante entre a equipe de saúde e os pacientes, que denomina-se “entrega
participativa”, este fator facilita a relação porque o paciente sente-se como parte fundamental
na realização do tratamento e isto irá influenciar na sua forma de lidar com a situação e,
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posteriormente, com sua recuperação. O fato é que a estruturação do vínculo entre pacientes e
equipe é capaz de otimizar as respostas ao tratamento em todos os aspectos, reduzindo
também o tempo de reabilitação e reintegração do paciente.
É sabido através de longa experiência, que tratar os pacientes como indivíduos e
aumentar sua percepção de si mesmos como indivíduos adultos mobiliza sua
capacidade de autocura, possibilitando que colaborem com o tratamento médico.
(LE SHAN, 1992 apud BRAGANÇA, 2006, p.48)
A partir da compreensão de Viegas (2010) acerca da prática em saúde, constata-se que
para a efetiva vinculação entre paciente-equipe acontecer é preciso haver cuidado na práxis
dos profissionais, essa sendo compreendida como ação transformadora é capaz de modificar o
contexto onde está inserida, pois faz uso do conhecimento de forma sensível.
A conservação de valores como o cuidado e a sensibilidade diz do modo como o ser se
relaciona consigo e com os outros e irá permear as demais relações dele no mundo. É
importante compreender como se dá essas relações porque, como foi citado anteriormente, a
humanização depende de nós e deve estar presente em todos os lugares.
Conta uma fábula antiga que a essência do humano reside no cuidado e uma
divindade cuida de cada um de nós. De mais a mais, todos somos filhos e filhas do
infinito cuidado que nossas mães tiveram ao nos gerar e ao nos acolher neste mundo.
E será o simples e essencial cuidado que ainda vai salvar a vida, proteger a Terra e
nos fazer singelamente humanos. (BOFF, 2012, p.15)
Torna-se evidente a situação crítica pela qual está passando o Sistema de Saúde no
país, e este fato nos convida a participar ativamente da mudança deste cenário. A
humanização deve estar presente nos mais diversos contextos e deve ser de responsabilidade
de todos os profissionais que formam os serviços, pois visa a centralidade dos elementos
presentes na relação assistencial, sendo estes subjetivos e intersubjetivos, sem que este fato
implique a segundo plano as questões orgânicas, mas, ao contrário, tenha como objetivo a
integralidade da atenção.
Após a compreensão acerca do conceito de humanização no hospital é possível
perceber que o ato de cuidar e a atitude sensibilizadora são características básicas do
acolhimento, que aqui deve ser entendido como ação fundamental na prática dos profissionais
de saúde, então, convido-os a seguir viagem rumo as reflexões sobre tais conceitos, para que
possamos compreender a importância destes elementos na efetivação do processo de
humanização hospitalar.
19
2.1 Do cuidar ao acolher: O caminho para o processo de humanização no Hospital
Muitas vezes a cura, a prevenção, dependentes de tantos fatores, não estarão em
nossas mãos, porém, o acolhimento e o cuidado – estes sim, sempre possíveis
mesmo que não possam curar a patologia, poderão, antes de tudo, “curar” a
desumanidade, uma doença que está nos matando.
Humberto Mariotti
Neste tópico, serão suscitadas possibilidades de reflexões acerca de valores humanos
fundamentais para gerar o sentido de um acolhimento humanizado no ambiente hospitalar.
Para tanto, foram utilizados conceitos de cuidado referidos por Leonardo Boff (2012),
Drauzio Viegas (2010), entre outros, fazendo uma analogia com os princípios éticos
norteadores de uma prática de cuidar humanizado.
Ao termo humanização atrelam-se os conceitos de cuidado e sensibilidade e estes são
importantes norteadores das ações humanas. Boff (2012) revela que o cuidado é algo inato e
intrínseco à existência humana e perpassa pela simples perspectiva do cuidar do corpo até o
cuidado com o planeta Terra. O mesmo autor, em outra obra sua, cita a Fábula do Cuidado
para facilitar a compreensão da relação entre o existir humano e o cuidado, como
demonstrado adiante.
Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da
morte dessa criatura. Você, terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de
volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem,
por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma
vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: essa criatura
será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil. (BOFF, 1999,
p. 67)
Esta fábula atenta para o fato que necessitamos o tempo todo do cuidado, enquanto
condição de existir no mundo. O cuidado é parte integrante do viver humano, e das suas
maneiras de se apresentar e cuidar de tudo que estar em sua volta. Envolve, neste contexto,
uma prática de eticidade. “Mais que uma técnica o cuidado é uma arte, um paradigma novo de
relacionamento para com a natureza, para com a Terra e para com os seres humanos.” (BOFF,
2012, p.21).
Ainda de acordo com o autor acima citado, um dos sentidos do cuidado remete à
necessidade do ser humano predispor da vontade de cuidar e ser cuidado. Segundo ele, este
também pode ser assumido de forma consciente, interiorizado como valor que reflete nas
atitudes humanas ao longo da vida, e seria chamado de cuidado ético-consciente. O cuidado
20
aqui será pensado como preocupação, inquietação que mobiliza as ações humanas efetivando
e tornando indissociáveis a relação entre o nível pessoal e social.
O cuidado deve ser o motor da ação, do agir, tendo como fim a dignidade humana
num mundo global que, como tal, deve constituir uma ética. Ética não no sentido de
elaboração de um agir, mas enquanto um projeto de uma ontologia, onde cuidar é
um cuidar dos outros, porque existir é, desde logo, existir com os outros. (MACIEL,
2012, p.49)
Junto ao conceito de cuidado caminha a sensibilidade, esta, quando bem empregada,
possibilita a percepção de sentimentos e expressões de ordem física que transmitem as
emoções vividas pelas pessoas, de forma geral. A sensibilidade é expressa quando alguém se
dispõe afetivamente para com outro alguém, de acordo com o autor Drauzio Viegas.
Sensibilidade é perceber que o outro está procurando um contato e você saber
responder com a atenção, a escuta, um olhar, um gesto, uma palavra, uma atitude
que seja delicada, com respeito, solidariedade. É o interesse real pelo outro,
procurando dar o que você tem de melhor dentro de si. (VIEGAS, Drauzio, 2010,
p.20)
É esta sensibilidade que muitas vezes torna-se ausente na prática dos profissionais de
saúde, e é a partir dela que se pode pensar em uma nova possibilidade de assistência em
saúde, porém, não se deve negar, que assumir uma atitude cuidadosa não é tão simples,
especialmente quando se precisa enfrentar cotidianamente situações de sofrimento, estresse,
cansaço, questões pessoais e organizacionais de forma geral. Os profissionais estão
rotineiramente submetidos a estes fatos e, a partir disso, utilizam-se da negligência, do
descaso e do não afetamento para se “proteger” de sentimentos mobiliza-dores de si mesmo
no encontro com o outro que convive.
É importante falar sobre os conceitos de cuidado e sensibilidade porque estes
remetem a atitudes acolhedoras características do processo de humanização. Ambos
apresentam-se como vias de acesso ao outro e, por isso, possibilitam uma maior compreensão
da responsabilidade dos profissionais de saúde enquanto seres humanos, no auxílio aos
pacientes. “A sensibilidade precisa ser cultivada como se cultiva uma flor, uma amizade e o
amor.” (VIEGAS, 2010, p.14).
Para justificar a abordagem deste tema, como possibilidade de motivar novos modos
de assistência hospitalar, a concepção do filósofo Martin Heidegger sobre o cuidado fornece
subsídios para tal reflexão, segundo ele este torna-se essencial na constituição do Ser-humano
21
e configura seu modo de estar-no-mundo, como explica Boff (2012), ou seja, o cuidado é para
o Ser a base ontológica da existência e dá sentido a toda e qualquer ação por ele realizada.
Nas reflexões filosóficas de Heidegger o cuidado pode ser classificado como
“autêntico”, quando expressa o cuidado de si de forma singular e positiva, ou, como
“inautêntico” que caracteriza-se pelo modo de cuidado consigo e com o outro de forma
padronizada e condicionada, livre de afetação. É este tipo de cuidado que na maioria das
vezes tem sido assumido pelos profissionais de saúde em suas práticas, a impessoalidade
domina e elimina qualquer possibilidade de constituição de vínculos afetivos entre
equipe/pacientes.
Resumindo, podemos concluir: o cuidado é a precondição necessária para que algo
possa existir e subsistir; é a disposição antecipada de toda prática e de toda a ação.
Sem ele as coisas não irrompem para a existência, como a lógica do universo o
comprova; a prática deixa de ser construtiva e expressão da liberdade para ser
apenas atos inconsistentes e atabalhoados. O cuidado é uma forma de amor, e o
amor é uma concretização do cuidado essencial. (BOFF, 2012, p.64)
É preciso enfatizar a necessidade da compreensão sobre o cuidado porque será a partir
dele que poderá se estabelecer uma atitude acolhedora. Neste trabalho o acolhimento é visado
como meio de promoção de saúde no hospital e dependerá principalmente das relações
estabelecidas entre profissionais e pacientes.
Como afirma Bragança (2006), ao profissional de saúde caberá a disponibilidade e o
interesse de tentar alcançar o entendimento da necessidade do paciente, para que se possa
ressaltar a condição de sujeito que geralmente é esquecida devido à condição do adoecimento.
Para que o profissional consiga, de fato, acolher ele precisará estar “presente”, vivenciando as
relações entre as pessoas e o ambiente, compreendendo e interagindo com os fenômenos.
Acredita-se que o apoio ao desenvolvimento pessoal e social através da escuta, do
diálogo, da facilitação do acesso à informação, do acolhimento e da intensificação
das habilidade vitais faz parte da promoção de saúde. (BRAGANÇA, 2006. p.49).
Ainda de acordo com a autora, sabe-se que simples ações, como fornecer informações
a respeito do tratamento ou procedimento que o paciente vai fazer e o favorecimento da escuta
“qualificada”, aqui entendida como ato de ouvir com atenção e zelo que fornece espaço para a
ressignificação da experiência do sofrimento ante a cirurgia, já caracterizam atitudes de
acolhimento por parte da equipe e poderiam beneficiar os pacientes porque já são
compreendidas como medidas de promoção de saúde.
22
Entretanto, assim como a humanização, o acolhimento não se dá por decreto e, por
esse motivo, deveria sempre fazer parte dos discursos e reflexões coletivas sobre a dinâmica
do trabalho em saúde. Por estar direcionado às relações interpessoais, mais uma vez se
justifica a importância de se ter profissionais de psicologia inseridos nos hospitais, tendo em
vista que estes podem servir como facilitadores do processo de ressignificação das pessoas
envolvidas neste contexto, favorecendo a transformação cotidiana do trabalho em hospitais.
(...) É concretamente um rosto com olhar e fisionomia. O rosto do outro torna
impossível a indiferença. O rosto do outro me obriga a tomar posição porque fala,
pro-voca, e-voca e com-voca. (...) O rosto e o olhar lançam sempre uma pro-posta
em busca de uma res-posta. (...) Aqui encontramos o lugar do nascimento da ética
que reside nesta relação de res-ponsa-bilidade diante do rosto do outro (...). É na
acolhida ou na rejeição, na aliança ou na hostilidade para com o rosto do outro que
se estabelecem as relações mais primárias do ser humano e se decidem as tendências
de dominação ou de cooperação. (BOFF, 2002 apud SILVEIRA e VIEIRA, 2005,
p.94)
Então, aqui se pode compreender o maior objetivo deste trabalho, que é apontar o
acolhimento como uma atitude mobilizadora, capaz de transformar a práxis nos hospitais,
compartilhando da crença que o acolher já configura um ato de cuidado. A seguir poderá se
compreender de forma mais aprofundada sobre o dinamismo emocional dos pacientes no
momento pré-cirúrgico atrelado aos benefícios da atenção prestada pelos profissionais de
saúde a estes pacientes.
23
3
A dor da espera: O silêncio revela(dor) dos pacientes
Vamos ouvir esse silêncio meu amor
Amplificado no amplificador
Do estetoscópio do doutor
No lado esquerdo do peito, esse tambor
Arnaldo Antunes/Carlinhos Brown (O silêncio)3
Silêncio é o som que ecoa nos frígidos corredores dos hospitais, é ele quem reina e faz
despertar os mais diversos sentimentos dos pacientes que aguardam, desamparados, pela
entrada no bloco cirúrgico. Frias são as expressões, as palavras e as horas que antecedem o
ato, tornando a dor da espera ainda mais intensa e angustiante.
Aqui pretende-se apresentar os aspectos psicológicos que comumente envolvem os
pacientes quando estão hospitalizados e aguardando por cirurgias, procurando enfatizar os
efeitos terapeutizantes que podem se fazer presentes na relação do paciente com a equipe de
Saúde que o assiste, evidenciando também os fatores que contribuem para seu
restabelecimento e reintegração sócio-familiar.
Para a construção deste texto foi utilizada como principal referência o autor Valdemar
A. Angerami – Camon, que possui vasto número de publicações na área de Psicologia
Hospitalar e sua leitura torna-se imprescindível para a compreensão de alguns aspectos
específicos da área, bem como para a produção acadêmica. Além dele, as construções de
Kelly de Juan também fundamentaram o presente capítulo.
Qualquer necessidade de mudança sofrida pelo ser humano exige um ajustamento e
“reconfiguração” de seu modo de vida, especialmente, quando estas mudanças são
imprescindíveis para o restabelecimento de sua saúde.
O paciente, ao ser hospitalizado, é obrigado a fazer uma ruptura com aquilo que fazia
parte de sua rotina, de forma parcial ou total, o que irá exigir uma reorganização emocional
que frequentemente causará medo ou ansiedade, principalmente se estas mudanças estiverem
relacionadas a um prognóstico cirúrgico.
De acordo com Camon (2006), a necessidade da cirurgia é um fator de estresse que vai
exigir do paciente “estratégias” de enfrentamento, as quais serão constituídas a partir de suas
experiências de vida e de seu modo de percepção do mundo, e irão ser refletidas em seu
comportamento diante da situação.
3
ANTUNES, Arnaldo; BROWN, Carlinhos. O silêncio. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/arnaldoantunes/o-silencio.html. Acesso em: 10/10/2014.
24
A maneira que o paciente percebe a ameaça, no caso a cirurgia, ou seja, o
significado que atribui a ela, é mais importante do que a própria cirurgia. A partir da
percepção, surgem comportamentos de ajuste, os quais têm como objetivo enfrentar
o estresse e a ansiedade desencadeados por este momento. (PENICHE; JOUCLES &
CHAVES, 1999 apud JUAN, 2007)
A autora acima citada também aponta que além dos conflitos desencadeados pelo
momento pré-cirúrgico, o ato de internação em um hospital traz consigo uma carga de
sentimentos negativos que, por si, só elevam os níveis de estresse. A rotina hospitalar é
totalmente avessa ao mundo fora dele e exige do paciente uma aceitação imediata de sua
condição, colocando-o em um patamar de igualdade com os demais, para que a doença possa
ser evidenciada.
Essa padronização dos pacientes, que passam a existir e a significar a partir de seus
diagnósticos, denomina-se despersonalização e é um processo comum vivenciado nos
hospitais. Ele ocorre também porque os profissionais envolvidos nesse contexto possuem uma
tendência à focalização da patologia ou do sintoma e esquivam-se do cuidado com o outro em
sua singularidade e este, passivamente, sofre e, por vezes, negligencia o cuidado consigo
mesmo apenas por não ter conseguido expressar-se diante de sua condição.
Juan (2007) ainda afirma que a vivência de uma hospitalização, especialmente para
submeter-se a uma cirurgia, pode ser considerada um momento de crise na existência do
paciente, pois esse passa a ter limitações em seu espaço vital. Se o procedimento cirúrgico
exigir apenas mudanças temporárias, de alguma forma esse processo pode ser vivenciado
mais facilmente, porém, se esse procedimento diz de uma necessidade orgânica mais grave, o
paciente precisará passar por uma verdadeira reestruturação existencial para se adequar ao
novo contexto e isto demandará tempo e perseverança por parte de todos os envolvidos.
O paciente que aguarda por cirurgia pode reagir de diversas formas, no entanto, o
medo é vivenciado nessa experiência e pode ser demonstrado de vários modos, desde a
contenção emocional até a agressividade. “Que ninguém se deixe enganar pela contenção
emocional de um paciente cirúrgico. Não importando o grau de imperturbabilidade de sua
aparência, subjacente a ela há um medo e um pavor terríveis.” (SEBASTIANI et al CAMON,
2006, p.33)
Pode-se perceber que normalmente no momento pré-operatório o paciente é tomado
pelos sentimentos de medo, insegurança, angústia e ansiedade. Até certo ponto esses
sentimentos são considerados positivos, pois movem o sujeito na busca do reequilíbrio
emocional, porém, se esses sentimentos forem vivenciados em excesso poderão trazer
25
consequências que irão refletir até no pós-operatório, dificultando a recuperação. De acordo
com Lopez-Roig, Pastor e Rodrigues-Marin (1993) et al Juan (2007, sem paginação):
[...] o aumento do nível da ansiedade coincide com a proximidade da cirurgia,
caracterizando a ansiedade situacional. Os níveis de ansiedade dependem também do
´locus´ de controle, ou seja, os tipos de variáveis que podem determinar a ansiedade,
as quais se alteram de indivíduo para indivíduo. Garcia et al (2004) acrescentam que
as variáveis podem ser determinadas por características demográficas, a história
clínica do paciente, variáveis da personalidade, tipo de funcionamento psicológico,
cognitivo, afetivo e interacional, a relação médico-paciente e a própria experiência
de hospitalização.
Sabe-se que no período entre o pré e o pós-operatório os pacientes podem apresentar
diferentes níveis de ansiedade, os três tipos básicos que comumente apresentam-se são
confusional, paranóide e depressiva. De acordo com Platas (1990) et al Juan (2007) a
ansiedade do tipo confusional é característica do momento pré-cirúrgico e, como o nome
sugere, os pacientes podem apresentar uma certa “confusão” emocional que pode ser
entendida como um desequilíbrio diante da situação desestruturante que é vivida na
iminência cirúrgica. O trecho citado abaixo é da música “A Via Láctea”4 (1996), gravada pela
banda Legião Urbana e reflete bem a vivência de sentimentos controversos que podem estar
presentes neste momento:
Eu nem sei por quê me sinto assim
Vem de repente um anjo triste perto de mim
E essa febre que não passa
E meu sorriso sem graça
Não me dê atenção
Mas obrigado por pensar em mim
Segundo o mesmo autor, na fase paranóide são comuns as manifestações de medo,
desconfiança e ansiedade intensa, tais sentimentos são característicos do período operatório e
tendem a decair quando existe um bom vínculo entre equipe e pacientes. A ansiedade
depressiva geralmente apresenta-se no período pós-operatório, pois torna-se mais evidente no
psiquismo as implicações do ato cirúrgico e como consequência, frequentemente, os pacientes
podem apresentar: tristeza, fadiga, insônia, impotência e euforia. Conforme vai havendo a
ressignificação do evento cirúrgico e a recuperação vai se estabelecendo, os sintomas vão
decaindo.
4
RUSSO, Renato; BONFÁ, Marcelo; VILLA LOBOS, Dado. A via láctea. Disponível em:
http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/a-via-lactea.html. Acesso em: 10/10/2014.
26
Platas (1990) lembra ainda que uma dessas fases predomina sobre as outras
e por consequência, demandam tipos diferentes de intervenção e manejo. O
profissional deve identificar qual a necessidade maior do paciente e atuar
para que minimize os efeitos da fase predominante. (Juan, 2007, não
paginado)
É neste momento de grandes conflitos existenciais que a equipe deve ter sensibilidade
para estar junto ao paciente, possibilitando que ele tenha clareza sobre seus sentimentos e
dúvidas. Esta é uma medida simples e eficaz, pois, além de diminuir a ansiedade, é capaz de
excluir possíveis causas de complicações na evolução do pós-operatório. Como afirma Roth,
Lowery, Davis & Wilkins et al Juan (2007): “Sentimentos negativos existentes nesta etapa
podem prejudicar o enfrentamento do paciente, culminando com o comprometimento de sua
recuperação”.
A partir da compreensão acerca das ideias dos autores Camon (2006) e Juan (2007)
não se pode negar que os aspectos subjetivos, patológicos e ambientais também são fatores
intrínsecos ao modo de reação do paciente, e, além disso, pode-se constatar que ao se
estabelecer um vínculo entre equipe-paciente, se estabelece uma relação transformadora,
porque nela o cuidado predomina e se dissemina favorecendo o reequilíbrio emocional.
É necessário haver, por parte da equipe, um desprendimento para se conseguir uma
atitude de inclinação para o outro e com o outro, solicitude, continência e perseverança devem
ser as forças que impulsionam o agir de cada profissional na busca da consolidação dos
vínculos com os pacientes. Esse modo de agir é suficiente para efetivação do cuidado
humanizado e, sem dúvidas, traz benefícios para os que o oferecem e os que o recebem.
[...] a atitude mais adequada da equipe é a de agir preventivamente, já no início do
contato com o paciente, se possível ainda no ambulatório ou consultório, quando a
indicação cirúrgica muitas vezes é uma das possibilidades, intensificando esse
trabalho na internação. Fatores como confiança, disponibilidade, continência ao
paciente para que exponha seus sentimentos, orientação e desmistificação das
fantasias são fundamentais. (SEBASTIANI et al CAMON, 2006, p.43)
São inquestionáveis as consequências positivas advindas do estabelecimento do
cuidado na relação equipe-paciente. Esta, além de intervir nos contextos biológicos e
emocionais, é capaz de concretizar o processo de humanização nos hospitais, atingindo
também o contexto social.
Percebe-se que os demais profissionais da equipe, não psicólogos, podem atuar como
agentes multiplicadores de condições de enfrentamento, estando em concordância com as
filosofias multidisciplinares de cuidados com a saúde, não se propondo que estes realizem
intervenções psicológicas ou psicoprofilaxia cirúrgicas. Sendo estas especialidades do
27
profissional psicólogo, aqui se propõe uma reflexão sobre os modos de assistência que são
oferecidos na área de Saúde, através da evidência dos benefícios causados pelo bom
estabelecimento da relação entre equipe e paciente.
As reações psicodinâmicas durante o período pré-operatório são inegáveis, assim
como os benefícios da relação de cuidado oferecida pela equipe de Saúde. O procedimento
cirúrgico tem efeitos psicossociais importantes e a ansiedade vivenciada nesse momento
estará diretamente relacionada com os resultados obtidos no pós-operatório como evidenciou
Juan (2007).
O objetivo central deste capítulo é incentivar a reflexão acerca das possíveis reações
que podem ser vividas pelos pacientes no pré-cirurgico. Estas constatações são importantes
para que se possa compreender que o momento pré-operatório é mais complexo do que se
imagina, e não apenas por haver explicitado ali uma situação patológica, mas por se ter em
evidência um momento de ressignificação existencial.
Em seguida, no próximo capítulo, será apresentado o caminho percorrido para se
chegar aos fenômenos que emergiram a partir do encontro vivido com pacientes no período
pré-cirurgico. O reconhecimento destes fenômenos só tornou-se possível porque buscou-se,
com esse trabalho, vislumbrar uma nova possibilidade de compreensão deste momento revelador.
28
4
A rota da navegação
Para a concretização deste trabalho foi realizada uma pesquisa de campo qualitativa
descritiva exploratória, baseada numa perspectiva fenomenológica existencial, esta teve o
objetivo de apresentar uma compreensão sobre como o cuidado humanizado pode contribuir
para o fortalecimento emocional dos pacientes no momento pré-cirúrgico.
“A grande
distinção entre o modelo fenomenológico e os demais modelos de pesquisa – sejam estes
qualitativos ou quantitativos – está na intrínseca correlação entre o sujeito da pesquisa e o
sujeito do pesquisador”. (BRUNS e HOLANDA, 2005, p.54).
A corrente filosófica escolhida ofereceu subsídios para que eu, enquanto pesquisadora,
pudesse ir ao encontro do Ser, resgatando o cuidado-com o paciente a partir de suas múltiplas
necessidades subjetivas. A utilização da cartografia sentimental (ROLNIK, 2014) reforçou o
modo de relação com a experiência, convocando a pesquisadora a se lançar neste território
ainda desconhecido, a fim de buscar elementos para construir novos sentidos, compondo
cartografias e criando história.
E, assim como propôs Suely Rolnik (2014), me lancei nesta pesquisa como um
viajante, disposta a desvelar territórios, descobrindo afetos e sentidos de existência,
procurando compreender os fenômenos a partir da perspectiva dos sujeitos participantes do
estudo. “O cartógrafo quer participar, constituir realidade. Seu movimento é de entrega para
descobrir e inventar. Seu corpo é deixado vibrar nas várias frequências possíveis para
encontrar sons, canais de passagem, carona para viver a existência”. (MORATO, 1999, p.63
apud MORATO, 2009).
O local escolhido para a realização da pesquisa é um hospital de médio porte, que
presta assistência a pacientes da região urbana e rural desta cidade. Sua estrutura física conta
com 40 leitos para internamento, 09 para o pré-parto, 03 para observação, 07 para internação,
01 para isolamento e os demais para casos cirúrgicos. Atualmente, possui uma média de 330
funcionários, sendo eles: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistente social,
psicólogo, auxiliar de lavanderia, auxiliar de serviços gerais, recepcionistas, motoristas,
porteiro, nutricionista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, administrador e farmacêuticos. De
forma geral, a média de cirurgias por mês é de 184, sendo a maior parte realizada na
obstetrícia, através dos partos cesáreos.
A pesquisa teve como colaboradores mulheres adultas, com faixa etária entre 30 e 45
anos, que encontravam-se internadas aguardando por cirurgias eletivas. Todas as
29
colaboradoras corresponderam aos critérios de inclusão e estavam internadas no Hospital
Municipal de Caruaru Casa de Saúde Bom Jesus.
Ressalto que, por essa pesquisa ter caráter qualitativo e não visar generalizações, a
quantidade de sujeitos colaboradores não foi pré-determinada, tendo-se em vista que o
relevante eram ser homens e/ou mulheres que se encontravam internos aguardando por
cirurgias. Desta forma, o número dependeu da disponibilidade de pessoas nesta situação no
hospital durante o período que estive em campo.
Como método, utilizei a narrativa de Walter Benjamin (1994), pois os sujeitos
puderam expressar seus sentimentos trazendo “a marca do narrador”, considerando o sentido
dado pela narradora ao fenômeno desvelado. Como pesquisadora pude compreender o sentido
da experiência vivida e relatada, pois o estudo lhe possibilitou ver, ouvir e sentir o fenômeno
de forma direta, a partir de quem o experienciou.
[...] Ela não está interessada em transmitir o “puro-em-si” da coisa narrada como
uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p.205)
Esclareço que a coleta de dados só foi realizada após aprovação do Comitê de Ética.
Então, entrei em contato com as colaboradoras para apresentar a pesquisa e li para elas o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Posteriormente, dei início à escuta, utilizando
como guia a pergunta norteadora: Como os pacientes atribuem sentido ao momento précirúrgico, a partir de sua relação com a equipe de saúde?
O registro dos depoimentos foram feitos através de gravadores de áudio. Enquanto
coletava as narrativas utilizei para a compreensão dos sentidos da experiência a técnica da
“Analítica do Sentido”, de Dulce Critelli (2007), e me baseei nos cincos passos de
“movimento de realização” apontados por ela.
1. Desvelamento – Quando é tirado do seu ocultamento por alguém, desocultado.
2. Revelação – Quando desocultado, esse algo é acolhido e expresso através de uma
linguagem.
3. Testemunho – Quando linguageado, algo é visto e ouvido por outros.
4. Veracização – Quando algo é referendado como verdadeiro por sua relevância
pública.
5. Autenticação – Quando publicamente veracizado, algo é, por fim, efetivado em
sua consistência através da vivencia afetiva dos indivíduos. (CRITELLI, 2007, p.7576)
30
Os cinco passos citados anteriormente ocorreram de forma simultânea. Para concluir a
autenticação, foi necessário transcrever os relatos e, em seguida, organizá-los em forma de
texto. Posteriormente, entrei novamente em contato com as colaboradoras da pesquisa para
que pudessem ler e confirmar a autenticação final. Durante esse momento, estive consciente
de que novos sentidos e emoções poderiam emergir e fiquei atenta para acolher o que fosse
expresso.
Acreditando na premissa de que seria improvável alcançar uma conclusão sobre o
tema pesquisado, lancei-me nesta viagem buscando compreender os sentidos dados a esta
experiência de pré-operatório junto com as colaboradoras da pesquisa, estando disposta a
conhecer e re-conhecer sentidos, como um viajante que busca novas paisagens mas sempre
volta ao seu ponto de partida.
A seguir, apresentarei fragmentos dos relatos das participantes, que, por questões
éticas, tiveram seus nomes substituídos por nomes fictícios. Dei-lhes os nomes dos principais
oceanos: Pacífico, Índico e Atlântico, por achar que estes representam fortemente algumas
características dos seres humanos. Assim como os mares, somos fonte de vida, complexos e
profundos. Assim como os mares somos deslumbrantes, capazes de encantar e também de
causar catástrofes. Assim como os mares, somos agitação e calmaria, movimento. E assim
como os mares, somos infinitos como seres de possibilidades.
4.1 O experienciar do tornar-se mar
Cada ser humano carrega em si um mar de sentimentos e está constantemente no
movimento do encontrar-se com os outros, e esses encontros são mobilizadores de uma
infinidade de sentidos na existência de cada um que se permite verdadeiramente estar-com.
Este movimento remete ao encontro das águas, mas precisamente do rio com o mar, onde um
mistura-se ao outro fazendo acontecer uma transformação em ambos e, a partir dali, nenhum
dos dois permanece igual a antes. Acredito ser essa uma das maiores premissas da
fenomenologia, afetar e se deixar ser afetado, e assim pude vivenciar o encontro com aquelas
que se permitiram estar comigo.
Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo.
Olha para trás, para toda jornada, os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso
através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto
que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre.
Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar.
Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência.
31
Você pode apenas ir em frente.
O rio precisa se arriscar e entrar no oceano.
E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece.
Porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas
tornar-se oceano.
Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento.
Assim somos nós.
Só podemos ir em frente e arriscar.
Coragem! Avance firme e torne-se oceano!
(O Rio e o Mar – Osho)5
A partir de então, convido-os a navegar comigo pelos mares de sentimentos
conhecendo a intensa rota de sentidos que foi traçada e experienciada por mim junto aquelas
que permitiram-se tornar-se oceanos e possibilitaram a realização desta jornada de encontros,
de partilhas e de vida.
4.1.1
Pacífico
No dia em que iniciei a pesquisa em campo, adentrei no hospital como se fosse a
primeira vez, o sentimento era de descoberta. Dirigi-me aos funcionários que estavam no
“postinho” e solicitei os nomes dos pacientes que aguardavam por cirurgias eletivas. Eles,
rapidamente me mostraram o prontuário, anotei os nomes dos pacientes e parti ao encontro
daquele que iria colaborar com meu estudo.
Ao entrar na enfermaria deparei-me com Pacífico, que estava deitada e olhando para a
parede, com um olhar distante, como se estivesse buscando imagens de outro lugar.
Identifiquei-me e informei o motivo de estar lá. Por fim perguntei se ela gostaria de colaborar
com minha pesquisa, ela respondeu que “sim” e, em seguida, assinou o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Acredito ser importante enfatizar que a pesquisa fenomenológica existencial traz em
seu conceito a sensibilidade que o pesquisador precisa ter para lançar-se ao encontro com o
outro de uma forma tão intensa, que até as percepções do meio físico, os cheiros e expressões
corporais são elementos essenciais para a compreensão dos sentidos.
A existência é uma experiência de intersubjetividade, em que as pessoas se relacionam
e se comunicam e é, a partir dessas relações, que se pode perceber o outro, suas atitudes, sua
fala, seus gestos. Labronice (1999) apud Souza (2004) compreende que o filósofo MerleauPonty concebe o corpo como um conjunto de significações vividas, capaz de pensar, ver,
sofrer, expressar no olhar e, por meio dele, pela palavra e também pelo silêncio. “Segundo a
5
Filósofo indiano e líder religioso. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/frase_de_osho. Acesso em
27/10/2014.
32
filosofia de Merleau-Ponty (1996), o corpo está no mundo, misturado às coisas, ao mundo e
aos outros, possibilitando o conhecimento sobre a ligação entre a existência e a essência, a
partir da percepção.” (SOUZA, 2004, p.21).
É possível perceber que a compreensão fenomenológica envolve uma interpretação,
porém, só é possível interpretar aquilo que já foi compreendido. De acordo ainda com MerleaPonty (1996) apud Souza (2004), “compreender é experimentar o acordo entre aquilo que
visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação [...]. E foi com esta intenção que
lancei-me no encontro com as colaboradoras.
Comecei a entrevista com perguntas sobre ela, para poder compreender o seu contexto
familiar e histórico, em paralelo fui inserindo as perguntas norteadoras. O que me chamou
atenção é que durante toda nossa conversa Pacífico apresentou aquele olhar “perdido”, de
quem estava longe.
Pesquisadora - Como você atribui sentido a este momento pré-cirúrgico, a
partir de sua relação com a equipe de saúde?
Pacífico - Até agora não tenho o que reclamar deles, assim, porque tem vezes
que a gente vai para o hospital e é muito mal tratada e aqui estou sendo bem tratada
por eles.
Pesquisadora - Bem tratada em que sentido?
Pacífico - Em tudo, eles me tratam bem, sempre estão perguntando se estou
bem.
Este fragmento da nossa conversa sugere como a paciente se sentia diante daquele
momento, a partir de sua relação com a equipe, o não sentir-se “largada”, diz de um
acolhimento que de alguma forma se deu e a fez se sentir amparada. Foi possível perceber
com esta fala, que ela sentiu-se cuidada e este cuidado foi compreendido e expresso por
simples palavras, que fizeram toda diferença para ela.
É importante frisar que o cuidar, segundo Waldow (1999) apud Souza (2004), envolve
uma ação comportamental e interativa, fundamentada em valores e no conhecimento do ser
cuidador, para e com o ser que é cuidado. Se o cuidar é entendido como uma interação
interpessoal, de características humanas e como um elemento interventivo e terapêutico, deve
ser permeado por elementos como compaixão, consideração, respeito e afeto. O cuidado é
capaz de auxiliar no processo de cura, fazendo-a ser mais rápida e menos traumática para o
paciente.
33
Torna-se essencial esclarecer que o cuidado aqui referido não deve ser entendido
como uma atitude planejada, para que ele não caia num enquadre técnico de modelo ideal a
ser seguido, mas que parta da compreensão de que a própria forma de olhar para o paciente e
fornecer-lhe abertura para expressar-se, já é uma forma de cuidado.
Casate e Côrrea (2005) ressaltam que tal relação não supõe um ato de caridade
exercido por profissionais portadores de características prontas e estáticas como, por
exemplo, a doçura, a compaixão e o sorriso sempre estampado no rosto. Mas, a
proposta é de que ocorra um encontro entre sujeitos que podem construir uma
relação saudável. (ESPINHA, 2007, p. 34-35).
É sabido que a boa comunicação é um dos pilares de sustentação dos preceitos da
humanização. Esta, quando se estabelece de forma efetiva e afetiva, é capaz de minimizar as
dificuldades e incertezas que elevam os níveis de ansiedade e faz fortalecer o sentimento de
segurança no paciente.
A comunicação permite o desenvolvimento de uma rede de significados entre o
paciente, a equipe, a família e a instituição. O que é comunicado, ou seja, o
conteúdo, e a forma pela qual a comunicação ocorre, quer seja verbal ou não,
formam um importante eixo no vínculo que se estabelece. (OLIVEIRA e MACEDO,
2008, p.177).
Apesar de ter um discurso positivo sobre o momento que estava vivenciando, a
colaboradora expressava-se com um tom de voz baixo, com respostas curtas e aquele olhar
distante. Quando insistia em lhe perguntar sobre o que sentia naquele momento ela sempre se
remetia a dor física e afirmava em sua fala “Estou muito tranquila”. “[...] o desconforto físico,
a insegurança e o medo tendem a resultar um quadro ansioso que acentua a atenção do
paciente à sensação álgica, predispondo-o à maior percepção de dor.” (KITAYAMA e
BRUSCATO et al KNOBEL, 2008, p.138).
A partir dessa percepção, compreendi que a “dor” deve ser vista como um fenômeno
resultante da interação entre o físico e o psíquico, e sua intensidade é definida tanto pela lesão
orgânica como pela subjetividade do paciente. Dessa forma, a dor física está em harmonia
com as vivências da pessoa e seu modo de lançar-se no mundo. “A experiência corporal é
vivida numa totalidade unificada, o que significa que as dores do corpo parecem aderir-se à
alma e, com isso, as sensações físicas ganham sentido para aquele que as vivencia.”
(GRAÇAS, 1996, apud ESPINHA, 2007, p.118).
Escolhi para ela o codinome “Pacífico” porque foi assim que a percebi, “acomodada”
em uma situação de grande vulnerabilidade emocional. Trago o termo acomodação no sentido
34
de estar “passiva” diante dos fatos. Ela apenas ouvia e reagia conforme era esperado naquele
ambiente hospitalar. O seu conformismo refletia a forma verticalizada, a qual geralmente se
dá às relações entre equipe/pacientes, em que não há uma reciprocidade relacional, o que
dificulta a comunicação intersubjetiva. “É necessário que ocorra uma reordenação do espaço
social do hospital, para que seja possível o convívio amistoso e seguro das relações
horizontais e se propicie um diálogo aberto, no qual as relações impessoais façam parte do
passado.” (POLAK, 1997, apud SOUZA, 2004, p.82).
A percepção da forma como ela se manifestava remeteu à ideia do desamparo expressa
por Heidegger apud Torres (1999), pois ela expressava-se de uma forma que não estabelecia
conexão com suas palavras, como se tentasse “disfarçar” o que realmente sentia, esquivandose de Ser-si-mesmo naquele instante. O seu modo de existir no momento expressou
inautenticidade, pois ela correspondia ao mundo exterior e não se percebia como principal
referência, o que Heidegger afirmou ser uma forma limitada do Dasein (Ser-aí) realizar suas
possibilidades como ser-no-mundo, ou seja, não conseguia perceber na sua angústia um modo
de ser autêntico.
A tentativa, imprópria e condenada ao fracasso, de fugir da dor do desamparo
consistiria em fugir do tempo e da finitude do ser, concebendo-o como tendo
fundamento fixo e permanente, que permitisse evitar a transiência do ser e apossarse dele como se fosse um “presente” coisificado e sem presença. (TORRES, 1999,
p.156).
Depois de algum tempo de entrevista e de perceber seu modo de lidar com aquela
vivência, dei-me conta que as respostas começaram a ficar cada vez mais curtas e diretas,
então resolvi finalizar. Agradeci mais uma vez pela colaboração e antes que pudesse me
despedir, chegou ao local um senhor, que sem identificar-se, informou a Pacífico que sua
cirurgia, mais uma vez, seria adiada e ela teria que continuar ali, à espera, ressalto que a
colaboradora estava interna há uma semana.
Nesse momento, esperei dela alguma reação, novamente ela não se manifestou. Tentei
acolhê-la diante daquele novo fato, ela apenas me olhou - dessa vez, com ainda mais pesar e
voltou a fixar seu olhar onde só seus pensamentos poderiam chegar. Ali, me fiz presente
entregando-me à percepção dos sentimentos que emergiram naquele instante e compreendi
que seu silêncio era revela-dor e sua dor estava presentificada no seu olhar, pois como
afirmou o filósofo indiano Osho: “O silêncio também fala, fala e muito! O silêncio pode falar
mesmo quando as palavras falham”.
35
O fato que aconteceu com esta colaboradora, infelizmente, não é isolado. As pessoas
que aguardam por cirurgias em hospitais da rede pública estão lançadas a expectativa de fazer
ou não seus procedimentos, por diversos motivos. Este é um drama real que, quando
acontece, tem um poder avassalador sobre os pacientes. Esse acontecimento remete à
imprevisibilidade a qual estamos expostos em todos os momentos de nossa existência e esta é
muito bem retratada na música “Aquarela” (1939) quando diz:
E ali logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está./E o futuro é uma astronave
que tentamos pilotar,/Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar./Sem
pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar./Nessa estrada não nos
cabe conhecer ou ver o que virá./O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai
dar./Vamos todos numa linda passarela/De uma aquarela que um dia, enfim,
descolorirá. (TOQUINHO ; MORAIS, de Vinícius; FABRIZIO e MORRA) 6.
Despedi-me dela e sai da enfermaria do hospital, porém, o seu olhar ficou em mim.
Talvez tenha me marcado tanto porque jamais vivenciei a experiência de encontrar com
alguém de um olhar tão profundo e revela-dor, pois se diz que os olhos são o espelho da alma
e isto me fez compreendê-la, remetendo-me ao escrito de Clarice Lispector7 (1977), que diz:
Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca
dita, prestes a quem sabe ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de
uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima
que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio dos outros.
4.1.2
Índico
No segundo dia de pesquisa em campo cheguei cedo ao hospital e me senti muito à
vontade naquele ambiente. Neste dia, havia muita movimentação em quase todas as
enfermarias, haviam pacientes aguardando por cirurgias. Então, novamente busquei os nomes
e sai à procura de um novo colaborador.
Na primeira enfermaria que entrei, deparei-me com quatro pacientes, me apresentei e
informei por que estava ali. Em seguida, perguntei quem poderia me ajudar com seu relato,
uma paciente se disponibilizou prontamente, porém, quando íamos dar início à entrevista ela
foi chamada para o bloco cirúrgico. Com este fato, novamente perguntei quem poderia se
6
TOQUINHO ; MORAIS, de Vinícius; FABRIZIO e MORRA. Aquarela. Disponível em:
http://letras.mus.br/touquinho. Acesso em: 02/11/2014.
7
LISPECTOR, Clarice. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/o-ultimo-bilhete-de-clarice. Acesso em:
02/11/2014.
36
dispor a me ajudar e Índico concordou, assinando o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Como previsto, fiz todos os esclarecimentos necessários para poder começar a
entrevista. Desde o primeiro momento, a colaboradora demonstrou-se enérgica, comunicativa
e espontânea. Ela expressava-se de forma muito direta e sua tranquilidade me chamou
atenção.
Esse fato evidencia que o momento pré-cirúrgico também permite diversas
possibilidades de enfretamento, o que vai depender da subjetividade de cada paciente. Como
afirma Ruschel, Daut e Santos (2000) apud Melo (2007, p.79) “a cirurgia é uma experiência
de ameaça na vida dos pacientes, pois envolve uma carga emocional característica. O modo
como cada um enfrenta esse procedimento poderá dificultar ou facilitar a completa
recuperação e readaptação à vida cotidiana”.
Pesquisadora - Como você atribui sentido a este momento pré-cirúrgico, a
partir de sua relação com a equipe de saúde?
Índico - Ótima.
Pesquisadora - Em que sentido?
Índico - Eles conversam com a gente, deixa a gente segura em relação à
cirurgia, “retira” o medo. Assim, a assistente social foi quem falou mais, deu palavras
de conforto.
Pesquisadora - E você acredita que essa atitude faz alguma diferença neste
momento?
Índico - Faz muita! A gente se sente bem em relação à cirurgia, fica tranquila.
É importante lembrar e não tomar como verdade absoluta que todas as pessoas
vivenciam a hospitalização da mesma forma. Existem aquelas que sofrem e sentem
dificuldades em lidar com esta situação, mas também há as que enfretam de forma mais
tranquila e, entre esses opostos, existem as mais diversas experiências.
Este novo relato, novamente fez menção à simples atitudes que efetivam o processo de
humanização hospitalar. Mais uma vez, a linguagem verbalizada veio apresentar-se como via
de disseminação do cuidado-com o outro. Então, como afirma Oliveira e Macedo (2008) et al
KNOBEL é possível compreender que, quanto mais se melhora a capacidade comunicativa,
mais se fundamenta uma assistência humanizada.
37
[...] é preciso dar voz ao paciente e estar disponível para entrar na “experiência
subjetiva” deste, deixando de lado temporariamente nossa visão de mundo,
conceitos, valores e preconceitos, para construir junto com ele a melhor forma de
enfrentar a situação. Só assim os profissionais de saúde serão capazes de estabelecer
uma escuta empática. Isso requer esforço, envolvimento e compromisso.
(KITAJIMA; COSMO et al KNOBEL, 2008, p.106)
Pesquisadora - E com o médico-cirurgião, como foi seu encontro?
Índico - Foi bom! Ele é muito educado, explicou como vai ser tudo (a cirurgia)
direitinho, ele sabe falar com os pacientes. A forma como ele me atendeu me fez ficar
mais segura.
O “saber falar” foi compreendido como um modo empático de relação com a paciente,
aquele médico foi pre-sença durante aquele encontro e marcou a colaboradora subjetivamente,
de uma forma positiva, que foi compreendida e refletida por ela em suas manifestações diante
da situação pré-cirurgica.
Além de causar uma “boa” impressão para o paciente, a escuta ativa, a disponibilidade
afetiva e a boa comunicação dão suporte para a formação de um vínculo efetivo entre equipe e
pacientes, originando também atitudes características do cuidado humanizado que terão ações
terapêuticas no contexto pré-operatório.
Para que o estresse pré-cirúrgico seja reduzido, o método mais comum e utilizado é
a preparação psicológica, em que são fornecidos dados sobre o procedimento e sobre
o comportamento a ser adotado. Intervenções psicológicas e educacionais tão se
tornando cada vez mais importantes. ( JUAN,2007)
Ainda sobre esta questão, pode-se afirmar que, com uma orientação adequada e com
assistência multidisciplinar de qualidade, a fase do pré-operatório pode ser vivida de maneira
mais amena, pois o paciente poderá se compreender como parte essencial do processo e
colaborará com sua recuperação.
Zampieri (2001) afirma que o educar-se se dá com base em conhecimentos e através
de relações com os outros seres humanos, mediante compartilhamento de
conhecimentos e ações, sendo que fatores como afetividade, envolvimento,
comunicação e alegria são essenciais para que o processo educativo aconteça.
(BECKHAUSER, 2009, p.45)
A colaboradora, ao utilizar os termos “conforto” e “tranquilidade”, remeteu ao fato de
que ao se confortar alguém é possível amenizar as mais diversas situações de des-conforto,
fazendo com que sentimentos positivos tornem-se evidentes e capazes de fortificar aquele que
38
se encontra num momento de sofrimento, tendo como possível consequência o estado
emocional tranquilo.
O impacto de uma boa relação médico-paciente não incide apenas na
satisfação dos usuários e na qualidade dos serviços de saúde, mas influencia
diretamente sobre o estado de saúde dos pacientes. (CAPRARA e
RODRIGUES, 2004 apud KITAJIMA e COSMO et al KNOBEL,2008,
p.103)
A tranquilidade de Índico era perceptível, e por vezes até parecia que ela estava
“fugindo” do real sentido daquele momento, evitando entrar em contato com seus
sentimentos. Lazarus e Folkman (1984) apud Melo e Christoff (2007, p.80) “afirmaram que as
pessoas utilizam o enfrentamento focalizado na emoção como forma de manter a esperança e
o otimismo frente à adversidade, porém esta atitude é tomada evitando-se pensar ou agir sobre
o problema”.
Ainda sobre este fato, Melo e Christoff (2007) acrescentam que sugere-se que os
pacientes, ao mobilizarem a “fuga-esquiva”, iniciam a tentativa de controlar o estresse
causado pela necessidade de realizar a cirurgia através do distanciamento do foco estressor.
A realidade é que Índico apresentou-se esperançosa diante da iminência cirúrgica e
sobre isto Groopman (2004) apud Souza (2004, p.72) aponta que “a esperança não cura, mas
dá animo para o ser humano continuar lutando pela sua melhora, pois os esperançosos
recuperam mais rapidamente a saúde e tem maior taxa de sobrevida”.
Dei continuidade à entrevista e uma das últimas perguntas fez com que Índico
revelasse uma definição interessante sobre si mesma diante daquela situação.
Pesquisadora - Você já fez alguma cirurgia?
Índico - Sim.
Pesquisadora - E o que você está sentindo agora em relação à cirurgia é
diferente do que você sentiu da outra vez?
Índico - É bem diferente da primeira cirurgia, o fato de saber como é lá (o
bloco cirúrgico), conhecer, ajuda a ter coragem.
Esta última frase de Índico evidencia a sua relação com o ato cirúrgico no momento
presente, e ela não o experienciava da mesma forma que sentiu da primeira vez, por ter sobre
ele uma pré-compreensão, dava-lhe um novo sentido a partir de sua experiência atual e do
dinamismo que a constitui enquanto ser em relação a um ente.
39
Acredita-se que, quanto mais informações o sujeito tiver sobre o procedimento
cirúrgico, menor será sua ansiedade e melhor será sua recuperação, porém, é importante
fornecer as informações de uma forma que possibilite o fácil entendimento.
Expressando-se de forma positiva, Índico trazia em seu discurso uma confiança
espontânea, que subentendia a certeza da excelência do procedimento cirúrgico, afastando
qualquer suposição de que algo poderia não sair como previsto. Essa atitude faz referência à
insistente resistência que o homem tem de negar a morte, apesar dela ser inerente à vida. É
preciso aceitar a condição do morrer para se descobrir o sentido da existência, como afirma
Pompéia (2004): “Estes dois momentos, vida e morte, apresentam-se em instantes muito
próximos, tão ligados ao sentido da vida e em outras circunstâncias tão ligadas ao sentido da
morte”.
Realmente, Índico se apresentou corajosa, a mesma me relatou alguns fatos marcantes
de sua vida que, por motivos éticos e irrelevantes ao tema da pesquisa não serão citados, mas
que, sem dúvidas, lhe exigiram muita coragem para saber lidar com algumas consequências
causadas por seus atos, e mais uma vez ela estava ali, pronta para enfrentar seus medos,
reafirmando seu modo de existir, pois enquanto ser-no-mundo ela projetava-se intensa nas
relações que estabelecia e nas situações que enfrentava.
[...] se não fujo, exercito-me diante da mais extrema e radical possibilidade
de mim mesmo. E assim exercitando-me antecipo-a, assumindo-a; e,
portanto, decidindo. A decisão (Entschlossenheit) é uma escolha, e, se isso
ocorre, angustio-me. Mas na angústia libera-se o poder-ser mais próprio,
mais autêntico do Dasein. (HEIDEGGER, 2006, apud NUNES, 2002, apud
SOARES, 2013, p.17)
Índico demonstrou para mim, em seu semblante e em suas palavras, a força de uma
mulher que foi capaz de enfrentar momentos marcantes e decisivos em sua existência sem
perder a essência do seu ser, o que a fez ser forte, marcante e avassaladora como o mar. Assim
a percebi e a correlacionei com a “Maria” (1980), cantada lindamente por Elis Regina.
Maria, Maria/ É o som, é a cor, é o suor/É a dose mais forte e lenta/De uma gente
que rí/Quando deve chorar/ E não vive, apenas aguenta/ Mas é preciso ter força/É
preciso ter raça,/É preciso ter gana sempre/Quem traz no corpo essa marca/Maria,
Maria/Mistura a dor e a alegria/Mas é preciso ter manha/É preciso ter graça,/É
preciso ter sonhos sempre/Quem traz na pele essa marca/Possui a estranha mania/
De ter fé na vida. (NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernando)8.
8
NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernando. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/elis-regina/mariamaria.html. Acesso em: 02/11/2014.
40
4.1.3
Atlântico
A entrevista com esta colaboradora também foi feita no segundo dia em que estive em
campo realizando a pesquisa. Escolhi para ela este codinome porque o oceano Atlântico é o
único que conheço de fato, através do mares que banham o litoral brasileiro, e o meu encontro
com ela me fez voltar a vivenciar alguns sentimentos que já experenciei quando também
aguardava por procedimento cirúrgico, ou seja, a correlação foi feita porque este encontro me
possibilitou retornar aos sentidos da minha experiência.
Enfatizo que, em todos os momentos, estive ciente de que apesar de haver uma
semelhança nos sentimentos que vivenciamos, os sentidos e razões que lhes faziam se
manifestar eram singulares. Como bem afirmou Merleau-Ponty (1999) apud Souza (2004,
p.61), “ao relacionar-se com o outro, é preciso lembrar que esse outro é um outro corpo que se
diferencia por ter seu próprio contexto, por ter sua própria interioridade”.
Quando adentrei na enfermaria, Atlântico estava deitada falando ao telefone, ao me
ver ela rapidamente cuidou em finalizar a ligação informado para a pessoa com quem falava
que uma “enfermeira” havia chegado, tentei sinalizar para ela que aguardava o término da sua
ligação, mas ela desligou o telefone, então, me identifiquei e lhe informei que não era
enfermeira, como também explanei sobre o motivo de estar lá. Ela foi muito atenciosa e, sem
restrições, aceitou fazer parte do estudo. Em seguida, assinou o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
41
Pesquisadora - Como você atribui sentido a este momento pré-cirúrgico, a
partir de sua relação com a equipe de saúde?
Atlântico - É difícil, assim, eles não falam muito, deixam a pessoa esperando.
Pesquisadora - E como você está se sentindo neste momento?
Atlântico - Nervosa, tensa, porque a pessoa não sabe como vai ser (a cirurgia)
Pesquisadora - Você conhece o médico?
Atlântico - Conheço!
Pesquisadora - E como foi seu encontro com ele?
Atlântico - Foi bom! Ele foi bem atencioso, educado, explicou como vai ser a
cirurgia.
Pesquisadora - E você acha que essa atitude dele fez alguma diferença nesse
momento?
Atlântico- Acho, ele me fez ficar mais confiante.
Considerando a resposta inicial de Atlântico, foi percebido que o fenômeno desvelouse expressando desamparo, sentido por ela a partir da forma como se deu o seu contato com a
equipe de saúde. Este fato sugere que não houve tentativa de acolhimento da equipe para com
ela, o que configurou uma relação inautêntica, em que o cuidado-com o outro não foi
manifestado. De acordo com Carneiro; Pomatti; Bertoletti (2007, p.230) apud Beckhauser
(2009, p.44), “na visão do paciente este momento poderá causar estranheza e amedrontar,
gerando uma situação de incerteza e insegurança”.
Sobre este fato, Cosmo e Carvalho (2000) apud Melo e Christoff (2007) também
comentam, afirmando que o momento da internação é vivido de forma extremamente
dramática, não importando o tipo de procedimento cirúrgico o qual o paciente será submetido,
mas, sim, o modo como o paciente vivenciará esse momento.
Esta colaboradora trouxe em seu discurso sentimentos que são considerados próprios
ao momento pré-cirúrgico, como o nervosismo e o medo. Atlântico foi a que mais demonstrou
o incômodo que sentia por estar aguardando pela cirurgia, suas inseguranças e preocupações.
Os sentimentos expressos por ela remetiam claramente aos sintomas vividos em um quadro de
ansiedade, sendo esta favorecida pelos conflitos internos causados pelos impactos da
hospitalização e dos procedimentos cirúrgicos.
O procedimento cirúrgico é frequentemente uma experiência estressante para os
pacientes e familiares e requer uma série de mobilizações afetivas para lidar com a
42
ansiedade e estresse da situação. Qualquer intervenção cirúrgica é considerada como
uma situação crítica capaz de despertar comportamentos individuais, influenciada
por múltiplos fatores emocionais, físicos, familiares, sociais, hospitalares [...]
(SANTOS, 2012, p.923)
Pesquisadora - E o que tem sido mais difícil para você nesse momento?
Atlântico - Estar nervosa (neste momento ela se emocionou, silenciou por alguns
segundos, e continuou), o medo, a pessoa fica na expectativa de quando vai abrir os
olhos depois da cirurgia e pensar “eu nasci de novo”. Assim, eu entrego na mão de
Deus e, se for minha hora, fazer o quê? Tem que está preparada. O mais difícil
também é a espera.
Quando a colaboradora sugere a vontade de “renascer”, esta é entendida não como
uma ressuscitação, mas como uma forma de expressar o seu desejo de superar aquele
momento e prosseguir sua vida a partir de todas as expectativas vislumbradas para o período
pós-cirúrgico. Romano (1998) apud Souza (2004, p.72) afirma que “esse ‘renascer’ tem um
sentido mais amplo do que voltar da morte – é começar uma vida nova, livre de defeitos
anteriores, uma nova chance, com novos valores e propósitos de vida”.
Esta fala também faz menção ao medo que geralmente os pacientes têm da anestesia
durante o procedimento cirúrgico. Sobre este fato, Brentano e Leite (2003) apud Souza (2004)
referem que o medo de a anestesia causar a morte durante a cirurgia é muito comum, apesar
dos anestésicos atuais oferecerem segurança ao procedimento. A volta à consciência após a
anestesia permite a vivência de sentimentos ambíguos, que vão do desconforto físico até a
alegria por estar vivo.
Dando continuidade à conversa, fomos interrompidas por uma enfermeira que foi
aplicar o soro fisiológico em Atlântico, enquanto perfurava a paciente, sem ao menos lhe
explicar por que o faria, ela disse: “não fique com medo, porque se não a veia some”. Então,
Atlântico falou: “A ansiedade né? A gente tenta se controlar, mas o coração fala mais
alto”.
Vale ressaltar que a fala da enfermeira deu-se de uma forma “fria”, se manifestou a
partir do conhecimento técnico sobre tal situação, dando aquele momento uma condição
extremamente padronizada, diferente da sensação causada pela fala autêntica definida por
Amatuzzi (1989) apud LIMA; “[...] essa fala não é meramente um “falar-voltado-ao-outro”,
mas sim em falar-ao-outro, isto é, uma fala autêntica, onde ambos os interlocutores estão
constituídos e confirmados no encontro”.
43
Além disso, a enfermeira não se preocupou com os sentimentos da paciente e utilizou
o seu “poder” enquanto profissional sobre o corpo dela sem ao menos pedir-lhe permissão,
num ato de extrema opressão e desconsideração pelo outro ser que ali se encontrava numa
situação de “submissão”.
Sobre isto, Leloup (1999) apud Souza (2004) alertou que, ao se tocar em alguém, está
tocando-se uma pessoa, um corpo, que é abrigo de toda as memórias de sua existência e,
portanto, deve ser considerado como um templo. Então, a enfermeira fez o procedimento e
saiu. Assim, demos continuidade à conversa.
Pesquisadora - O que seu coração está falando?
Atlântico - (emocionada) Assim, esperei mais de um ano por essa cirurgia, esta
semana adoeci e fiquei com medo de não poder fazer mais, minhas duas filhas
também adoeceram, e ainda estão doentes, tudo isso fica na minha cabeça. O que me
deixa mais tranquila é saber que elas estão com minha mãe, estão bem cuidadas.
Tudo é na hora que Deus quer!
Na fala dela o medo da morte durante a cirurgia estava presente, era compreendida
como uma possibilidade real, ou seja, aquela mulher estava consciente da sua condição de serpara-a-morte, que de acordo com a fenomenologia existencial é a condição inerente ao Ser-aí
e pode se fazer presente em qualquer momento, dando fim a condição do Ser-no-mundo. Para
Heidegger (2006), a morte é uma possibilidade que deve ser aceita por fazer parte da
existência e, ao se apropriar dessa condição, o sujeito permite-se ser autêntico e responsável
por seu existir.
Na perspectiva fenomenológica existencial a morte é abordada pelo filosofo
Heidegger (2006), que dá ênfase a esse fenômeno colocando-o como elemento
estruturante de nossa existência. O homem é um ser que coexiste, de forma que
nossa existência está ligada a existência de todos os entes. Mas também somos seres
singulares. A vivência do singular nos remete a angústia de estarmos diante de nós
mesmos. A morte surge então como possibilidade própria, a partir da qual é possível
descobrir um sentido próprio para a vida e para o ser. Fazer escolhas no tempo, antes
que a morte chegue é o que nos torna autênticos. Sendo um “ser-para-a-morte” o
homem não pode livrar-se dessa condição. (SOARES, 2013, p.17)
Na vivência da angústia, o homem depara-se com sua condição de finitude e é
arrebatado pelo desamparo que, segundo Torres (1999), é uma disposição afetiva fundada no
modo de ser do Dasein e somente nela podem surgir outros existenciais ou fenômenos. É
neste momento que o ser consegue vislumbrar suas possibilidades diante dos fatos, podendo
44
afirmar e experenciar a premissa de que a angústia é o “motor” capaz de fazer o Dasein (serlançado-no-mundo) apropriar-se de sua existência.
De acordo com Barreto (1992) apud Souza (2004, p.52), subjetivamente, qualquer
corpo passa a ser terminal, a partir do momento em que percebe ou fantasia a morte como
uma realidade próxima e possível, posicionando sua existência diante dessa tomada de
consciência.
Ainda sobre este tema, Loss, Montovani e Souza (2003) apud Souza (2004),
acrescentam que, o medo da morte é inerente ao desenvolvimento do ser humano, é o medo
da extinção, somado ao medo do desconhecido, do sofrimento, da solidão e, principalmente,
das perdas afetivas.
Quando a colaboradora falou “A gente tenta se controlar, mas o coração fala mais
alto” ela referia-se ao medo que estava sentindo naquele momento, mas também à dor do
distanciamento de seus familiares. Porém, o falar das “dores do coração” ainda é um ato
pouco concebido no ambiente hospitalar devido ao longo processo de “desumanização” que
se deu com o modelo biomédico e, mais uma vez, se faz presente a necessidade da
mobilização em prol do cuidado humanizado nos hospitais.
Quando aspectos psicológicos não são considerados na situação de tratamento
cirúrgico, poderá haver aumento da predisposição para complicações emocionais
que prejudicam a convalescença, chegando a intensificar, em algumas situações, a
morbidade no período pós-operatório. Para essas mesmas autoras, a cirurgia é uma
experiência de muita ameaça na vida de qualquer pessoa, pois envolve uma carga
emocional característica. A forma como cada um enfrenta esse tipo de intervenção
poderá facilitar ou não a completa recuperação e readaptação à vida
normal.(RUSCHEL; DAUT; SANTOS, 2000, apud BOM, SILVA, OLIVEIRA e
ANDRADE, 2014)
A equipe de profissionais de saúde pode e deve apoiar, avaliar e orientar as
necessidades dos pacientes, proporcionando-lhes segurança e suporte emocional, pois pode
estimulá-los a expor seus pontos de vista, suas expectativas e aflições, com a intenção de
atenuar medos e dúvidas e, consequentemente, amenizando suas dificuldades, auxiliando-os a
enfrentar o difícil momento vivenciado na sua existência.
O meu encontro com Atlântico me permitiu entrar em contato com os sentimentos de
medo e aflições que também vivenciei no momento pré-cirúrgico, evidentemente os sentidos
dados por mim àquela vivência são outros, mas as sensações causadas e experenciadas são
bem similares.
E, a partir desta emocionante experiência de vida, concordo com Brandão (1986) apud
Souza (2004, p.61) quando ele afirma que, “o outro sugere ser decifrado, para que lados mais
45
difíceis de meu eu, do meu mundo, de minha cultura sejam traduzidas também através dele,
de seu mundo e de sua cultura”.
Aquela afirmação da colaboradora sobre a dificuldade de controlar a “voz do
coração”, ao meu entendimento, foi muito significativa e traduziu fielmente os seus
sentimentos naquele instante, como também à música “Revelação”9 (1979), quando diz no
trecho: “Quando a gente tenta/ De toda maneira,/ Dele se guardar/ Sentimento ilhado,/ Morto,
amordaçado/ Volta a incomodar”. (Fagner).
9
FAGNER, Raimundo. Revelação. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/fagner/revelacao.html. Acesso
em: 03/11/2014
46
5
Um mar de possibilidades
Este estudo traz contribuições importantes na compreensão da experiência de
pacientes no momento pré-cirúrgico. Dessa forma, o objetivo pretendido foi alcançado,
proporcionando encontros, os quais foram bastante enriquecedores. Foi possível perceber que
o momento pré-operatório predispõe a vivência de angústias por diversos fatores, que serão
expressos a partir da singularidade de cada paciente.
Também foram percebidas algumas reações das pacientes que se atrelavam à forma de
assistência que lhes teriam sido dadas pela equipe de saúde, fato que veio corroborar sobre o
quanto se torna positivo para os pacientes estabelecer um contato direto e afetivo com os
profissionais, foi possível perceber que a “boa” comunicação entre equipe-paciente e o
repasse de informações adequadas acerca da cirurgia suscitaram sentimentos de segurança nas
pacientes.
Neste sentido, refleti acerca do comprometimento que os profissionais de saúde devem
ter em sua prática, para que possam ser capazes de acolher e cuidar dos pacientes de uma
forma que ultrapasse o âmbito profissional e se dissemine sobre o real sentido de ser humano
em sua essência.
Desenvolver esta pesquisa foi um desafio, primeiramente pessoal, por se tratar de um
tema que diz da minha experiência subjetiva. Segundo, profissional, por ter que buscar
subsídios suficientes que pudessem me dar suporte durante o estudo, a fim de ter a
sensibilidade necessária para conseguir compreender os sentidos revelados pelas
colaboradoras, bem como saber lidar com as diversas situações que poderiam se apresentar
até a finalização desta.
Um fenômeno que se manifestou durante as entrevistas com todas as colaboradoras foi
a crença em Deus naquele momento, Em relatos como:
Pacífico - Mas, com fé em Deus, vai dá tudo certo!
Índico - Primeiramente, sua vida está nas mãos de Deus.
Atlântico - Eu entrego nas mãos de Deus. Tudo é na hora que Deus quer!
Foi possível compreender que a fé naquela situação fornecia possibilidades de
esperança na vida, era um suporte para o momento de grandes conflitos existenciais. Outra
compreensão possível é o fato da morte estar relacionada à divindade, e esta, mesmo não
sendo verbalizada, era uma possibilidade diante do procedimento cirúrgico.
47
[...] Acreditando-se que vida e morte são dons divinos, teme-se, conscientemente
ou não, a morte como uma manifestação de Deus ou dos deuses. É comum
explicar a morte com frases como “Deus quis assim” ou “O Senhor o chamou”
(Chiavenato, 1998, apud BRITO e GUIMARAES, 2013, p.62)
Huf (2002) apud Souza (2004) afirma que a vivência religiosa traz benefícios no
enfrentamento de situações angustiantes, promovendo o equilíbrio emocional e a saúde
mental. O exercício da fé como fonte de esperança favorece a passagem das situações de crise
e diminui a ansiedade.
Os principais sentidos que emergiram estavam relacionados à possibilidade do morrer,
ao desamparo atrelado ao distanciamento dos entes queridos e ao modo de relação
estabelecido com equipe de saúde, e a possibilidade de uma vida melhor após a cirurgia.
Com esta pesquisa, foi vislumbrada ainda mais a necessidade de um efetivo cuidado
humanizado nos hospitais, bem como a realização de novos estudos que enfatizem esta
necessidade e construam reflexões acerca da prática em saúde, considerando-se, a partir do
fenômeno da hospitalização, se pensar em novos modos de cuidado, que leve em consideração
os indivíduos em sua totalidade e não somente a partir da patologia.
Ressalto que esta pesquisa não se resume apenas à ciência psicológica, mas abrange as
demais áreas afins. Os resultados obtidos podem contribuir para a reflexão sobre o tema
favorecendo e enaltecendo a importância do acolhimento no ambiente hospitalar, aprimorando
ideias que favoreçam a sensibilização da equipe no que se refere ao resgate das relações
humanas.
Com a finalização deste trabalho, aponto outras possibilidades de pesquisa dentro da
mesma temática, e visualizo outra questão disparadora: Como os pacientes atribuem sentidos
ao momento pós-operatório? Sabendo-se que as vivências e reações no período pós-cirúrgico
estão intimamente relacionadas ao perioperatório.
48
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VIEGAS, Drauzio. Em busca da humanização. Rio de Janeiro: Wak ed. 2010.
51
APÊNDICE
52
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
UNIVERSIDADE DO VALE DO IPOJUCA UNIFAVIP/Devry
Você está sendo convidado (a) a participar da pesquisa Mar de sentimentos:
Navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no précirurgico, que tem como objetivo revelar uma compreensão sobre a dinâmica psicológica na
experiência clínica com pessoas que se encontram diante da iminência cirúrgica. Você não é
obrigado (a) a participar desta pesquisa, e se desejar poderá desistir a qualquer momento e não
será prejudicado (a). Além disto, posso definir que sejam retiradas do material da pesquisa
quaisquer informações que já tenham sido dadas. Caso ocorra algum desconforto emocional
por conta do tema trabalhado, se necessário, você poderá ser acolhido (a) pela profissional de
Psicologia disponibilizada pelo Hospital.
Esta pesquisa é de caráter voluntário e sem fins lucrativos para ambas as partes. Você
estará contribuído para a melhor compreensão desta temática. As informações fornecidas por
você serão utilizadas somente para esta pesquisa e serão mantidas em sigilo, respeitando seu
anonimato.
Você receberá uma cópia deste Termo de Consentimento. Observe que abaixo estamos
disponibilizando nomes e telefones para contato, caso haja alguma dúvida sobre a pesquisa,
bem como sobre sua participação.
Aluna pesquisadora:
Professora responsável:
Stéffanie Costa de Albuquerque
Ana Maria Sá Barreto Maciel
Telefone: (81) 9448-2428
CRP: 02/8482
RG: 8283378
Endereço: Rua Pastor Rubem Prado, 50
Ap.
201
B.
Maurício
Caruaru/PE
Telefone: (81) 9122-3564
de
Nassau,
53
Eu,________________________________________________,
portador
(a)
do
RG:
_______________, certifico que, tendo lido o documento acima exposto e suficientemente
esclarecido, entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação e concordo,
voluntariamente, em participar da pesquisa.
Declaro ainda que fui informado (a) que a pesquisa será realizada em apenas uma
etapa e autorizei que a entrevista fosse gravada num gravador de som.
Caruaru _____/______/______
__________________________________________________________________
Assinatura
______________________________
Testemunha
RG: ___________________________
______________________________
Testemunha
RG: ___________________________
54
ANEXO
55
Download

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