1 UNIFAVIP/DeVry CENTRO UNIVERSITÁRIO DO VALE DO IPOJUCA COORDENAÇÃO DE PSICOLOGIA CURSO DE PSICOLOGIA STÉFFANIE COSTA DE ALBUQUERQUE MAR DE SENTIMENTOS: Navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no pré-cirúrgico CARUARU 2014 2 STÉFFANIE COSTA DE ALBUQUERQUE MAR DE SENTIMENTOS: Navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no pré-cirúrgico Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP/DeVry, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Psicologia. Orientadora: Prof.ª Ma. Ana Maria Sá Barreto Maciel CARUARU 2014 3 Catalogação na fonte Biblioteca do Centro Universitário do Vale do Ipojuca, Caruaru/PE A345m Albuquerque, Stéffanie Costa de. Mar de sentimentos: navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no pré-cirúrgico / Stéffanie Costa de Albuquerque. – Caruaru: UNIFAVIP | DeVry, 2014. 47 f. Orientadora: Ana Maria Sá Barreto Maciel. Trabalho de Conclusão de Curso (Psicologia) – Centro Universitário do Vale do Ipojuca. Inclui anexo e apêndice. 1. Pré-cirúrgico. 2. Acolhimento. I. Título. Humanização. 3. Cuidado. 4. CDU 159.9[14.2] Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário: Jadinilson Afonso CRB-4/1367 4 5 Dedico aos meus pais, que são minha fortaleza e minha fonte de inspiração. 6 AGRADECIMENTOS A Deus, por toda força que me fez ter para continuar em busca do meu sonho mesmo nos momentos mais difíceis. A minha mãe, por ser meu maior exemplo de Mulher, por sua dedicação incansável, por seu apoio indispensável e por seu amor incondicional sobre mim, enfim, por ser a responsável pela minha formação humana. Ao meu pai, por me ensinar a partir do seu modo de ser, sobre sensibilidade e por deixar em mim o legado de gostar da boa música, fazendo dela um elemento essencial na minha vida. Ao meu companheiro, por toda compreensão e ajuda, pelo respeito aos momentos de angústia e fragilidade, por ter seguido ao meu lado nessa caminhada sem hesitar, fazendo das minhas realizações seu motivo de alegria. Aos meus primos Alessandra e Elias, por me ajudarem nos momentos decisivos da finalização dos meus deveres enquanto estudante. Aos demais familiares e amigos, pelas palavras de apoio e incentivo, pelo carinho e até pelo respeito compreensivo sobre minhas ausências em determinados momentos. As minhas amigas Nívea Richelly, Nívia Morganna e Márcia Cristina por tornarem minha caminhada durante estes cinco anos mais leve e verdadeira, pelos risos compartilhados nos momentos mais estressantes, pelos abraços aconchegantes e pelas parcerias indestrutíveis que muitas vezes causaram desconforto naqueles que não compreendiam a força de uma AMIZADE. A minha orientadora Ana Barreto, por saber compartilhar seu conhecimento e por se tornar referência na minha vida enquanto exemplo de profissional e ser humano, pela intensidade com que se presentificou na minha existência. A Andréa Lins, por ter sido luz em vários momentos durante a construção deste trabalho e por sua alegria contagiante. 7 A supervisora de estágio Walkyria Freire, por seu acolhimento, sua sensibilidade e seu “sorriso largo” que sempre nos recepcionava calorosamente. Aos colegas de estágio, em especial Ana Carolina, Jácia, Wendy, Laécio e Carlos, pelos lindos momentos de vida que foram compartilhados, pelas angústias divididas e pelas conquistas comemoradas. E por fim, aos colegas da 1002, por estarem sempre juntos enfrentando os desafios de uma vida acadêmica intensa e por saberem festejar cada momento de realização coletiva, por ser um grupo de verdade com todos seus opostos, mas principalmente com muita alegria. 8 Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. Cora Coralina 9 RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão acerca do acolhimento, visando-o como uma atitude mobilizadora, capaz de transformar a práxis nos hospitais, baseando-se na crença de que o acolher já configura um ato de cuidado. Esta pesquisa procura compreender os sentidos vivenciados e expressos por pacientes no momento pré-cirurgico em um hospital da rede pública do interior de Pernambuco. Foi realizada uma pesquisa de campo qualitativa descritiva exploratória, numa perspectiva fenomenológica existencial. Utilizando-se da Analítica do Sentido de Dulce Critelli, que a partir de uma pergunta norteadora, desvelaramse, revelaram-se, testemunharam-se, veracizaram-se e autenticaram-se os sentidos dados pelas colaboradoras na iminência cirúrgica. Foram entrevistadas três mulheres, que estavam internas aguardando por procedimentos cirúrgicos. Através dos relatos, foi possível compreender que, neste momento de espera, emoções diversas e ansiedades são vivenciadas, dando a ele a condição de se caracterizar como um marco existencial na vida dos que o experenciam. Também foi compreendido que no pré-operatório se manifesta e se evidencia a condição de finitude do Ser-aí. A cirurgia revela a possibilidade da morte e incita sentimentos e reflexões sobre o modo de Ser no mundo. Este momento inspira sensibilidade e cuidado por parte dos profissionais de saúde, para que possam reconhecer as reações e sentimentos expressos pelos pacientes, buscando o acolhimento como via de estabelecimento do cuidado humanizado nos hospitais. Palavras-chave: Pré-cirúrgico; Humanização; Cuidado; Acolhimento. 10 ABSTRACT This inherent work reflects on the host, aimed as a mobilizing attitude, able to transform práxies in hospitals, based on the belief that the host has already set up a care act. This research seeks to understand the experienced felt and expressed by patients before surgical time in a public hospital in the interior of Pernambuco. A descriptive exploratory qualitative field research was carried out in an existential phenomenological perspective. Using Analytical Dulce Critelli direction, that from a guiding question, if unveiled-have proved witnessed, if veracizaram-and authenticated-way data by collaborating in surgical imminent. Three women, who were waiting for internal surgical procedures were interviewed. Through the reports, it was possible to understand that at this time of waiting, many emotions and anxieties are experienced, giving him the condition of being characterized as an existential milestone in the life of the experenciam. It was also understood that preoperative manifests and reveals the finiteness condition of Being-there. Surgery reveals the possibility of death and encourages feelings and reflections on Being so in the world. This moment inspires sensitivity and care by health professionals so that they can recognize the reactions and feelings expressed by patients seeking care as establishing means of humanized care in hospitals. Keywords: Pre-surgical; Humanization; Watch out; Reception. 11 SUMÁRIO 1 Navegante ao mar: O des-velar de uma dor como ponto de partida ...................................... 10 2 Humanização: Elemento norte-a-dor da prática em saúde ..................................................... 14 2.1 Do cuidar ao acolher: O caminho para o processo de humanização no Hospital ..................... 19 3 A dor da espera: O silêncio revela(dor) dos pacientes ............................................................. 23 4 A rota da navegação .................................................................................................................... 28 4.1 O experienciar do tornar-se mar ............................................................................................... 30 4.1.1 Pacífico ..................................................................................................................................... 31 4.1.2 Índico ........................................................................................................................................ 35 4.1.3 Atlântico ................................................................................................................................... 40 5 Um mar de possibilidades ........................................................................................................... 46 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 48 APÊNDICE .......................................................................................................................................... 51 ANEXO ................................................................................................................................................ 54 10 1 Navegante ao mar: O des-velar de uma dor como ponto de partida A ideia para realizar o presente trabalho surgiu a partir de experiências vivenciadas por mim em um Hospital da rede particular, do Interior de Pernambuco, quando fui passar por procedimentos cirúrgicos e deparei-me com formas de atendimento que não expressaram maneiras de acolher o meu sofrimento, por parte da equipe de saúde. Minha primeira experiência ocorreu no ano de 2007, quando, aos 15 anos, fui internada para realizar minha primeira cirurgia, quem me atendeu foi um médico-cirurgião experiente, conhecido por sua competência, porém, extremamente técnico, voltado exclusivamente para os procedimentos necessários para a assistência médica, e indiferente ao acolhimento para com seus pacientes, atitude repercutida também pelos demais membros da equipe. Eu esperava e as horas pareciam não passar, enquanto aguardava minha entrada no bloco cirúrgico vivenciei momentos de tensão, pensava que poderia morrer durante a cirurgia e a ansiedade tornou-se parte de mim. Quando entrei no bloco cirúrgico, novamente o medo da morte me atormentava, a equipe conversava como se eu não estivesse ali, até o momento em que me disseram que iria tomar a anestesia, e, então, acordei no final da cirurgia, quando ainda faziam o curativo. Despertei lentamente e fui levada para a sala de recuperação, onde senti uma grande alegria por estar viva. Pensar a vida em sua finitude às vezes é assustador e, após essa experiência de vida, alguns questionamentos surgiram em minha mente: como se sente um paciente que não é acolhido pela equipe que o acompanha? De que forma a falta de atenção dos cuidadores pode influenciar nos sentimentos dos pacientes, que enfrentam esse momento de sofrimento em sua existência? E, como a relação de cuidado entre equipe-paciente pode intervir no enfrentamento dessa situação? Alguns anos depois, em 2012, novamente fui submetida a outro procedimento cirúrgico, rapidamente procurei um médico-cirurgião que tivesse alguma referência, embora a lembrança da primeira experiência não me deixasse confortável com a ideia. Para minha surpresa, no dia da consulta, o médico foi muito receptivo e atencioso, o que me fez sentir mais segurança, porque percebi o comprometimento dele comigo naquele momento, me senti acolhida e respeitada em meu sofrimento. No dia em que fui internada, recebi a visita da equipe que iria me acompanhar durante o período no qual estivesse hospitalizada: enfermeiras, instrumentador e o próprio médico me explicaram o que iria acontecer durante a cirurgia, e, o mais surpreendente para mim, 11 procuraram saber como eu estava me sentindo e falaram comigo sobre esses sentimentos, o que me deixou tranquila e até confortável naquele ambiente hospitalar. As explicações dos procedimentos em si não fizeram muita diferença diante da minha expectativa pela cirurgia, porém, a intenção que eles tiveram em me acolher e me tranquilizar surtiram efeitos e me senti segura nas “mãos” daquela equipe de profissionais. Essas experiências nunca saíram de minha mente e, com o decorrer da minha graduação em psicologia, deparei-me com os sentimentos vividos a cada vez que ouvia falar na importância do acolhimento, do nosso compromisso de cuidar do outro e da necessidade de um atendimento humanizado nos hospitais. Minhas experiências durante o curso de psicologia sempre me direcionaram na busca de ser alguém melhor e isto diz de uma postura que pretendo assumir diante da vida, pois é assim que compreendo a perspectiva fenomenológica, a qual escolhi para guiar minha prática profissional. Mais do que uma teoria, ela é uma filosofia de vida e, a partir do meu entendimento sobre esse modo de ser-no-mundo, questionei-me: como profissionais, que se propuseram a cuidar de vidas, tornam-se tão negligentes no cuidado para com elas? A dificuldade em acolher diz de uma falha do Sistema de Saúde ou da dificuldade de relacionarse com o outro? O que provoca o distanciamento afetivo na relação profissional-paciente? Dessa forma, movida pelo desejo de fazer parte de um modo de atendimento acolhedor nos hospitais, motivei-me a desenvolver esta pesquisa, acreditando que a maneira como o profissional se dispõe a estar junto com o paciente pode intervir positivamente na sua forma de enfrentar e superar esse momento de sofrimento. Então, parti da seguinte questão: de que modo os pacientes atribuem sentidos ao momento pré-cirurgico, a partir de suas relações com a equipe de saúde? No mar do conhecimento despontei em busca de novas possibilidades, tendo como bússola o meu amor pela psicologia e a forma como sinto o meu compromisso de psicóloga e de pessoa, pois me sinto responsável por modificar aquilo que for possível e permitido, tendo em mente que este é apenas o início de um longo caminho, que se modifica, se reinventa e nunca termina. Lancei-me nessa busca com esta certeza, consciente de que nem sempre será fácil chegar ao ponto determinado, mas este será sempre o meu objetivo. Através do curso de psicologia, pude compreender melhor aqueles sentimentos tão divergentes que vivenciei, correlacionando-os com a forma de atendimento prestada pelas equipes de saúde e aprimorando a ideia de que o acolhimento é um caminho para o processo de humanização dos serviços de saúde, especialmente nos hospitais, tendo em vista que, atualmente, há a falta de condições dignas de um atendimento básico nos serviços de saúde, o 12 que evidencia as condições precárias de trabalho, que também fragilizam os cuidadores e consequentemente, seus modos de estabelecer relações com os pacientes, familiares e colegas de trabalho, pois, como já afirmou OLIVEIRA e MACEDO et al Knobel (2008), a humanização não está apenas baseada na “boa relação”, mas no fato de melhorar as condições de trabalho para o profissional da saúde, abrangendo não apenas infraestrutura, mas também a cultura organizacional. Um fato constatado é que, a maior parte dos pacientes que precisam passar por cirurgias apresentam formas de enfrentamento à situação que vão emergir de acordo com a experiência subjetiva de cada um, compreendendo-se que cada momento de existência gera sentidos diferentes, que podem ajudar o paciente a se reorganizar diante da doença ou da forma de tratamento proposto. A iminência cirúrgica dá início a um processo adaptativo, cujo impacto emocional será real e singular a cada paciente, podendo levar a reavaliações de seus valores, do seu modo de vida, de suas relações e podendo, portanto, gerar verdadeiras crises existenciais. O cuidado com os pacientes no pré-cirurgico é essencial. Tendo em vista que este momento é envolvido por uma carga emocional muito forte, a afetação daqueles que estão diretamente ligados a este momento é inevitável e, por isso, a escuta compreensiva neste momento faz grande diferença. Há uma série de aspectos que podem influenciar a cirurgia e o pós-operatório dos pacientes cirúrgicos, no que diz respeito às reações psicológicas. Esses aspectos podem ser decisivos para a evolução, a recuperação do paciente e sua futura reabilitação. (ISMAEL; OLIVEIRA et al Knobel, 2008, p. 85) Diante destas constatações e da minha vontade de atuar junto a outros profissionais de saúde, surgiu o questionamento: como o cuidado humanizado pode contribuir para o fortalecimento emocional dos pacientes no momento pré-cirúrgico? Assim, me propus a buscar os sentidos dados a este momento, pelos pacientes, compreendendo os sentimentos vividos através da forma de assistência prestada pelos profissionais de saúde no âmbito hospitalar, compreendendo também o quanto o acolhimento e a escuta diferenciada podem intervir positivamente no processo de adaptação emocional de pacientes que aguardam cirurgias. Essa investigação tornou-se relevante para mim, por acreditar que o hospital é um lugar onde luta-se pela vida e, por isso, o acolhimento é um fator de extrema importância na prática dos profissionais, porque esta deve ser baseada em valores humanos, técnicos e terapêuticos, pois os profissionais da área de saúde se propõem a cuidar da existência- 13 sofrimento e, por isso, precisam manter, permanentemente, uma postura ética no cuidar da vida. Ao lançar-me nesta descoberta enriqueci minha prática profissional, no sentido de firmar um compromisso ético e de responsabilidade com aqueles que me permitirem estar junto ao seu sofrimento, sendo ele de que ordem for. Ser humano é ser humano na vida, dentro e fora de um hospital, de um centro de saúde, ou de um consultório. Não há como dissociar. É um exercício contínuo. O encontro, a potência do encontro, é a vivencia e a riqueza desse exercício, que nos toca humanamente quando se está em um encontro genuinamente humanizado com o outro”. (OLIVEIRA; MACEDO et al Knobel, 2008, p.180). No contexto científico, esta pesquisa é relevante porque pode proporcionar reflexões para as equipes de saúde e políticas públicas, contribuindo para a reformulação da prática de assistência técnica nos hospitais e demais serviços de saúde, podendo contribuir também para o aumento de produção literária numa área que ainda possui poucas referências sobre o tema. Essas informações não contribuem apenas com a ciência psicológica, mas com todas as ciências afins que correlacionam-se com o âmbito da saúde. A importância da presença de um profissional de psicologia junto a profissionais de outras áreas da saúde em ambiente hospitalar também é justificada com esta pesquisa , tendose em vista que o psicólogo poderá direcionar e alertar o grupo, no sentido de qualificar a escuta, construindo uma equipe humanizada e centrada nas necessidades dos pacientes. A relevância social dessa investigação revela-se pelo fato desta assistência acolhedora possibilitar que o paciente se adapte e aceite mais facilmente sua condição durante o período pré-cirúrgico e, consequentemente, no pós-operatório, facilitando sua relação com os profissionais, com os familiares e com suas novas possibilidades, promovendo uma reflexão e ressignificação de sua realidade, além de colaborar com a elevação dos níveis de assistência qualificada nos serviços de saúde, tendo-se em vista que de acordo com a Política Nacional de Humanização (PNH), o fator humanização é umas das estratégias para se alcançar a qualificação da atenção e da gestão em saúde no SUS, transformando-a numa diretriz política transversal, que deverá se traduzir em ações nas diversas práticas de saúde. Nesta pesquisa, é relatada a experiência de pacientes que aguardavam por cirurgias e a compreensão dos sentidos revelados por estas pacientes no enfrentamento desta situação que exige complexa adaptação emocional. Com estas informações torna-se possível lançar uma reflexão acerca do modo de se pensar e prestar assistência pelos profissionais de saúde nos serviços públicos e privados. 14 2 Humanização: Elemento norte-a-dor da prática em saúde O presente capítulo se preocupa em discorrer sobre o conceito de humanização inserido no ambiente hospitalar, para tal feito tornou-se necessário conhecer a etimologia da palavra, bem como conhecer de que forma o cuidado humanizado é inserido no Sistema de Saúde no Brasil, o que foi possível através do conhecimento sobre a Política Nacional de Saúde (PNH) e através das construções bibliográficas do autor Elias Knobel. Também apresenta informações sobre a historicidade do Hospital, destacando pontos que podem ser considerados essenciais para justificar a atual forma de assistência oferecida nos hospitais, além de ressaltar a importância do cuidado com o outro como possível alternativa para a inserção da humanização no meio hospitalar, utilizando Campos (1995) e Camon (2006) para embasar tal concepção. Ao pensar nos serviços de Saúde não é difícil remeter-se às condições precárias e desumanas, as quais se tornaram as principais características dos serviços prestados no Brasil, especialmente no ambiente hospitalar. É importante destacar que o termo desumanização aqui está sendo expresso para enfatizar a forma inapropriada com a qual estão se dando os atendimentos nos hospitais, estes destacam-se pela inexistência de acolhimento e cuidado que possibilite a escuta e a compreensão da dor dos usuários. A partir de tal cenário, torna-se possível perceber o quanto é necessária e urgente a busca pela efetivação do cuidado humanizado nesta área. Etimologicamente a palavra humanização diz do ato ou efeito de humanizar (se), dar a condição humana a, ou seja, fornecer condições mínimas de respeito à dignidade das pessoas e a garantia de seu direito fundamental à vida e à saúde1. A humanização dos serviços é algo tão importante e necessário que tornou-se uma das prioridades de inovação do Sistema Único de Saúde, através da Política Nacional de Humanização (PNH), implementada no início dos anos 2000, que visa efetivar os princípios do SUS, qualificando a saúde pública no Brasil, no cotidiano das práticas de atenção e gestão, incentivando as trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários. De acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, a PNH tem a intenção de operar transversalmente em toda rede do SUS, portanto, essa política exige mais do que nunca, que a “atitude humanizadora” seja o eixo através do qual serão articuladas as demais políticas, 1 HUMANIZAÇÃO. Disponível em: <http://www.significados.com.br/humanização/humanizasus>. Acesso em: 18 abr. 2014. 15 dando-se destaque aos aspectos subjetivos presentes em toda prática humana nos serviços de saúde.2 Algumas ações, como debates sobre os modelos de gestão e execução do controle social, bem como a formação dos profissionais, são medidas que apresentam-se necessárias e urgentes para que se possa garantir o direito à saúde digna para todos, a fim de se consolidar um compromisso ético dos profissionais de saúde em defesa da vida. Trata-se, sobretudo, de investir na produção de um novo tipo de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde e deles usufruem, acolhendo tais atores e fomentando seu protagonismo. (BRASIL, 2004, p.08) Apesar das iniciativas governamentais, o fato é que a inserção do cuidado humanizado nos serviços de Saúde ainda é algo distante da realidade, embora esse devesse ser uma premissa básica desses serviços. De acordo com Campos (1995), isso acontece porque o modelo biomédico, fruto do pensamento positivista, que trata o paciente sem considerar a totalidade do corpo e o contexto social, ainda é predominante na assistência hospitalar. Devido à influência desse modelo, pode-se perceber uma procura cada vez maior pela especialização. Os profissionais ficam mais restritos à parte ou função do corpo humano que apresenta problemas e essa fragmentação origina uma forma impessoal de atenção ao usuário e faz com que o profissional desconsidere os demais aspectos implicados no processo de adoecimento. Observa-se que a maioria dos profissionais das áreas da saúde é formada para manter o foco na patologia, recebendo uma adequada carga de conhecimentos técnicos. Contudo, esses conhecimentos tendem a ser veiculados sem o seu necessário complemento e amparo, que é o desenvolvimento da habilidade interacional e a sensibilidade para ver o ser humano na sua integridade e complexidade. (BRAGANÇA, 2006, p.38) O conceito de humanização leva a crer que devemos esperar dos seres humanos aquilo que eles têm de melhor, em qualquer contexto, mas principalmente no hospitalar, em que a fragilidade emocional e a vulnerabilidade são fatores explicitados em cada atitude, em cada gesto, em cada olhar, em cada grito ou silêncio. Através da etimologia da palavra hospital, percebe-se uma grande ironia no que se refere ao seu significado com relação à sua atual dinâmica. Segundo Lima Gonçalves (1983) e Borba (1985) apud Campos (1995), vem do latim “hospes”, que significa hóspede, ou seja, se 2 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Disponível em: <http://www.portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretaria/sas/ 16 a palavra em si exercesse influência sobre o funcionamento da instituição, já seria um grande avanço, pois quando somos hóspedes em algum lugar ou hospedamos alguém, queremos receber ou oferecer um mínimo de conforto, acolhimento, segurança e bem-estar. Apesar da denotação do Hospital sugerir que ele seja um lugar acolhedor, sabe-se que é comum encontrar instituições que não oferecem tal acolhimento e, por isso, torna-se tão importante a mobilização pela execução do cuidado humanizado nesse contexto, embora não seja algo simples e imediato. Que o processo de humanização é algo complexo e lento, isso é fato, e se deve a fatores históricos que culminaram no surgimento do Hospital. Ainda segundo os autores supracitados, pode-se afirmar que, antigamente, o Hospital exercia uma função de depósito, no qual se acumulavam pessoas doentes e sem recursos. Historicamente, o Hospital surgiu no ano 360 d.C. e recebeu influência direta da religião cristã. No século XVIII, os doentes eram acolhidos nos hospitais com o único objetivo de excluir o indivíduo da sociedade, com o intuito de não disseminar a doença, ou para esperar a morte, procurando para este fim instituições como as Irmandades Santas Casas de Misericórdia que eram dirigidas por religiosos inspirados pela parábola do Bom Samaritano; estes acolhiam os doentes por amor a Deus, dedicavam-se ao cuidado e doação ao próximo (RAVAZZI; DIAS; OLIVEIRA; BARALHAS, 2009, p.3-4). Com os avanços da medicina e da tecnologia, os hospitais foram evoluindo e se modernizando, porém, sua função foi se estreitando e tomando características meramente curativas, o que pode ser uma explicação para o modelo de atendimento tecnicista vigente nos hospitais, como afirma Nogueira-Martins e Macedo apud Knobel (2008, p.183): [...] o trabalho na área da saúde vem enfrentando há alguns anos, uma crise de legitimação ante o desenvolvimento da tecnologia e do saber científico, por estar desconsiderando valores humanistas fundamentais para a atenção à saúde. Felizmente, a preocupação com o estabelecimento do cuidado humanizado nos hospitais vem ganhando espaço, embora o pensamento cartesiano ainda seja muito forte e se perceba, frequentemente, profissionais tratando de doenças sem levar em conta o ser humano e seu contexto de vida, tratando-o como objeto. Mas, esse tipo de atitude faz manter a esperança necessária para se continuar na busca das transformações, por menores que elas sejam. Acreditar nessa busca é legitimá-la, porque ela não depende da concretude das instituições, mas sim da transformação subjetiva de cada ser humano envolvido nesse 17 processo. Então, a concretização deste conceito navega no mar infinito das possibilidades humanas e pode ancorar a cada momento, inclusive agora, no porto da transformação, que se chama consciência e que habita em cada ser. Embora estejamos nos referindo a um campo de atuação profissional, no qual o número de variáveis para um atendimento humanizado é grande, existe uma dimensão na qual a humanização é mais do que uma forma de se atuar profissionalmente, é uma atitude diante da vida. (OLIVEIRA; MACEDO et al KNOBEL, 2008, p.180) O processo de humanização possui um caráter complexo, amplo e demorado porque, para que ele possa ser efetivado, é necessário haver mudanças no contexto geral das organizações, abrangendo-se as circunstâncias éticas, educacionais, psíquicas e sociais. O que significa que cada profissional precisará passar por um processo singular de humanização, como aponta Barros e Cypriano et al Knobel (2008), e várias instâncias deverão estar envolvidas nessa transformação, inclusive os formuladores de políticas públicas, entidades formadoras e conselhos profissionais, ou seja, esse processo envolve mudanças de comportamento e por isso, seu conceito precisa ser compreendido por todos. Não há humanização sem projeto coletivo em que toda a organização se reconheça e, nele, se (re)valorize. É seu objetivo fundamental resgatar as relações entre profissional de saúde e usuário, dos profissionais entre si, da instituição com os profissionais e do hospital com a comunidade. (BARROS; CYPRIANO et al KNOBEL, 2008, p.201) Com a internalização do conceito de humanização, feito por cada profissional da área de Saúde, se tornará mais fácil o estabelecimento da relação entre equipe-paciente, o que será de extrema importância para o reestabelecimento emocional dos pacientes diante das desestabilizações causadas pela hospitalização e pela espera da cirurgia. Essa relação poderá ter efeitos terapeutizantes. Camon (2006) afirma que, com o vínculo estabelecido entre equipe e pacientes, existe a possibilidade concreta de se desenvolver os sentimentos de confiança e autorização. Tais sentimentos são imprescindíveis para o bom prognóstico emocional da relação do sujeito com a cirurgia e, consequentemente, com o processo de pós-operatório e reabilitação. O autor também aponta que a questão da autorização e da confiança remete a um aspecto muito importante entre a equipe de saúde e os pacientes, que denomina-se “entrega participativa”, este fator facilita a relação porque o paciente sente-se como parte fundamental na realização do tratamento e isto irá influenciar na sua forma de lidar com a situação e, 18 posteriormente, com sua recuperação. O fato é que a estruturação do vínculo entre pacientes e equipe é capaz de otimizar as respostas ao tratamento em todos os aspectos, reduzindo também o tempo de reabilitação e reintegração do paciente. É sabido através de longa experiência, que tratar os pacientes como indivíduos e aumentar sua percepção de si mesmos como indivíduos adultos mobiliza sua capacidade de autocura, possibilitando que colaborem com o tratamento médico. (LE SHAN, 1992 apud BRAGANÇA, 2006, p.48) A partir da compreensão de Viegas (2010) acerca da prática em saúde, constata-se que para a efetiva vinculação entre paciente-equipe acontecer é preciso haver cuidado na práxis dos profissionais, essa sendo compreendida como ação transformadora é capaz de modificar o contexto onde está inserida, pois faz uso do conhecimento de forma sensível. A conservação de valores como o cuidado e a sensibilidade diz do modo como o ser se relaciona consigo e com os outros e irá permear as demais relações dele no mundo. É importante compreender como se dá essas relações porque, como foi citado anteriormente, a humanização depende de nós e deve estar presente em todos os lugares. Conta uma fábula antiga que a essência do humano reside no cuidado e uma divindade cuida de cada um de nós. De mais a mais, todos somos filhos e filhas do infinito cuidado que nossas mães tiveram ao nos gerar e ao nos acolher neste mundo. E será o simples e essencial cuidado que ainda vai salvar a vida, proteger a Terra e nos fazer singelamente humanos. (BOFF, 2012, p.15) Torna-se evidente a situação crítica pela qual está passando o Sistema de Saúde no país, e este fato nos convida a participar ativamente da mudança deste cenário. A humanização deve estar presente nos mais diversos contextos e deve ser de responsabilidade de todos os profissionais que formam os serviços, pois visa a centralidade dos elementos presentes na relação assistencial, sendo estes subjetivos e intersubjetivos, sem que este fato implique a segundo plano as questões orgânicas, mas, ao contrário, tenha como objetivo a integralidade da atenção. Após a compreensão acerca do conceito de humanização no hospital é possível perceber que o ato de cuidar e a atitude sensibilizadora são características básicas do acolhimento, que aqui deve ser entendido como ação fundamental na prática dos profissionais de saúde, então, convido-os a seguir viagem rumo as reflexões sobre tais conceitos, para que possamos compreender a importância destes elementos na efetivação do processo de humanização hospitalar. 19 2.1 Do cuidar ao acolher: O caminho para o processo de humanização no Hospital Muitas vezes a cura, a prevenção, dependentes de tantos fatores, não estarão em nossas mãos, porém, o acolhimento e o cuidado – estes sim, sempre possíveis mesmo que não possam curar a patologia, poderão, antes de tudo, “curar” a desumanidade, uma doença que está nos matando. Humberto Mariotti Neste tópico, serão suscitadas possibilidades de reflexões acerca de valores humanos fundamentais para gerar o sentido de um acolhimento humanizado no ambiente hospitalar. Para tanto, foram utilizados conceitos de cuidado referidos por Leonardo Boff (2012), Drauzio Viegas (2010), entre outros, fazendo uma analogia com os princípios éticos norteadores de uma prática de cuidar humanizado. Ao termo humanização atrelam-se os conceitos de cuidado e sensibilidade e estes são importantes norteadores das ações humanas. Boff (2012) revela que o cuidado é algo inato e intrínseco à existência humana e perpassa pela simples perspectiva do cuidar do corpo até o cuidado com o planeta Terra. O mesmo autor, em outra obra sua, cita a Fábula do Cuidado para facilitar a compreensão da relação entre o existir humano e o cuidado, como demonstrado adiante. Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: essa criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil. (BOFF, 1999, p. 67) Esta fábula atenta para o fato que necessitamos o tempo todo do cuidado, enquanto condição de existir no mundo. O cuidado é parte integrante do viver humano, e das suas maneiras de se apresentar e cuidar de tudo que estar em sua volta. Envolve, neste contexto, uma prática de eticidade. “Mais que uma técnica o cuidado é uma arte, um paradigma novo de relacionamento para com a natureza, para com a Terra e para com os seres humanos.” (BOFF, 2012, p.21). Ainda de acordo com o autor acima citado, um dos sentidos do cuidado remete à necessidade do ser humano predispor da vontade de cuidar e ser cuidado. Segundo ele, este também pode ser assumido de forma consciente, interiorizado como valor que reflete nas atitudes humanas ao longo da vida, e seria chamado de cuidado ético-consciente. O cuidado 20 aqui será pensado como preocupação, inquietação que mobiliza as ações humanas efetivando e tornando indissociáveis a relação entre o nível pessoal e social. O cuidado deve ser o motor da ação, do agir, tendo como fim a dignidade humana num mundo global que, como tal, deve constituir uma ética. Ética não no sentido de elaboração de um agir, mas enquanto um projeto de uma ontologia, onde cuidar é um cuidar dos outros, porque existir é, desde logo, existir com os outros. (MACIEL, 2012, p.49) Junto ao conceito de cuidado caminha a sensibilidade, esta, quando bem empregada, possibilita a percepção de sentimentos e expressões de ordem física que transmitem as emoções vividas pelas pessoas, de forma geral. A sensibilidade é expressa quando alguém se dispõe afetivamente para com outro alguém, de acordo com o autor Drauzio Viegas. Sensibilidade é perceber que o outro está procurando um contato e você saber responder com a atenção, a escuta, um olhar, um gesto, uma palavra, uma atitude que seja delicada, com respeito, solidariedade. É o interesse real pelo outro, procurando dar o que você tem de melhor dentro de si. (VIEGAS, Drauzio, 2010, p.20) É esta sensibilidade que muitas vezes torna-se ausente na prática dos profissionais de saúde, e é a partir dela que se pode pensar em uma nova possibilidade de assistência em saúde, porém, não se deve negar, que assumir uma atitude cuidadosa não é tão simples, especialmente quando se precisa enfrentar cotidianamente situações de sofrimento, estresse, cansaço, questões pessoais e organizacionais de forma geral. Os profissionais estão rotineiramente submetidos a estes fatos e, a partir disso, utilizam-se da negligência, do descaso e do não afetamento para se “proteger” de sentimentos mobiliza-dores de si mesmo no encontro com o outro que convive. É importante falar sobre os conceitos de cuidado e sensibilidade porque estes remetem a atitudes acolhedoras características do processo de humanização. Ambos apresentam-se como vias de acesso ao outro e, por isso, possibilitam uma maior compreensão da responsabilidade dos profissionais de saúde enquanto seres humanos, no auxílio aos pacientes. “A sensibilidade precisa ser cultivada como se cultiva uma flor, uma amizade e o amor.” (VIEGAS, 2010, p.14). Para justificar a abordagem deste tema, como possibilidade de motivar novos modos de assistência hospitalar, a concepção do filósofo Martin Heidegger sobre o cuidado fornece subsídios para tal reflexão, segundo ele este torna-se essencial na constituição do Ser-humano 21 e configura seu modo de estar-no-mundo, como explica Boff (2012), ou seja, o cuidado é para o Ser a base ontológica da existência e dá sentido a toda e qualquer ação por ele realizada. Nas reflexões filosóficas de Heidegger o cuidado pode ser classificado como “autêntico”, quando expressa o cuidado de si de forma singular e positiva, ou, como “inautêntico” que caracteriza-se pelo modo de cuidado consigo e com o outro de forma padronizada e condicionada, livre de afetação. É este tipo de cuidado que na maioria das vezes tem sido assumido pelos profissionais de saúde em suas práticas, a impessoalidade domina e elimina qualquer possibilidade de constituição de vínculos afetivos entre equipe/pacientes. Resumindo, podemos concluir: o cuidado é a precondição necessária para que algo possa existir e subsistir; é a disposição antecipada de toda prática e de toda a ação. Sem ele as coisas não irrompem para a existência, como a lógica do universo o comprova; a prática deixa de ser construtiva e expressão da liberdade para ser apenas atos inconsistentes e atabalhoados. O cuidado é uma forma de amor, e o amor é uma concretização do cuidado essencial. (BOFF, 2012, p.64) É preciso enfatizar a necessidade da compreensão sobre o cuidado porque será a partir dele que poderá se estabelecer uma atitude acolhedora. Neste trabalho o acolhimento é visado como meio de promoção de saúde no hospital e dependerá principalmente das relações estabelecidas entre profissionais e pacientes. Como afirma Bragança (2006), ao profissional de saúde caberá a disponibilidade e o interesse de tentar alcançar o entendimento da necessidade do paciente, para que se possa ressaltar a condição de sujeito que geralmente é esquecida devido à condição do adoecimento. Para que o profissional consiga, de fato, acolher ele precisará estar “presente”, vivenciando as relações entre as pessoas e o ambiente, compreendendo e interagindo com os fenômenos. Acredita-se que o apoio ao desenvolvimento pessoal e social através da escuta, do diálogo, da facilitação do acesso à informação, do acolhimento e da intensificação das habilidade vitais faz parte da promoção de saúde. (BRAGANÇA, 2006. p.49). Ainda de acordo com a autora, sabe-se que simples ações, como fornecer informações a respeito do tratamento ou procedimento que o paciente vai fazer e o favorecimento da escuta “qualificada”, aqui entendida como ato de ouvir com atenção e zelo que fornece espaço para a ressignificação da experiência do sofrimento ante a cirurgia, já caracterizam atitudes de acolhimento por parte da equipe e poderiam beneficiar os pacientes porque já são compreendidas como medidas de promoção de saúde. 22 Entretanto, assim como a humanização, o acolhimento não se dá por decreto e, por esse motivo, deveria sempre fazer parte dos discursos e reflexões coletivas sobre a dinâmica do trabalho em saúde. Por estar direcionado às relações interpessoais, mais uma vez se justifica a importância de se ter profissionais de psicologia inseridos nos hospitais, tendo em vista que estes podem servir como facilitadores do processo de ressignificação das pessoas envolvidas neste contexto, favorecendo a transformação cotidiana do trabalho em hospitais. (...) É concretamente um rosto com olhar e fisionomia. O rosto do outro torna impossível a indiferença. O rosto do outro me obriga a tomar posição porque fala, pro-voca, e-voca e com-voca. (...) O rosto e o olhar lançam sempre uma pro-posta em busca de uma res-posta. (...) Aqui encontramos o lugar do nascimento da ética que reside nesta relação de res-ponsa-bilidade diante do rosto do outro (...). É na acolhida ou na rejeição, na aliança ou na hostilidade para com o rosto do outro que se estabelecem as relações mais primárias do ser humano e se decidem as tendências de dominação ou de cooperação. (BOFF, 2002 apud SILVEIRA e VIEIRA, 2005, p.94) Então, aqui se pode compreender o maior objetivo deste trabalho, que é apontar o acolhimento como uma atitude mobilizadora, capaz de transformar a práxis nos hospitais, compartilhando da crença que o acolher já configura um ato de cuidado. A seguir poderá se compreender de forma mais aprofundada sobre o dinamismo emocional dos pacientes no momento pré-cirúrgico atrelado aos benefícios da atenção prestada pelos profissionais de saúde a estes pacientes. 23 3 A dor da espera: O silêncio revela(dor) dos pacientes Vamos ouvir esse silêncio meu amor Amplificado no amplificador Do estetoscópio do doutor No lado esquerdo do peito, esse tambor Arnaldo Antunes/Carlinhos Brown (O silêncio)3 Silêncio é o som que ecoa nos frígidos corredores dos hospitais, é ele quem reina e faz despertar os mais diversos sentimentos dos pacientes que aguardam, desamparados, pela entrada no bloco cirúrgico. Frias são as expressões, as palavras e as horas que antecedem o ato, tornando a dor da espera ainda mais intensa e angustiante. Aqui pretende-se apresentar os aspectos psicológicos que comumente envolvem os pacientes quando estão hospitalizados e aguardando por cirurgias, procurando enfatizar os efeitos terapeutizantes que podem se fazer presentes na relação do paciente com a equipe de Saúde que o assiste, evidenciando também os fatores que contribuem para seu restabelecimento e reintegração sócio-familiar. Para a construção deste texto foi utilizada como principal referência o autor Valdemar A. Angerami – Camon, que possui vasto número de publicações na área de Psicologia Hospitalar e sua leitura torna-se imprescindível para a compreensão de alguns aspectos específicos da área, bem como para a produção acadêmica. Além dele, as construções de Kelly de Juan também fundamentaram o presente capítulo. Qualquer necessidade de mudança sofrida pelo ser humano exige um ajustamento e “reconfiguração” de seu modo de vida, especialmente, quando estas mudanças são imprescindíveis para o restabelecimento de sua saúde. O paciente, ao ser hospitalizado, é obrigado a fazer uma ruptura com aquilo que fazia parte de sua rotina, de forma parcial ou total, o que irá exigir uma reorganização emocional que frequentemente causará medo ou ansiedade, principalmente se estas mudanças estiverem relacionadas a um prognóstico cirúrgico. De acordo com Camon (2006), a necessidade da cirurgia é um fator de estresse que vai exigir do paciente “estratégias” de enfrentamento, as quais serão constituídas a partir de suas experiências de vida e de seu modo de percepção do mundo, e irão ser refletidas em seu comportamento diante da situação. 3 ANTUNES, Arnaldo; BROWN, Carlinhos. O silêncio. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/arnaldoantunes/o-silencio.html. Acesso em: 10/10/2014. 24 A maneira que o paciente percebe a ameaça, no caso a cirurgia, ou seja, o significado que atribui a ela, é mais importante do que a própria cirurgia. A partir da percepção, surgem comportamentos de ajuste, os quais têm como objetivo enfrentar o estresse e a ansiedade desencadeados por este momento. (PENICHE; JOUCLES & CHAVES, 1999 apud JUAN, 2007) A autora acima citada também aponta que além dos conflitos desencadeados pelo momento pré-cirúrgico, o ato de internação em um hospital traz consigo uma carga de sentimentos negativos que, por si, só elevam os níveis de estresse. A rotina hospitalar é totalmente avessa ao mundo fora dele e exige do paciente uma aceitação imediata de sua condição, colocando-o em um patamar de igualdade com os demais, para que a doença possa ser evidenciada. Essa padronização dos pacientes, que passam a existir e a significar a partir de seus diagnósticos, denomina-se despersonalização e é um processo comum vivenciado nos hospitais. Ele ocorre também porque os profissionais envolvidos nesse contexto possuem uma tendência à focalização da patologia ou do sintoma e esquivam-se do cuidado com o outro em sua singularidade e este, passivamente, sofre e, por vezes, negligencia o cuidado consigo mesmo apenas por não ter conseguido expressar-se diante de sua condição. Juan (2007) ainda afirma que a vivência de uma hospitalização, especialmente para submeter-se a uma cirurgia, pode ser considerada um momento de crise na existência do paciente, pois esse passa a ter limitações em seu espaço vital. Se o procedimento cirúrgico exigir apenas mudanças temporárias, de alguma forma esse processo pode ser vivenciado mais facilmente, porém, se esse procedimento diz de uma necessidade orgânica mais grave, o paciente precisará passar por uma verdadeira reestruturação existencial para se adequar ao novo contexto e isto demandará tempo e perseverança por parte de todos os envolvidos. O paciente que aguarda por cirurgia pode reagir de diversas formas, no entanto, o medo é vivenciado nessa experiência e pode ser demonstrado de vários modos, desde a contenção emocional até a agressividade. “Que ninguém se deixe enganar pela contenção emocional de um paciente cirúrgico. Não importando o grau de imperturbabilidade de sua aparência, subjacente a ela há um medo e um pavor terríveis.” (SEBASTIANI et al CAMON, 2006, p.33) Pode-se perceber que normalmente no momento pré-operatório o paciente é tomado pelos sentimentos de medo, insegurança, angústia e ansiedade. Até certo ponto esses sentimentos são considerados positivos, pois movem o sujeito na busca do reequilíbrio emocional, porém, se esses sentimentos forem vivenciados em excesso poderão trazer 25 consequências que irão refletir até no pós-operatório, dificultando a recuperação. De acordo com Lopez-Roig, Pastor e Rodrigues-Marin (1993) et al Juan (2007, sem paginação): [...] o aumento do nível da ansiedade coincide com a proximidade da cirurgia, caracterizando a ansiedade situacional. Os níveis de ansiedade dependem também do ´locus´ de controle, ou seja, os tipos de variáveis que podem determinar a ansiedade, as quais se alteram de indivíduo para indivíduo. Garcia et al (2004) acrescentam que as variáveis podem ser determinadas por características demográficas, a história clínica do paciente, variáveis da personalidade, tipo de funcionamento psicológico, cognitivo, afetivo e interacional, a relação médico-paciente e a própria experiência de hospitalização. Sabe-se que no período entre o pré e o pós-operatório os pacientes podem apresentar diferentes níveis de ansiedade, os três tipos básicos que comumente apresentam-se são confusional, paranóide e depressiva. De acordo com Platas (1990) et al Juan (2007) a ansiedade do tipo confusional é característica do momento pré-cirúrgico e, como o nome sugere, os pacientes podem apresentar uma certa “confusão” emocional que pode ser entendida como um desequilíbrio diante da situação desestruturante que é vivida na iminência cirúrgica. O trecho citado abaixo é da música “A Via Láctea”4 (1996), gravada pela banda Legião Urbana e reflete bem a vivência de sentimentos controversos que podem estar presentes neste momento: Eu nem sei por quê me sinto assim Vem de repente um anjo triste perto de mim E essa febre que não passa E meu sorriso sem graça Não me dê atenção Mas obrigado por pensar em mim Segundo o mesmo autor, na fase paranóide são comuns as manifestações de medo, desconfiança e ansiedade intensa, tais sentimentos são característicos do período operatório e tendem a decair quando existe um bom vínculo entre equipe e pacientes. A ansiedade depressiva geralmente apresenta-se no período pós-operatório, pois torna-se mais evidente no psiquismo as implicações do ato cirúrgico e como consequência, frequentemente, os pacientes podem apresentar: tristeza, fadiga, insônia, impotência e euforia. Conforme vai havendo a ressignificação do evento cirúrgico e a recuperação vai se estabelecendo, os sintomas vão decaindo. 4 RUSSO, Renato; BONFÁ, Marcelo; VILLA LOBOS, Dado. A via láctea. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/a-via-lactea.html. Acesso em: 10/10/2014. 26 Platas (1990) lembra ainda que uma dessas fases predomina sobre as outras e por consequência, demandam tipos diferentes de intervenção e manejo. O profissional deve identificar qual a necessidade maior do paciente e atuar para que minimize os efeitos da fase predominante. (Juan, 2007, não paginado) É neste momento de grandes conflitos existenciais que a equipe deve ter sensibilidade para estar junto ao paciente, possibilitando que ele tenha clareza sobre seus sentimentos e dúvidas. Esta é uma medida simples e eficaz, pois, além de diminuir a ansiedade, é capaz de excluir possíveis causas de complicações na evolução do pós-operatório. Como afirma Roth, Lowery, Davis & Wilkins et al Juan (2007): “Sentimentos negativos existentes nesta etapa podem prejudicar o enfrentamento do paciente, culminando com o comprometimento de sua recuperação”. A partir da compreensão acerca das ideias dos autores Camon (2006) e Juan (2007) não se pode negar que os aspectos subjetivos, patológicos e ambientais também são fatores intrínsecos ao modo de reação do paciente, e, além disso, pode-se constatar que ao se estabelecer um vínculo entre equipe-paciente, se estabelece uma relação transformadora, porque nela o cuidado predomina e se dissemina favorecendo o reequilíbrio emocional. É necessário haver, por parte da equipe, um desprendimento para se conseguir uma atitude de inclinação para o outro e com o outro, solicitude, continência e perseverança devem ser as forças que impulsionam o agir de cada profissional na busca da consolidação dos vínculos com os pacientes. Esse modo de agir é suficiente para efetivação do cuidado humanizado e, sem dúvidas, traz benefícios para os que o oferecem e os que o recebem. [...] a atitude mais adequada da equipe é a de agir preventivamente, já no início do contato com o paciente, se possível ainda no ambulatório ou consultório, quando a indicação cirúrgica muitas vezes é uma das possibilidades, intensificando esse trabalho na internação. Fatores como confiança, disponibilidade, continência ao paciente para que exponha seus sentimentos, orientação e desmistificação das fantasias são fundamentais. (SEBASTIANI et al CAMON, 2006, p.43) São inquestionáveis as consequências positivas advindas do estabelecimento do cuidado na relação equipe-paciente. Esta, além de intervir nos contextos biológicos e emocionais, é capaz de concretizar o processo de humanização nos hospitais, atingindo também o contexto social. Percebe-se que os demais profissionais da equipe, não psicólogos, podem atuar como agentes multiplicadores de condições de enfrentamento, estando em concordância com as filosofias multidisciplinares de cuidados com a saúde, não se propondo que estes realizem intervenções psicológicas ou psicoprofilaxia cirúrgicas. Sendo estas especialidades do 27 profissional psicólogo, aqui se propõe uma reflexão sobre os modos de assistência que são oferecidos na área de Saúde, através da evidência dos benefícios causados pelo bom estabelecimento da relação entre equipe e paciente. As reações psicodinâmicas durante o período pré-operatório são inegáveis, assim como os benefícios da relação de cuidado oferecida pela equipe de Saúde. O procedimento cirúrgico tem efeitos psicossociais importantes e a ansiedade vivenciada nesse momento estará diretamente relacionada com os resultados obtidos no pós-operatório como evidenciou Juan (2007). O objetivo central deste capítulo é incentivar a reflexão acerca das possíveis reações que podem ser vividas pelos pacientes no pré-cirurgico. Estas constatações são importantes para que se possa compreender que o momento pré-operatório é mais complexo do que se imagina, e não apenas por haver explicitado ali uma situação patológica, mas por se ter em evidência um momento de ressignificação existencial. Em seguida, no próximo capítulo, será apresentado o caminho percorrido para se chegar aos fenômenos que emergiram a partir do encontro vivido com pacientes no período pré-cirurgico. O reconhecimento destes fenômenos só tornou-se possível porque buscou-se, com esse trabalho, vislumbrar uma nova possibilidade de compreensão deste momento revelador. 28 4 A rota da navegação Para a concretização deste trabalho foi realizada uma pesquisa de campo qualitativa descritiva exploratória, baseada numa perspectiva fenomenológica existencial, esta teve o objetivo de apresentar uma compreensão sobre como o cuidado humanizado pode contribuir para o fortalecimento emocional dos pacientes no momento pré-cirúrgico. “A grande distinção entre o modelo fenomenológico e os demais modelos de pesquisa – sejam estes qualitativos ou quantitativos – está na intrínseca correlação entre o sujeito da pesquisa e o sujeito do pesquisador”. (BRUNS e HOLANDA, 2005, p.54). A corrente filosófica escolhida ofereceu subsídios para que eu, enquanto pesquisadora, pudesse ir ao encontro do Ser, resgatando o cuidado-com o paciente a partir de suas múltiplas necessidades subjetivas. A utilização da cartografia sentimental (ROLNIK, 2014) reforçou o modo de relação com a experiência, convocando a pesquisadora a se lançar neste território ainda desconhecido, a fim de buscar elementos para construir novos sentidos, compondo cartografias e criando história. E, assim como propôs Suely Rolnik (2014), me lancei nesta pesquisa como um viajante, disposta a desvelar territórios, descobrindo afetos e sentidos de existência, procurando compreender os fenômenos a partir da perspectiva dos sujeitos participantes do estudo. “O cartógrafo quer participar, constituir realidade. Seu movimento é de entrega para descobrir e inventar. Seu corpo é deixado vibrar nas várias frequências possíveis para encontrar sons, canais de passagem, carona para viver a existência”. (MORATO, 1999, p.63 apud MORATO, 2009). O local escolhido para a realização da pesquisa é um hospital de médio porte, que presta assistência a pacientes da região urbana e rural desta cidade. Sua estrutura física conta com 40 leitos para internamento, 09 para o pré-parto, 03 para observação, 07 para internação, 01 para isolamento e os demais para casos cirúrgicos. Atualmente, possui uma média de 330 funcionários, sendo eles: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistente social, psicólogo, auxiliar de lavanderia, auxiliar de serviços gerais, recepcionistas, motoristas, porteiro, nutricionista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, administrador e farmacêuticos. De forma geral, a média de cirurgias por mês é de 184, sendo a maior parte realizada na obstetrícia, através dos partos cesáreos. A pesquisa teve como colaboradores mulheres adultas, com faixa etária entre 30 e 45 anos, que encontravam-se internadas aguardando por cirurgias eletivas. Todas as 29 colaboradoras corresponderam aos critérios de inclusão e estavam internadas no Hospital Municipal de Caruaru Casa de Saúde Bom Jesus. Ressalto que, por essa pesquisa ter caráter qualitativo e não visar generalizações, a quantidade de sujeitos colaboradores não foi pré-determinada, tendo-se em vista que o relevante eram ser homens e/ou mulheres que se encontravam internos aguardando por cirurgias. Desta forma, o número dependeu da disponibilidade de pessoas nesta situação no hospital durante o período que estive em campo. Como método, utilizei a narrativa de Walter Benjamin (1994), pois os sujeitos puderam expressar seus sentimentos trazendo “a marca do narrador”, considerando o sentido dado pela narradora ao fenômeno desvelado. Como pesquisadora pude compreender o sentido da experiência vivida e relatada, pois o estudo lhe possibilitou ver, ouvir e sentir o fenômeno de forma direta, a partir de quem o experienciou. [...] Ela não está interessada em transmitir o “puro-em-si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p.205) Esclareço que a coleta de dados só foi realizada após aprovação do Comitê de Ética. Então, entrei em contato com as colaboradoras para apresentar a pesquisa e li para elas o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Posteriormente, dei início à escuta, utilizando como guia a pergunta norteadora: Como os pacientes atribuem sentido ao momento précirúrgico, a partir de sua relação com a equipe de saúde? O registro dos depoimentos foram feitos através de gravadores de áudio. Enquanto coletava as narrativas utilizei para a compreensão dos sentidos da experiência a técnica da “Analítica do Sentido”, de Dulce Critelli (2007), e me baseei nos cincos passos de “movimento de realização” apontados por ela. 1. Desvelamento – Quando é tirado do seu ocultamento por alguém, desocultado. 2. Revelação – Quando desocultado, esse algo é acolhido e expresso através de uma linguagem. 3. Testemunho – Quando linguageado, algo é visto e ouvido por outros. 4. Veracização – Quando algo é referendado como verdadeiro por sua relevância pública. 5. Autenticação – Quando publicamente veracizado, algo é, por fim, efetivado em sua consistência através da vivencia afetiva dos indivíduos. (CRITELLI, 2007, p.7576) 30 Os cinco passos citados anteriormente ocorreram de forma simultânea. Para concluir a autenticação, foi necessário transcrever os relatos e, em seguida, organizá-los em forma de texto. Posteriormente, entrei novamente em contato com as colaboradoras da pesquisa para que pudessem ler e confirmar a autenticação final. Durante esse momento, estive consciente de que novos sentidos e emoções poderiam emergir e fiquei atenta para acolher o que fosse expresso. Acreditando na premissa de que seria improvável alcançar uma conclusão sobre o tema pesquisado, lancei-me nesta viagem buscando compreender os sentidos dados a esta experiência de pré-operatório junto com as colaboradoras da pesquisa, estando disposta a conhecer e re-conhecer sentidos, como um viajante que busca novas paisagens mas sempre volta ao seu ponto de partida. A seguir, apresentarei fragmentos dos relatos das participantes, que, por questões éticas, tiveram seus nomes substituídos por nomes fictícios. Dei-lhes os nomes dos principais oceanos: Pacífico, Índico e Atlântico, por achar que estes representam fortemente algumas características dos seres humanos. Assim como os mares, somos fonte de vida, complexos e profundos. Assim como os mares somos deslumbrantes, capazes de encantar e também de causar catástrofes. Assim como os mares, somos agitação e calmaria, movimento. E assim como os mares, somos infinitos como seres de possibilidades. 4.1 O experienciar do tornar-se mar Cada ser humano carrega em si um mar de sentimentos e está constantemente no movimento do encontrar-se com os outros, e esses encontros são mobilizadores de uma infinidade de sentidos na existência de cada um que se permite verdadeiramente estar-com. Este movimento remete ao encontro das águas, mas precisamente do rio com o mar, onde um mistura-se ao outro fazendo acontecer uma transformação em ambos e, a partir dali, nenhum dos dois permanece igual a antes. Acredito ser essa uma das maiores premissas da fenomenologia, afetar e se deixar ser afetado, e assim pude vivenciar o encontro com aquelas que se permitiram estar comigo. Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha para trás, para toda jornada, os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. 31 Você pode apenas ir em frente. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece. Porque apenas então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano. Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento. Assim somos nós. Só podemos ir em frente e arriscar. Coragem! Avance firme e torne-se oceano! (O Rio e o Mar – Osho)5 A partir de então, convido-os a navegar comigo pelos mares de sentimentos conhecendo a intensa rota de sentidos que foi traçada e experienciada por mim junto aquelas que permitiram-se tornar-se oceanos e possibilitaram a realização desta jornada de encontros, de partilhas e de vida. 4.1.1 Pacífico No dia em que iniciei a pesquisa em campo, adentrei no hospital como se fosse a primeira vez, o sentimento era de descoberta. Dirigi-me aos funcionários que estavam no “postinho” e solicitei os nomes dos pacientes que aguardavam por cirurgias eletivas. Eles, rapidamente me mostraram o prontuário, anotei os nomes dos pacientes e parti ao encontro daquele que iria colaborar com meu estudo. Ao entrar na enfermaria deparei-me com Pacífico, que estava deitada e olhando para a parede, com um olhar distante, como se estivesse buscando imagens de outro lugar. Identifiquei-me e informei o motivo de estar lá. Por fim perguntei se ela gostaria de colaborar com minha pesquisa, ela respondeu que “sim” e, em seguida, assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Acredito ser importante enfatizar que a pesquisa fenomenológica existencial traz em seu conceito a sensibilidade que o pesquisador precisa ter para lançar-se ao encontro com o outro de uma forma tão intensa, que até as percepções do meio físico, os cheiros e expressões corporais são elementos essenciais para a compreensão dos sentidos. A existência é uma experiência de intersubjetividade, em que as pessoas se relacionam e se comunicam e é, a partir dessas relações, que se pode perceber o outro, suas atitudes, sua fala, seus gestos. Labronice (1999) apud Souza (2004) compreende que o filósofo MerleauPonty concebe o corpo como um conjunto de significações vividas, capaz de pensar, ver, sofrer, expressar no olhar e, por meio dele, pela palavra e também pelo silêncio. “Segundo a 5 Filósofo indiano e líder religioso. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/frase_de_osho. Acesso em 27/10/2014. 32 filosofia de Merleau-Ponty (1996), o corpo está no mundo, misturado às coisas, ao mundo e aos outros, possibilitando o conhecimento sobre a ligação entre a existência e a essência, a partir da percepção.” (SOUZA, 2004, p.21). É possível perceber que a compreensão fenomenológica envolve uma interpretação, porém, só é possível interpretar aquilo que já foi compreendido. De acordo ainda com MerleaPonty (1996) apud Souza (2004), “compreender é experimentar o acordo entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção e a efetuação [...]. E foi com esta intenção que lancei-me no encontro com as colaboradoras. Comecei a entrevista com perguntas sobre ela, para poder compreender o seu contexto familiar e histórico, em paralelo fui inserindo as perguntas norteadoras. O que me chamou atenção é que durante toda nossa conversa Pacífico apresentou aquele olhar “perdido”, de quem estava longe. Pesquisadora - Como você atribui sentido a este momento pré-cirúrgico, a partir de sua relação com a equipe de saúde? Pacífico - Até agora não tenho o que reclamar deles, assim, porque tem vezes que a gente vai para o hospital e é muito mal tratada e aqui estou sendo bem tratada por eles. Pesquisadora - Bem tratada em que sentido? Pacífico - Em tudo, eles me tratam bem, sempre estão perguntando se estou bem. Este fragmento da nossa conversa sugere como a paciente se sentia diante daquele momento, a partir de sua relação com a equipe, o não sentir-se “largada”, diz de um acolhimento que de alguma forma se deu e a fez se sentir amparada. Foi possível perceber com esta fala, que ela sentiu-se cuidada e este cuidado foi compreendido e expresso por simples palavras, que fizeram toda diferença para ela. É importante frisar que o cuidar, segundo Waldow (1999) apud Souza (2004), envolve uma ação comportamental e interativa, fundamentada em valores e no conhecimento do ser cuidador, para e com o ser que é cuidado. Se o cuidar é entendido como uma interação interpessoal, de características humanas e como um elemento interventivo e terapêutico, deve ser permeado por elementos como compaixão, consideração, respeito e afeto. O cuidado é capaz de auxiliar no processo de cura, fazendo-a ser mais rápida e menos traumática para o paciente. 33 Torna-se essencial esclarecer que o cuidado aqui referido não deve ser entendido como uma atitude planejada, para que ele não caia num enquadre técnico de modelo ideal a ser seguido, mas que parta da compreensão de que a própria forma de olhar para o paciente e fornecer-lhe abertura para expressar-se, já é uma forma de cuidado. Casate e Côrrea (2005) ressaltam que tal relação não supõe um ato de caridade exercido por profissionais portadores de características prontas e estáticas como, por exemplo, a doçura, a compaixão e o sorriso sempre estampado no rosto. Mas, a proposta é de que ocorra um encontro entre sujeitos que podem construir uma relação saudável. (ESPINHA, 2007, p. 34-35). É sabido que a boa comunicação é um dos pilares de sustentação dos preceitos da humanização. Esta, quando se estabelece de forma efetiva e afetiva, é capaz de minimizar as dificuldades e incertezas que elevam os níveis de ansiedade e faz fortalecer o sentimento de segurança no paciente. A comunicação permite o desenvolvimento de uma rede de significados entre o paciente, a equipe, a família e a instituição. O que é comunicado, ou seja, o conteúdo, e a forma pela qual a comunicação ocorre, quer seja verbal ou não, formam um importante eixo no vínculo que se estabelece. (OLIVEIRA e MACEDO, 2008, p.177). Apesar de ter um discurso positivo sobre o momento que estava vivenciando, a colaboradora expressava-se com um tom de voz baixo, com respostas curtas e aquele olhar distante. Quando insistia em lhe perguntar sobre o que sentia naquele momento ela sempre se remetia a dor física e afirmava em sua fala “Estou muito tranquila”. “[...] o desconforto físico, a insegurança e o medo tendem a resultar um quadro ansioso que acentua a atenção do paciente à sensação álgica, predispondo-o à maior percepção de dor.” (KITAYAMA e BRUSCATO et al KNOBEL, 2008, p.138). A partir dessa percepção, compreendi que a “dor” deve ser vista como um fenômeno resultante da interação entre o físico e o psíquico, e sua intensidade é definida tanto pela lesão orgânica como pela subjetividade do paciente. Dessa forma, a dor física está em harmonia com as vivências da pessoa e seu modo de lançar-se no mundo. “A experiência corporal é vivida numa totalidade unificada, o que significa que as dores do corpo parecem aderir-se à alma e, com isso, as sensações físicas ganham sentido para aquele que as vivencia.” (GRAÇAS, 1996, apud ESPINHA, 2007, p.118). Escolhi para ela o codinome “Pacífico” porque foi assim que a percebi, “acomodada” em uma situação de grande vulnerabilidade emocional. Trago o termo acomodação no sentido 34 de estar “passiva” diante dos fatos. Ela apenas ouvia e reagia conforme era esperado naquele ambiente hospitalar. O seu conformismo refletia a forma verticalizada, a qual geralmente se dá às relações entre equipe/pacientes, em que não há uma reciprocidade relacional, o que dificulta a comunicação intersubjetiva. “É necessário que ocorra uma reordenação do espaço social do hospital, para que seja possível o convívio amistoso e seguro das relações horizontais e se propicie um diálogo aberto, no qual as relações impessoais façam parte do passado.” (POLAK, 1997, apud SOUZA, 2004, p.82). A percepção da forma como ela se manifestava remeteu à ideia do desamparo expressa por Heidegger apud Torres (1999), pois ela expressava-se de uma forma que não estabelecia conexão com suas palavras, como se tentasse “disfarçar” o que realmente sentia, esquivandose de Ser-si-mesmo naquele instante. O seu modo de existir no momento expressou inautenticidade, pois ela correspondia ao mundo exterior e não se percebia como principal referência, o que Heidegger afirmou ser uma forma limitada do Dasein (Ser-aí) realizar suas possibilidades como ser-no-mundo, ou seja, não conseguia perceber na sua angústia um modo de ser autêntico. A tentativa, imprópria e condenada ao fracasso, de fugir da dor do desamparo consistiria em fugir do tempo e da finitude do ser, concebendo-o como tendo fundamento fixo e permanente, que permitisse evitar a transiência do ser e apossarse dele como se fosse um “presente” coisificado e sem presença. (TORRES, 1999, p.156). Depois de algum tempo de entrevista e de perceber seu modo de lidar com aquela vivência, dei-me conta que as respostas começaram a ficar cada vez mais curtas e diretas, então resolvi finalizar. Agradeci mais uma vez pela colaboração e antes que pudesse me despedir, chegou ao local um senhor, que sem identificar-se, informou a Pacífico que sua cirurgia, mais uma vez, seria adiada e ela teria que continuar ali, à espera, ressalto que a colaboradora estava interna há uma semana. Nesse momento, esperei dela alguma reação, novamente ela não se manifestou. Tentei acolhê-la diante daquele novo fato, ela apenas me olhou - dessa vez, com ainda mais pesar e voltou a fixar seu olhar onde só seus pensamentos poderiam chegar. Ali, me fiz presente entregando-me à percepção dos sentimentos que emergiram naquele instante e compreendi que seu silêncio era revela-dor e sua dor estava presentificada no seu olhar, pois como afirmou o filósofo indiano Osho: “O silêncio também fala, fala e muito! O silêncio pode falar mesmo quando as palavras falham”. 35 O fato que aconteceu com esta colaboradora, infelizmente, não é isolado. As pessoas que aguardam por cirurgias em hospitais da rede pública estão lançadas a expectativa de fazer ou não seus procedimentos, por diversos motivos. Este é um drama real que, quando acontece, tem um poder avassalador sobre os pacientes. Esse acontecimento remete à imprevisibilidade a qual estamos expostos em todos os momentos de nossa existência e esta é muito bem retratada na música “Aquarela” (1939) quando diz: E ali logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está./E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar,/Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar./Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar./Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá./O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar./Vamos todos numa linda passarela/De uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá. (TOQUINHO ; MORAIS, de Vinícius; FABRIZIO e MORRA) 6. Despedi-me dela e sai da enfermaria do hospital, porém, o seu olhar ficou em mim. Talvez tenha me marcado tanto porque jamais vivenciei a experiência de encontrar com alguém de um olhar tão profundo e revela-dor, pois se diz que os olhos são o espelho da alma e isto me fez compreendê-la, remetendo-me ao escrito de Clarice Lispector7 (1977), que diz: Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes a quem sabe ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio dos outros. 4.1.2 Índico No segundo dia de pesquisa em campo cheguei cedo ao hospital e me senti muito à vontade naquele ambiente. Neste dia, havia muita movimentação em quase todas as enfermarias, haviam pacientes aguardando por cirurgias. Então, novamente busquei os nomes e sai à procura de um novo colaborador. Na primeira enfermaria que entrei, deparei-me com quatro pacientes, me apresentei e informei por que estava ali. Em seguida, perguntei quem poderia me ajudar com seu relato, uma paciente se disponibilizou prontamente, porém, quando íamos dar início à entrevista ela foi chamada para o bloco cirúrgico. Com este fato, novamente perguntei quem poderia se 6 TOQUINHO ; MORAIS, de Vinícius; FABRIZIO e MORRA. Aquarela. Disponível em: http://letras.mus.br/touquinho. Acesso em: 02/11/2014. 7 LISPECTOR, Clarice. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/o-ultimo-bilhete-de-clarice. Acesso em: 02/11/2014. 36 dispor a me ajudar e Índico concordou, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Como previsto, fiz todos os esclarecimentos necessários para poder começar a entrevista. Desde o primeiro momento, a colaboradora demonstrou-se enérgica, comunicativa e espontânea. Ela expressava-se de forma muito direta e sua tranquilidade me chamou atenção. Esse fato evidencia que o momento pré-cirúrgico também permite diversas possibilidades de enfretamento, o que vai depender da subjetividade de cada paciente. Como afirma Ruschel, Daut e Santos (2000) apud Melo (2007, p.79) “a cirurgia é uma experiência de ameaça na vida dos pacientes, pois envolve uma carga emocional característica. O modo como cada um enfrenta esse procedimento poderá dificultar ou facilitar a completa recuperação e readaptação à vida cotidiana”. Pesquisadora - Como você atribui sentido a este momento pré-cirúrgico, a partir de sua relação com a equipe de saúde? Índico - Ótima. Pesquisadora - Em que sentido? Índico - Eles conversam com a gente, deixa a gente segura em relação à cirurgia, “retira” o medo. Assim, a assistente social foi quem falou mais, deu palavras de conforto. Pesquisadora - E você acredita que essa atitude faz alguma diferença neste momento? Índico - Faz muita! A gente se sente bem em relação à cirurgia, fica tranquila. É importante lembrar e não tomar como verdade absoluta que todas as pessoas vivenciam a hospitalização da mesma forma. Existem aquelas que sofrem e sentem dificuldades em lidar com esta situação, mas também há as que enfretam de forma mais tranquila e, entre esses opostos, existem as mais diversas experiências. Este novo relato, novamente fez menção à simples atitudes que efetivam o processo de humanização hospitalar. Mais uma vez, a linguagem verbalizada veio apresentar-se como via de disseminação do cuidado-com o outro. Então, como afirma Oliveira e Macedo (2008) et al KNOBEL é possível compreender que, quanto mais se melhora a capacidade comunicativa, mais se fundamenta uma assistência humanizada. 37 [...] é preciso dar voz ao paciente e estar disponível para entrar na “experiência subjetiva” deste, deixando de lado temporariamente nossa visão de mundo, conceitos, valores e preconceitos, para construir junto com ele a melhor forma de enfrentar a situação. Só assim os profissionais de saúde serão capazes de estabelecer uma escuta empática. Isso requer esforço, envolvimento e compromisso. (KITAJIMA; COSMO et al KNOBEL, 2008, p.106) Pesquisadora - E com o médico-cirurgião, como foi seu encontro? Índico - Foi bom! Ele é muito educado, explicou como vai ser tudo (a cirurgia) direitinho, ele sabe falar com os pacientes. A forma como ele me atendeu me fez ficar mais segura. O “saber falar” foi compreendido como um modo empático de relação com a paciente, aquele médico foi pre-sença durante aquele encontro e marcou a colaboradora subjetivamente, de uma forma positiva, que foi compreendida e refletida por ela em suas manifestações diante da situação pré-cirurgica. Além de causar uma “boa” impressão para o paciente, a escuta ativa, a disponibilidade afetiva e a boa comunicação dão suporte para a formação de um vínculo efetivo entre equipe e pacientes, originando também atitudes características do cuidado humanizado que terão ações terapêuticas no contexto pré-operatório. Para que o estresse pré-cirúrgico seja reduzido, o método mais comum e utilizado é a preparação psicológica, em que são fornecidos dados sobre o procedimento e sobre o comportamento a ser adotado. Intervenções psicológicas e educacionais tão se tornando cada vez mais importantes. ( JUAN,2007) Ainda sobre esta questão, pode-se afirmar que, com uma orientação adequada e com assistência multidisciplinar de qualidade, a fase do pré-operatório pode ser vivida de maneira mais amena, pois o paciente poderá se compreender como parte essencial do processo e colaborará com sua recuperação. Zampieri (2001) afirma que o educar-se se dá com base em conhecimentos e através de relações com os outros seres humanos, mediante compartilhamento de conhecimentos e ações, sendo que fatores como afetividade, envolvimento, comunicação e alegria são essenciais para que o processo educativo aconteça. (BECKHAUSER, 2009, p.45) A colaboradora, ao utilizar os termos “conforto” e “tranquilidade”, remeteu ao fato de que ao se confortar alguém é possível amenizar as mais diversas situações de des-conforto, fazendo com que sentimentos positivos tornem-se evidentes e capazes de fortificar aquele que 38 se encontra num momento de sofrimento, tendo como possível consequência o estado emocional tranquilo. O impacto de uma boa relação médico-paciente não incide apenas na satisfação dos usuários e na qualidade dos serviços de saúde, mas influencia diretamente sobre o estado de saúde dos pacientes. (CAPRARA e RODRIGUES, 2004 apud KITAJIMA e COSMO et al KNOBEL,2008, p.103) A tranquilidade de Índico era perceptível, e por vezes até parecia que ela estava “fugindo” do real sentido daquele momento, evitando entrar em contato com seus sentimentos. Lazarus e Folkman (1984) apud Melo e Christoff (2007, p.80) “afirmaram que as pessoas utilizam o enfrentamento focalizado na emoção como forma de manter a esperança e o otimismo frente à adversidade, porém esta atitude é tomada evitando-se pensar ou agir sobre o problema”. Ainda sobre este fato, Melo e Christoff (2007) acrescentam que sugere-se que os pacientes, ao mobilizarem a “fuga-esquiva”, iniciam a tentativa de controlar o estresse causado pela necessidade de realizar a cirurgia através do distanciamento do foco estressor. A realidade é que Índico apresentou-se esperançosa diante da iminência cirúrgica e sobre isto Groopman (2004) apud Souza (2004, p.72) aponta que “a esperança não cura, mas dá animo para o ser humano continuar lutando pela sua melhora, pois os esperançosos recuperam mais rapidamente a saúde e tem maior taxa de sobrevida”. Dei continuidade à entrevista e uma das últimas perguntas fez com que Índico revelasse uma definição interessante sobre si mesma diante daquela situação. Pesquisadora - Você já fez alguma cirurgia? Índico - Sim. Pesquisadora - E o que você está sentindo agora em relação à cirurgia é diferente do que você sentiu da outra vez? Índico - É bem diferente da primeira cirurgia, o fato de saber como é lá (o bloco cirúrgico), conhecer, ajuda a ter coragem. Esta última frase de Índico evidencia a sua relação com o ato cirúrgico no momento presente, e ela não o experienciava da mesma forma que sentiu da primeira vez, por ter sobre ele uma pré-compreensão, dava-lhe um novo sentido a partir de sua experiência atual e do dinamismo que a constitui enquanto ser em relação a um ente. 39 Acredita-se que, quanto mais informações o sujeito tiver sobre o procedimento cirúrgico, menor será sua ansiedade e melhor será sua recuperação, porém, é importante fornecer as informações de uma forma que possibilite o fácil entendimento. Expressando-se de forma positiva, Índico trazia em seu discurso uma confiança espontânea, que subentendia a certeza da excelência do procedimento cirúrgico, afastando qualquer suposição de que algo poderia não sair como previsto. Essa atitude faz referência à insistente resistência que o homem tem de negar a morte, apesar dela ser inerente à vida. É preciso aceitar a condição do morrer para se descobrir o sentido da existência, como afirma Pompéia (2004): “Estes dois momentos, vida e morte, apresentam-se em instantes muito próximos, tão ligados ao sentido da vida e em outras circunstâncias tão ligadas ao sentido da morte”. Realmente, Índico se apresentou corajosa, a mesma me relatou alguns fatos marcantes de sua vida que, por motivos éticos e irrelevantes ao tema da pesquisa não serão citados, mas que, sem dúvidas, lhe exigiram muita coragem para saber lidar com algumas consequências causadas por seus atos, e mais uma vez ela estava ali, pronta para enfrentar seus medos, reafirmando seu modo de existir, pois enquanto ser-no-mundo ela projetava-se intensa nas relações que estabelecia e nas situações que enfrentava. [...] se não fujo, exercito-me diante da mais extrema e radical possibilidade de mim mesmo. E assim exercitando-me antecipo-a, assumindo-a; e, portanto, decidindo. A decisão (Entschlossenheit) é uma escolha, e, se isso ocorre, angustio-me. Mas na angústia libera-se o poder-ser mais próprio, mais autêntico do Dasein. (HEIDEGGER, 2006, apud NUNES, 2002, apud SOARES, 2013, p.17) Índico demonstrou para mim, em seu semblante e em suas palavras, a força de uma mulher que foi capaz de enfrentar momentos marcantes e decisivos em sua existência sem perder a essência do seu ser, o que a fez ser forte, marcante e avassaladora como o mar. Assim a percebi e a correlacionei com a “Maria” (1980), cantada lindamente por Elis Regina. Maria, Maria/ É o som, é a cor, é o suor/É a dose mais forte e lenta/De uma gente que rí/Quando deve chorar/ E não vive, apenas aguenta/ Mas é preciso ter força/É preciso ter raça,/É preciso ter gana sempre/Quem traz no corpo essa marca/Maria, Maria/Mistura a dor e a alegria/Mas é preciso ter manha/É preciso ter graça,/É preciso ter sonhos sempre/Quem traz na pele essa marca/Possui a estranha mania/ De ter fé na vida. (NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernando)8. 8 NASCIMENTO, Milton e BRANT, Fernando. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/elis-regina/mariamaria.html. Acesso em: 02/11/2014. 40 4.1.3 Atlântico A entrevista com esta colaboradora também foi feita no segundo dia em que estive em campo realizando a pesquisa. Escolhi para ela este codinome porque o oceano Atlântico é o único que conheço de fato, através do mares que banham o litoral brasileiro, e o meu encontro com ela me fez voltar a vivenciar alguns sentimentos que já experenciei quando também aguardava por procedimento cirúrgico, ou seja, a correlação foi feita porque este encontro me possibilitou retornar aos sentidos da minha experiência. Enfatizo que, em todos os momentos, estive ciente de que apesar de haver uma semelhança nos sentimentos que vivenciamos, os sentidos e razões que lhes faziam se manifestar eram singulares. Como bem afirmou Merleau-Ponty (1999) apud Souza (2004, p.61), “ao relacionar-se com o outro, é preciso lembrar que esse outro é um outro corpo que se diferencia por ter seu próprio contexto, por ter sua própria interioridade”. Quando adentrei na enfermaria, Atlântico estava deitada falando ao telefone, ao me ver ela rapidamente cuidou em finalizar a ligação informado para a pessoa com quem falava que uma “enfermeira” havia chegado, tentei sinalizar para ela que aguardava o término da sua ligação, mas ela desligou o telefone, então, me identifiquei e lhe informei que não era enfermeira, como também explanei sobre o motivo de estar lá. Ela foi muito atenciosa e, sem restrições, aceitou fazer parte do estudo. Em seguida, assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. 41 Pesquisadora - Como você atribui sentido a este momento pré-cirúrgico, a partir de sua relação com a equipe de saúde? Atlântico - É difícil, assim, eles não falam muito, deixam a pessoa esperando. Pesquisadora - E como você está se sentindo neste momento? Atlântico - Nervosa, tensa, porque a pessoa não sabe como vai ser (a cirurgia) Pesquisadora - Você conhece o médico? Atlântico - Conheço! Pesquisadora - E como foi seu encontro com ele? Atlântico - Foi bom! Ele foi bem atencioso, educado, explicou como vai ser a cirurgia. Pesquisadora - E você acha que essa atitude dele fez alguma diferença nesse momento? Atlântico- Acho, ele me fez ficar mais confiante. Considerando a resposta inicial de Atlântico, foi percebido que o fenômeno desvelouse expressando desamparo, sentido por ela a partir da forma como se deu o seu contato com a equipe de saúde. Este fato sugere que não houve tentativa de acolhimento da equipe para com ela, o que configurou uma relação inautêntica, em que o cuidado-com o outro não foi manifestado. De acordo com Carneiro; Pomatti; Bertoletti (2007, p.230) apud Beckhauser (2009, p.44), “na visão do paciente este momento poderá causar estranheza e amedrontar, gerando uma situação de incerteza e insegurança”. Sobre este fato, Cosmo e Carvalho (2000) apud Melo e Christoff (2007) também comentam, afirmando que o momento da internação é vivido de forma extremamente dramática, não importando o tipo de procedimento cirúrgico o qual o paciente será submetido, mas, sim, o modo como o paciente vivenciará esse momento. Esta colaboradora trouxe em seu discurso sentimentos que são considerados próprios ao momento pré-cirúrgico, como o nervosismo e o medo. Atlântico foi a que mais demonstrou o incômodo que sentia por estar aguardando pela cirurgia, suas inseguranças e preocupações. Os sentimentos expressos por ela remetiam claramente aos sintomas vividos em um quadro de ansiedade, sendo esta favorecida pelos conflitos internos causados pelos impactos da hospitalização e dos procedimentos cirúrgicos. O procedimento cirúrgico é frequentemente uma experiência estressante para os pacientes e familiares e requer uma série de mobilizações afetivas para lidar com a 42 ansiedade e estresse da situação. Qualquer intervenção cirúrgica é considerada como uma situação crítica capaz de despertar comportamentos individuais, influenciada por múltiplos fatores emocionais, físicos, familiares, sociais, hospitalares [...] (SANTOS, 2012, p.923) Pesquisadora - E o que tem sido mais difícil para você nesse momento? Atlântico - Estar nervosa (neste momento ela se emocionou, silenciou por alguns segundos, e continuou), o medo, a pessoa fica na expectativa de quando vai abrir os olhos depois da cirurgia e pensar “eu nasci de novo”. Assim, eu entrego na mão de Deus e, se for minha hora, fazer o quê? Tem que está preparada. O mais difícil também é a espera. Quando a colaboradora sugere a vontade de “renascer”, esta é entendida não como uma ressuscitação, mas como uma forma de expressar o seu desejo de superar aquele momento e prosseguir sua vida a partir de todas as expectativas vislumbradas para o período pós-cirúrgico. Romano (1998) apud Souza (2004, p.72) afirma que “esse ‘renascer’ tem um sentido mais amplo do que voltar da morte – é começar uma vida nova, livre de defeitos anteriores, uma nova chance, com novos valores e propósitos de vida”. Esta fala também faz menção ao medo que geralmente os pacientes têm da anestesia durante o procedimento cirúrgico. Sobre este fato, Brentano e Leite (2003) apud Souza (2004) referem que o medo de a anestesia causar a morte durante a cirurgia é muito comum, apesar dos anestésicos atuais oferecerem segurança ao procedimento. A volta à consciência após a anestesia permite a vivência de sentimentos ambíguos, que vão do desconforto físico até a alegria por estar vivo. Dando continuidade à conversa, fomos interrompidas por uma enfermeira que foi aplicar o soro fisiológico em Atlântico, enquanto perfurava a paciente, sem ao menos lhe explicar por que o faria, ela disse: “não fique com medo, porque se não a veia some”. Então, Atlântico falou: “A ansiedade né? A gente tenta se controlar, mas o coração fala mais alto”. Vale ressaltar que a fala da enfermeira deu-se de uma forma “fria”, se manifestou a partir do conhecimento técnico sobre tal situação, dando aquele momento uma condição extremamente padronizada, diferente da sensação causada pela fala autêntica definida por Amatuzzi (1989) apud LIMA; “[...] essa fala não é meramente um “falar-voltado-ao-outro”, mas sim em falar-ao-outro, isto é, uma fala autêntica, onde ambos os interlocutores estão constituídos e confirmados no encontro”. 43 Além disso, a enfermeira não se preocupou com os sentimentos da paciente e utilizou o seu “poder” enquanto profissional sobre o corpo dela sem ao menos pedir-lhe permissão, num ato de extrema opressão e desconsideração pelo outro ser que ali se encontrava numa situação de “submissão”. Sobre isto, Leloup (1999) apud Souza (2004) alertou que, ao se tocar em alguém, está tocando-se uma pessoa, um corpo, que é abrigo de toda as memórias de sua existência e, portanto, deve ser considerado como um templo. Então, a enfermeira fez o procedimento e saiu. Assim, demos continuidade à conversa. Pesquisadora - O que seu coração está falando? Atlântico - (emocionada) Assim, esperei mais de um ano por essa cirurgia, esta semana adoeci e fiquei com medo de não poder fazer mais, minhas duas filhas também adoeceram, e ainda estão doentes, tudo isso fica na minha cabeça. O que me deixa mais tranquila é saber que elas estão com minha mãe, estão bem cuidadas. Tudo é na hora que Deus quer! Na fala dela o medo da morte durante a cirurgia estava presente, era compreendida como uma possibilidade real, ou seja, aquela mulher estava consciente da sua condição de serpara-a-morte, que de acordo com a fenomenologia existencial é a condição inerente ao Ser-aí e pode se fazer presente em qualquer momento, dando fim a condição do Ser-no-mundo. Para Heidegger (2006), a morte é uma possibilidade que deve ser aceita por fazer parte da existência e, ao se apropriar dessa condição, o sujeito permite-se ser autêntico e responsável por seu existir. Na perspectiva fenomenológica existencial a morte é abordada pelo filosofo Heidegger (2006), que dá ênfase a esse fenômeno colocando-o como elemento estruturante de nossa existência. O homem é um ser que coexiste, de forma que nossa existência está ligada a existência de todos os entes. Mas também somos seres singulares. A vivência do singular nos remete a angústia de estarmos diante de nós mesmos. A morte surge então como possibilidade própria, a partir da qual é possível descobrir um sentido próprio para a vida e para o ser. Fazer escolhas no tempo, antes que a morte chegue é o que nos torna autênticos. Sendo um “ser-para-a-morte” o homem não pode livrar-se dessa condição. (SOARES, 2013, p.17) Na vivência da angústia, o homem depara-se com sua condição de finitude e é arrebatado pelo desamparo que, segundo Torres (1999), é uma disposição afetiva fundada no modo de ser do Dasein e somente nela podem surgir outros existenciais ou fenômenos. É neste momento que o ser consegue vislumbrar suas possibilidades diante dos fatos, podendo 44 afirmar e experenciar a premissa de que a angústia é o “motor” capaz de fazer o Dasein (serlançado-no-mundo) apropriar-se de sua existência. De acordo com Barreto (1992) apud Souza (2004, p.52), subjetivamente, qualquer corpo passa a ser terminal, a partir do momento em que percebe ou fantasia a morte como uma realidade próxima e possível, posicionando sua existência diante dessa tomada de consciência. Ainda sobre este tema, Loss, Montovani e Souza (2003) apud Souza (2004), acrescentam que, o medo da morte é inerente ao desenvolvimento do ser humano, é o medo da extinção, somado ao medo do desconhecido, do sofrimento, da solidão e, principalmente, das perdas afetivas. Quando a colaboradora falou “A gente tenta se controlar, mas o coração fala mais alto” ela referia-se ao medo que estava sentindo naquele momento, mas também à dor do distanciamento de seus familiares. Porém, o falar das “dores do coração” ainda é um ato pouco concebido no ambiente hospitalar devido ao longo processo de “desumanização” que se deu com o modelo biomédico e, mais uma vez, se faz presente a necessidade da mobilização em prol do cuidado humanizado nos hospitais. Quando aspectos psicológicos não são considerados na situação de tratamento cirúrgico, poderá haver aumento da predisposição para complicações emocionais que prejudicam a convalescença, chegando a intensificar, em algumas situações, a morbidade no período pós-operatório. Para essas mesmas autoras, a cirurgia é uma experiência de muita ameaça na vida de qualquer pessoa, pois envolve uma carga emocional característica. A forma como cada um enfrenta esse tipo de intervenção poderá facilitar ou não a completa recuperação e readaptação à vida normal.(RUSCHEL; DAUT; SANTOS, 2000, apud BOM, SILVA, OLIVEIRA e ANDRADE, 2014) A equipe de profissionais de saúde pode e deve apoiar, avaliar e orientar as necessidades dos pacientes, proporcionando-lhes segurança e suporte emocional, pois pode estimulá-los a expor seus pontos de vista, suas expectativas e aflições, com a intenção de atenuar medos e dúvidas e, consequentemente, amenizando suas dificuldades, auxiliando-os a enfrentar o difícil momento vivenciado na sua existência. O meu encontro com Atlântico me permitiu entrar em contato com os sentimentos de medo e aflições que também vivenciei no momento pré-cirúrgico, evidentemente os sentidos dados por mim àquela vivência são outros, mas as sensações causadas e experenciadas são bem similares. E, a partir desta emocionante experiência de vida, concordo com Brandão (1986) apud Souza (2004, p.61) quando ele afirma que, “o outro sugere ser decifrado, para que lados mais 45 difíceis de meu eu, do meu mundo, de minha cultura sejam traduzidas também através dele, de seu mundo e de sua cultura”. Aquela afirmação da colaboradora sobre a dificuldade de controlar a “voz do coração”, ao meu entendimento, foi muito significativa e traduziu fielmente os seus sentimentos naquele instante, como também à música “Revelação”9 (1979), quando diz no trecho: “Quando a gente tenta/ De toda maneira,/ Dele se guardar/ Sentimento ilhado,/ Morto, amordaçado/ Volta a incomodar”. (Fagner). 9 FAGNER, Raimundo. Revelação. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/fagner/revelacao.html. Acesso em: 03/11/2014 46 5 Um mar de possibilidades Este estudo traz contribuições importantes na compreensão da experiência de pacientes no momento pré-cirúrgico. Dessa forma, o objetivo pretendido foi alcançado, proporcionando encontros, os quais foram bastante enriquecedores. Foi possível perceber que o momento pré-operatório predispõe a vivência de angústias por diversos fatores, que serão expressos a partir da singularidade de cada paciente. Também foram percebidas algumas reações das pacientes que se atrelavam à forma de assistência que lhes teriam sido dadas pela equipe de saúde, fato que veio corroborar sobre o quanto se torna positivo para os pacientes estabelecer um contato direto e afetivo com os profissionais, foi possível perceber que a “boa” comunicação entre equipe-paciente e o repasse de informações adequadas acerca da cirurgia suscitaram sentimentos de segurança nas pacientes. Neste sentido, refleti acerca do comprometimento que os profissionais de saúde devem ter em sua prática, para que possam ser capazes de acolher e cuidar dos pacientes de uma forma que ultrapasse o âmbito profissional e se dissemine sobre o real sentido de ser humano em sua essência. Desenvolver esta pesquisa foi um desafio, primeiramente pessoal, por se tratar de um tema que diz da minha experiência subjetiva. Segundo, profissional, por ter que buscar subsídios suficientes que pudessem me dar suporte durante o estudo, a fim de ter a sensibilidade necessária para conseguir compreender os sentidos revelados pelas colaboradoras, bem como saber lidar com as diversas situações que poderiam se apresentar até a finalização desta. Um fenômeno que se manifestou durante as entrevistas com todas as colaboradoras foi a crença em Deus naquele momento, Em relatos como: Pacífico - Mas, com fé em Deus, vai dá tudo certo! Índico - Primeiramente, sua vida está nas mãos de Deus. Atlântico - Eu entrego nas mãos de Deus. Tudo é na hora que Deus quer! Foi possível compreender que a fé naquela situação fornecia possibilidades de esperança na vida, era um suporte para o momento de grandes conflitos existenciais. Outra compreensão possível é o fato da morte estar relacionada à divindade, e esta, mesmo não sendo verbalizada, era uma possibilidade diante do procedimento cirúrgico. 47 [...] Acreditando-se que vida e morte são dons divinos, teme-se, conscientemente ou não, a morte como uma manifestação de Deus ou dos deuses. É comum explicar a morte com frases como “Deus quis assim” ou “O Senhor o chamou” (Chiavenato, 1998, apud BRITO e GUIMARAES, 2013, p.62) Huf (2002) apud Souza (2004) afirma que a vivência religiosa traz benefícios no enfrentamento de situações angustiantes, promovendo o equilíbrio emocional e a saúde mental. O exercício da fé como fonte de esperança favorece a passagem das situações de crise e diminui a ansiedade. Os principais sentidos que emergiram estavam relacionados à possibilidade do morrer, ao desamparo atrelado ao distanciamento dos entes queridos e ao modo de relação estabelecido com equipe de saúde, e a possibilidade de uma vida melhor após a cirurgia. Com esta pesquisa, foi vislumbrada ainda mais a necessidade de um efetivo cuidado humanizado nos hospitais, bem como a realização de novos estudos que enfatizem esta necessidade e construam reflexões acerca da prática em saúde, considerando-se, a partir do fenômeno da hospitalização, se pensar em novos modos de cuidado, que leve em consideração os indivíduos em sua totalidade e não somente a partir da patologia. Ressalto que esta pesquisa não se resume apenas à ciência psicológica, mas abrange as demais áreas afins. Os resultados obtidos podem contribuir para a reflexão sobre o tema favorecendo e enaltecendo a importância do acolhimento no ambiente hospitalar, aprimorando ideias que favoreçam a sensibilização da equipe no que se refere ao resgate das relações humanas. Com a finalização deste trabalho, aponto outras possibilidades de pesquisa dentro da mesma temática, e visualizo outra questão disparadora: Como os pacientes atribuem sentidos ao momento pós-operatório? Sabendo-se que as vivências e reações no período pós-cirúrgico estão intimamente relacionadas ao perioperatório. 48 REFERÊNCIAS BECKAUSER, Petise Reinert. Sentimentos vivenciados por pacientes que se submeterão à cirurgia de neoplasia cerebral. UNESC. Criciúma. 2009. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. ed. 7. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOFF, Leonardo. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ecologia, na ética e na espiritualidade. 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Rio de Janeiro: Wak ed. 2010. 51 APÊNDICE 52 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO UNIVERSIDADE DO VALE DO IPOJUCA UNIFAVIP/Devry Você está sendo convidado (a) a participar da pesquisa Mar de sentimentos: Navegando pela infinidade dos sentidos e percepções expressos por pacientes no précirurgico, que tem como objetivo revelar uma compreensão sobre a dinâmica psicológica na experiência clínica com pessoas que se encontram diante da iminência cirúrgica. Você não é obrigado (a) a participar desta pesquisa, e se desejar poderá desistir a qualquer momento e não será prejudicado (a). Além disto, posso definir que sejam retiradas do material da pesquisa quaisquer informações que já tenham sido dadas. Caso ocorra algum desconforto emocional por conta do tema trabalhado, se necessário, você poderá ser acolhido (a) pela profissional de Psicologia disponibilizada pelo Hospital. Esta pesquisa é de caráter voluntário e sem fins lucrativos para ambas as partes. Você estará contribuído para a melhor compreensão desta temática. As informações fornecidas por você serão utilizadas somente para esta pesquisa e serão mantidas em sigilo, respeitando seu anonimato. Você receberá uma cópia deste Termo de Consentimento. Observe que abaixo estamos disponibilizando nomes e telefones para contato, caso haja alguma dúvida sobre a pesquisa, bem como sobre sua participação. Aluna pesquisadora: Professora responsável: Stéffanie Costa de Albuquerque Ana Maria Sá Barreto Maciel Telefone: (81) 9448-2428 CRP: 02/8482 RG: 8283378 Endereço: Rua Pastor Rubem Prado, 50 Ap. 201 B. Maurício Caruaru/PE Telefone: (81) 9122-3564 de Nassau, 53 Eu,________________________________________________, portador (a) do RG: _______________, certifico que, tendo lido o documento acima exposto e suficientemente esclarecido, entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação e concordo, voluntariamente, em participar da pesquisa. Declaro ainda que fui informado (a) que a pesquisa será realizada em apenas uma etapa e autorizei que a entrevista fosse gravada num gravador de som. Caruaru _____/______/______ __________________________________________________________________ Assinatura ______________________________ Testemunha RG: ___________________________ ______________________________ Testemunha RG: ___________________________ 54 ANEXO 55