Veículo: Correio Braziliense
Seção: Capa
Assunto: Enem
Data: 15/01/2015
Pág.: 01
Veículo: Correio Braziliense
Seção: Brasil
Assunto: Enem
Data: 15/01/2015
Pág.: http://zip.net/bfqCx1
O árduo caminho até a redação nota 1.000
Com apenas um a cada 25 mil estudantes com desempenho impecável no
teste escrito do Enem, especialistas avisam: não basta o aluno escrever bem, é
preciso ter coesão, embasamento técnico e saber solucionar o problema
apresentado
O caminho para uma redação de 1.000 pontos no Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) passa por uma porta estreita. Dos 6.193.565 candidatos que
fizeram a edição de 2014, apenas 250 tiveram nota máxima na prova escrita.
Especialistas explicam que não basta o aluno escrever bem, o texto deve
atender aos critérios de correção do Ministério da Educação (MEC). Cobram-se
coesão, embasamento e ainda uma solução para o problema proposto —
quesito que normalmente não é utilizado em vários processos de avaliação. No
meio disso tudo, o aluno ainda esbarra nas peculiaridades da língua culta e
formal. Eli Guimarães, coordenador de redação de um colégio particular da
Asa Sul, explica que o estudante não pode ferir os direitos humanos, entre os
argumentos do texto. “Tem de respeitar algumas normas humanas, éticas,
culturais.”
Recém-formado no ensino médio em São Luís, Matheus Andrade Figueiras, 17
anos, alcançou 1.000 pontos na redação deste ano. Mesmo tendo se baseado
praticamente no enunciado da prova para desenvolver o texto, o estudante,
que teve média geral de 764 pontos, considera essencial ler tanto ficção quanto
notícias para ter conteúdo seja qual for o tema. “Eu leio, pelo menos, dois livros
por mês. E passei a ler revistas semanais para me informar sobre atualidades”,
conta.
Surpreendido pelo tema “publicidade infantil”, o candidato não esperava ter
tirado nota máxima. “Esse assunto não foi muito abordado, entre os possíveis
temas que poderiam cair. Eu resolvi primeiro as questões fechadas. Depois,
coletei meus pensamentos para apontar alguma argumentação.” Matheus
relembrou das notícias que havia visto e lido para formular a proposta de
intervenção, uma exigência da prova, segundo a qual o estudante deve
elaborar propostas para resolver um problema. Ele pediu pela regulamentação
de lei que possa punir empresas de publicidade que façam apelo comercial
para crianças.
Ao alcançar a nota máxima na redação, o adolescente está confiante de que
garantirá a vaga desejada em direito na Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). “É a prova que tem maior peso, porque é a única que se pode ter a
nota máxima”, disse. A mãe dele, Maria da Conceição Fernandes Andrade, 58
anos, diz que já esperava o bom desempenho do filho no exame. “Ele vive em
função dos estudos, lê muito. O hobby dele é comprar livros”, detalha.
Erros gramaticais
Uma das principais diferenças da redação do Enem é que o aluno deve
apresentar uma solução para o problema descrito no enunciado. “Ao
apresentar a proposta, ele tem de conhecer o problema, tem que ter domínio
da leitura, mas também do mundo; uma reflexão sobre os problemas sociais, o
contexto em que as coisas se desenrolam. É um conhecimento que qualquer
aluno de ensino médio tem, desde que possua um bom nível de leitura e
conviva num ambiente de reflexão e debate”, diz Eli Guimarães. O professor
também destaca que a proposta deve respeitar os direitos humanos. “Ele não
vai resolver o problema do menor abandonado matando a todos eles”,
exemplifica. No momento de fazer a revisão, recomenda um distanciamento. “O
aluno pode corrigir aspectos gramaticais e ficar atento à ideia: se a solução que
propõe apresenta, por exemplo, quem vai fazer, como vai fazer e com qual
finalidade”, completa.
Os avaliadores do Enem também não podem tolerar textos com trechos
deliberadamente desconectados com o tema proposto e reincidências de erros
gramaticais e ortográficos. Além disso, discrepâncias maiores de 100 pontos na
nota final implicarão em uma terceira correção. Se o terceiro corretor não
chegar a um acordo com os outros dois avaliadores, a redação será verificada
por uma banca composta por três pessoas, presidida por um doutor. Essa
banca também é acionada para examinar as redações com nota máxima.
Para especialistas, houve uma queda no número de estudantes que atingiram
1.000 pontos porque aumentou o rigor desde a edição de 2012, quando um
candidato resolveu descrever como preparar um miojo no meio do texto, que
tinha como tema o movimento imigratório para o Brasil no século 21 e recebeu
560 pontos.
Rafael Riemma, coordenador de português em uma instituição privada,
recomenda que os candidatos fiquem de olho nos critérios de correção. “O
aluno não vai ter a nota máxima, por mais que a redação esteja excelente. A
redação tem que cumprir cada quesito exigido.” Riemma indica que a prática é
o melhor caminho para se aprimorar. “Não há segredo. Uma boa redação se
faz com muita repetição: se você quer escrever bem, escreva muito. Não há
outra estratégia ou fórmula mágica.”
Os itens avaliados
No Enem, cada uma das redações é avaliada por dois corretores entre os
mais de 4 mil contratados para isso. Os avaliadores têm a função de
atribuir uma nota de 0 a 200 pontos em cada uma das cinco situações
abaixo:
1) Domínio da norma padrão da língua portuguesa;
2) Compreensão da proposta de redação;
3) Seleção e organização das informações;
4) Demonstração de conhecimento da língua necessária para argumentação do
texto;
5) Elaboração de uma proposta de solução para os problemas abordados,
respeitando os valores e considerando as diversidades socioculturais.
O edital do Enem prevê sete situações em que a redação do participante
pode ser zerada ou anulada. São elas:
1) Fuga total ao tema;
2) Não obediência à estrutura dissertativo-argumentativa;
3) Texto com até sete linhas;
4) Impropérios, desenhos e outras formas propositais de anulação ou parte do
texto deliberadamente desconectada do tema proposto;
5) Desrespeito aos direitos humanos;
6) Redação em branco, mesmo com texto em rascunho;
7) Cópia do texto motivador.
Confira rascunho de uma das 250 redações nota mil no Enem 2014
Mídia infantil
Oriundo de paradigmas capitalistas, o incentivo ao consumo, em especial pela
mídia, é bem presente no Brasil. O estabelecimento de nichos econômicos
baseados em parcelas da população é comum, mas tendo em vista o grande
contingente de crianças na sociedade brasileira, é natural o questionamento do
apelo comercial feito a estas, uma vez que determinados produtos ou serviços
ofertados podem ter implicações negativas nos hábitos de vida deste grupo,
protegido por incipientes legislações, ainda carentes de força prática.
O mercado, no Brasil e no mundo, transformou os jovens, especialmente
crianças, em nicho econômico. Lojas especializadas nas necessidades dessa
parte da população, como em roupas e lazer, assumem a fatia expressiva do
comércio, influenciando fortemente, por vezes de forma negativa, os hábitos da
vida da juventude. A famosa rede de lanches rápidos “McDonald's”
popularizou-se entre os jovens pelo uso de personagens carismáticos, como
estímulo no consumo de sanduíches, inclusive através da distribuição de
brindes. A consequência de tal marketing é o incontestável crescimento da
obesidade infantil, realidade que atesta para as necessidades da redução do
apelo comercial, por meio de legislações.
A coibição da publicidade infantil abusiva tornou-se legal em abril de 2014, por
meio de uma resolução aprovada pelo Conanda. A medida tem boas intenções,
tendo em vista a necessidade de regulamentar o marketing infantil, mas, ainda
incipiente, a legislação enfrenta vários obstáculos, em especial na sua atuação
prática. A ausência de mecanismos eficientes de fiscalização e de efetivas
punições permite a manutenção do excesso de apelo comercial às crianças, o
que inviabiliza uma imersão do quadro.
O exemplo mineiro
A ansiedade pela espera da nota do Enem valeu a pena para o estudante Luis
Arthur Haddad, de 19 anos, de Juiz de Fora, na Zona da Mata de Minas Gerais.
O jovem, que fez o exame pela primeira vez, não só se saiu bem, entrou no
seleto grupo de 250 candidatos, em todo o país, que alcançaram mil na
redação, a mais alta do exame. Chegar à tão sonhada classificação, no
entanto, não foi fácil. O estudante, que busca uma vaga no curso de
engenharia elétrica na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), afirma
que foram muitas horas de estudo diário. “Sempre estudei bastante, mas, no 3º
ano, intensifiquei a rotina de estudo no colégio e, principalmente em casa”,
lembra. Ao todo, eram pelo menos 15 horas de dedicação por dia, de segunda
a sexta-feira. O brilhante desempenho na redação tem ainda outra explicação.
Luis Arthur passou 2014 inteiro treinando produção de texto de temas diversos
para aprimorar a prática. Eram duas redações por semana no colégio e mais
treinamento em um curso particular de redação. “Também li muito, me inteirei
dos assuntos da atualidade e estudei muito geografia e história. Para uma boa
redação, é preciso ter muito conhecimento”, destaca. (Valquíria Lopes)
Eu leio, pelo menos, dois livros por mês. E passei a ler revistas semanais para
me informar sobre atualidades”
Matheus Andrade Figueiras,
estudante de São Luís que tirou nota máxima na redação
Texto beleza
Redação é habilidade. Joga no time da natação, do salto, da corrida. A gente
só se torna campeão nas águas se treinar. Só salta como Maurren Maggi se
praticar. Só corre 10km em 20 minutos se se exercitar. Só escreve um texto
nota 10 se escrever muito e sempre. A ordem é treino, treino, treino.
O treino faz bruxarias. Acorda palavras adormecidas. Estimula estruturas
enferrujadas. Cria intimidade com os temas. Convoca argumentos perdidos.
Fixa grafias ardilosas. Melhor: planta confiança e espanta o medo. Adeus,
mãos geladas. Adeus, coração disparado. Adeus, baldes de suor.
Sobre o que escrever? Sobre qualquer assunto. Você pode fazer o resumo do
noticiário da tevê. Comentar uma nota do jornal. Criticar cena da novela.
Elogiar o corte de cabelo da amiga. Sugerir ao governador medidas para tornar
a cidade mais limpa. Ou mais segura. Ou mais bonita.
Ninguém precisa corrigir. Escreva e jogue no lixo ou guarde numa pasta. Em
um mês de treino, oba! Você será outro. Com o medo chutado para escanteio,
deite e role. Mostre seu texto para o professor. Peça-lhe sugestões. Lembre-se:
é sempre possível melhorar.
Regra de ouro: seja natural. Imagine que o leitor esteja a sua frente ou ao
telefone conversando com você. Fique à vontade. Espaceje suas frases com
pausas. Sempre que couber, introduza uma pergunta direta. Confira a seu texto
um toque humano. Você escreve para pessoas — gente igualzinha a nós.
Reflexo da leitura dinâmica
Professores avaliam que a geração atual de estudantes, que se desenvolveu
conectada à internet e às redes sociais, tem uma dificuldade maior com textos
mais extensos. No Enem 2014, 529 mil alunos tiraram zero na redação
Dos 529 mil alunos que tiraram zero na redação do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem), a maioria (53,1%) deixou a folha destinada à dissertação em
branco. Entre outros 248 mil que obtiveram a pontuação nula, 87,5% tiveram a
prova anulada por fugirem do tema proposto: “Publicidade infantil em questão
no Brasil”. Chama a atenção que três de cada quatro candidatos que se
submeteram ao Enem têm até 24 anos. Criada não só na internet, mas também
sob a ágil dinâmica de interações pelas redes sociais, a juventude teria uma
dificuldade especial para chegar ao fim da leitura de um texto um pouco mais
extenso, avaliam os especialistas.
“Estarão os nossos jovens excessivamente plugados em multimídias
instantâneas, apenas com manchetes de notícias? Ou pior: ainda usando
excessivamente as redes sociais sem se importar com a cultura e o
aprofundamento de temas? Como nossas escolas estão preparando os nossos
alunos nessa questão? Parece que muito mal”, observa, preocupada, Vivina
Balbino, professora aposentada da Universidade Federal do Ceará. A mestre
em educação vê a enxurrada de zeros como comprovação da falta de leitura
dos jovens e da busca de informações longe do conhecimento aprofundado.
“Um ponto pesado que essa quantidade de zeros traz é a qualidade do ensino.
Ela se evidencia pela comparação das notas dos alunos de escolas públicas e
privadas. É muito triste”, lamenta Rafael Riemma, coordenador de Português
de um colégio particular da Asa Sul. A precariedade do ensino médio não deve
ser tratada como isolada na educação, alega Vivina, uma vez que a má
qualidade da fase escolar afetaria diretamente a qualificação dos profissionais
formados no ensino superior. “O ensino superior precisa receber alunos cultos
e detentores de conhecimentos para avançar com qualidade os seus estudos e
pesquisas na graduação e na pós”, defende.
“Temos que ensinar os meninos a ler, a escrever, a compreender o mundo”,
complementa Riemma. Parece inacreditável, mas mesmo em um exame tão
importante, que abre as portas para o ensino superior, especialistas ouvidos
pelo Correio acreditam que muitos dos jovens não leram os textos
complementares ao enunciado da redação do Enem, fundamentais para a
compreensão do que era pedido como dissertação.
“O aluno, muitas vezes, lê o que está em negrito e não lê a coletânea de textos,
é um problema de leitura”, analisa Eli Guimarães, coordenador de redação de
uma escola particular de Brasília. “O aluno precisa se inserir no mundo lendo
revistas, jornais, editoriais, resenhas. É preciso ampliar o leque de leitura, que
não pode ser tratada como uma obrigação acadêmica, mas sim como parte da
formação enquanto pessoa, enquanto cidadã crítica”, defende o professor.
Riemma ressalta que, mais do que ler, é preciso estimular a juventude a
escrever mais. “Quem leu mais sobre o tema vai ter mais facilidade para
argumentar. Mas, mesmo os alunos que adoram debater, falar, dar opinião, é
impressionante a resistência que têm a escrever: parece que escrever é um
peso. Há medo de se expor, de errar”, observa.
Problemas detectados
Muito além da baixa qualidade do ensino público, especialistas apontam o que
falta para que a atual geração consiga superar as dificuldades para ler,
compreender e escrever bem
Leitura precária
» Acostumados a assimilar conteúdos de forma fragmentada — em fontes
como a enciclopédia on-line Wikipedia, por exemplo —, muitos jovens não
conseguem chegar ao fim de textos mais longos: se cansam, deduzem o que
não leram e tiram conclusões precipitadas. Muitas vezes, os estudantes leem
somente o que aparece em negrito ou em destaque, ignorando partes
importantes do texto.
Esforço unidisciplinar
» Sozinho, o professor de redação não consegue dar ao aluno as habilidades e
os conhecimentos necessários para o bom domínio da leitura e da escrita. É
preciso que os mestres de outras disciplinas que têm alta carga de textos,
como história e geografia, cobrem respostas bem argumentadas, com início,
meio e fim. Dar nota máxima a uma prova de sociologia respondida em tópicos,
por exemplo, deseduca o aluno, ainda que o conteúdo esteja adequado.
De olho no próprio umbigo
» Faltam a muitos estudante a leitura de opiniões diversificadas e a busca por
fontes alternativas para entender bem uma mesma situação. Livros, revistas,
jornais até mesmo blogs devem estar mais presentes no cotidiano da
juventude. A cada dia, inclusive no Enem, a reflexão sobre um problema e a
proposição de soluções possíveis são mais cobradas em diferentes avaliações.
Falta de hábito
» A máxima de que a repetição leva à perfeição também vale para a produção
textual. A escrita de textos dissertativos deve ser parte do dia a dia. Mesmo os
alunos que se engajam em acalorados debates em sala de aula — ou nas
redes sociais —, com boa argumentação, devem ser estimulados a passar as
ideias para o papel. Soltar amarras como a vergonha, o medo e a insegurança
é benefício trazido pela prática constante.
Correção distanciada
» Mesmo os profissionais mais carismáticos e esforçados podem deixar a
desejar na hora de corrigir os textos produzidos pelos alunos. Mais do que
receber uma nota ou elogio, é preciso que o aluno tenha alguém que o oriente
e explique as principais falhas ou acertos da redação. É melhor ter cinco textos
bem corrigidos e analisados ao longo de um ano, do que 50 escritos e
devolvidos somente com uma avaliação genérica.
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Dicas para a redação nota 1000 do Enem