A Alegria da Liberdade Posfácio com Orquídea na forma de uma nota e uma conversa de bairro com rio ao fundo Quando eu li “O que diz Molero” a minha vida mudou. Não há muitos momentos na nossa vida em que temos a clara percepção que isso acontece, uma epifania. O que é normal acontecer é percebermos isso depois, muito tempo depois. Uma das veladoras de “O Marinheiro” de Fernando Pessoa, à pergunta: “foste feliz, minha irmã?” responde “começo neste momento a tê-lo sido outrora”. Quando li “O que diz Molero” pela primeira vez tinha dezassete anos e fui imediatamente abalado por uma revelação, em directo e em Língua Portuguesa. Era uma bela edição do Círculo dos Leitores, um pequeno livro azul de capa dura, coberto por uma capa plastificada, com um desenho da cabeça de um rapaz com pássaros e mil coisas à volta. Na badana de uma das edições havia uma citação de Eugénio de Andrade que dizia só: “Este livro é uma alegria”. E esta citação dizia tudo. Resta-me alinhar uma pequena série de redundâncias e inconfidências pessoais: A alegria do livro é a alegria da mistura de registos, do trágico e do cómico, do pícaro e do dramático, do palavrão e da poesia, das enumerações e do indizível, da tristeza e da beleza, a alegria da liberdade. “Temos aqui uma anotação, na margem da página catorze, uma anotação feita a lápis”, disse ele. “Diz: coração, bússola doida.” “Literário”, disse Mister DeLuxe, “e, além de literário, devia ser para apagar porque está escrito a lápis”. Literatura? Literatura menor? Responde William Saroyan: “se o que eu escrevo não é literatura, quem perde é a literatura”. O Dinis não era do “mundo literário”, da literatice, dos protocolos e dos salões. O Dinis era da vida. Quando o conheci, eu, o António Jorge Gonçalves, o José Pedro Gomes, o António Feio e o Nuno Rebelo, queríamos adaptar “O que diz Molero” para um espectáculo teatral. A única coisa que ele nos disse foi: “façam o que quiserem” e “vejam lá no que é que se estão a meter, se calhar vão perder tempo, dinheiro e meter-se num grande sarilho”. Quando a peça estreou foi um momento especial. O Dinis ofereceu-me a edição dele do Dom Quixote, em espanhol. E selámos uma amizade sem palavras. Agora o Dinis morreu e eu dei comigo no funeral a ler o texto dele “Qual é o lado mais cómico disto?”: “... a doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica – até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado mais cómico disto?” Na conversa que com ele fiz para o programa da peça, eu dizia a propósito da personagem do Rapaz: “ou seja, ele não é ninguém em especial e é muita gente em particular.” Errado. Ele era o Dinis. A personagem do Dinis. E, como no livro, o Dinis agora é uma estrela. Uma estrela no céu dos amigos e dos leitores. Uma estrela com um brilho vadio, malandro, iglantónico. COM MOLERO, NO ELÉCTRICO 28 da Estrela à Graça, num fim de manhã de Primavera De Molero tinha-nos ficado só o que disseram que ele terá dito, ou mais exactamente o que ele terá escrito, sobre o rapaz. Sobre ele próprio não sabemos mais nada. Nem mais uma referência, nem mais um sinal da sua passagem, nada. Impenetrável, a Organização nada revelou para além do que já sabíamos. Ficou-nos portanto o seu relatório sobre o rapaz e essencialmente, nas suas próprias palavras, citadas por Austin, "[...] certos desvarios e um ou outro intermezzo com que desloca ou intercepta amiúde o relatório, aquilo a que lhe apetece chamar, passe a expressão, os seus melhores momentos, e que podem ser levados à conta de utensílios de compensação para a secura do discurso vigiado…". De Molero podemos dizer o que ele terá escrito, parafraseando Zuca, sobre o rapaz: "voilà, desapareceu no ar como Mandrake." Devo ao acaso e à minha amizade com Filipe S. este posterior e inesperado sinal de Molero. Trata-se de uma cassete áudio que Filipe encontrou casualmente nos arquivos fonográficos da Mediateca da Cidade, secção "Jornais Diários". A cassete não estava classificada e não continha qualquer outra identificação para além da etiqueta com as palavras "Entrevista Molero" escritas a lápis. O seu conteúdo é a gravação de uma conversa, ou entrevista, entre um jornalista que nunca se identifica e que não sabemos quem é, e um homem que o jornalista designa por Molero e que em tudo parece coincidir com o Molero da Organização. A conversa terá ocorrido, conforme indicado no início da gravação, durante uma viagem no eléctrico 28 entre a Praça da Estrela e o Largo da Graça, em data não indicada. Segundo Filipe julga saber, nunca terá chegado a ser publicada em jornal nenhum, caso em que estaria com certeza referenciada nos ficheiros da Mediateca. Provavelmente terá sido uma entrevista feita a título individual e abandonada por falta de interesse do editor. Transcrevo-a tal como a ouvi, com interferências, partes incompreensíveis ou simplesmente inaudíveis, devido não só ao barulho do eléctrico como ao próprio barulho da Cidade – automóveis, vozes de pessoas, mil e um ruídos diversos –, isto para além do que julgo ser aqui e ali a emergência de anteriores gravações, num autêntico palimpsesto sonoro. [O início da gravação, para além de experiências de som – "um dois um dois um dois" –, inclui comentários dispersos sobre o tempo, que estaria primaveril, e permite determinar a hora da entrevista, perto do meio-dia, segundo é referido por alguém no eléctrico. Omito os pormenores que considero irrelevantes.] [...] – Molero, porque é que a Organização o escolheu a si para investigar a vida do rapaz? – Isso é uma pergunta que deve fazer à Organização. Provavelmente, eles terão pensado que eu seria a pessoa indicada para essa missão... – Que outras investigações é que tinha feito anteriormente para a Organização? * Nenhuma que justifique especial menção. A declinação do sol no telhado duma casa, a frequência de encontros ocasionais numa esquina, a arquitectura oculta do voo duma andorinha. Não chegaram a ser investigações com princípio, meio e fim. Foram só casos específicos e dispersos, ensaios... É o normal. Cada agente da Organização, durante o tempo que está de serviço, só conduz uma grande investigação, uma investigação a sério, a tempo inteiro… a vida do investigador passa a ser a vida do investigado… só que com um desfasamento temporal… num tempo depois… [vozes a falarem ao mesmo tempo impossibilitam que se perceba uma frase] … se isso acontece é no Departamento de Destinos Cruzados, onde é normal haver mais do que um investigador, tantos quantos os casos cruzados... Investigadores que acabam igualmente por se cruzar... [ruído do eléctrico] ...saber se as escolhas que se faz para cada caso estão certas, isso é outra questão... Nunca ninguém pode dizer nada ao certo, não é?... – Porque é que estavam a investigar o rapaz? * Na Organização, o objectivo das investigações não tem de ser conhecido pelos investigadores. É normal. É normal até que os próprios supervisores o desconheçam. Não sei se Austin o conhecia. Talvez Mister DeLuxe o conhecesse... * [pergunta imperceptível] – Ah, o destino da História... Nunca se sabe, não é?... [barulho de crianças a entrar no eléctrico] ...uma investigação histórica? A História é uma disciplina nobre do saber humano mas não deixa de ser um género literário, uma variação da arte do romance... A Organização defende a teoria segundo a qual se pode estudar a História de toda uma época detendonos unicamente na história de um só indivíduo... – E porquê ele e não outro? O que é que determinou a escolha?... – [aqui, a sobreposição de outra entrevista (feita anteriormente? posteriormente?) a uma qualquer figura de televisão sobre o seu novo programa fez perder completamente a resposta] – ...de qualquer forma, não é uma história objectiva. O seu relatório sobre a vida do rapaz está cheio de comentários pessoais, inferências suas. Deixa-se levar pelo seu próprio entusiasmo e, vai-me perdoar, mas quase se tem a sensação que aqui e ali inventa... * Já reparou como a visão que temos da Cidade depende da velocidade a que nos deslocamos dentro dela? [aqui há um salto na gravação; quando se retoma, a voz que se identifica como sendo de Molero enumera não se percebe bem o quê:] ...uma miniatura dum avião, um relógio com muitos ponteiros, o eco de uma voz distante, berlindes diversos com o formato da Terra sem o Himalaia, um homem perdido no deserto, uma gravata azulmarinho, uma máquina de fazer recordar sonhos antigos, um par de binóculos com opção de paisagem, um iô-iô, um mapa de objectos perdidos, um ponto de interrogação... Percebe? Qualquer enumeração é sempre incompleta. Fica de qualquer modo, e para sempre, a certeza de que falta uma parte vital dessa vida, a sua substância mais alada, a vida de um homem é sempre mais pesada, e também mais leve, sempre mais ampla, do que a avaliação dela feita por outro, o relatório é apenas um esforço orientado numa linha eminentemente superficial. [A parte em itálico corresponde rigorosamente ao que, segundo Austin, Molero terá dito, ou escrito no relatório, o que parece confirmar definitivamente este Molero como sendo aquele a que Austin e DeLuxe se referem, de acordo com o curioso relatório de Dinis Machado.] – Seja como for, o material viria a ser processado por Computer, depois de lido e supostamente filtrado por Austin e Mister DeLuxe. Não o preocupa que possam não ter respeitado a sua versão? – A minha versão é só a minha versão. E o que eu disse está dito, não tenho mais nada a dizer. – Mas as pessoas gostavam com certeza de saber quem é o homem que está por detrás do diligente e lírico funcionário que se esconde nas notas à margem do relatório... – Ah, o jornalismo, sempre tão preocupado com a actualidade e com o que interessa aos seus leitores... "O que Molero não disse", "Molero diz tudo", "O que Molero realmente disse"... [risos] A vocês, jornalistas, interessa-vos só o presente. Para nós, na Organização, o presente é irrelevante, é absolutamente irrelevante ler o jornal de hoje, de há uma semana, de há um mês, de há uma década, a data não nos interessa. É uma questão de... [expressão imperceptível]. À Organização interessa a minuciosa história pessoal. Não podendo saber tudo sobre toda a gente, procuramos seguir as pistas de uma pessoa, uma única pessoa de cada vez. – Nunca chegou a falar com o rapaz? – Não, nunca o encontrei. – Como é possível saber-se tanto sobre uma pessoa sem nunca se ter falado com ela? – Já viu aquela andorinha que ali vai? [...] [Aqui a conversa é cortada por ruídos de interferência, dando lugar a uma outra gravação com aquilo que parecem ser tentativas falhadas de assobiar uma melodia, lembrando vagamente um fado vadio.] (Nuno Artur Silva, texto publicado na Revista Ler nº 27, Verão 1994)