A escravidão no Vale do Macacu através de registros de batismo - Séc. XIX
Vinicius Maia Cardoso
No presente artigo, adaptação de parte de minha Dissertação de Mestrado
intitulada “Fazenda do Colégio: Família, Fortuna e Escravismo no Vale do Macacu
no Século XIX”, se farão considerações a respeito de estudos sobre a escravidão
negra no Brasil estabelecendo-se uma discussão com especialistas no tema, com
foco nas solidariedades escravas como determinantes na construção de
estratégias de convivência – e resistência - no interior da sociedade escravista.
Abordar-se-ão aspectos gerais da escravidão na freguesia da Santíssima
Trindade, no vale do Macacu, recôncavo da Baía da Guanabara, Rio de Janeiro, e
a discussão da possível existência de uma comunidade escrava na Fazenda do
Colégio a partir da análise da pertinência do termo „comunidade‟ e sua
caracterização. Para a abordagem do escravismo em Macacu, foram utilizados
registros de batismo de escravos no século XIX, além de relatos recolhidos de
fontes coevas.
Na discussão da tese de existência de uma comunidade escrava na
Fazenda do Colégio, além dos mesmos registros de batismo foram de valia outras
tantas fontes primárias e apoio de bibliografia voltada para o tema. Nesse esforço,
foi de proveito o estudo comparativo dos inventários das escravarias de fazendas
jesuíticas como Santa Cruz, Campos Novos, Macaé e Engenho Novo, com
levantamentos estatísticos referentes à estrutura da posse de escravos na região
do Macacu. Como premissa básica, pretende-se discutir se comunidades escravas
se formariam no interior de complexas redes de solidariedades entre os cativos,
onde a presença da família escrava constituiria-se como seu elemento primordial.
A multiplicidade de trabalhos sobre o escravismo no Brasil, pela descoberta,
quantificação e qualificação de fontes, além de novas formas de abordagem
teórica e metodológica tem promovido a produção de pesquisas. No passar dos

Mestre em História do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu da Universidade
Salgado de Oliveira – UNIVERSO, Campus Niterói, Estado do Rio de Janeiro, com pesquisa
financiada pela FAPERJ intitulada “Fazenda do Colégio: Família, Fortuna e Escravismo no Vale do
Macacu – Séculos XVIII e XIX”.
anos, formou-se um mosaico de aportes teóricos para analisar as variadas
situações nas quais o sistema escravista teria sido produzido e reproduzido. O
escravismo brasileiro é tema que sempre desfrutou de um intenso debate interno
na oficina dos historiadores. Debate este por sinal acalorado, como o
protagonizado por Jacob Gorender1 e outros, quando da publicação de sua
primeira obra no gênero2. Além de apresentar esforço em caracterizar o
escravismo colonial brasileiro, desenvolveu idéias sobre o que denominou
“neopatriarcalismo”, característica a qual entendia “contaminar” as publicações
que se voltavam para a revisão das pesquisas sobre escravismo, a partir dos anos
70/80. Em contrapartida, Gorender recebeu contundentes críticas como a de
Schwartz, no tocante a que, “o compromisso ideológico de sua obra, às vezes
ofusca sua considerável erudição”. 3
A percepção de Fragoso acerca de “mundos” que se relacionariam no
escravismo – livres e cativos - não os determinando como “fechados” um em
relação ao outro, como afirmara Gorender na sua tipologia, mas sim, a todo tempo
interrelacionando-se num conjunto complexo de relações sociais desenvolvidas no
cotidiano, onde a mestiçagem, a invenção de categorias sociais como os mulatos,
pardos forros e a bastardia, são exemplos. O levantamento de fontes quantitativas
em arquivos paroquiais e cartoriais contribuiu para novas abordagens na
historiografia da escravidão. Revisitaram-se temas como o papel do escravo como
agente histórico, a percepção de si como sujeito, suas relações sociais mediadas
pelo compadrio, mesmo entre “antagônicos e irredutíveis” livres e cativos.
Desvelou-se a constituição de formas de sociabilidades escravas e o
reconhecimento da bagagem cultural trazida pelos negros vindos da mãe África 4.
Culturas de alguma forma transformadas no contato cotidiano entre livres,
libertos, cativos e repassadas, pela memória, às gerações de crioulos, pardos e
mulatos, configurando categorias de distinção social forjadas na complexidade das
relações sociais presentes no escravismo brasileiro.
1
Jacob Gorender. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática/Sec. de Estado da Cultura, 1990.
Jacob Gorender. O escravismo colonial. 2.ed. São Paulo: Ática, 1985.
3
Stuart Schwartz. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001, p.31.
4
Robert W. Slenes. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava – Brasil Sudeste, século XIX. RJ: Nova Fronteira, 1999.
2
Outra abordagem, a análise de formas de resistência escrava no cotidiano,
além de discussões sobre especificidades presentes nos „tipos‟ de mão-de-obra
cativa nas atividades agrícolas ou no setor urbano5. Também se apresentam
nesse contexto historiográfico os debates acerca da pertinência e lucratividade
possível na aplicação da mão-de-obra escrava em atividades “industriais”. Acerca
desse ponto em particular, considerando-se o trabalho no engenho como atividade
de natureza manufatureira inscrita no mundo agrário colonial, aprofunda-se no
passado a capacidade do escravo adaptar-se a formas de trabalho técnicoindustrial. Trabalhos como o de Libby6 abordam sobre lucro obtido com mão-deobra cativa na mina de ouro de Morro Velho, em Minas, no século XIX, e o
possível uso do trabalho feito por escravos na atividade “industrial”.
Martins, por sua vez, foi um dos que analisou a transição do trabalho
escravo para o trabalho livre. Outro ponto de relevância das novas pesquisas, na
esteira de uma profusão de trabalhos em caráter regional, é a percepção de que o
escravismo brasileiro não pode mais ser visto de forma unívoca para todos os
tempos e lugares. Afora características mais gerais, como por exemplo a
predominância da compra de indivíduos do sexo masculino em relação ao
feminino dadas as características da demanda de mão-de-obra no Brasil, as
pesquisas demonstram uma diversidade de tipologias na escravidão, certamente
face às conjunturas socioeconômicas presentes nas múltiplas realidades das
regiões pesquisadas. Segundo Lima,
Não há dúvida de que a historiografia sobre a escravidão nas últimas
décadas avançou imensamente na direção de compreender de um
modo mais denso o funcionamento da sociedade escravista no Brasil e
nas Américas. Dimensões fundamentais da experiência dos escravos
foram exploradas com cuidado em diversos trabalhos que lançaram luz
sobre as ações autônomas dos escravos no sentido de minar a
legitimidade da escravidão, bem como suas estratégias para construir –
5
João Luis Fragoso. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro – 1790 – 1830. RJ: Civilização Brasileira, 1998, p.29-35
6
Douglas Cole Libby. “Introdução” In: Douglas Cole Libby. Transformação e Trabalho em uma
economia escravista. Minas Gerais no século XIX. SP: Brasiliense, 1988, p. 15-26.
dentro e fora das relações escravistas – um universo viável a relações
sociais.7
No processo de “invenção” ou “construção” da escravidão, a visão do Brasil
escravista como “campo de concentração” escravo, onde o chicote e a corrente
teriam uso constante e aplicado aos cativos como único recurso possível na
extração de seu sobretrabalho, já não se sustenta para se entender o escravismo
enquanto sistema. Escravizar homens e mulheres, subtraindo-lhes a liberdade, já
não seria forma de continuada violência? Entretanto, há outras formas de violência
perpetradas através de não apenas uma, mas variadas e por vezes „sutis‟ formas
de coerção. A condição escrava não aparece somente no momento que se exerça
sobre os cativos a violência física, mas sim, pelo fato de que sua condição jurídica,
de propriedade privada do senhor, mercadoria humana, o submetia à possibilidade
de uso, sobre ele, dessa extremada expressão de violência. E os cativos, com
certeza, sabiam disso.
As análises da historiografia a respeito da resistência escrava abandonaram
a visão dualista que transitava a reação dos escravos da absoluta passividade
“coisificada” do cativo, à resistência revolucionária como formas únicas de reação
destes ao escravismo. Pesquisas demonstraram que outras formas de resistência,
não necessariamente o conflito direto, permearam o cotidiano dos escravos. Uma
realidade que os cativos vivenciaram no dia-a-dia de seus afazeres e que
certamente compreendiam como relação de dominação. Longe entretanto, de
desconsiderar ou deslegitimar a capacidade de luta e organização dos cativos em
congregar esforços para superar a condição de pessoas exploradas, o que seria
relegá-los contraditoriamente à “coisificação”. Entende-se que a reação escrava
com base no confronto direto teria curso desde que houvesse as mínimas
condições concretas para isso.
Deveria existir algo mais que o simples uso da violência - não que a um
feitor fosse vedado utilizá-la, arriscando-se a conseqüências imprevisíveis – no
controle da população de homens-mercadoria. Assim, apenas o argumento da
7
Henrique Espada LIma. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da
liberdade de trabalho no século XIX. Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro: UFRJ, Volume 6,
número 11, jul-dez, 2005, p.298.
busca de sujeição dos escravos mediante exclusivo uso da força não pode, por si
mesmo, explicar-se. Talvez ao menos uma das respostas esteja na elasticidade
temporal do escravismo brasileiro, gerador de crioulos, pardos, mulatos e libertos.
Esta última categoria, justamente identificada no confronto ao status cativo. No
conjunto, categorias sociais criadas e recriadas no tempo, as quais se mestiçaram
por décadas através de intrincadas relações sociais. Sociabilidades que inclusive
demonstram, por vezes, escravos no papel de feitores a manejar, quando
entendiam ser necessário, o chicote contra o corpo de seus “irmãos” negros.
Lara8 discutiu essas relações violentas no escravismo e a função
pedagógica do castigo infligido aos cativos visando controle social. Para tanto, cita
por exemplo, obras produzidas por religiosos, mormente jesuítas como Antonil9,
Benci10, Manoel Ribeiro da Rocha,11 nos século XVII e XVIII. A autora apresenta o
castigo como elemento estrutural no sistema escravista, meio de controle
necessário para a realização da produção. Sendo assim, excessos nos castigos
que pudessem comprometer essa produção ou por em risco a vida de senhores,
feitores e suas famílias, deveriam ser evitados.
Correção, emenda, disciplina ou simplesmente castigo: este o
instrumento de controle senhorial para submissão de seus escravos.
Sustentá-los para que não perecessem e castigá-los para que
produzissem. (...) Castigos freqüentes e excessivos levariam a fugas ou
ao suicídio. Era preciso emendar e ensinar o escravo sem o perigo da
12
perda de investimento.
Mesmo que mediadas pela violência, as relações entre senhores e
escravos deveriam alcançar um patamar “sustentável” de convívio. Perigosa
fronteira relacional, como um fio de navalha, onde castigos excessivos poderiam
sim, reduzir o indivíduo castigado à submissão. Entretanto, não necessariamente
evitar ódios que fariam escravos bem relacionados entre si, arquitetar vinganças e
8
Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
9
João Antônio Andreoni (André João Antonil). Cultura e Opulência do Brasil. Título IX. São Paulo:
Nacional, 1967.
10
Jorge Benci. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977.
11
Manoel Ribeiro Rocha. Etíope Resgatado: empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado. Petrópolis: Vozes, 1992.
12
Silvia Hunold Lara. op. cit. p. 49 e 51.
assassinatos de seus feitores e, em maior grau, de seus próprios senhores
„brancos‟. Conflitos prejudiciais em tudo aos senhores, posto que geravam
prejuízo financeiro e imediata indisponibilidade de mão-de-obra pela perda dos
escravos por morte ou prisão, quando então ficavam sob a custódia do Estado.
Chalhoub discutiu a questão dos acordos entre senhores e cativos através
da apresentação do caso, por sinal muito citado e clássico na historiografia da
escravidão no Brasil, do processo que envolveu o comerciante de escravos do Rio
de Janeiro José Moreira Veludo e um grupo de escravos oriundo do interior. A
querela foi motivada por questões relativas à venda desse grupo para outros
donos. Conflito que expõe diferentes caminhos que teriam tido aqueles escravos
para aliviar pressões da sua condição de cativos, desde que
Era comum que os escravos exercessem alguma forma de pressão
sobre seus senhores no momento crucial de sua venda. Essas pressões
ou negociações poderiam ter formas e intensidades diferentes,
dependendo de cada situação específica. Seja qual for o sentimento de
solidariedade que esses escravos tenham experimentado entre si, o fato
é que reagiram a uma situação na qual não lhes fora deixado qualquer
espaço de manobra.13
Está implícito que era possível aos cativos um “espaço de manobra” mínimo
que fosse e ainda mais se potencializado por um grau de relações e
solidariedades que houvesse sido construído entre esses cativos. Outro caso é a
rebelião escrava em São Tomé das Letras, Minas Gerais, nas fazendas da
poderosa família Junqueira, em 1833. O caso foi pesquisado por Marcos Ferreira
de Andrade a partir de um processo-crime aberto pelo então futuro barão de
Alfenas, Gabriel Francisco Junqueira. Na ocasião, o ainda não titulado do Império
teve membros de sua família mortos por seus cativos. No Auto de perguntas
constante do processo, sufocada a revolta e presos os suspeitos, o cativo João
Congo, um dos réus, declarou o seu motivo para o levante ao Juiz:
Em seu interrogatório, quando lhe foi perguntado se tinha algo que
produzir em sua defesa, se referiu aos "maus tratos" que sofria de seu
senhor moço, o Juiz de Paz de São Tomé das Letras, Gabriel Francisco
13
Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.32.
de Andrade Junqueira. "Respondeu que seu senhor o tratava de
mandrião, não estava contente com o seu serviço, dava-lhe pancadas,
ainda mesmo quando estava doente”.14
João Congo, em meio à tensão de um julgamento e premido por suas
possíveis consequências, poderia estar mentindo. O que chama a atenção é o fato
do escravo justamente dispor desse argumento – e não de outro - para sua
defesa, na crença de que o mesmo poderia sensibilizar o juiz. Se tal situação era
possível, pode significar que havia realmente algo de concreto em um escravo
estar “insatisfeito” com maus tratos. Por sua vez, considerando sua declaração
como verdadeira, a rebeldia de João Congo, não exatamente motivada para a
superação do escravismo enquanto sistema, respondeu mais ao tratamento que,
segundo seu depoimento, interpretara como excessivo. Reação que atribuía aos
xingamentos a ele direcionados, aos "maus tratos" que sofria de seu “senhor
moço”. Pode-se imaginar a que nível chegara o ódio de João Congo ao acumular
no dia-a-dia tantos castigos e xingamentos, vistos por ele como desnecessários. O
negro parece não admitir nem ver razão em apanhar. Tinha consciência de não ter
feito nada de errado que “justificasse” qualquer castigo. Provavelmente se
considerava trabalhador, cumpridor de suas tarefas e não merecedor de surras
injustificáveis, já que se encontrava doente. Muito menos ser insultado. Era
esperar muita submissão. Era exigir demais dele.
Burmeister, em sua estada na cidade do Rio de Janeiro em 1851, registrou
uma canção de escravos que teria ouvido nas ruas, enquanto estes trabalhavam:
“Meu patrão me bateu/Ele não procedeu bem/Nada de mal eu fiz,/Mas ele bateu
em mim”15 Maestri discutiu as conclusões de Reis & Silva a respeito das fugas e
revoltas escravas que estes apresentaram motivadas pela quebra de equilíbrio
entre as relações senhor/escravo:
14
Marcos Ferreira de Andrade. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na província de Minas
Gerais. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 1996. Dissertação de Mestrado – UFF. Disponível em:
<http://www.acervos.ufsj.edu.br/site/fontes_civeis/revolta_carrancas.pdf>. Acesso em: 14 set. 2008.
15
Hermann Burmeister. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais:
visando especialmente a história natural dos distritos auri-diamantíferos. Belo Horizonte: Itatiaia.
SP: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p.72
João Reis e Eduardo Silva16 seguem Alípio Goulart17 na visão de que as
principais razões das intenções de fugas seriam a quebra do que
poderíamos chamar de boa escravidão: “[...] a principal motivação para
fugas e revoltas parece ter sido a quebra de compromissos e acordos
anteriormente aceitados. Existia, em cada escravo, idéias claras,
baseadas nos costumes e em conquistas individuais, do que seria,
digamos, uma dominação aceitável.” 18
Ora, não fora justamente os maus tratos, a violência de Veludo contra os
cativos, que animara a revolta estudada por Chalhoub? Não motivara, da mesma
forma, o banho de sangue do caso de São Tomé das Letras? Essa posição, de
que o rompimento de um limite „aceitável‟ no cativeiro movia os escravos a
atitudes igualmente extremas, se reforça com Amantino. Esta considera que:
O que levava o escravo, africano ou crioulo, a fugir? Pode-se afirmar
que inúmeros fatores coexistiram para levar o cativo a tomar uma
decisão tão radical. As fugas ocorriam, evidentemente, por uma negação
ao seu cativeiro. Entretanto, havia mais do que isto. O escravo fugia
porque percebia que não lhe restava alternativas dentro do sistema. A
fuga significava para o fugitivo recobrar o domínio sobre sua vida,
refazer, no caso dos crioulos, possíveis laços parentais, acabar com os
castigos e dispor de sua força de trabalho como lhe aprouver. 19
Atuara o destempero no uso da violência, por parte de senhores e feitores, implícita e necessária na ordem escravista - como elemento deflagrador dos
planos dos escravos, que renderam boa surra a Veludo, e a chacina em Minas
Gerais. Fracassara, portanto, a violência física como mecanismo eficaz de
intimidação dos cativos, estratégia tacanha empregada na busca de reduzi-los a
uma presumida situação de passividade e submissão. Sem entretanto, correr o
risco de se justificar essa negociação como uma realidade concreta para todos os
casos, vencera por outro lado o mecanismo repressivo do Estado, acionado para
regular o momentâneo desequilíbrio de forças no interior do sistema. Um ciclo de
16
Eduardo Silva; João José Reis. Negociações e conflitos: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989
17
José Alípio Goulart. Da palmatória ao patíbulo. Rio de Janeiro: Conquista; INL,1971.
18
Mário Maestri. “Catando cipó”: o cativo fujão no Brasil escravista; histórias e representações.
Disponível em: <http://www.2csh.clio.pro.br/mario%20maestri.pdf>. Acesso em: 14 set. 2008.
19
Márcia Amantino. Os escravos fugitivos em Minas Gerais e os anúncios do Jornal “O Universal”
– 1825 a 1832. In: LOCUS Revista de História, v. 12, nº 02. Juiz de Fora: UFJF, 2006, p.63.
violência gerando violência, e concluído pelo uso „pedagógico‟ da força.
Enfrentariam os cativos o derradeiro e esmagador castigo perpetrado pelo Estado.
O suplício dos escravos atuaria como última e pedagógica demonstração, com
força de lei. O Estado constituía-se como ente último afrontado, o que significava
remediar a exposição de uma faceta de fragilidade na sociedade ordenada pelos
homens de primeira categoria. Caberia então ao Estado o papel de atuar, com
desmedido rigor, para restabelecer a „boa ordem‟ na sociedade.
Desta forma, ao contrário de se admitir sistematicamente uma sempre
presente ação “revolucionária” e de superação do escravismo enquanto sistema
por parte desses escravos ao revoltar-se, prefere-se aqui caminhar em direção
oposta. A elaboração e execução de estratégias pelos cativos, extremas em
muitos casos é verdade, e na intenção de driblar as penosas circunstâncias
presentes no dia-a-dia escravo, são consideradas situações mais plausíveis.
Posições discordantes, entretanto, também se expressam através do argumento
que considera que:
As propostas de que a reação à escravidão nascesse da oposição do
cativo a condições extraordinariamente duras de vida e de trabalho –
devidas a condições conjunturais, a proprietários despóticos, à violação
de escravidão vivível ou benigna – nega a violência social e produtiva
como exigência intrínseca do escravismo colonial.20
Pelo contrário, a redução de um homem à condição escrava só é possível
se entendida como fruto de relações sociais no interior de um sistema social, per
si, violento. As reações extremas dos cativos apareciam quando expressões
dessa violência, estruturalmente social e intrínseca ao sistema atingiam gradação
extremada, alcançando níveis “inaceitáveis”. Infere-se que cativos revoltosos
tinham consciência de suas atitudes de rompimento – roubos, sabotagens, fugas,
rebeliões, assassinatos – as quais fariam acionar contra eles o braço repressivo
do Estado. Todo escravo fujão sabia bem que contra ele viria o capitão-do-mato
ou a polícia, na busca de retorná-lo novamente à posse do seu senhor.
20
Mario Maestri, op. cit.
Atravessar essa tênue linha de equilíbrio era arriscar ao sucesso, mesmo
que isso se traduzisse numa permanente situação de instável liberdade dado que
um escravo fugido não se poderia considerar que estivesse livre. Tal condição
significava, para o sublevado, assumir outra vida também repleta de percalços. O
fracasso, por sua vez, traria conseqüências as quais os escravos sabiam que
seriam, sempre, extremamente duras.
A fuga, como opção menos violenta de reação – não menos corajosa - era
a forma dos cativos responderem à insustentável permanência numa propriedade
rural ou urbana. Significava a decisão e disposição do cativo, em deliberadamente
atravessar a tênue fronteira de equilíbrio. Atitude desesperada na busca de uma
sempre precária „liberdade‟. E como se fugia no Brasil! A fuga significava não
apenas lançar-se a essa situação de risco absoluto. O escravo, ao fugir, pagava
outro elevado preço:
Para o cativo, a fuga significava romper com laços sociais e afetivos,
deixando para trás uma comunidade já estabelecida, partindo rumo ao
desconhecido e ao perigo de ser recapturado e ter as condições de vida
pioradas. A fuga significava, para o africano, uma tentativa de dispor de
sua própria vida e quem sabe encontrar companheiros de sua região de
origem. Aquele recém chegado no plantel era o que tinha menos a
perder com a fuga, já que não possuía na maior parte das vezes
relações afetivas no cativeiro.21
Essas considerações remetem à presença de solidariedades forjadas no
tempo, pelos cativos. Chalhoub reputa a possibilidade da articulação do plano
escravo por ele narrado à condição de que estes teriam pertencido ao mesmo
grupo, quiçá étnico. Escravos oriundos da mesma propriedade, ou seja, da
pertença a um mesmo grupo e trazidos ao Rio de Janeiro para venda. O sistema
escravista configura-se como de necessária aplicação da violência na observância
da extração de trabalho. Contudo, não se resumia ao uso desmedido do castigo,
motor de imprevisíveis resultados para os senhores. Essa complexidade foi
sintetizada por Faria no tocante que, ser escravo,
21
Marcia Amantino. op. cit., p.63.
não era trabalhar, comer, dormir acorrentado a grilhões silenciosos. Em
termos figurativos, é a ponta de um véu que, já levantada, deixa entrever
uma comunidade não fechada em si mesma, que em seu dia-a-dia
trabalhava, comia, amava, odiava, convivia intimamente com os livres,
comercializava, andava por caminhos e ruas, conversava, tramava, etc.
Vivia, em suma. Mas vivia escrava! E esse dado é fundamental.22
Apesar do baixíssimo status escravo, inferior ao de um homem livre pobre,
os cativos conviveram entre si, com os livres e libertos, tramaram sobrevivências
como as narradas. Viveram as diversas situações do cotidiano escravista,
produzido e reproduzido num mundo de solidariedades individuais, formação de
famílias escravas e, num maior nível de complexidade, de agregados maiores de
escravos. Espaço de sociabilidade, ajuda mútua, conflitos, estratégias de
sobrevivência no seio de uma sociedade que tinha como interesse a extorsão
sistemática de seu trabalho.
Santíssima Trindade: o escravismo nos registros de batismo.
Após essas considerações iniciais, passar-se-á à análise das relações
escravistas na freguesia da Santíssima Trindade, termo da Vila de Santo Antônio
de Sá, no Vale do Macacu (RJ). Foram eleitas como fontes primárias básicas
2.583 registros de batismo de adultos e crianças escravas coletados no arquivo da
Paróquia de Sant´Ana de Japuíba23, no recorte temporal de 1819 a 1873. Estes
foram subdivididos em dois grupos: o Grupo A (1819 a 1840) e o Grupo B (1852 a
1873), pós fim do tráfico negreiro. A tabela abaixo apresenta a totalidade de
batismos entre 1819 e 1873 na freguesia da Santíssima Trindade, num total de
2.583 registros. Há elevada naturalidade (76,77%), em comparação com os
nascidos legítimos (18,27%), e baixo índice de batismos de escravos adultos
(4,19%) para tão extenso período, onde se infere que pode ter havido entradas na
região de escravos adultos já anteriormente batizados. Os “Inaproveitados” (0,77),
22
Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.291-292.
23
Fica aqui o agradecimento ao Pe. Henrique, da Paróquia de Sant´Ana de Japuíba, em
Cachoeiras de Macacu (RJ), que disponibilizou para a pesquisa, sem reservas, os valiosos
arquivos daquela paróquia.
são registros destruídos ou ilegíveis, em proporção que não compromete a
análise.
TABELA 1 – Batismos de escravos - 1819/1873
Categoria
Filhos naturais
Filhos legítimos
Adultos
Inaproveitados
TOTAL
Quantidade
1.983
472
108
20
2.583
%
76,77
18,27
4,19
0,77
100,00
FONTE: Livro de batismos de escravos24
Dividindo o recorte temporal em dois grupos, tem-se para o Grupo A:
TABELA 2 – Batismos escravos adultos - 1819/1840.
Categoria
Filhos naturais
Filhos legítimos
Adultos
Sobra
TOTAL
Batismos
%
653
344
108
08
58,6
31,0
9,7
0,7
1.113
100,0
FONTE: Livros de batismos de escravos, Op. Cit.
Nos primeiros 21 anos de registros (Grupo A), realizaram-se 1.113
batismos, somente apresentando batismos de cativos adultos (9,7%). Há um
„equilíbrio‟ entre naturalidade (58,6%) e legitimidade (31,0%). A Tabela 3
apresenta batismos entre 1852 a 1873 (Grupo B), com 1.470 registros. Não se
havia nenhum registro de batismo adulto.
24
Livros de Batismos de Escravos da Freguesia da Santíssima Trindade de Sant´Anna de Macacu.
1819 – 1873. Paróquia de Sant´Ana de Japuiba – Cachoeiras de Macacu – RJ. Os registros foram
citados englobados, já que não se encontravam claramente separados nos livros encontrados no
arquivo.
TABELA 3 – Batismos de escravos - 1852 a 1853
Categoria
Batismos
%
Filhos naturais
Filhos legítimos
Adultos
Sobra
1.330
128
0
12
90,47
8,71
0,0
0,82
TOTAL
1.470
100,0
FONTE: Livros de registro de batismos de escravos, Op. Cit.
A inexistência de batismos de adultos pode ser explicada pelo recorte
temporal, já que a vigência, a partir de 1850, o fim do tráfico negreiro certamente
motivou o desaparecimento destes batismos nos livros. Cativos “novos” - ditos
boçais - só poderiam ser adquiridos mediante contrabando nesse momento. Seria
descuido, além de declarada ilegalidade, aparecer no livro de batismo. Reitera-se
então que sua ausência não permite afirmar categoricamente que não entrou
escravo adulto contrabandeado na freguesia da Santíssima Trindade.
A quase absoluta naturalidade (90,47%) reduziu a níveis comparativamente
muito baixos os nascidos legítimos (8,71%). Essa baixa legitimidade pode também
ter sido reflexo da definitiva lei do fim do tráfico. Motivos plausíveis como a não
entrada de novos cativos, a elevada mortalidade motivada por epidemias, maustratos e condições de sobrevivência inadequadas, a venda ou impossibilidade de
compra no tráfico interno dada pelo elevadíssimo preço que alcançaram no
mercado, e a lentidão para que as “crias” do sexo feminino atingissem idade fértil,
provavelmente inviabilizaram a formação de relações estáveis entre escravos na
região do Macacu. A tipologia dos apadrinhamentos apresenta o seguinte quadro:
TABELA 4 – Apadrinhamento de escravos por cativos, livres, libertos – 1819/1873
Cativos
Livres
Libertos
Inaproveitados
TOTAIS
Padrinhos
1.469
1.059
36
119
2.683
%
54,7
39,4
1,3
4,4
100,0
Madrinhas
867
404
33
97
1.401
%
61,8
28,8
2,3
6,9
100,00
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
Há escravos que formaram casais, sendo descartados os batismos feitos
sem madrinhas para todo o recorte temporal. Um total de 2.683 escravos servira
como padrinhos. Destes, 1.469 (54,7%) eram cativos; 1.059 livres (39,4%). Os
libertos pouco apadrinharam. Predominaram as cativas escravas. De 1.401
madrinhas, 867 eram cativas (61,8%) e 404 livres (28,8%). Foi reduzido o número
de libertas amadrinhando. Analisando-se o recorte temporal nos grupos, A e B,
temos:
TABELA 5 – Apadrinhamento de escravos por cativos, livres, libertos - 1819/1873
Padrinhos
%
Cativos
666
55
Livres
464
38,2
Libertos
28
2,3
Sem declaração
55
4,5
TOTAIS
1213
100,0
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
Madrinhas
446
216
23
39
%
61,6
29,9
3,2
5,3
724
100,0
TABELA 6 – Apadrinhamento de escravos por cativos, livres, libertos - 1852/1873
Cativos
Livres
Libertos
Inaproveitados
TOTAIS
Padrinhos
803
595
08
64
1.470
%
54,6
40,5
0,5
4,4
Madrinhas
421
188
10
58
%
62,1
27,7
1,4
8,5
100,0
677
100,0
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
O percentual de padrinhos cativos é quase o mesmo, de 55 % no grupo A
contra 54,6% no Grupo B. Há um aumento significativo de 131 pessoas (8,9%) no
número de padrinhos livres, de 464 (38,2%) no primeiro período (1819 a 1840),
para 595 (40,5%) no segundo (1852 a 1873). O número de apadrinhamentos feitos
por libertos, embora pequeno, diminuiu bastante, de 28 no primeiro período
(2,3%), para apenas 08 (0,5%) no grupo B. Em relação às madrinhas os números
são aproximados: 446 (61,6%) no Grupo A e 421 (62,1%) no Grupo B, persistindo
a baixa incidência de libertas amadrinhando. Sobre apadrinhamentos, outros
trabalhos mostram possibilidades distintas para cada região e recorte temporal,
com alguns apresentando predomínio de homens e mulheres livres apadrinhando
cativos.
Brügger, ao analisar apadrinhamento de cativos em São João Del Rei
(1730-1850), constatou que havia mais homens livres apadrinhando escravos
entre 62%. Em 150 casos (1,1%), entre 1736 e 1850, as crianças foram
apadrinhadas por seus senhores.25
Neves analisou o compadrio escravos em São Paulo no século XIX,
apresentando escravos batizados por livres e na maioria os homens serviram de
padrinhos de crianças escravas: “os proprietários em raras oportunidades serviam
como padrinhos de seus escravos”.26 Vasconcellos, para Angra dos Reis, no
mesmo século, demonstrou que os escravos apadrinhavam a maioria dos cativos,
473 (91,6%) e apenas 37 deles (7,2%) tiveram padrinhos livres.27 Em Inhaúma,
Rio de Janeiro, na primeira metade do oitocentos, Góes28 concluiu que os
senhores nunca apadrinhavam cativos, sendo que 66% tiveram padrinhos
escravos: “os escravos reunidos em plantéis menores buscavam padrinhos, via de
regra, em cativos de outros senhores, e o inverso se dava nos maiores”. 29
25
Sílvia Maria Jardim Brügger. Compadrio e escravidão: uma análise do apadrinhamento de
cativos em São João Del Rei, 1730-1850. XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP.
Caxambu- Minas Gerais, 20-24 de setembro de 2004. p.3 - 6.
26
Maria de Fátima Rodrigues das Neves. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em
São Paulo do século XIX. História e População. Estudos sobre a América LatinaBEP/IUSSP/CELADE.São Paulo, 1990, p.241 e 243
27
Márcia Cristina Vasconcelos. Que Deus os abençoe. Batismo de escravos em Angra dos Reis
(RJ), no século XIX. p.7-27.História e perspectivas. Revista dos cursos de História. Universidade
Federal de Uberlândia, 1997.
28
José Roberto Góes. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro na
primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993. p.118
29
Vitória Fernanda Schetinni Andrade. Ilegitimidade e compadrio: o estudo dos nascimentos de
filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852 – 1888. XV Encontro de Estudos
Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu – Minas Gerais – Brasil, 2006.
Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_478.pdf>.
Acesso em: 31 jul. 2008.
TABELA 7 – Apadrinhamento de escravos – 1819/1873
Só o padrinho
Padrinho e
Madrinha
Mistos
L
I
V
R
E
L
I
B
E
R
T
O
C
A
T
I
V
O
S
L
I
V
R
E
S
L
I
B
E
R
T
O
S
233
201
10
378
197
416
373
04
357
649
574
14
24,5
21,7
0,53
C
A
T
I
V
O
Mistos
Mistos
Padr.
cativo
Madr.
Livre
Padr.
cativo
Madr.
Liberta
Padr.
livre
Madr.
Cativa
Padr.
livre
Madr.
liberta
Padr.
liberto
Madr.
cativa
Padr.
liberto
Madr.
Livre
Não
aprov
.
12
14
10
60
00
06
01
61
1183
166
00
21
09
55
01
04
00
58
1464
735
363
12
35
19
115
01
10
01
119
2.647
27,8
13,7
0,45
1,32
0,71
4,34
0,04
0,37
0,04
4,5
100%
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
A Tabela 7 indica que, semelhante aos casos de Angra dos Reis e
Inhaúma, também em Macacu houve predomínio de escravos apadrinhando
escravos em todo o recorte temporal analisado. Esse predomínio se deu para
batismos onde se registrou só a presença do padrinho, com 649 escravos
apadrinhando (24,5%) contra 574 livres (21,7%). Para os casos onde se registrou
a presença de ambos, padrinho e madrinha, há 735 escravos e escravas (27,8%).
Os casais livres que apadrinharam somam 363 pessoas (13,7%).
Nos apadrinhamentos mistos (casais de padrinhos formados por cativos,
livres ou libertos), aqueles em que ao menos um era escravo, padrinho ou
madrinha, prevaleceu. Isoladamente ou formando pares, 1.384 pessoas (52,3%)
que apadrinharam cativos em todo o recorte de 1819 a 1873 eram escravas. Tal
resultado diferencia Macacu dos casos de São Paulo no século XIX e São João
Del Rey, em Minas Gerais, de 1730 a 1850, descrito por Neves e Brügger, onde
os que mais apadrinharam cativos foram os livres.
TABELA 8 – Tipologia de apadrinhamentos escravos – Grupo A: 1819-1840
Só o padrinho
Padrinho e Madrinha
L
C
L
I
A
I
B
T
V
E
I
R
R
V
E
T
O
S
O
S
S
C
A
T
I
V
O
L
I
V
R
E
L
I
B
E
R
T
O
233
201
10
378
197
19,7
%
17,
%
0,85
%
31,95
%
16,65
%
Mistos
Mistos
Mistos
Não
aprov.
T
O
T
A
L
01
61
1.183
0,09
%
5,15
%
100%
Padr.
cativo
Madr.
Livre
Padr.
cativo
Madr.
liberta
Padr.
livre
Madr.
cativa
Padr.
livre
Madr.
liberta
Padr.
liberto
Madr.
cativa
Padr.
liberto
Madr.
livre
12
14
10
60
00
06
1,01
%
1,18
%
0,85
%
5,07
%
00
0,5
%
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
Na Tabela 8 permanece o predomínio de escravos como padrinhos isolados
(19,7%), ou formando casais cativos (31,95%). Nos apadrinhamentos mistos, foi
maior a incidência de casais onde ao menos um dos padrinhos era cativo. No
segundo recorte (Tabela 9) permanece o mesmo padrão:
TABELA 9 – Tipologia de apadrinhamento de escravos - Grupo B: 1852 a 1873
Só o padrinho
Padrinho e madrinha
L
C
L
I
A
I
B
T
V
E
I
R
R
V
E
T
O
S
O
S
S
C
A
T
I
V
O
L
I
V
R
E
L
I
B
E
R
T
O
416
373
04
357
166
28,41
%
25,48
%
0,28
%
24,38
%
11,34
%
Mistos
T
O
T
A
L
Padr.
cativo
Madr.
Livre
Padr.
cativo
Madr.
liberta
Padr.
livre
Madr.
cativa
Padr.
livre
Madr.
liberta
Padr.
liberto
Madr.
cativa
Padr.
liberto
Madr.
livre
Não
aprov.
00
21
09
55
01
04
00
58
1.464
00
1,43
%
0,61
%
3,75
%
0,08
%
0,28
%
00
3,96
%
100%
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
Embora apresente índices mais aproximados nos batismos onde há
somente o padrinho, ou seja, 28, 41% para escravos e 25,48% para livres, nos
apadrinhamentos feitos por casais formados por cativos a diferença entre os
percentuais aumenta significativamente. Para o recorte temporal de 1852 a 1873,
357 escravos (24,38%) constituíram casais de padrinhos cativos, contra 166
(11,34%) com livres: diferença de 191, ou seja, 53,5%. Persiste a predominância
de cativos apadrinhando. Os apadrinhamentos mistos mantiveram o padrão, com
a maioria dos casais de padrinhos formados por pelo menos um cativo ou uma
cativa. Os grupos A e B, separados pela vigência da Lei Euzébio de Queirós,
mesmo reunidos ou separados, não apresentaram alteração no padrão mantido
para os apadrinhamentos.
Na freguesia da Trindade, para o recorte temporal analisado, escravos
sempre apadrinharam mais que livres. Da mesma forma, para todo o recorte
temporal (1819-1873), somente 36 (1,36%) libertos batizaram isoladamente ou
formando casais com madrinhas libertas, livres ou cativas. Isoladamente, somente
0,85% de libertos apadrinharam (10 casos). Quando formaram casais de
padrinhos, responderam pela cifra de 12 libertos (0,45%). Os apadrinhamentos
mistos integram 31 pessoas, com 1,17%, frente ao total de 2.647 pessoas que
apadrinharam escravos em Macacu.
Dos 36 padrinhos libertos, 18 (50,0%), apadrinharam escravos nascidos
naturais e 14 (38,8%) foram padrinhos de legítimos. Apenas 04 (11,1%) levaram
adultos à pia. Subdivididos nos Grupos A e B, há 08 libertos (0,30%) apadrinhando
entre 1852 e 1873, contra 28 (1,05%) apadrinhando entre 1819 a 1840. Face tão
inexpressiva representação, não é possível estabelecer uma razão plausível que
explique a motivação para estes apadrinhamentos por parte de libertos.
Entretanto, é difícil crer para esse recorte temporal extenso, que houvesse um
número tão pequeno de libertos na freguesia da Santíssima Trindade, mas o
reduzido número percebido nas fontes demonstra que os escravos possivelmente
foram preteridos pelos libertos no apadrinhamento de seus filhos e filhas.
Segundo Brügger, em sua pesquisa sobre apadrinhamento de cativos em
São João Del Rei (1730-1850), “em apenas 150 casos, ou seja, 1,1% das crianças
cativas, batizadas entre 1736 e 1850, foram apadrinhadas por seus senhores”.30
Neves apresentou a mesma conclusão a respeito de seus estudos, no mesmo
tema, para São Paulo, concluindo que “os proprietários em raras oportunidades
30
Silvia Maria Brüugger. op.cit. p.3 - 6.
serviam como padrinhos de seus escravos”.31 Da mesma forma, em sua pesquisa
para a região de Inhaúma, no Rio de Janeiro, para a primeira metade do século
XIX, José Roberto Góes32 também chegou á conclusão, como Schwartz, de que
os senhores nunca apadrinhavam seus cativos. 33
Guedes, para a freguesia de São José do Rio de Janeiro, entre os anos de
1801 e 1821, observou que os senhores só apadrinharam seus cativos 36 vezes
(0,6%), 19 (0,8%) em batismos de adultos e 17 (0,5%) nos batismos de inocentes,
concluindo que “o compadrio também não reforçou, diretamente, os vínculos entre
senhores e escravos, tal como apontaram S. Gudeman e S. Schwartz”.34
Em Macacu, raríssimos senhores apadrinharam seus cativos, como no caso
de Justa, filha natural de Apolinária, escrava de Benedicto Ferreira Pinto. Batizada
em outubro de 1830, foi apadrinhada pelo seu senhor e Praxedes, “filha de Luiza,
viúva de Luiz Pedro”. Para Macacu, a respeito dos apadrinhamentos feitos por
escravos do mesmo senhor ou de senhores diferentes observa-se o seguinte:
TABELA 10 – Tipologia da propriedade dos escravos formadores de casais de padrinhos
– Grupos A e B - 1819 a 1873
Grupo A
1819 a 1840
%
Casais de padrinhos
402
63,41
cativos do mesmo senhor
Padrinhos com 01 cativo
22
3,47
do próprio senhor
Casais de padrinhos
33,12
cativos de outro senhor
210
TOTAIS
634
100,0
FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit.
Grupo B
1852-1873
%
TOTAIS
%
203
40,4
605
53,2
28
5,6
50
4,4
272
54,0
482
42,4
503
100,0
1.137
100,0
No Grupo A, 402 casais de padrinhos (63,41%) eram escravos
pertencentes a um mesmo senhor. Já o restante dos apadrinhamentos, ou foi feito
por ao menos um cativo do próprio senhor como padrinho (3,47%), ou por
escravos de outros donos (33,12%). Estes dois últimos casos podem ter sido
31
Maria de Fátima Rodrigues das Neves. op. cit.p.241 e 243
José Roberto Góes. op. cit. p.118
33
Vitória Fernanda Schetinni Andrade. op. cit.
34
Roberto Guedes. Notas sobre fontes paroquiais de batismo. In: Caderno de Estudos e
Pesquisas. Ano VIII. Nº 19 (janeiro/abril 2004). São Gonçalo, Rio de Janeiro: UNIVERSO, 2004,
p.110.
32
possíveis por atendimento das necessidades de um possível pequeno proprietário
cuja escravaria era tão pequena que não dispunha de cativos suficientes para a
função.
Para o Grupo B, o número de cativos de outros senhores que batizaram
cativos já é um pouco superior ao de senhores que tiveram os próprios escravos
como padrinhos. Entretanto, em números globais, para todo o recorte temporal,
foram escravos dos mesmos senhores que apadrinharam seus escravos.
Guedes, que focou sua pesquisa em batismo de inocentes, afirma que
quer se tratasse de padrinhos cativos (pertencentes ou não à mesma
escravaria de seus afilhados) ou de livres- forros, não havia interdição
senhorial para a realização de laços de compadrio nos batismos de
inocentes. As exclusões e aproximações ficavam por conta dos próprios
cativos.35
Parece que relação semelhante se deu em Macacu. Adicionado o
percentual dos batismos com ao menos um padrinho e o de casais de padrinhos
„de fora‟ (de outro senhor) das propriedades, chega-se a 46,8%, perfazendo um
total de 532 cativos. Significa que se estende a rede de compadrios escravos para
fora das propriedades, estreitando laços entre cativos de senhores diferentes.
Desta forma os batismos tornaram possível a construção de relações de
compadrio e parentesco entre os escravos. Relações que assinalam a construção,
no tempo e pelo convívio, de solidariedades escravas intra e extra propriedade.
Por outro lado, este convívio era possivelmente mais intenso no interior das
maiores escravarias. Guedes analisou em seu trabalho sobre Porto Feliz (SP) e a
freguesia de São José (RJ), como o batismo podia contribuir para formar essas
mesmas solidariedades, as quais, em tese, formariam comunidades escravas:
a escravidão manteve um ótimo diálogo com o batismo. Estimulado por
senhores e escravos, demonstra um modo pelo qual o cativeiro
incorporava trabalhadores africanos, ao mesmo tempo em que
propiciava meios de socialização entre os cativos, o que, por sua vez,
35
Roberto Guedes. op. cit. p.110.
conduziu a uma intensa rede de parentesco, que formara uma
comunidade escrava.36
Comunidade escrava: uma possibilidade na resistência cativa no cotidiano?
Buscando-se aqui discutir essas sociabilidades através do conceito de
comunidade escrava, Albuquerque explica que a tradição sociológica weberiana
fundou conceitos de comunidade e sociedade, sistematizados por Tönnies, com
os termos Gemeinschaft e Gesellschaft, já no século XIX, tendo estes, sido
instrumentos de identificação e compreensão de contextos e períodos históricos
desde o século XVIII.37 Com base em Weber, Aron buscou delimitá-los:
Quando o resultado do processo de integração é uma comunidade
(Gemeinschaft), o fundamento do grupo é um sentimento de pertinência
experimentado pelos participantes, cuja motivação pode ser afetiva ou
tradicional. Se este processo de integração leva a uma sociedade
(Gesellschaft), isto se deve ao fato de que a motivação das ações
sociais se constitui de considerações ou ligações de interesses, ou leva
a um acerto de interesses.38
A sociedade, portanto, surgiria de uma noção de interação complexa entre
os homens, de contrato. Já a comunidade seria originada através de relações
construídas pelo convívio, trazendo um „sentimento de pertinência.‟ Talvez o
conceito de comunidade escrava tenha sido aplicado com essa concepção
sociológica moderna, na busca de se explicar, ou melhor, conceituar, esse espaço
relacional complexo engendrado por cativos no cotidiano. Sendo assim, um
conceito aplicado a posteriore. Faria demonstrou que o tema é bem mais
complexo:
Usa-se comunidade como se houvesse um consenso sobre seu
significado. Não há. G. A. Hillery, há décadas atrás, analisou 94
definições de “comunidade” em diversos autores e chegou à conclusão
de que “exceto quanto à concordância pacífica de que as pessoas vivem
36
Roberto Guedes. op.cit., p. 110
Leila Marrach Basto de Albuquerque. Comunidade e Sociedade: conceito e utopia. Revista
Raízes. Ano XVIII, Nº 20, novembro/99, p. 50 – 53.
38
Raymond Aron. As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.805.
37
em comunidade, nenhum consenso existe entre os cientistas sociais
quanto à sua natureza”..39
A autora em seu artigo admite a existência de comunidades escravas,
discutindo se elas surgiriam mesmo somente em grandes escravarias e
considerando também a questão do tráfico, abordada por opositores da noção de
comunidade para os cativos, como fator desestabilizador dessas mesmas
comunidades em si. O ponto, entretanto, que poderia ser aproveitado nessa
discussão, parece estar ligado à questão de, até que ponto haveria a pertinência
do termo “comunidade” para explicar um espaço de sociabilidade escrava em nível
mais complexo. Guedes caracteriza-a como constituída através de relações
afetivas, apontando para o conceito exposto por Albuquerque, com base em
estruturas parentais (casamentos, compadrio) construídas no tempo.
Engemann
afirma
que
essas
solidariedades
seriam
possíveis
se
construídas em níveis complexos em grandes escravarias.40 Haveria portanto, um
conjunto de condições básicas na construção desse espaço relacional complexo:
grande número de escravos ampliando a tensão e forçando “negociações”. Estas
“negociações” por sua vez, gerariam alianças parentais através do convívio
prolongado, promovendo a formação de uma ou mais gerações de escravos e
formando um amálgama cultural com base na memória dos antepassados do
grupo. Originaria-se então um espaço relacional complexo entre os cativos,
denominado de comunidade escrava.
Ainda segundo Engemann, tais fenômenos teriam sido largamente
observados
em
comunidades
remanescentes
de
quilombos.
Portanto,
agrupamentos de escravos fugidos que teriam consolidado suas relações em
momento posterior ao fim da escravidão em conjunturas socioeconômicas e
culturais distintas das do mundo escravista. As condições para tal agregação entre
aquilombados trazem em si um aspecto: o de relativo isolamento e a ausência da
figura do senhor, situação distinta da vivida pelos cativos – não importando o
tamanho do grupo - no interior de uma propriedade. Machado também cita que o
39
Sheila de Castro Faria. Identidade e comunidade escrava: um ensaio. Tempo. Revista do
Departamento de História da UFF, v. 11, 2007, p. 144-145.
40
Carlos Engemann. De laços e nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
número elevado de escravos num determinado espaço propiciaria solidariedades
em nível comunitário já que, “nas regiões com predomínio de grandes escravarias,
por exemplo, o percentual de escravos apadrinhando escravos era bem mais
significativo”.41 Outra característica é a de que, na construção de relações sociais
mais sólidas em qualquer grupo humano, haveria necessidade do fator tempo para
formalizar maior estreitamento de laços.42 Comunidade escrava, portanto, seria
um conjunto de indivíduos que partilham símbolos, ritos, mitos e
parentesco dentro do mesmo espaço socialmente ordenado. A partir
disso, é possível deduzir que os plantéis, principalmente aqueles com
relativo equilíbrio etário e sexual, tenham se constituído em unidades
comunitárias, uma fez que a comunidade escrava é, em princípio,
produto da família que se instaura no cativeiro.43
Seria necessário, para a constituição da comunidade escrava, que se
construíssem laços sociais sólidos, um amalgamento do grupo na cumplicidade de
relações e no estreitamento promovido por uniões consangüíneas em um período
prolongado de tempo e num mesmo espaço socialmente ordenado. Seria a família
escrava a base para a constituição dessas comunidades de cativos.
Observando a Fazenda do Colégio
Após a conquista do recôncavo da Guanabara no século XVI, seguiu-se a
colonização dos sertões em direção à serra dos Órgãos. Entre as terras doadas
estavam as cedidas a Cristóvão de Barros e Miguel de Moura, em 1567. Este
recebeu sesmaria no rio Macacu. Não deu destino produtivo às terras e doou-as
aos Jesuítas em 1571. Moura recebera as terras de Mem de Sá por pedido de
Cristóvão de Barros, governador do Rio de Janeiro.44 Este possuía terras em
Magé e terras em Macacu. Estas principiavam no final da sesmaria que Moura
recebera e doara aos Jesuítas, que também possuíam terras em Magé. Barros e
41
Cacilda Machado. As muitas faces do compadrio de escravos: o caso da Freguesia de São José
dos Pinhais (PR), na passagem do século XVIII para o XIX. Revista Brasileira de
História vol.26 nº.52 São Paulo Dez. 2006, 49-77.
42
Carlos Engemann. op. cit. p. 27
43
Id. p.27
44
Joaquim Veríssimo Serrão. O Rio de Janeiro no século XVI. Estudo Histórico. Vol. 1, Lisboa,
1965, p. 132
os Jesuítas permutaram suas terras em 1580. Aquele acrescentou as terras
inacianas às que possuía em Magé e os Jesuítas ficaram com a sesmaria de
Barros nos fundos da que receberam de Moura Ampliaram-se as terras dos
padres no vale do Macacu, usadas para uma fazenda para sustento do
aldeamento de São Barnabé.
No mapa de Capassi45 estão demarcadas propriedades dos Jesuítas no Rio
de Janeiro. Nele vê-se o rio Macacu e o aldeamento de São Barnabé. Acima
deste, a vila de Macacu. Subindo o rio há duas fazendas: uma junto ao Macacu, a
fazenda do Colégio, e outra, uma fazenda do Carmo. Manuel Vieira Leão46, em
mapa de 1767, confirma as informações de Capassi, citando nominalmente, nos
mesmos locais, “Pacocay d´El Rey” e a fazenda dos “Religiosos do Carmo”.
Serafim Leite comenta que as terras jesuíticas de Macacu eram “suficientemente
vastas para nelas se situar com o tempo esta Aldeia [de São Barnabé] e constituir,
separada dela, uma importante fazenda, a que se dá o nome ora de Macacu, ora
de Papucaia e às vezes Macacu na Papucaia.” 47
Após a expulsão e sequestro dos bens dos Jesuítas,48 a fazenda passou
para a Coroa lusa, sendo vendida depois. Foi adquirida por Nicoláo Bonarrota e
com a morte deste49 sua viúva, Maria Feliciana Cordovil, casou-se com Antonio de
Oliveira Braga.50 Da arrematação da fazenda por Bonarrota até o casamento de
Henrique José de Araújo em 1804 com a filha oriunda da união de Maria Feliciana
Cordovil com o Braga, teria subsistido na fazenda a suposta comunidade formada
por escravos dos Jesuítas. Couto, em estudo sobre a venda de escravos dos
45
Mappa corographico da Capitania do Rio de Janeiro por Domingos Capassi da Compa. de Jesu
[Ca.1730]. Cartografia ARC.023,01,001. Biblioteca Nacional.
46
Manuel Vieira Leão. Cartas topographicas da capitania do Rio de Janeiro: mandadas tirar pelo
Ilmo. Exmo. Sr. Conde da Cunha Capitam general e Vice-Rey do Estado do Brasil - 1767.
Cartografia CAM.02,008. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
47
Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, p. 114115
48
Officios ao Conde de Bobadela, tratando do seqüestro dos bens, reclusão e expulsão e demais
providências tocantes aos Jesuítas” (de 21/07/1759 a 19/10/1760), existentes na Seção de
Manuscritos da Biblioteca Nacional.
49
Registro de falecimento de Nicolao Antonio Bonorota. In Habilitação Matrimonial de Antonio de
Oliveira Braga. Caixa 1065 - Notação 2831- Maço 68. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro – Brasil.
50
Habilitação Matrimonial de Antonio de Oliveira Braga. Caixa 1065 - Notação 2831- Maço 68.
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – Brasil
jesuítas no Colégio do Recife após a sua expulsão, informa que “a maioria dos
escravos foi vendida junto com as propriedades em que trabalhavam”. 51 O mesmo
teria ocorrido no Rio de Janeiro.
A fazenda teria sido transferida aos novos proprietários com os seus
cativos. Infere-se que, sendo possível demonstrar ter existido uma regularidade na
prática de formação de uniões estáveis em outras fazendas dos Jesuítas na
capitania do Rio de Janeiro - Macaé, Campos Novos, Engenho Novo (São
Cristóvão) e Santa Cruz – essa regularidade poderia ter existido na Fazenda do
Colégio.
Engemann reputa à necessidade de existência de um equilíbrio etário e
sexual como pré-condição para a constituição da comunidade escrava52.
Analisando esse aspecto para outras fazendas jesuíticas, na de Macaé existiu
uma população escrava de 217 indivíduos. Destes, 112 (51,61%) eram homens e
105 (48,39%), mulheres. Entre os escravos masculinos, 20,72% (45 indivíduos)
integravam a faixa de idades de 0 a 15 anos. Em relação às mulheres, 46 cativas
(21,18%) estavam na mesma faixa etária de indivíduos em idade não reprodutiva.
A maioria da escravaria de Macaé apresentava equilíbrio etário e sexual
considerável. Engenho Novo (São Cristóvão) apresenta 279 cativos no inventário.
Da mesma forma, 44,80% dos cativos (125 indivíduos) são do sexo masculino,
havendo 149 (53,40%) mulheres. Nas idades de 0 a 15 anos, tem-se para o
gênero masculino 47 indivíduos (16,83%) e no feminino, 55 (19,7%). Campos
Novos acompanha o padrão de equilíbrio na população escrava, com 152 homens
(48,10%) e 163 mulheres (51,58%), num total de 316 cativos.
Se existiram famílias escravas nessas fazendas, há indicio de que havia
uma possível „política‟ de formação de uniões estáveis entre os cativos perpetrada
pelos Jesuítas. Ao analisar o índice de relações familiares nessas quatro
fazendas, observou-se que em Campos Novos este atingiu 73,83%; Engenho
Novo, 65,82%; Macaé, 90,32% e Santa Cruz, 100%. E a fazenda jesuítica do
Colégio, em Macacu? É plausível inferir que esta seguia o „padrão‟. Segundo fonte
51
Jorge Couto. A venda dos escravos do Colégio dos jesuítas do Recife (1760-1770). In: Maria
Beatriz Nizza da Silva (Org). Brasil: Colonização e escravidão. RJ: Nova Fronteira, 2000, p.195.
52
Carlos Engeman. Id.
de 179753, Antonio de Oliveira Braga aparece como dono de engenho de açúcar e
maior senhor de escravos no distrito da Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu.
Havia na fazenda 207 escravos - 44 homens adultos (21,25%), 55 não adultos
(26,57%). Do sexo feminino, 62 escravas adultas (29,95%) e 46 não adultas
(22,22%). Escravos adultos num percentual de 51,20% (106 cativos e cativas), e
101 escravos não adultos (48,79%). Entende-se ser improvável a compra por
tráfico de tantos escravos não adultos por Braga, já que seu objetivo seria a
produção. Em 1797 a fazenda rendeu 1.300 arrobas de açúcar, 19 pipas de
aguardente, 400 alqueires de farinha, 20 de feijão, 80 de arroz e 20 de milho.
Comprometer o capital mercantil gerado por essa produção na compra de
escravos muito jovens, possivelmente crianças, não parece plausível.
Sobre o tráfico negreiro para o Rio de Janeiro no período, Cavalcanti
apresenta dados sobre essa importação, mensurando “37.114 escravos referentes
aos anos de 1731 a 1735; 281.323 escravos para o período de 1759 a 1792; e
28.385 escravos para os anos de 1799, 1800 e 1801.” De 1759 a 1771 entraram
pelo porto do Rio de Janeiro vindos da Costa da Mina, 4.961 escravos adultos e
apenas 26 „crias‟. Por sua vez, de 1799 até 13 de setembro de 1802, vindos da
Costa da África, junto a 28.385 escravos adultos chegaram 08 „crias‟. 54 Cavalcanti,
embora considere lacunas nos dados, demonstra que efetivamente a compra de
crianças não estava nos interesses dos traficantes e consumidores de escravos.
Admitir que Antonio de Oliveira Braga tivesse adquirido tantos escravos
“pequenos” pelo tráfico.
Se na Carta Topográfica de 1767 aparece a localidade de Pacocay d´El Rei
e a fazenda foi seqüestrada em 1759 e vendida para Bonarrota, supõe-se com os
escravos, tal venda só pode ter ocorrido durante ou após a confecção do mapa. A
fazenda poderia ter ficado „fechada‟ por sete anos, indiciando a consolidação de
53
Discripção do que contém o distrito da Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu feita por ordem
do vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071. Contém anexo com mapas (planilhas).
54
Nireu de Oliveira Cavalcanti. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: Manolo
Florentino (org). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 53.
sociabilidades entre a escravaria? Infere-se que a escravaria, na época do Braga,
estava presente na fazenda desde a compra por Bonarrota. Considerando que era
possível a formação na fazenda de no máximo 44 casais escravos, numa média
de pelo menos 2,2 crianças por casal, as famílias escravas da fazenda estavam lá.
A fazenda do Braga e Maria Feliciana poderia ter abrigado uma
comunidade escrava formada desde quando pertencia aos Jesuítas? Este grupo
de cativos não se encontraria mais como 37 anos atrás, alterado por nascimentos,
falecimentos, fugas e compras de „novos‟, mas quantas solidariedades poderiam
estar consolidadas entre os escravos? Praticamente metade era formada de
jovens e crianças, possivelmente nascidas na fazenda e outra metade por cativos
adultos, equilíbrio sexual parecido com as outras fazendas dos Jesuítas no Rio.
Num outro momento há o enlace de Henrique José de Araújo (1804), com a
filha de Antonio de Oliveira Braga, tornando-se terceiro dono da “Colégio”.
Miecourt comentou em 1821, quando de passagem pela fazenda em direção a
Friburgo, que a mesma “pertence a um proprietário imensamente rico, que possui
mais de 300 negros e um engenho de açúcar.”55 Joaquim Mariano, em 1825,
registrou que Araújo possuía “mais de quatro centos escravos entre todos.56 Os
registros de batismo dos cativos da fazenda entre 1819 a 1833, o comprovam:
TABELA 01 - Escravos batizados de Henrique José de Araújo – 1819-1833
Crianças
Crianças naturais
legítimas
52
111
10
30,05
64,16%
5,78%
Fonte: Livros de registro de batismo, Op. Cit.
Adultos batizados
TOTAL
173
100,0%
Somando-se os 173 batizandos com pais, mães, padrinhos e madrinhas todos da fazenda - alcança-se 334 cativos, próximo do apresentado pelos
informantes. Há 111 crianças legítimas na escravaria de Araújo (64,16%). Ao
menos haviam uniões consensuais devido à possível formação de casais cativos.
55
Martin Nicoulin. A Gênese de Nova Friburgo. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional/Prefeitura de Nova Friburgo, 1996.
56
Pastoraes e Visitas da Freguesia da Santíssima Trindade. Rio de Janeiro (1727-1812). Seção de
Manuscritos. Biblioteca Nacional. Cópia manuscrito. 140 f. 14,3,7.
TABELA 02 - Regularidade de casais escravos na Fazenda do Colégio
Casal cativo
1º filho
2º filho
3º filho
Anacleto/ Dorothea
1819
1821
-
João e Rosa
1819
1825
1826
Jesuíno e Catharina
1820
1826
1827
Joaquim/ Teodolina
1821
1824
-
Pedro e Claudiana
1821
1824
1826
Acácio e Antonia/ Francisco e Antonia
1825
1827
-
Fonte: Livros de registro de batismo, Op. Cit.
Essas relações foram ampliadas pela entrada, entre 1819 e 1840, de 52
novos escravos. Das solidariedades urdidas há um exemplo: em 1820, um
batismo de africanos adultos teve curso na Colégio, com os batizandos registrados
como gentios da Guiné. No grupo, Jacinta e Sebastiana. Batizadas em 1820, em
1826 ainda trabalhavam na fazenda. Em 1826 batizou-se Urçula, adulta de nação.
Fazendo par com Ventura, Jacinta foi madrinha dessa nova escrava de Araújo.
Sebastiana, em 1826, apareceu no registro de batismo de Bernardina, sua filha
legítima com Lucas. Foram padrinhos Gonçalo e Umbelina. Esta, em 1827,
amadrinhou Gerardo a „cria‟ Gerarda, filha de Dina. Gerardo será reencontrado
como pardo liberto em 1833, apadrinhando com Michelina, a Darmina, filha natural
da crioula Dina.
Portanto, que se construíram laços sociais sólidos entre cativos é inegável.
Mas, o quanto esses grupos relacionais, simples ou complexos, poderiam ser
classificados como comunidades, conceito concebido sob características ideais e
numa temporalidade posterior ao escravismo? Se essa forma de solidariedade
deveria ser, segundo Aron, “partilhada por pessoas com cultura comum e que
apresentam uma identidade distinta como grupo”,57 a comunidade cativa parece
se constituir num problema conceitual.
57
Raymond Aron. op. cit, p. 805
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O escravismo macacuano através dos registros de batismo da