A escravidão no Vale do Macacu através de registros de batismo - Séc. XIX Vinicius Maia Cardoso No presente artigo, adaptação de parte de minha Dissertação de Mestrado intitulada “Fazenda do Colégio: Família, Fortuna e Escravismo no Vale do Macacu no Século XIX”, se farão considerações a respeito de estudos sobre a escravidão negra no Brasil estabelecendo-se uma discussão com especialistas no tema, com foco nas solidariedades escravas como determinantes na construção de estratégias de convivência – e resistência - no interior da sociedade escravista. Abordar-se-ão aspectos gerais da escravidão na freguesia da Santíssima Trindade, no vale do Macacu, recôncavo da Baía da Guanabara, Rio de Janeiro, e a discussão da possível existência de uma comunidade escrava na Fazenda do Colégio a partir da análise da pertinência do termo „comunidade‟ e sua caracterização. Para a abordagem do escravismo em Macacu, foram utilizados registros de batismo de escravos no século XIX, além de relatos recolhidos de fontes coevas. Na discussão da tese de existência de uma comunidade escrava na Fazenda do Colégio, além dos mesmos registros de batismo foram de valia outras tantas fontes primárias e apoio de bibliografia voltada para o tema. Nesse esforço, foi de proveito o estudo comparativo dos inventários das escravarias de fazendas jesuíticas como Santa Cruz, Campos Novos, Macaé e Engenho Novo, com levantamentos estatísticos referentes à estrutura da posse de escravos na região do Macacu. Como premissa básica, pretende-se discutir se comunidades escravas se formariam no interior de complexas redes de solidariedades entre os cativos, onde a presença da família escrava constituiria-se como seu elemento primordial. A multiplicidade de trabalhos sobre o escravismo no Brasil, pela descoberta, quantificação e qualificação de fontes, além de novas formas de abordagem teórica e metodológica tem promovido a produção de pesquisas. No passar dos Mestre em História do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO, Campus Niterói, Estado do Rio de Janeiro, com pesquisa financiada pela FAPERJ intitulada “Fazenda do Colégio: Família, Fortuna e Escravismo no Vale do Macacu – Séculos XVIII e XIX”. anos, formou-se um mosaico de aportes teóricos para analisar as variadas situações nas quais o sistema escravista teria sido produzido e reproduzido. O escravismo brasileiro é tema que sempre desfrutou de um intenso debate interno na oficina dos historiadores. Debate este por sinal acalorado, como o protagonizado por Jacob Gorender1 e outros, quando da publicação de sua primeira obra no gênero2. Além de apresentar esforço em caracterizar o escravismo colonial brasileiro, desenvolveu idéias sobre o que denominou “neopatriarcalismo”, característica a qual entendia “contaminar” as publicações que se voltavam para a revisão das pesquisas sobre escravismo, a partir dos anos 70/80. Em contrapartida, Gorender recebeu contundentes críticas como a de Schwartz, no tocante a que, “o compromisso ideológico de sua obra, às vezes ofusca sua considerável erudição”. 3 A percepção de Fragoso acerca de “mundos” que se relacionariam no escravismo – livres e cativos - não os determinando como “fechados” um em relação ao outro, como afirmara Gorender na sua tipologia, mas sim, a todo tempo interrelacionando-se num conjunto complexo de relações sociais desenvolvidas no cotidiano, onde a mestiçagem, a invenção de categorias sociais como os mulatos, pardos forros e a bastardia, são exemplos. O levantamento de fontes quantitativas em arquivos paroquiais e cartoriais contribuiu para novas abordagens na historiografia da escravidão. Revisitaram-se temas como o papel do escravo como agente histórico, a percepção de si como sujeito, suas relações sociais mediadas pelo compadrio, mesmo entre “antagônicos e irredutíveis” livres e cativos. Desvelou-se a constituição de formas de sociabilidades escravas e o reconhecimento da bagagem cultural trazida pelos negros vindos da mãe África 4. Culturas de alguma forma transformadas no contato cotidiano entre livres, libertos, cativos e repassadas, pela memória, às gerações de crioulos, pardos e mulatos, configurando categorias de distinção social forjadas na complexidade das relações sociais presentes no escravismo brasileiro. 1 Jacob Gorender. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática/Sec. de Estado da Cultura, 1990. Jacob Gorender. O escravismo colonial. 2.ed. São Paulo: Ática, 1985. 3 Stuart Schwartz. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001, p.31. 4 Robert W. Slenes. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. RJ: Nova Fronteira, 1999. 2 Outra abordagem, a análise de formas de resistência escrava no cotidiano, além de discussões sobre especificidades presentes nos „tipos‟ de mão-de-obra cativa nas atividades agrícolas ou no setor urbano5. Também se apresentam nesse contexto historiográfico os debates acerca da pertinência e lucratividade possível na aplicação da mão-de-obra escrava em atividades “industriais”. Acerca desse ponto em particular, considerando-se o trabalho no engenho como atividade de natureza manufatureira inscrita no mundo agrário colonial, aprofunda-se no passado a capacidade do escravo adaptar-se a formas de trabalho técnicoindustrial. Trabalhos como o de Libby6 abordam sobre lucro obtido com mão-deobra cativa na mina de ouro de Morro Velho, em Minas, no século XIX, e o possível uso do trabalho feito por escravos na atividade “industrial”. Martins, por sua vez, foi um dos que analisou a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Outro ponto de relevância das novas pesquisas, na esteira de uma profusão de trabalhos em caráter regional, é a percepção de que o escravismo brasileiro não pode mais ser visto de forma unívoca para todos os tempos e lugares. Afora características mais gerais, como por exemplo a predominância da compra de indivíduos do sexo masculino em relação ao feminino dadas as características da demanda de mão-de-obra no Brasil, as pesquisas demonstram uma diversidade de tipologias na escravidão, certamente face às conjunturas socioeconômicas presentes nas múltiplas realidades das regiões pesquisadas. Segundo Lima, Não há dúvida de que a historiografia sobre a escravidão nas últimas décadas avançou imensamente na direção de compreender de um modo mais denso o funcionamento da sociedade escravista no Brasil e nas Américas. Dimensões fundamentais da experiência dos escravos foram exploradas com cuidado em diversos trabalhos que lançaram luz sobre as ações autônomas dos escravos no sentido de minar a legitimidade da escravidão, bem como suas estratégias para construir – 5 João Luis Fragoso. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro – 1790 – 1830. RJ: Civilização Brasileira, 1998, p.29-35 6 Douglas Cole Libby. “Introdução” In: Douglas Cole Libby. Transformação e Trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no século XIX. SP: Brasiliense, 1988, p. 15-26. dentro e fora das relações escravistas – um universo viável a relações sociais.7 No processo de “invenção” ou “construção” da escravidão, a visão do Brasil escravista como “campo de concentração” escravo, onde o chicote e a corrente teriam uso constante e aplicado aos cativos como único recurso possível na extração de seu sobretrabalho, já não se sustenta para se entender o escravismo enquanto sistema. Escravizar homens e mulheres, subtraindo-lhes a liberdade, já não seria forma de continuada violência? Entretanto, há outras formas de violência perpetradas através de não apenas uma, mas variadas e por vezes „sutis‟ formas de coerção. A condição escrava não aparece somente no momento que se exerça sobre os cativos a violência física, mas sim, pelo fato de que sua condição jurídica, de propriedade privada do senhor, mercadoria humana, o submetia à possibilidade de uso, sobre ele, dessa extremada expressão de violência. E os cativos, com certeza, sabiam disso. As análises da historiografia a respeito da resistência escrava abandonaram a visão dualista que transitava a reação dos escravos da absoluta passividade “coisificada” do cativo, à resistência revolucionária como formas únicas de reação destes ao escravismo. Pesquisas demonstraram que outras formas de resistência, não necessariamente o conflito direto, permearam o cotidiano dos escravos. Uma realidade que os cativos vivenciaram no dia-a-dia de seus afazeres e que certamente compreendiam como relação de dominação. Longe entretanto, de desconsiderar ou deslegitimar a capacidade de luta e organização dos cativos em congregar esforços para superar a condição de pessoas exploradas, o que seria relegá-los contraditoriamente à “coisificação”. Entende-se que a reação escrava com base no confronto direto teria curso desde que houvesse as mínimas condições concretas para isso. Deveria existir algo mais que o simples uso da violência - não que a um feitor fosse vedado utilizá-la, arriscando-se a conseqüências imprevisíveis – no controle da população de homens-mercadoria. Assim, apenas o argumento da 7 Henrique Espada LIma. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro: UFRJ, Volume 6, número 11, jul-dez, 2005, p.298. busca de sujeição dos escravos mediante exclusivo uso da força não pode, por si mesmo, explicar-se. Talvez ao menos uma das respostas esteja na elasticidade temporal do escravismo brasileiro, gerador de crioulos, pardos, mulatos e libertos. Esta última categoria, justamente identificada no confronto ao status cativo. No conjunto, categorias sociais criadas e recriadas no tempo, as quais se mestiçaram por décadas através de intrincadas relações sociais. Sociabilidades que inclusive demonstram, por vezes, escravos no papel de feitores a manejar, quando entendiam ser necessário, o chicote contra o corpo de seus “irmãos” negros. Lara8 discutiu essas relações violentas no escravismo e a função pedagógica do castigo infligido aos cativos visando controle social. Para tanto, cita por exemplo, obras produzidas por religiosos, mormente jesuítas como Antonil9, Benci10, Manoel Ribeiro da Rocha,11 nos século XVII e XVIII. A autora apresenta o castigo como elemento estrutural no sistema escravista, meio de controle necessário para a realização da produção. Sendo assim, excessos nos castigos que pudessem comprometer essa produção ou por em risco a vida de senhores, feitores e suas famílias, deveriam ser evitados. Correção, emenda, disciplina ou simplesmente castigo: este o instrumento de controle senhorial para submissão de seus escravos. Sustentá-los para que não perecessem e castigá-los para que produzissem. (...) Castigos freqüentes e excessivos levariam a fugas ou ao suicídio. Era preciso emendar e ensinar o escravo sem o perigo da 12 perda de investimento. Mesmo que mediadas pela violência, as relações entre senhores e escravos deveriam alcançar um patamar “sustentável” de convívio. Perigosa fronteira relacional, como um fio de navalha, onde castigos excessivos poderiam sim, reduzir o indivíduo castigado à submissão. Entretanto, não necessariamente evitar ódios que fariam escravos bem relacionados entre si, arquitetar vinganças e 8 Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 9 João Antônio Andreoni (André João Antonil). Cultura e Opulência do Brasil. Título IX. São Paulo: Nacional, 1967. 10 Jorge Benci. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977. 11 Manoel Ribeiro Rocha. Etíope Resgatado: empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Petrópolis: Vozes, 1992. 12 Silvia Hunold Lara. op. cit. p. 49 e 51. assassinatos de seus feitores e, em maior grau, de seus próprios senhores „brancos‟. Conflitos prejudiciais em tudo aos senhores, posto que geravam prejuízo financeiro e imediata indisponibilidade de mão-de-obra pela perda dos escravos por morte ou prisão, quando então ficavam sob a custódia do Estado. Chalhoub discutiu a questão dos acordos entre senhores e cativos através da apresentação do caso, por sinal muito citado e clássico na historiografia da escravidão no Brasil, do processo que envolveu o comerciante de escravos do Rio de Janeiro José Moreira Veludo e um grupo de escravos oriundo do interior. A querela foi motivada por questões relativas à venda desse grupo para outros donos. Conflito que expõe diferentes caminhos que teriam tido aqueles escravos para aliviar pressões da sua condição de cativos, desde que Era comum que os escravos exercessem alguma forma de pressão sobre seus senhores no momento crucial de sua venda. Essas pressões ou negociações poderiam ter formas e intensidades diferentes, dependendo de cada situação específica. Seja qual for o sentimento de solidariedade que esses escravos tenham experimentado entre si, o fato é que reagiram a uma situação na qual não lhes fora deixado qualquer espaço de manobra.13 Está implícito que era possível aos cativos um “espaço de manobra” mínimo que fosse e ainda mais se potencializado por um grau de relações e solidariedades que houvesse sido construído entre esses cativos. Outro caso é a rebelião escrava em São Tomé das Letras, Minas Gerais, nas fazendas da poderosa família Junqueira, em 1833. O caso foi pesquisado por Marcos Ferreira de Andrade a partir de um processo-crime aberto pelo então futuro barão de Alfenas, Gabriel Francisco Junqueira. Na ocasião, o ainda não titulado do Império teve membros de sua família mortos por seus cativos. No Auto de perguntas constante do processo, sufocada a revolta e presos os suspeitos, o cativo João Congo, um dos réus, declarou o seu motivo para o levante ao Juiz: Em seu interrogatório, quando lhe foi perguntado se tinha algo que produzir em sua defesa, se referiu aos "maus tratos" que sofria de seu senhor moço, o Juiz de Paz de São Tomé das Letras, Gabriel Francisco 13 Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.32. de Andrade Junqueira. "Respondeu que seu senhor o tratava de mandrião, não estava contente com o seu serviço, dava-lhe pancadas, ainda mesmo quando estava doente”.14 João Congo, em meio à tensão de um julgamento e premido por suas possíveis consequências, poderia estar mentindo. O que chama a atenção é o fato do escravo justamente dispor desse argumento – e não de outro - para sua defesa, na crença de que o mesmo poderia sensibilizar o juiz. Se tal situação era possível, pode significar que havia realmente algo de concreto em um escravo estar “insatisfeito” com maus tratos. Por sua vez, considerando sua declaração como verdadeira, a rebeldia de João Congo, não exatamente motivada para a superação do escravismo enquanto sistema, respondeu mais ao tratamento que, segundo seu depoimento, interpretara como excessivo. Reação que atribuía aos xingamentos a ele direcionados, aos "maus tratos" que sofria de seu “senhor moço”. Pode-se imaginar a que nível chegara o ódio de João Congo ao acumular no dia-a-dia tantos castigos e xingamentos, vistos por ele como desnecessários. O negro parece não admitir nem ver razão em apanhar. Tinha consciência de não ter feito nada de errado que “justificasse” qualquer castigo. Provavelmente se considerava trabalhador, cumpridor de suas tarefas e não merecedor de surras injustificáveis, já que se encontrava doente. Muito menos ser insultado. Era esperar muita submissão. Era exigir demais dele. Burmeister, em sua estada na cidade do Rio de Janeiro em 1851, registrou uma canção de escravos que teria ouvido nas ruas, enquanto estes trabalhavam: “Meu patrão me bateu/Ele não procedeu bem/Nada de mal eu fiz,/Mas ele bateu em mim”15 Maestri discutiu as conclusões de Reis & Silva a respeito das fugas e revoltas escravas que estes apresentaram motivadas pela quebra de equilíbrio entre as relações senhor/escravo: 14 Marcos Ferreira de Andrade. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na província de Minas Gerais. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 1996. Dissertação de Mestrado – UFF. Disponível em: <http://www.acervos.ufsj.edu.br/site/fontes_civeis/revolta_carrancas.pdf>. Acesso em: 14 set. 2008. 15 Hermann Burmeister. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: visando especialmente a história natural dos distritos auri-diamantíferos. Belo Horizonte: Itatiaia. SP: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p.72 João Reis e Eduardo Silva16 seguem Alípio Goulart17 na visão de que as principais razões das intenções de fugas seriam a quebra do que poderíamos chamar de boa escravidão: “[...] a principal motivação para fugas e revoltas parece ter sido a quebra de compromissos e acordos anteriormente aceitados. Existia, em cada escravo, idéias claras, baseadas nos costumes e em conquistas individuais, do que seria, digamos, uma dominação aceitável.” 18 Ora, não fora justamente os maus tratos, a violência de Veludo contra os cativos, que animara a revolta estudada por Chalhoub? Não motivara, da mesma forma, o banho de sangue do caso de São Tomé das Letras? Essa posição, de que o rompimento de um limite „aceitável‟ no cativeiro movia os escravos a atitudes igualmente extremas, se reforça com Amantino. Esta considera que: O que levava o escravo, africano ou crioulo, a fugir? Pode-se afirmar que inúmeros fatores coexistiram para levar o cativo a tomar uma decisão tão radical. As fugas ocorriam, evidentemente, por uma negação ao seu cativeiro. Entretanto, havia mais do que isto. O escravo fugia porque percebia que não lhe restava alternativas dentro do sistema. A fuga significava para o fugitivo recobrar o domínio sobre sua vida, refazer, no caso dos crioulos, possíveis laços parentais, acabar com os castigos e dispor de sua força de trabalho como lhe aprouver. 19 Atuara o destempero no uso da violência, por parte de senhores e feitores, implícita e necessária na ordem escravista - como elemento deflagrador dos planos dos escravos, que renderam boa surra a Veludo, e a chacina em Minas Gerais. Fracassara, portanto, a violência física como mecanismo eficaz de intimidação dos cativos, estratégia tacanha empregada na busca de reduzi-los a uma presumida situação de passividade e submissão. Sem entretanto, correr o risco de se justificar essa negociação como uma realidade concreta para todos os casos, vencera por outro lado o mecanismo repressivo do Estado, acionado para regular o momentâneo desequilíbrio de forças no interior do sistema. Um ciclo de 16 Eduardo Silva; João José Reis. Negociações e conflitos: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 17 José Alípio Goulart. Da palmatória ao patíbulo. Rio de Janeiro: Conquista; INL,1971. 18 Mário Maestri. “Catando cipó”: o cativo fujão no Brasil escravista; histórias e representações. Disponível em: <http://www.2csh.clio.pro.br/mario%20maestri.pdf>. Acesso em: 14 set. 2008. 19 Márcia Amantino. Os escravos fugitivos em Minas Gerais e os anúncios do Jornal “O Universal” – 1825 a 1832. In: LOCUS Revista de História, v. 12, nº 02. Juiz de Fora: UFJF, 2006, p.63. violência gerando violência, e concluído pelo uso „pedagógico‟ da força. Enfrentariam os cativos o derradeiro e esmagador castigo perpetrado pelo Estado. O suplício dos escravos atuaria como última e pedagógica demonstração, com força de lei. O Estado constituía-se como ente último afrontado, o que significava remediar a exposição de uma faceta de fragilidade na sociedade ordenada pelos homens de primeira categoria. Caberia então ao Estado o papel de atuar, com desmedido rigor, para restabelecer a „boa ordem‟ na sociedade. Desta forma, ao contrário de se admitir sistematicamente uma sempre presente ação “revolucionária” e de superação do escravismo enquanto sistema por parte desses escravos ao revoltar-se, prefere-se aqui caminhar em direção oposta. A elaboração e execução de estratégias pelos cativos, extremas em muitos casos é verdade, e na intenção de driblar as penosas circunstâncias presentes no dia-a-dia escravo, são consideradas situações mais plausíveis. Posições discordantes, entretanto, também se expressam através do argumento que considera que: As propostas de que a reação à escravidão nascesse da oposição do cativo a condições extraordinariamente duras de vida e de trabalho – devidas a condições conjunturais, a proprietários despóticos, à violação de escravidão vivível ou benigna – nega a violência social e produtiva como exigência intrínseca do escravismo colonial.20 Pelo contrário, a redução de um homem à condição escrava só é possível se entendida como fruto de relações sociais no interior de um sistema social, per si, violento. As reações extremas dos cativos apareciam quando expressões dessa violência, estruturalmente social e intrínseca ao sistema atingiam gradação extremada, alcançando níveis “inaceitáveis”. Infere-se que cativos revoltosos tinham consciência de suas atitudes de rompimento – roubos, sabotagens, fugas, rebeliões, assassinatos – as quais fariam acionar contra eles o braço repressivo do Estado. Todo escravo fujão sabia bem que contra ele viria o capitão-do-mato ou a polícia, na busca de retorná-lo novamente à posse do seu senhor. 20 Mario Maestri, op. cit. Atravessar essa tênue linha de equilíbrio era arriscar ao sucesso, mesmo que isso se traduzisse numa permanente situação de instável liberdade dado que um escravo fugido não se poderia considerar que estivesse livre. Tal condição significava, para o sublevado, assumir outra vida também repleta de percalços. O fracasso, por sua vez, traria conseqüências as quais os escravos sabiam que seriam, sempre, extremamente duras. A fuga, como opção menos violenta de reação – não menos corajosa - era a forma dos cativos responderem à insustentável permanência numa propriedade rural ou urbana. Significava a decisão e disposição do cativo, em deliberadamente atravessar a tênue fronteira de equilíbrio. Atitude desesperada na busca de uma sempre precária „liberdade‟. E como se fugia no Brasil! A fuga significava não apenas lançar-se a essa situação de risco absoluto. O escravo, ao fugir, pagava outro elevado preço: Para o cativo, a fuga significava romper com laços sociais e afetivos, deixando para trás uma comunidade já estabelecida, partindo rumo ao desconhecido e ao perigo de ser recapturado e ter as condições de vida pioradas. A fuga significava, para o africano, uma tentativa de dispor de sua própria vida e quem sabe encontrar companheiros de sua região de origem. Aquele recém chegado no plantel era o que tinha menos a perder com a fuga, já que não possuía na maior parte das vezes relações afetivas no cativeiro.21 Essas considerações remetem à presença de solidariedades forjadas no tempo, pelos cativos. Chalhoub reputa a possibilidade da articulação do plano escravo por ele narrado à condição de que estes teriam pertencido ao mesmo grupo, quiçá étnico. Escravos oriundos da mesma propriedade, ou seja, da pertença a um mesmo grupo e trazidos ao Rio de Janeiro para venda. O sistema escravista configura-se como de necessária aplicação da violência na observância da extração de trabalho. Contudo, não se resumia ao uso desmedido do castigo, motor de imprevisíveis resultados para os senhores. Essa complexidade foi sintetizada por Faria no tocante que, ser escravo, 21 Marcia Amantino. op. cit., p.63. não era trabalhar, comer, dormir acorrentado a grilhões silenciosos. Em termos figurativos, é a ponta de um véu que, já levantada, deixa entrever uma comunidade não fechada em si mesma, que em seu dia-a-dia trabalhava, comia, amava, odiava, convivia intimamente com os livres, comercializava, andava por caminhos e ruas, conversava, tramava, etc. Vivia, em suma. Mas vivia escrava! E esse dado é fundamental.22 Apesar do baixíssimo status escravo, inferior ao de um homem livre pobre, os cativos conviveram entre si, com os livres e libertos, tramaram sobrevivências como as narradas. Viveram as diversas situações do cotidiano escravista, produzido e reproduzido num mundo de solidariedades individuais, formação de famílias escravas e, num maior nível de complexidade, de agregados maiores de escravos. Espaço de sociabilidade, ajuda mútua, conflitos, estratégias de sobrevivência no seio de uma sociedade que tinha como interesse a extorsão sistemática de seu trabalho. Santíssima Trindade: o escravismo nos registros de batismo. Após essas considerações iniciais, passar-se-á à análise das relações escravistas na freguesia da Santíssima Trindade, termo da Vila de Santo Antônio de Sá, no Vale do Macacu (RJ). Foram eleitas como fontes primárias básicas 2.583 registros de batismo de adultos e crianças escravas coletados no arquivo da Paróquia de Sant´Ana de Japuíba23, no recorte temporal de 1819 a 1873. Estes foram subdivididos em dois grupos: o Grupo A (1819 a 1840) e o Grupo B (1852 a 1873), pós fim do tráfico negreiro. A tabela abaixo apresenta a totalidade de batismos entre 1819 e 1873 na freguesia da Santíssima Trindade, num total de 2.583 registros. Há elevada naturalidade (76,77%), em comparação com os nascidos legítimos (18,27%), e baixo índice de batismos de escravos adultos (4,19%) para tão extenso período, onde se infere que pode ter havido entradas na região de escravos adultos já anteriormente batizados. Os “Inaproveitados” (0,77), 22 Sheila de Castro Faria. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.291-292. 23 Fica aqui o agradecimento ao Pe. Henrique, da Paróquia de Sant´Ana de Japuíba, em Cachoeiras de Macacu (RJ), que disponibilizou para a pesquisa, sem reservas, os valiosos arquivos daquela paróquia. são registros destruídos ou ilegíveis, em proporção que não compromete a análise. TABELA 1 – Batismos de escravos - 1819/1873 Categoria Filhos naturais Filhos legítimos Adultos Inaproveitados TOTAL Quantidade 1.983 472 108 20 2.583 % 76,77 18,27 4,19 0,77 100,00 FONTE: Livro de batismos de escravos24 Dividindo o recorte temporal em dois grupos, tem-se para o Grupo A: TABELA 2 – Batismos escravos adultos - 1819/1840. Categoria Filhos naturais Filhos legítimos Adultos Sobra TOTAL Batismos % 653 344 108 08 58,6 31,0 9,7 0,7 1.113 100,0 FONTE: Livros de batismos de escravos, Op. Cit. Nos primeiros 21 anos de registros (Grupo A), realizaram-se 1.113 batismos, somente apresentando batismos de cativos adultos (9,7%). Há um „equilíbrio‟ entre naturalidade (58,6%) e legitimidade (31,0%). A Tabela 3 apresenta batismos entre 1852 a 1873 (Grupo B), com 1.470 registros. Não se havia nenhum registro de batismo adulto. 24 Livros de Batismos de Escravos da Freguesia da Santíssima Trindade de Sant´Anna de Macacu. 1819 – 1873. Paróquia de Sant´Ana de Japuiba – Cachoeiras de Macacu – RJ. Os registros foram citados englobados, já que não se encontravam claramente separados nos livros encontrados no arquivo. TABELA 3 – Batismos de escravos - 1852 a 1853 Categoria Batismos % Filhos naturais Filhos legítimos Adultos Sobra 1.330 128 0 12 90,47 8,71 0,0 0,82 TOTAL 1.470 100,0 FONTE: Livros de registro de batismos de escravos, Op. Cit. A inexistência de batismos de adultos pode ser explicada pelo recorte temporal, já que a vigência, a partir de 1850, o fim do tráfico negreiro certamente motivou o desaparecimento destes batismos nos livros. Cativos “novos” - ditos boçais - só poderiam ser adquiridos mediante contrabando nesse momento. Seria descuido, além de declarada ilegalidade, aparecer no livro de batismo. Reitera-se então que sua ausência não permite afirmar categoricamente que não entrou escravo adulto contrabandeado na freguesia da Santíssima Trindade. A quase absoluta naturalidade (90,47%) reduziu a níveis comparativamente muito baixos os nascidos legítimos (8,71%). Essa baixa legitimidade pode também ter sido reflexo da definitiva lei do fim do tráfico. Motivos plausíveis como a não entrada de novos cativos, a elevada mortalidade motivada por epidemias, maustratos e condições de sobrevivência inadequadas, a venda ou impossibilidade de compra no tráfico interno dada pelo elevadíssimo preço que alcançaram no mercado, e a lentidão para que as “crias” do sexo feminino atingissem idade fértil, provavelmente inviabilizaram a formação de relações estáveis entre escravos na região do Macacu. A tipologia dos apadrinhamentos apresenta o seguinte quadro: TABELA 4 – Apadrinhamento de escravos por cativos, livres, libertos – 1819/1873 Cativos Livres Libertos Inaproveitados TOTAIS Padrinhos 1.469 1.059 36 119 2.683 % 54,7 39,4 1,3 4,4 100,0 Madrinhas 867 404 33 97 1.401 % 61,8 28,8 2,3 6,9 100,00 FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. Há escravos que formaram casais, sendo descartados os batismos feitos sem madrinhas para todo o recorte temporal. Um total de 2.683 escravos servira como padrinhos. Destes, 1.469 (54,7%) eram cativos; 1.059 livres (39,4%). Os libertos pouco apadrinharam. Predominaram as cativas escravas. De 1.401 madrinhas, 867 eram cativas (61,8%) e 404 livres (28,8%). Foi reduzido o número de libertas amadrinhando. Analisando-se o recorte temporal nos grupos, A e B, temos: TABELA 5 – Apadrinhamento de escravos por cativos, livres, libertos - 1819/1873 Padrinhos % Cativos 666 55 Livres 464 38,2 Libertos 28 2,3 Sem declaração 55 4,5 TOTAIS 1213 100,0 FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. Madrinhas 446 216 23 39 % 61,6 29,9 3,2 5,3 724 100,0 TABELA 6 – Apadrinhamento de escravos por cativos, livres, libertos - 1852/1873 Cativos Livres Libertos Inaproveitados TOTAIS Padrinhos 803 595 08 64 1.470 % 54,6 40,5 0,5 4,4 Madrinhas 421 188 10 58 % 62,1 27,7 1,4 8,5 100,0 677 100,0 FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. O percentual de padrinhos cativos é quase o mesmo, de 55 % no grupo A contra 54,6% no Grupo B. Há um aumento significativo de 131 pessoas (8,9%) no número de padrinhos livres, de 464 (38,2%) no primeiro período (1819 a 1840), para 595 (40,5%) no segundo (1852 a 1873). O número de apadrinhamentos feitos por libertos, embora pequeno, diminuiu bastante, de 28 no primeiro período (2,3%), para apenas 08 (0,5%) no grupo B. Em relação às madrinhas os números são aproximados: 446 (61,6%) no Grupo A e 421 (62,1%) no Grupo B, persistindo a baixa incidência de libertas amadrinhando. Sobre apadrinhamentos, outros trabalhos mostram possibilidades distintas para cada região e recorte temporal, com alguns apresentando predomínio de homens e mulheres livres apadrinhando cativos. Brügger, ao analisar apadrinhamento de cativos em São João Del Rei (1730-1850), constatou que havia mais homens livres apadrinhando escravos entre 62%. Em 150 casos (1,1%), entre 1736 e 1850, as crianças foram apadrinhadas por seus senhores.25 Neves analisou o compadrio escravos em São Paulo no século XIX, apresentando escravos batizados por livres e na maioria os homens serviram de padrinhos de crianças escravas: “os proprietários em raras oportunidades serviam como padrinhos de seus escravos”.26 Vasconcellos, para Angra dos Reis, no mesmo século, demonstrou que os escravos apadrinhavam a maioria dos cativos, 473 (91,6%) e apenas 37 deles (7,2%) tiveram padrinhos livres.27 Em Inhaúma, Rio de Janeiro, na primeira metade do oitocentos, Góes28 concluiu que os senhores nunca apadrinhavam cativos, sendo que 66% tiveram padrinhos escravos: “os escravos reunidos em plantéis menores buscavam padrinhos, via de regra, em cativos de outros senhores, e o inverso se dava nos maiores”. 29 25 Sílvia Maria Jardim Brügger. Compadrio e escravidão: uma análise do apadrinhamento de cativos em São João Del Rei, 1730-1850. XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu- Minas Gerais, 20-24 de setembro de 2004. p.3 - 6. 26 Maria de Fátima Rodrigues das Neves. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São Paulo do século XIX. História e População. Estudos sobre a América LatinaBEP/IUSSP/CELADE.São Paulo, 1990, p.241 e 243 27 Márcia Cristina Vasconcelos. Que Deus os abençoe. Batismo de escravos em Angra dos Reis (RJ), no século XIX. p.7-27.História e perspectivas. Revista dos cursos de História. Universidade Federal de Uberlândia, 1997. 28 José Roberto Góes. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993. p.118 29 Vitória Fernanda Schetinni Andrade. Ilegitimidade e compadrio: o estudo dos nascimentos de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852 – 1888. XV Encontro de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu – Minas Gerais – Brasil, 2006. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_478.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2008. TABELA 7 – Apadrinhamento de escravos – 1819/1873 Só o padrinho Padrinho e Madrinha Mistos L I V R E L I B E R T O C A T I V O S L I V R E S L I B E R T O S 233 201 10 378 197 416 373 04 357 649 574 14 24,5 21,7 0,53 C A T I V O Mistos Mistos Padr. cativo Madr. Livre Padr. cativo Madr. Liberta Padr. livre Madr. Cativa Padr. livre Madr. liberta Padr. liberto Madr. cativa Padr. liberto Madr. Livre Não aprov . 12 14 10 60 00 06 01 61 1183 166 00 21 09 55 01 04 00 58 1464 735 363 12 35 19 115 01 10 01 119 2.647 27,8 13,7 0,45 1,32 0,71 4,34 0,04 0,37 0,04 4,5 100% FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. A Tabela 7 indica que, semelhante aos casos de Angra dos Reis e Inhaúma, também em Macacu houve predomínio de escravos apadrinhando escravos em todo o recorte temporal analisado. Esse predomínio se deu para batismos onde se registrou só a presença do padrinho, com 649 escravos apadrinhando (24,5%) contra 574 livres (21,7%). Para os casos onde se registrou a presença de ambos, padrinho e madrinha, há 735 escravos e escravas (27,8%). Os casais livres que apadrinharam somam 363 pessoas (13,7%). Nos apadrinhamentos mistos (casais de padrinhos formados por cativos, livres ou libertos), aqueles em que ao menos um era escravo, padrinho ou madrinha, prevaleceu. Isoladamente ou formando pares, 1.384 pessoas (52,3%) que apadrinharam cativos em todo o recorte de 1819 a 1873 eram escravas. Tal resultado diferencia Macacu dos casos de São Paulo no século XIX e São João Del Rey, em Minas Gerais, de 1730 a 1850, descrito por Neves e Brügger, onde os que mais apadrinharam cativos foram os livres. TABELA 8 – Tipologia de apadrinhamentos escravos – Grupo A: 1819-1840 Só o padrinho Padrinho e Madrinha L C L I A I B T V E I R R V E T O S O S S C A T I V O L I V R E L I B E R T O 233 201 10 378 197 19,7 % 17, % 0,85 % 31,95 % 16,65 % Mistos Mistos Mistos Não aprov. T O T A L 01 61 1.183 0,09 % 5,15 % 100% Padr. cativo Madr. Livre Padr. cativo Madr. liberta Padr. livre Madr. cativa Padr. livre Madr. liberta Padr. liberto Madr. cativa Padr. liberto Madr. livre 12 14 10 60 00 06 1,01 % 1,18 % 0,85 % 5,07 % 00 0,5 % FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. Na Tabela 8 permanece o predomínio de escravos como padrinhos isolados (19,7%), ou formando casais cativos (31,95%). Nos apadrinhamentos mistos, foi maior a incidência de casais onde ao menos um dos padrinhos era cativo. No segundo recorte (Tabela 9) permanece o mesmo padrão: TABELA 9 – Tipologia de apadrinhamento de escravos - Grupo B: 1852 a 1873 Só o padrinho Padrinho e madrinha L C L I A I B T V E I R R V E T O S O S S C A T I V O L I V R E L I B E R T O 416 373 04 357 166 28,41 % 25,48 % 0,28 % 24,38 % 11,34 % Mistos T O T A L Padr. cativo Madr. Livre Padr. cativo Madr. liberta Padr. livre Madr. cativa Padr. livre Madr. liberta Padr. liberto Madr. cativa Padr. liberto Madr. livre Não aprov. 00 21 09 55 01 04 00 58 1.464 00 1,43 % 0,61 % 3,75 % 0,08 % 0,28 % 00 3,96 % 100% FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. Embora apresente índices mais aproximados nos batismos onde há somente o padrinho, ou seja, 28, 41% para escravos e 25,48% para livres, nos apadrinhamentos feitos por casais formados por cativos a diferença entre os percentuais aumenta significativamente. Para o recorte temporal de 1852 a 1873, 357 escravos (24,38%) constituíram casais de padrinhos cativos, contra 166 (11,34%) com livres: diferença de 191, ou seja, 53,5%. Persiste a predominância de cativos apadrinhando. Os apadrinhamentos mistos mantiveram o padrão, com a maioria dos casais de padrinhos formados por pelo menos um cativo ou uma cativa. Os grupos A e B, separados pela vigência da Lei Euzébio de Queirós, mesmo reunidos ou separados, não apresentaram alteração no padrão mantido para os apadrinhamentos. Na freguesia da Trindade, para o recorte temporal analisado, escravos sempre apadrinharam mais que livres. Da mesma forma, para todo o recorte temporal (1819-1873), somente 36 (1,36%) libertos batizaram isoladamente ou formando casais com madrinhas libertas, livres ou cativas. Isoladamente, somente 0,85% de libertos apadrinharam (10 casos). Quando formaram casais de padrinhos, responderam pela cifra de 12 libertos (0,45%). Os apadrinhamentos mistos integram 31 pessoas, com 1,17%, frente ao total de 2.647 pessoas que apadrinharam escravos em Macacu. Dos 36 padrinhos libertos, 18 (50,0%), apadrinharam escravos nascidos naturais e 14 (38,8%) foram padrinhos de legítimos. Apenas 04 (11,1%) levaram adultos à pia. Subdivididos nos Grupos A e B, há 08 libertos (0,30%) apadrinhando entre 1852 e 1873, contra 28 (1,05%) apadrinhando entre 1819 a 1840. Face tão inexpressiva representação, não é possível estabelecer uma razão plausível que explique a motivação para estes apadrinhamentos por parte de libertos. Entretanto, é difícil crer para esse recorte temporal extenso, que houvesse um número tão pequeno de libertos na freguesia da Santíssima Trindade, mas o reduzido número percebido nas fontes demonstra que os escravos possivelmente foram preteridos pelos libertos no apadrinhamento de seus filhos e filhas. Segundo Brügger, em sua pesquisa sobre apadrinhamento de cativos em São João Del Rei (1730-1850), “em apenas 150 casos, ou seja, 1,1% das crianças cativas, batizadas entre 1736 e 1850, foram apadrinhadas por seus senhores”.30 Neves apresentou a mesma conclusão a respeito de seus estudos, no mesmo tema, para São Paulo, concluindo que “os proprietários em raras oportunidades 30 Silvia Maria Brüugger. op.cit. p.3 - 6. serviam como padrinhos de seus escravos”.31 Da mesma forma, em sua pesquisa para a região de Inhaúma, no Rio de Janeiro, para a primeira metade do século XIX, José Roberto Góes32 também chegou á conclusão, como Schwartz, de que os senhores nunca apadrinhavam seus cativos. 33 Guedes, para a freguesia de São José do Rio de Janeiro, entre os anos de 1801 e 1821, observou que os senhores só apadrinharam seus cativos 36 vezes (0,6%), 19 (0,8%) em batismos de adultos e 17 (0,5%) nos batismos de inocentes, concluindo que “o compadrio também não reforçou, diretamente, os vínculos entre senhores e escravos, tal como apontaram S. Gudeman e S. Schwartz”.34 Em Macacu, raríssimos senhores apadrinharam seus cativos, como no caso de Justa, filha natural de Apolinária, escrava de Benedicto Ferreira Pinto. Batizada em outubro de 1830, foi apadrinhada pelo seu senhor e Praxedes, “filha de Luiza, viúva de Luiz Pedro”. Para Macacu, a respeito dos apadrinhamentos feitos por escravos do mesmo senhor ou de senhores diferentes observa-se o seguinte: TABELA 10 – Tipologia da propriedade dos escravos formadores de casais de padrinhos – Grupos A e B - 1819 a 1873 Grupo A 1819 a 1840 % Casais de padrinhos 402 63,41 cativos do mesmo senhor Padrinhos com 01 cativo 22 3,47 do próprio senhor Casais de padrinhos 33,12 cativos de outro senhor 210 TOTAIS 634 100,0 FONTE: Livro de batismos de escravos, Op. Cit. Grupo B 1852-1873 % TOTAIS % 203 40,4 605 53,2 28 5,6 50 4,4 272 54,0 482 42,4 503 100,0 1.137 100,0 No Grupo A, 402 casais de padrinhos (63,41%) eram escravos pertencentes a um mesmo senhor. Já o restante dos apadrinhamentos, ou foi feito por ao menos um cativo do próprio senhor como padrinho (3,47%), ou por escravos de outros donos (33,12%). Estes dois últimos casos podem ter sido 31 Maria de Fátima Rodrigues das Neves. op. cit.p.241 e 243 José Roberto Góes. op. cit. p.118 33 Vitória Fernanda Schetinni Andrade. op. cit. 34 Roberto Guedes. Notas sobre fontes paroquiais de batismo. In: Caderno de Estudos e Pesquisas. Ano VIII. Nº 19 (janeiro/abril 2004). São Gonçalo, Rio de Janeiro: UNIVERSO, 2004, p.110. 32 possíveis por atendimento das necessidades de um possível pequeno proprietário cuja escravaria era tão pequena que não dispunha de cativos suficientes para a função. Para o Grupo B, o número de cativos de outros senhores que batizaram cativos já é um pouco superior ao de senhores que tiveram os próprios escravos como padrinhos. Entretanto, em números globais, para todo o recorte temporal, foram escravos dos mesmos senhores que apadrinharam seus escravos. Guedes, que focou sua pesquisa em batismo de inocentes, afirma que quer se tratasse de padrinhos cativos (pertencentes ou não à mesma escravaria de seus afilhados) ou de livres- forros, não havia interdição senhorial para a realização de laços de compadrio nos batismos de inocentes. As exclusões e aproximações ficavam por conta dos próprios cativos.35 Parece que relação semelhante se deu em Macacu. Adicionado o percentual dos batismos com ao menos um padrinho e o de casais de padrinhos „de fora‟ (de outro senhor) das propriedades, chega-se a 46,8%, perfazendo um total de 532 cativos. Significa que se estende a rede de compadrios escravos para fora das propriedades, estreitando laços entre cativos de senhores diferentes. Desta forma os batismos tornaram possível a construção de relações de compadrio e parentesco entre os escravos. Relações que assinalam a construção, no tempo e pelo convívio, de solidariedades escravas intra e extra propriedade. Por outro lado, este convívio era possivelmente mais intenso no interior das maiores escravarias. Guedes analisou em seu trabalho sobre Porto Feliz (SP) e a freguesia de São José (RJ), como o batismo podia contribuir para formar essas mesmas solidariedades, as quais, em tese, formariam comunidades escravas: a escravidão manteve um ótimo diálogo com o batismo. Estimulado por senhores e escravos, demonstra um modo pelo qual o cativeiro incorporava trabalhadores africanos, ao mesmo tempo em que propiciava meios de socialização entre os cativos, o que, por sua vez, 35 Roberto Guedes. op. cit. p.110. conduziu a uma intensa rede de parentesco, que formara uma comunidade escrava.36 Comunidade escrava: uma possibilidade na resistência cativa no cotidiano? Buscando-se aqui discutir essas sociabilidades através do conceito de comunidade escrava, Albuquerque explica que a tradição sociológica weberiana fundou conceitos de comunidade e sociedade, sistematizados por Tönnies, com os termos Gemeinschaft e Gesellschaft, já no século XIX, tendo estes, sido instrumentos de identificação e compreensão de contextos e períodos históricos desde o século XVIII.37 Com base em Weber, Aron buscou delimitá-los: Quando o resultado do processo de integração é uma comunidade (Gemeinschaft), o fundamento do grupo é um sentimento de pertinência experimentado pelos participantes, cuja motivação pode ser afetiva ou tradicional. Se este processo de integração leva a uma sociedade (Gesellschaft), isto se deve ao fato de que a motivação das ações sociais se constitui de considerações ou ligações de interesses, ou leva a um acerto de interesses.38 A sociedade, portanto, surgiria de uma noção de interação complexa entre os homens, de contrato. Já a comunidade seria originada através de relações construídas pelo convívio, trazendo um „sentimento de pertinência.‟ Talvez o conceito de comunidade escrava tenha sido aplicado com essa concepção sociológica moderna, na busca de se explicar, ou melhor, conceituar, esse espaço relacional complexo engendrado por cativos no cotidiano. Sendo assim, um conceito aplicado a posteriore. Faria demonstrou que o tema é bem mais complexo: Usa-se comunidade como se houvesse um consenso sobre seu significado. Não há. G. A. Hillery, há décadas atrás, analisou 94 definições de “comunidade” em diversos autores e chegou à conclusão de que “exceto quanto à concordância pacífica de que as pessoas vivem 36 Roberto Guedes. op.cit., p. 110 Leila Marrach Basto de Albuquerque. Comunidade e Sociedade: conceito e utopia. Revista Raízes. Ano XVIII, Nº 20, novembro/99, p. 50 – 53. 38 Raymond Aron. As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.805. 37 em comunidade, nenhum consenso existe entre os cientistas sociais quanto à sua natureza”..39 A autora em seu artigo admite a existência de comunidades escravas, discutindo se elas surgiriam mesmo somente em grandes escravarias e considerando também a questão do tráfico, abordada por opositores da noção de comunidade para os cativos, como fator desestabilizador dessas mesmas comunidades em si. O ponto, entretanto, que poderia ser aproveitado nessa discussão, parece estar ligado à questão de, até que ponto haveria a pertinência do termo “comunidade” para explicar um espaço de sociabilidade escrava em nível mais complexo. Guedes caracteriza-a como constituída através de relações afetivas, apontando para o conceito exposto por Albuquerque, com base em estruturas parentais (casamentos, compadrio) construídas no tempo. Engemann afirma que essas solidariedades seriam possíveis se construídas em níveis complexos em grandes escravarias.40 Haveria portanto, um conjunto de condições básicas na construção desse espaço relacional complexo: grande número de escravos ampliando a tensão e forçando “negociações”. Estas “negociações” por sua vez, gerariam alianças parentais através do convívio prolongado, promovendo a formação de uma ou mais gerações de escravos e formando um amálgama cultural com base na memória dos antepassados do grupo. Originaria-se então um espaço relacional complexo entre os cativos, denominado de comunidade escrava. Ainda segundo Engemann, tais fenômenos teriam sido largamente observados em comunidades remanescentes de quilombos. Portanto, agrupamentos de escravos fugidos que teriam consolidado suas relações em momento posterior ao fim da escravidão em conjunturas socioeconômicas e culturais distintas das do mundo escravista. As condições para tal agregação entre aquilombados trazem em si um aspecto: o de relativo isolamento e a ausência da figura do senhor, situação distinta da vivida pelos cativos – não importando o tamanho do grupo - no interior de uma propriedade. Machado também cita que o 39 Sheila de Castro Faria. Identidade e comunidade escrava: um ensaio. Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, v. 11, 2007, p. 144-145. 40 Carlos Engemann. De laços e nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. número elevado de escravos num determinado espaço propiciaria solidariedades em nível comunitário já que, “nas regiões com predomínio de grandes escravarias, por exemplo, o percentual de escravos apadrinhando escravos era bem mais significativo”.41 Outra característica é a de que, na construção de relações sociais mais sólidas em qualquer grupo humano, haveria necessidade do fator tempo para formalizar maior estreitamento de laços.42 Comunidade escrava, portanto, seria um conjunto de indivíduos que partilham símbolos, ritos, mitos e parentesco dentro do mesmo espaço socialmente ordenado. A partir disso, é possível deduzir que os plantéis, principalmente aqueles com relativo equilíbrio etário e sexual, tenham se constituído em unidades comunitárias, uma fez que a comunidade escrava é, em princípio, produto da família que se instaura no cativeiro.43 Seria necessário, para a constituição da comunidade escrava, que se construíssem laços sociais sólidos, um amalgamento do grupo na cumplicidade de relações e no estreitamento promovido por uniões consangüíneas em um período prolongado de tempo e num mesmo espaço socialmente ordenado. Seria a família escrava a base para a constituição dessas comunidades de cativos. Observando a Fazenda do Colégio Após a conquista do recôncavo da Guanabara no século XVI, seguiu-se a colonização dos sertões em direção à serra dos Órgãos. Entre as terras doadas estavam as cedidas a Cristóvão de Barros e Miguel de Moura, em 1567. Este recebeu sesmaria no rio Macacu. Não deu destino produtivo às terras e doou-as aos Jesuítas em 1571. Moura recebera as terras de Mem de Sá por pedido de Cristóvão de Barros, governador do Rio de Janeiro.44 Este possuía terras em Magé e terras em Macacu. Estas principiavam no final da sesmaria que Moura recebera e doara aos Jesuítas, que também possuíam terras em Magé. Barros e 41 Cacilda Machado. As muitas faces do compadrio de escravos: o caso da Freguesia de São José dos Pinhais (PR), na passagem do século XVIII para o XIX. Revista Brasileira de História vol.26 nº.52 São Paulo Dez. 2006, 49-77. 42 Carlos Engemann. op. cit. p. 27 43 Id. p.27 44 Joaquim Veríssimo Serrão. O Rio de Janeiro no século XVI. Estudo Histórico. Vol. 1, Lisboa, 1965, p. 132 os Jesuítas permutaram suas terras em 1580. Aquele acrescentou as terras inacianas às que possuía em Magé e os Jesuítas ficaram com a sesmaria de Barros nos fundos da que receberam de Moura Ampliaram-se as terras dos padres no vale do Macacu, usadas para uma fazenda para sustento do aldeamento de São Barnabé. No mapa de Capassi45 estão demarcadas propriedades dos Jesuítas no Rio de Janeiro. Nele vê-se o rio Macacu e o aldeamento de São Barnabé. Acima deste, a vila de Macacu. Subindo o rio há duas fazendas: uma junto ao Macacu, a fazenda do Colégio, e outra, uma fazenda do Carmo. Manuel Vieira Leão46, em mapa de 1767, confirma as informações de Capassi, citando nominalmente, nos mesmos locais, “Pacocay d´El Rey” e a fazenda dos “Religiosos do Carmo”. Serafim Leite comenta que as terras jesuíticas de Macacu eram “suficientemente vastas para nelas se situar com o tempo esta Aldeia [de São Barnabé] e constituir, separada dela, uma importante fazenda, a que se dá o nome ora de Macacu, ora de Papucaia e às vezes Macacu na Papucaia.” 47 Após a expulsão e sequestro dos bens dos Jesuítas,48 a fazenda passou para a Coroa lusa, sendo vendida depois. Foi adquirida por Nicoláo Bonarrota e com a morte deste49 sua viúva, Maria Feliciana Cordovil, casou-se com Antonio de Oliveira Braga.50 Da arrematação da fazenda por Bonarrota até o casamento de Henrique José de Araújo em 1804 com a filha oriunda da união de Maria Feliciana Cordovil com o Braga, teria subsistido na fazenda a suposta comunidade formada por escravos dos Jesuítas. Couto, em estudo sobre a venda de escravos dos 45 Mappa corographico da Capitania do Rio de Janeiro por Domingos Capassi da Compa. de Jesu [Ca.1730]. Cartografia ARC.023,01,001. Biblioteca Nacional. 46 Manuel Vieira Leão. Cartas topographicas da capitania do Rio de Janeiro: mandadas tirar pelo Ilmo. Exmo. Sr. Conde da Cunha Capitam general e Vice-Rey do Estado do Brasil - 1767. Cartografia CAM.02,008. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 47 Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, p. 114115 48 Officios ao Conde de Bobadela, tratando do seqüestro dos bens, reclusão e expulsão e demais providências tocantes aos Jesuítas” (de 21/07/1759 a 19/10/1760), existentes na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. 49 Registro de falecimento de Nicolao Antonio Bonorota. In Habilitação Matrimonial de Antonio de Oliveira Braga. Caixa 1065 - Notação 2831- Maço 68. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – Brasil. 50 Habilitação Matrimonial de Antonio de Oliveira Braga. Caixa 1065 - Notação 2831- Maço 68. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – Brasil jesuítas no Colégio do Recife após a sua expulsão, informa que “a maioria dos escravos foi vendida junto com as propriedades em que trabalhavam”. 51 O mesmo teria ocorrido no Rio de Janeiro. A fazenda teria sido transferida aos novos proprietários com os seus cativos. Infere-se que, sendo possível demonstrar ter existido uma regularidade na prática de formação de uniões estáveis em outras fazendas dos Jesuítas na capitania do Rio de Janeiro - Macaé, Campos Novos, Engenho Novo (São Cristóvão) e Santa Cruz – essa regularidade poderia ter existido na Fazenda do Colégio. Engemann reputa à necessidade de existência de um equilíbrio etário e sexual como pré-condição para a constituição da comunidade escrava52. Analisando esse aspecto para outras fazendas jesuíticas, na de Macaé existiu uma população escrava de 217 indivíduos. Destes, 112 (51,61%) eram homens e 105 (48,39%), mulheres. Entre os escravos masculinos, 20,72% (45 indivíduos) integravam a faixa de idades de 0 a 15 anos. Em relação às mulheres, 46 cativas (21,18%) estavam na mesma faixa etária de indivíduos em idade não reprodutiva. A maioria da escravaria de Macaé apresentava equilíbrio etário e sexual considerável. Engenho Novo (São Cristóvão) apresenta 279 cativos no inventário. Da mesma forma, 44,80% dos cativos (125 indivíduos) são do sexo masculino, havendo 149 (53,40%) mulheres. Nas idades de 0 a 15 anos, tem-se para o gênero masculino 47 indivíduos (16,83%) e no feminino, 55 (19,7%). Campos Novos acompanha o padrão de equilíbrio na população escrava, com 152 homens (48,10%) e 163 mulheres (51,58%), num total de 316 cativos. Se existiram famílias escravas nessas fazendas, há indicio de que havia uma possível „política‟ de formação de uniões estáveis entre os cativos perpetrada pelos Jesuítas. Ao analisar o índice de relações familiares nessas quatro fazendas, observou-se que em Campos Novos este atingiu 73,83%; Engenho Novo, 65,82%; Macaé, 90,32% e Santa Cruz, 100%. E a fazenda jesuítica do Colégio, em Macacu? É plausível inferir que esta seguia o „padrão‟. Segundo fonte 51 Jorge Couto. A venda dos escravos do Colégio dos jesuítas do Recife (1760-1770). In: Maria Beatriz Nizza da Silva (Org). Brasil: Colonização e escravidão. RJ: Nova Fronteira, 2000, p.195. 52 Carlos Engeman. Id. de 179753, Antonio de Oliveira Braga aparece como dono de engenho de açúcar e maior senhor de escravos no distrito da Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu. Havia na fazenda 207 escravos - 44 homens adultos (21,25%), 55 não adultos (26,57%). Do sexo feminino, 62 escravas adultas (29,95%) e 46 não adultas (22,22%). Escravos adultos num percentual de 51,20% (106 cativos e cativas), e 101 escravos não adultos (48,79%). Entende-se ser improvável a compra por tráfico de tantos escravos não adultos por Braga, já que seu objetivo seria a produção. Em 1797 a fazenda rendeu 1.300 arrobas de açúcar, 19 pipas de aguardente, 400 alqueires de farinha, 20 de feijão, 80 de arroz e 20 de milho. Comprometer o capital mercantil gerado por essa produção na compra de escravos muito jovens, possivelmente crianças, não parece plausível. Sobre o tráfico negreiro para o Rio de Janeiro no período, Cavalcanti apresenta dados sobre essa importação, mensurando “37.114 escravos referentes aos anos de 1731 a 1735; 281.323 escravos para o período de 1759 a 1792; e 28.385 escravos para os anos de 1799, 1800 e 1801.” De 1759 a 1771 entraram pelo porto do Rio de Janeiro vindos da Costa da Mina, 4.961 escravos adultos e apenas 26 „crias‟. Por sua vez, de 1799 até 13 de setembro de 1802, vindos da Costa da África, junto a 28.385 escravos adultos chegaram 08 „crias‟. 54 Cavalcanti, embora considere lacunas nos dados, demonstra que efetivamente a compra de crianças não estava nos interesses dos traficantes e consumidores de escravos. Admitir que Antonio de Oliveira Braga tivesse adquirido tantos escravos “pequenos” pelo tráfico. Se na Carta Topográfica de 1767 aparece a localidade de Pacocay d´El Rei e a fazenda foi seqüestrada em 1759 e vendida para Bonarrota, supõe-se com os escravos, tal venda só pode ter ocorrido durante ou após a confecção do mapa. A fazenda poderia ter ficado „fechada‟ por sete anos, indiciando a consolidação de 53 Discripção do que contém o distrito da Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797. Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D. 12071. Contém anexo com mapas (planilhas). 54 Nireu de Oliveira Cavalcanti. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: Manolo Florentino (org). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 53. sociabilidades entre a escravaria? Infere-se que a escravaria, na época do Braga, estava presente na fazenda desde a compra por Bonarrota. Considerando que era possível a formação na fazenda de no máximo 44 casais escravos, numa média de pelo menos 2,2 crianças por casal, as famílias escravas da fazenda estavam lá. A fazenda do Braga e Maria Feliciana poderia ter abrigado uma comunidade escrava formada desde quando pertencia aos Jesuítas? Este grupo de cativos não se encontraria mais como 37 anos atrás, alterado por nascimentos, falecimentos, fugas e compras de „novos‟, mas quantas solidariedades poderiam estar consolidadas entre os escravos? Praticamente metade era formada de jovens e crianças, possivelmente nascidas na fazenda e outra metade por cativos adultos, equilíbrio sexual parecido com as outras fazendas dos Jesuítas no Rio. Num outro momento há o enlace de Henrique José de Araújo (1804), com a filha de Antonio de Oliveira Braga, tornando-se terceiro dono da “Colégio”. Miecourt comentou em 1821, quando de passagem pela fazenda em direção a Friburgo, que a mesma “pertence a um proprietário imensamente rico, que possui mais de 300 negros e um engenho de açúcar.”55 Joaquim Mariano, em 1825, registrou que Araújo possuía “mais de quatro centos escravos entre todos.56 Os registros de batismo dos cativos da fazenda entre 1819 a 1833, o comprovam: TABELA 01 - Escravos batizados de Henrique José de Araújo – 1819-1833 Crianças Crianças naturais legítimas 52 111 10 30,05 64,16% 5,78% Fonte: Livros de registro de batismo, Op. Cit. Adultos batizados TOTAL 173 100,0% Somando-se os 173 batizandos com pais, mães, padrinhos e madrinhas todos da fazenda - alcança-se 334 cativos, próximo do apresentado pelos informantes. Há 111 crianças legítimas na escravaria de Araújo (64,16%). Ao menos haviam uniões consensuais devido à possível formação de casais cativos. 55 Martin Nicoulin. A Gênese de Nova Friburgo. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Prefeitura de Nova Friburgo, 1996. 56 Pastoraes e Visitas da Freguesia da Santíssima Trindade. Rio de Janeiro (1727-1812). Seção de Manuscritos. Biblioteca Nacional. Cópia manuscrito. 140 f. 14,3,7. TABELA 02 - Regularidade de casais escravos na Fazenda do Colégio Casal cativo 1º filho 2º filho 3º filho Anacleto/ Dorothea 1819 1821 - João e Rosa 1819 1825 1826 Jesuíno e Catharina 1820 1826 1827 Joaquim/ Teodolina 1821 1824 - Pedro e Claudiana 1821 1824 1826 Acácio e Antonia/ Francisco e Antonia 1825 1827 - Fonte: Livros de registro de batismo, Op. Cit. Essas relações foram ampliadas pela entrada, entre 1819 e 1840, de 52 novos escravos. Das solidariedades urdidas há um exemplo: em 1820, um batismo de africanos adultos teve curso na Colégio, com os batizandos registrados como gentios da Guiné. No grupo, Jacinta e Sebastiana. Batizadas em 1820, em 1826 ainda trabalhavam na fazenda. Em 1826 batizou-se Urçula, adulta de nação. Fazendo par com Ventura, Jacinta foi madrinha dessa nova escrava de Araújo. Sebastiana, em 1826, apareceu no registro de batismo de Bernardina, sua filha legítima com Lucas. Foram padrinhos Gonçalo e Umbelina. Esta, em 1827, amadrinhou Gerardo a „cria‟ Gerarda, filha de Dina. Gerardo será reencontrado como pardo liberto em 1833, apadrinhando com Michelina, a Darmina, filha natural da crioula Dina. Portanto, que se construíram laços sociais sólidos entre cativos é inegável. Mas, o quanto esses grupos relacionais, simples ou complexos, poderiam ser classificados como comunidades, conceito concebido sob características ideais e numa temporalidade posterior ao escravismo? Se essa forma de solidariedade deveria ser, segundo Aron, “partilhada por pessoas com cultura comum e que apresentam uma identidade distinta como grupo”,57 a comunidade cativa parece se constituir num problema conceitual. 57 Raymond Aron. op. cit, p. 805