Como nasce uma região: a construção do Leste Fluminense a partir da implantação do
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj1
Natália M. Gaspar – Ibase/RJ
Resumo:
O objetivo deste trabalho é discutir a reconfiguração do território a partir da
implantação de grandes empreendimentos e os seus desdobramentos em relação ao
tecido organizativo local. Para tanto, a proposta é analisar o "surgimento" de uma
"região" denominada de Leste Fluminense, a partir da instalação do Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), pela Petrobras, e da criação de um consórcio
intermunicipal (Conleste) que reúne prefeituras de 14 municípios, com expressivo apoio
do governo estadual, configurando um novo arranjo das forças políticas em torno da
transformação do território. O Comperj teve sua instalação anunciada pela Petrobras em
2006 e constitui um dos maiores investimentos em andamento no país, de cerca de 8,4
bilhões de reais. Trata-se de uma refinaria de padrão internacional, capaz de refinar o
petróleo pesado proveniente da Bacia de Campos e de gerar subprodutos de alto valor
agregado, condizente, portanto, com o modelo de desenvolvimento que vem sendo
implantando pelo governo federal. A intenção deste paper é abordar as relações entre a
empresa, os governos e as organizações e associações locais diante do direcionamento
de uma série de iniciativas para este conjunto de municípios, que implicam disputas por
recursos e diferentes estratégias para lidar com os inúmeros impactos resultantes da
instalação de um empreendimento desta magnitude.
Palavras-chave:
Meio ambiente - Política – Participação
1
Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de
julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.
1
Na última década, o Brasil tem atravessado um período de intenso crescimento
econômico, alicerçado em investimentos de grande porte direcionados a grandes
empreendimentos nos setores de infra-estrutura, nas cadeias produtivas do petróleo e da
mineração e no agronegócio, boa parte deles com financiamento público, através
principalmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),
e reunidos pelo governo federal sob o nome de “Programa de Aceleração do
Crescimento” (PAC) 2. Como salienta Grzybowski3, a diferença em relação a períodos
de crescimento anteriores (anos 50 e anos 70, por exemplo) é que agora “a justificativa é
crescer para ter justiça social”. De fato, a redução do percentual de pessoas vivendo na
miséria (independente do critério adotado para estabelecê-la), a ampliação do percentual
da população considerada, grosso modo, como “classe média” e o salto dos empregos
com “carteira assinada” e do valor real do salário mínimo são ganhos inquestionáveis e
representam significativa diferença em relação a períodos anteriores de crescimento
econômico.
No entanto, é cada vez mais patente a necessidade de incluir no debate as
mazelas associadas ao “modelo de desenvolvimento” que está sendo implantado – em
linhas gerais, industrialização ligada à intensa exploração de recursos naturais não
renováveis e privatização de bens comuns, urbanização e exclusão. De acordo com o
GT Combate ao Racismo Ambiental - que reúne organizações ambientalistas,
trabalhistas, comunitárias, acadêmicas e movimentos sociais - “as injustiças ambientais
recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras
comunidades, discriminadas por sua origem ou cor.”4
De que maneira a antropologia pode contribuir para este debate?
A emergência de uma nova questão pública - a preservação do meio ambiente parece constituir ao mesmo tempo o pano de fundo para pensar a emergência e a
reformulação de conflitos sociais e o elo entre as diversas formas de exclusão inerentes
ao modo capitalista de organização do trabalho humano e da natureza. Ao analisar a
“ambientalização dos conflitos sociais”, Leite Lopes chama a atenção, entre outras
coisas, para a necessidade de especificar a diferença dos usos e contextos de novas
palavras de aparência unânime como “meio ambiente” e “participação”. E destaca a
2
Criado em 2007, no segundo mandato do presidente Lula (2007-2010), o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) promove o planejamento e a execução de grandes obras de infraestrutura social,
urbana, logística e energética do país. Teve sua continuidade anunciada pela atual presidente em 2011.
3
http://www.canalibase.org.br/grandes-obras-mas-a-cidadania-nem-tanto/
4
http://racismoambiental.net.br/quem-somos/
2
importância de analisar de forma etnográfica as manifestações singulares e a
diversidade de práticas dentro da macro-instituição que chamamos de estado (2004:35).
A eclosão de conflitos ambientais em decorrência da implantação de grandes
empreendimentos, de acordo com Acselrad, deve ser analisada enquanto dinâmica
conflitiva própria do modelo de desenvolvimento em curso e constitui uma das formas
encontradas por organizações e grupos para contestar a distribuição de poder sobre o
território e seus recursos. A denúncia da prevalência da “desigualdade ambiental” traz à
tona a maneira pela qual os custos ambientais são transferidos para grupos de menor
renda e menos capazes de se fazer ouvir nas esferas de decisão (2004: 21).
O objetivo deste trabalho é discutir, de uma perspectiva antropológica, a
reconfiguração do território a partir da implantação de grandes empreendimentos e os
seus desdobramentos em relação ao tecido organizativo local. Foi elaborado a partir da
minha inserção como pesquisadora da Organização Não Governamental (Ong) Instituto
Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais (Ibase) em dois diferentes projetos.
Primeiramente, coordenei projeto financiado por organização internacional voltada para
a transparência (Revenue Watch Institute), que tem por objetivo o fortalecimento do
controle social e a qualificação do debate público nos setores de petróleo e mineração.
No âmbito deste projeto, desenvolvi estudo de caso sobre o controle social no processo
de licenciamento ambiental, a partir dos casos do Comperj e da TK-Csa (siderúrgica
implantada pela joint venture Thyssenkrupp/Vale no município do Rio de Janeiro). Em
seguida, passei a atuar como pesquisadora no projeto Indicadores da Cidadania – Incid,
financiado pela Petrobras e destinado a 14 municípios que integram o consórcio
intermunicipal do Leste Fluminense (Conleste – hoje constituído por 15 municípios).
Minhas atividades neste projeto, até agora, consistiram principalmente na formulação de
indicadores a partir de dados secundários e na realização de uma pesquisa amostral de
fluxo com questionário fechado a respeito da percepção da população sobre questões
relacionadas à cidadania.
A proposta deste trabalho é analisar o "surgimento" de uma "região" denominada
de Leste Fluminense. A partir da instalação do Complexo Petroquímico do Rio de
Janeiro (Comperj), pela Petrobras, e da criação de um consórcio intermunicipal
(Conleste) que reúne prefeituras de 15 municípios, com expressivo apoio do governo
estadual, o Leste Fluminense expressa um novo arranjo das forças políticas em torno da
transformação do território. Este rearranjo se insere na convergência de diferentes
interesses para a consolidação do estado do Rio de Janeiro como uma unidade
3
federativa que agrega as diferentes fases da cadeia produtiva do petróleo – extração,
refino e produção de bens de consumo.
O Comperj teve sua instalação anunciada pela Petrobras em 2006 e constitui um
dos maiores investimentos em andamento no país, de cerca de 8,4 bilhões de reais.
Trata-se de uma refinaria de padrão internacional, capaz de refinar o petróleo pesado
proveniente da Bacia de Campos e de gerar subprodutos de alto valor agregado,
condizente, portanto, com o modelo de desenvolvimento que vem sendo implantando
pelo governo federal. Ademais, é a principal obra do PAC no estado do Rio de Janeiro e
conta com robusto financiamento do BNDES5.
A partir de 2006, ano do anúncio pela Petrobras da instalação do Comperj no
município de Itaboraí (RJ), uma nova configuração regional começa a se delinear. Ao
final daquele ano, a constituição do Consórcio Intermunicipal pelo Desenvolvimento do
Leste Fluminense – o Conleste6 -, amplamente apoiada ou mesmo estimulada pelo
governo do estado, veio a evidenciar um esforço no sentido da instituição deste novo
recorte regional.
Até então, os 15 municípios que hoje integram o Conleste ainda não haviam sido
agrupados por nenhum recorte regional oficial, enquadrando-se em diferentes regiões.
Por exemplo, segundo do IBGE, distribuem-se por 3 mesorregiões geográficas do
estado do Rio de Janeiro – Baixadas, Centro Fluminense e Metropolitana do Rio de
Janeiro (que, por sua vez, subdividem-se em microrregiões). Segundo classificação do
governo do estado, o atual Conleste se distribui pelas regiões Serrana, das Baixadas
Litorâneas e Metropolitana. O governo do estado também divide o território estadual
5
De acordo com Adhemar Mineiro, a visão que prevalece no BNDES, o principal financiador
da economia brasileira, é bastante otimista a respeito dos impactos positivos das grandes empresas, por
seu potencial financeiro, tecnológico, gerencial e de mercado, entre outros, e suas sinergias, não apenas
internas, mas também na articulação com uma cadeia de fornecedores, distribuidores e prestadores de
serviços variados.
6
O Conleste é um consórcio intermunicipal, criado em outubro de 2006, reunindo à época as prefeituras
de 11 municípios fluminenses: Itaboraí, São Gonçalo, Niterói, Maricá, Tanguá, Magé, Guapimirim, Rio
Bonito, Silva Jardim, Casimiro de Abreu e Cachoeiras de Macacu. Em 2009, o município de Saquarema
passou a integrar o consórcio, seguido, em 2010, por Teresópolis, em 2011, por Araruama e em 2012, por
Nova Friburgo. Diferentemente dos convênios, os consórcios são acordos celebrados entre pessoas
públicas do mesmo nível de governo. Dos consórcios celebrados entre pessoas públicas, os mais comuns
são aqueles pactuados entre municípios. O Conleste é um consórcio intermunicipal, dotado de
personalidade jurídica de direito privado, cujos lucros eventuais não são repartidos entre os associados,
mas reaplicados integralmente nas atividades-fim, e sujeita-se às normas civis aplicáveis a toda e qualquer
associação civil, mas a peculiaridade de ser constituído por pessoas públicas, faz com que as normas de
direito público aplicáveis aos municípios consorciados (como realização de concurso público e licitação)
sejam igualmente exigidas do consórcio, entidade civil (Fundação Prefeito Faria Lima – Cepam. Unidade
de Políticas Públicas – UPP, 2001).
4
por regiões hidrográficas, que não necessariamente coincidem com os limites
municipais, e que são associadas à criação de comitês de bacia, aos quais é atribuído o
gerenciamento dos recursos hídricos7. Por este critério, os 15 municípios do consórcio
estão inseridos em 4 regiões hidrográficas – Piabanha, Baía de Guanabara, Rio Dois
Rios e Lagos São João8.
De acordo com Pierre Boudieu, “o discurso regionalista é um discurso
performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova definição das fronteiras
e dar a conhecer e fazer reconhecer a nova região assim delimitada – e, como tal,
desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima, que a
ignora. O ato de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou quando é
exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si...” (1989: 116, grifo da
autora).
Para o geógrafo Haesbaert, a importância da categoria região para a análise do
mundo contemporâneo se dá diante do entendimento de que há na atualidade uma
contínua redefenição de papéis, funções, conflitos e regionalismos, como consequência
da globalização e de sua inserção/influência desigual em termos espaciais (2010).
A iniciativa das administrações públicas daqueles 11 municípios (inicialmente)
no sentido de estabelecer e fazer reconhecer a região do Leste Fluminense veio a
encontrar reconhecimento, primeiramente, no Estudo de Impacto Ambiental (EIA)
referente ao licenciamento das instalações do Comperj no sítio principal em Itaboraí.
Estes estudos devem estabelecer as “áreas de influência” dos empreendimentos,
definindo municípios que serão alvo de ações específicas para “mitigação” de impactos,
e geralmente de uma série de ações que podem grosso modo ser denominadas de
“compensações sociais e ambientais”. Minimamente, devem ser definidas áreas de
7
A divisão do estado em regiões hidrográficas está associada à criação dos comitês de bacia hidrográfica
“para gerenciar o uso dos recursos hídricos de forma integrada e descentralizada, com a participação da
sociedade”,
de
acordo
com
o
Instituto
Estadual
do
Ambiente
(INEA
http://www.inea.rj.gov.br/recursos/comite.asp). Ainda de acordo com o órgão ambiental estadual, esses
colegiados, instituídos pela lei que estabeleceu a Política Estadual de Recursos Hídricos (3.239/98), são
compostos por representantes do Poder Público, da sociedade civil e de “usuários de água” e têm poder
consultivo, normativo e deliberativo. A partir dos comitês, o estado do Rio de Janeiro foi dividido em 10
Regiões Hidrográficas, “de acordo com afinidades geopolíticas e as bacias que abrangem”. É função dos
comitês de bacias articular a atuação de entidades intervenientes, aprovar critérios de cobrança e o plano
de bacia, inclusive acompanhando sua execução.
8
Minhas primeiras reflexões neste sentido e o levantamento das informações ocorreram no âmbito da
elaboração de parte do relatório Introdução ao Incid – Indicadores da Cidadania, do Ibase (Disponível
em http://incid.org.br/site/wp-content/uploads/2012/05/incidrelatorio1.pdf)
5
influência “direta” e “indireta”9. O EIA do Comperj, além de definir ambas, estabelece
também como “Área de Abrangência Regional” os 11 municípios que, à época,
formavam o Conleste, por “proximidade ao empreendimento e pela existência de
organização intermunicipal considerada como possível suporte às ações coordenadas de
aproveitamento das oportunidades e prevenção dos efeitos indesejáveis do COMPERJ”
(Concremat 2007).
Mapa 1 – Área de Abrangência Regional do Comperj (primeiros municípios a
integrar o Conleste) – 2007
Fonte: EIA 2007. Petrobras/Concremat Engenharia
O respaldo do governo estadual veio a ser consolidado através da criação pelo
governador do “Fórum Comperj” – Fórum para o Desenvolvimento da Área de
Influência do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, em 2007, com vistas a criar
ferramentas de gestão e planejamento de políticas regionais. O Fórum Comperj é
presidido pelo governador e dele participam, como parceiros institucionais, todas as
secretarias do Estado, todas as prefeituras dos municípios integrantes do Conleste,
a Assembléia Legislativa, o Ministério das Cidades, o BNDES, a Caixa Econômica
9
Para compreender melhor o processo de licenciamento ambiental no Brasil, ver Anexo 1 do relatório
Limites e Potencialidades do Controle Social no Processo de Licenciamento Ambiental (Gaspar, 2011),
em http://www.observatoriodopresal.com.br/?p=2540.
6
Federal e a Petrobras S.A..
Sob a perspectiva de inserção em uma nova lógica de recorte territorial,
impulsionada pela instalação do Comperj e pela disputa pelos recursos a ela associada,
outras administrações municipais passaram a ambicionar a sua inclusão na região do
Leste Fluminense e, portanto, no consórcio intermunicipal que a representa. Em 2009, o
município de Saquarema passou a integrar o Conleste, seguido, em 2010, por
Teresópolis, em 2011, por Araruama e, em 2012, por Nova Friburgo. Hoje o Conleste é
composto por 15 municípios.
O poder legislativo, além de integrar o Fórum Comperj, também busca
acompanhar e construir um posicionamento diante das transformações do Leste
Fluminense. A Comissão Especial para Discutir e Construir a Interlocução com os
Municípios que Sofrem a Influência do Comperj junto à Petrobras realiza Audiências
Públicas na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) durante as quais têm voz
organizações da sociedade civil destes municípios, diante de uma mesa composta por
representantes do órgão ambiental estadual responsável pelo licenciamento e das
empresas responsáveis pelas diferentes partes do empreendimento (Petrobras, Comperj
S.A.,
Transpetro).10
Alguns
legislativos
municipais
também
procuram
um
posicionamento, através da realização de audiências públicas sobre impactos mais
específicos de seus municípios, como, por exemplo, a audiência “Impactos do Comperj
sobre a Mobilidade Urbana no Município de São Gonçalo”, promovida pela Câmara de
Vereadores11.
Para além das iniciativas claramente impulsionadas pela Petrobras e pelos
governos, o setor industrial também expressa a consideração do Leste Fluminense em
seus planos. Anualmente, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro
(FIRJAN) elabora uma pesquisa junto aos investidores públicos e privados sobre as
intenções de investimentos no estado. A última edição da pesquisa, publicada em 2010 e
referente aos projetos anunciados até o mês de julho de 2009, compila valor de
investimentos da ordem de R$ 126 bilhões em mais de 100 projetos. O estudo da Firjan
identifica 4 “eixos de desenvolvimento” no estado: eixo Sepetiba (portos, rodovias e
indústrias), eixo Norte (Bacia de Campos e Complexo Logístico do Açu), eixo Sul
(Usina Nuclear Angra 3). O eixo leste está apoiado na construção do Comperj. O
10
Ver relato de Audiência Pública na Alerj em http://www.observatoriodopresal.com.br/?p=1368.
Ver relato da Audiência Pública na Câmara de Vereadores do Município de São Gonçalo em
http://www.observatoriodopresal.com.br/?p=1426.
11
7
desenvolvimento que pode ser induzido na região, de acordo com esta pesquisa, “não se
limita a indústria de fabricação de materiais de plástico. Há perspectiva de um amplo
espectro de investimentos no setor de serviços de apoio, além de oportunidades no setor
terciário e na construção civil. Cabe destacar, também, a construção do Arco
Metropolitano, rodovia que ligará o Comperj ao Porto de Itaguaí”.
Conhecida e reconhecida, portanto, por todas as esferas de governo e pelo
principal agente econômico das transformações vindouras – a Petrobras, além do setor
industrial fluminense como um todo, a região do Leste Fluminense surge intimamente
associada à criação da Comperj e ao seu papel na consolidação da cadeia produtiva do
petróleo no estado do Rio. A partir de então, genericamente tratado como “área de
influência” do Comperj, o Leste Fluminense passou a ser beneficiado por uma série de
iniciativas e “projetos” impulsionados pela presença da Petrobras na região.
Entre eles, por exemplo, figura o projeto “Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio – Municípios do Conleste”. Segundo Caetano, este é parte de um projeto maior
que a Petrobras S/A vem empreendendo em diversos lugares do mundo com o objetivo
de monitorar os impactos de sua atividade industrial, segundo objetivos estabelecidos
pela ONU através do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
(UN-HABITAT) (2010: 11). O projeto visa alcançar estes objetivos nos 11 municípios
que originalmente compunham o Conleste. Para tanto, foi constituído um banco de
dados georrefereciado com informações socioeconômicas e ambientais sobre a região.
O trabalho culminou com o estabelecimento de 9 Objetivos e, para cada um deles,
foram acrescidas metas e indicadores específicos, somando-se
23 metas e 58
indicadores. Além disso, de acordo com Caetano, desde 2007, são realizados
anualmente seminários para divulgação dos dados.
Outra iniciativa da Petrobras no sentido de tratar como um conjunto os
municípios do Leste Fluminense foi a inclusão de 14 deles (os 11 primeiros, mais
Saquarema, Nova Friburgo e Teresópolis) no projeto Agenda 21 Comperj. O projeto
resultou em uma publicação que consolida o resultado de atividades que envolveram
representantes dos governos, do empresariado e de organizações da sociedade civil, e na
formação, em cada um dos municípios, de Fóruns de Agenda 21, que hoje constituem
instâncias de interlocução para tratar de assuntos referentes aos municípios. Falaremos
mais adiante sobre esta instância de “participação”. Além disso, a constituição e o
8
funcionamento dos Fóruns locais também contribui para a constituição de uma rede de
pessoas nos 14 municípios envolvidos, propiciando o fortalecimento de uma
comunicação intrarregional.
Nesta direção, o projeto Indicadores da Cidadania (Incid), do Ibase, financiado
pelo setor de Comunicação Institucional da Petrobras, vem se somar a um conjunto de
iniciativas destinadas ao Leste Fluminense, abrangendo o mesmo conjunto de 14
municípios beneficiados pela Agenda 21 Comperj12.
A produção de dados a respeito dos diferentes territórios que compõem a região
do Leste Fluminense, tratada como tal, corrobora e alimenta a necessidade de
construção de um discurso no sentido de reafirmar o estabelecimento desta divisão
regional, divisão esta impulsionada e sustentada pela instalação de um empreendimento
da magnitude do Comperj e fruto de negociações com autoridades governamentais de
diferentes níveis.
Analisando historicamente as instituições políticas ocidentais, Foucault chama a
atenção para o surgimento da estatística, no século XVII e, no século XVIII, da
economia como um nível de realidade, um campo de intervenção específico do governo,
e da “população”, como alvo das ações do governo. Embora a arte de governar estivesse
ligada aos aparelhos de governo e ao conhecimento do Estado, desde que um conjunto
de saberes e análises – a estatística – adquiriu toda importância no século XVII,
Foucault afirma que a arte de governar (em oposição à soberania, que tem um fim em si
mesma) foi “desbloqueada” em conexão com a emergência do problema da população.
Dali em diante, “as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o
espaço real da luta política” (1996: 288).
Na reedição do livro Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson analisa a
formação de nações a partir das regiões coloniais do Sudeste Asiático e identifica três
12
O conjunto dos 14 municípios beneficiados pelo projeto Incid e pela Agenda 21 Comperj, em 2010,
possuía 2.728.878 habitantes e ocupava uma área de 693.332 hectares, correspondentes a 15,9% do
território do estado do Rio de Janeiro. Os maiores municípios, em extensão territorial, são Cachoeiras de
Macacu, Silva Jardim, Nova Friburgo e Teresópolis, nesta ordem. Em 2010, os municípios de São
Gonçalo e Niterói, juntos, concentravam 54% da população da área em estudo. São Gonçalo é o mais
populoso, com 999.728 habitantes, seguido por Niterói, Magé, Itaboraí e Nova Friburgo, nesta ordem.
Percentualmente, apresentaram maior crescimento populacional, entre 2000 e 2010, os municípios de
Maricá (66,1%), Casimiro de Abreu (59,6%), Saquarema (41,5%) e Guapimirim (35,7%). A maior parte
da população deste conjunto de municípios (96%) reside em domicílios classificados pelo IBGE como em
situação urbana.
9
instituições de poder que, juntas, moldaram a maneira pela qual o Estado imaginava o
seu domínio – “a natureza dos seres humanos por ele governados, a geografia do seu
território e a legitimidade do seu passado”: o censo, o mapa e o museu (2009: 227).
Até agora, foi possível observar que as informações produzidas a respeito do
Leste Fluminense não partiram do governo, mas foram fruto de iniciativas empresariais
(Petrobras, Firjan), que foram executadas em parceria com instituições de conhecimento
(universidades públicas) e da sociedade civil (Ibase, organizações que integram a
Agenda 21, etc). Em todos estes conjuntos de informações, e também nos bancos de
dados oficiais (que não apresentam o recorte regional do Leste Fluminense), a divisão
por município é de importância cardinal.
O município como instância territorial é a menor unidade de poder no âmbito da
administração pública. Com a Constituição de 1988, o município passou a responder
pela gestão de uma quantidade de recursos jamais antes vista. Modesto, em tese na qual
analisa a implantação de vários “projetos de desenvolvimento”, que envolvem agentes
públicos e privados de diferentes escalas, no município de São Gonçalo, identifica que
passam a vigorar “novas formas de fazer política que passam pelos incentivos fiscais,
pela qualificação profissional e pelo estímulo ao empreendedorismo”, e que as
prefeituras sofrem pressões destas instituições e passam a ter de se adequar a esse
movimento (2008: 197).
Ao mesmo tempo, como unidade mínima de apresentação das informações pela
maior parte dos bancos de dados oficiais, a partir dos quais são elaborados os conjuntos
de dados especificamente dirigidos ao Leste Fluminense, são praticamente inevitáveis
as comparações entre os municípios que compõem esta nova região, que passa a ser
tomada como média para a avaliação de suas partes.
Estes elementos, tanto da esfera administrativa – no sentido de decisões e
planejamentos de âmbito regional aos quais devem se adequar os agentes da escala
municipal; e no sentido da escala municipal como unidade dentro da qual devem se
classificar as organizações que queiram tomar parte na disputa por recursos e benefícios
dos “projetos” – quanto da esfera da produção de representações sobre o Leste
Fluminense e sobre as unidades mínimas que o compõem – os municípios – convergem
no sentido de adequar a ação de diferentes agentes, vinculados em diferentes escalas, ao
projeto hegemônico em processo de implantação na região.
10
Por outro lado, a percepção dos grupos populacionais destes municípios a
respeito desta nova divisão regional parece ser, de uma maneira geral, de
estranhamento, e varia segundo a posição social e a localização destes grupos no
território. Em “visitas municipais” realizadas pela equipe do projeto Indicadores da
Cidadania, do Ibase, lideranças reunidas pelos Fóruns das Agendas 21 Comperj
questionaram a apresentação dos indicadores por município, desconsiderando as
especificidades de bairros, distritos ou localidades. Foi questionada, inclusive, a
denominação da região como Leste Fluminense. Em outra fase do projeto, por ocasião
do trabalho de campo para aplicação de questionários, foi possível perceber que, para
muitos dos moradores de bairros ou distritos afastados do centro urbano (afastados pela
distância física ou pelas más condições de transporte, ou ambas) o nome do município é
associado ao centro. Nestes casos, as pessoas se identificam como moradores das
localidades. Isto acontece, por exemplo, no distrito de Duques, onde as pessoas se
referem ao centro como “Tanguá”; o mesmo acontece em Guapiaçu (localidade do
distrito de Subaio), para cujos moradores “Cachoeiras de Macacu” é o centro da cidade.
Esta tendência se revelou ainda mais forte em Guia do Pacobaíba, que os moradores
identificam como uma localidade dentro de Mauá, ou Praia de Mauá. A referência a
Magé como município de residência requer de muitos entrevistados alguns segundos de
reflexão.
Os resultados da referida pesquisa quantitativa ainda estão sendo analisados, mas
é possível antecipar que, de uma maneira geral, os moradores percebem desigualdades
entre diferentes localidades dentro dos municípios no acesso a serviços como saúde,
educação e em relação às condições do meio ambiente – como a qualidade da água, do
ar, e a limpeza das ruas e praças. Ou seja, há uma percepção difusa sobre a desigualdade
no interior dos municípios.
De uma maneira geral, no âmbito de uma pesquisa quantitativa que procurou
captar a percepção difusa da população de 14 municípios, através de amostragem, é
preciso notar que há uma percepção bastante otimista quanto à perspectiva de que haja
mudanças para melhor nos territórios pesquisados. Em localidades de municípios como
11
Itaboraí e Tanguá, essas mudanças foram diretamente atribuídas à implantação do
Comperj, segundo relato dos entrevistadores13 .
No entanto, ao contrário das expectativas geradas na população, as
transformações pelas quais a região do Leste Fluminense tende a passar nos próximos
anos podem ser semelhantes àquelas enfrentadas por outras regiões onde se instalaram
grandes empreendimentos. Algumas destas transformações são consideradas típicas:
“migrações, com conseqüente estrutura demográfica atípica, composta por elevado
coeficiente de homens jovens; favelização, prostituição e criminalidade; espaços
urbanos não-equipados; despreparo do poder público local, que faz concessões que
enfraquecem os cofres municipais e que assiste à ocupação não planejada das beiras de
estradas, rios, canais e encostas de morros e à conseqüente sobrecarga no uso dos
equipamentos coletivos, sem cuidar de sua ampliação e modernização” (Piquet 2007
apud Herculano 2010).
Sobre a região impactada pela exploração de petróleo offshore na Bacia de
Campos, que inclui municípios do Norte Fluminense e das Baixadas Litorâneas (Região
dos Lagos), Serra constata os seguintes aspectos: “fragilidade da norma de distribuição
dos royalties e participações especiais; contratação pelas prefeituras de pessoas físicas e
jurídicas de forma terceirizada (pela impossibilidade de ampliar o quadro de pessoal
com recursos do petróleo); existência de processos de alocação dos recursos para fins
distantes da política de promoção da justiça intergeracional [alternativas econômicas
para quando o petróleo acabar]; financeirização das rendas petrolíferas (para pagamento
de dívidas com a União e capitalização de fundos previdenciários, segundo as Medidas
Provisórias 1869/99 e 2103/2001); facilitação para as elites políticas e econômicas do
processo de privatização de importantes fundos públicos; falta de controle social destes
recursos. (2007: 99)”
Monié, ao examinar as dinâmicas territoriais e culturais provocadas pelas
atividades petrolíferas no norte-fluminense, observou os seguintes aspectos: “o
enriquecimento de parte da população e o afluxo de trabalhadores pobres sem
qualificação; o surgimento de áreas de residência e de consumo de alto padrão social e a
expansão de bolsões de pobreza; o aumento das desigualdades intra-regionais entre
13
Relatório Indicadores da Cidadania – Cidadania Percebida, do Ibase, ainda em versão preliminar e
não disponível.
12
campo e cidade e entre centros urbanos mais ou menos inseridos na nova economia
regional; o caráter desigual das dinâmicas em curso; a implantação de uma cultura
empresarial moderna, que leva à necessidade da oligarquia tradicional reformular suas
estratégias para manter a hegemonia; novas estratégias residenciais e demandas por
equipamentos comerciais e culturais modernos.” (2003 apud Herculano 2010)
Análises específicas sobre a cidade de Macaé, a “capital nacional do petróleo”, e
freqüentemente acionada como exemplo negativo do tipo de “desenvolvimento” que se
quer evitar, apontam a seguinte situação:
Houve sensível crescimento do emprego formal, crescimento urbano e
econômico. Este crescimento foi, entretanto, acompanhado pela favelização, pela
violência e tráfico de drogas e pela degradação ambiental (principalmente poluição dos
corpos hídricos). Não houve sequer universalização da rede de esgotamento sanitário
(Herculano 2010).
O paper de Wilson Madeira Filho trata de elementos relacionados à divisão
básica do trabalho na indústria de petróleo e gás de Macaé, caracterizada pela criação de
novo contingente de assalariados com remunerações médias acima da média da região,
simplificação gerencial, desregulação do trabalho e terceirização. De uma maneira
geral, aponta como conseqüências a fragmentação sindical e o aumento dos acidentes de
trabalho. De acordo com este autor, desde meados dos anos 90, a Petrobras tem optado
preferencialmente pela não renovação de quadros próprios através de concurso público.
Assim, há 3 categorias de trabalhadores na indústria analisada: funcionários próprios da
Petrobras (concursados) – trabalhadores “de elite”; funcionários terceirizados dentro da
Petrobras – trabalhadores no final da “cadeia alimentar”; e funcionários de outras
empresas do setor privado que prestam serviços à Petrobras – intermediários entre os
primeiros e os segundos.
Pode-se supor que a região de implantação do Comperj possa apresentar análoga
divisão de categorias de trabalhadores a partir do início da sua operação. A fixação de
residência destes trabalhadores de diferentes categorias poderá contribuir para reforçar
as desigualdades intrarregionais, entre campo e cidade e entre centros urbanos mais ou
menos inseridos na nova economia regional, apontadas acima por Monié.
13
A comparação com os conflitos em torno da operação da Refinaria de Duque de
Caxias (Reduc) acrescenta elementos para a análise sobre a região do Comperj, visto
tratar-se de uma refinaria. Sobre a região onde foi instalada, em 1961, a Reduc, a tese de
Sebastião Raulino aponta conflitos em torno de obras pontuais – como obras que
causaram enchentes em determinadas ruas; conflitos com moradores em função da
precariedade dos bairros do entorno da refinaria; conflitos quanto ao uso da água para
fins industriais enquanto a oferta de água tratada para a população é precária. No caso
do Comperj, a dimensão do empreendimento é no mínimo três vezes maior do que a
Reduc, e os municípios mais próximos apresentam perfil sócioeconômico semelhante a
Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Herculano destaca o conflito em torno da vazamento da Reduc na Baía de
Guanabara. Cerca de 20 mil pescadores do entorno da Baía da Guanabara (Niterói, São
Gonçalo, Guapimirim, Magé, Itaboraí e, no Rio de Janeiro, as regiões do Caju, Ilha do
Governador, Marcílio Dias, Ramos e Paquetá) moveram ação legal no Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro - TJ-RJ, pedindo indenização por conta do vazamento de óleo
proveniente da Reduc no dia 18 de janeiro de 2000. A Petrobrás foi condenada em
primeira instância, mas recursos deram prosseguimento à questão. (Divulgado pela
imprensa na época, não haviam sido concluído seus trâmites.). Verbas indenizatórias do
derrame de óleo na Baía de Guanabara foram utilizadas na realização de seminário e
pesquisa sobre ambiente pela UFRJ.
A percepção de participantes de organizações da sociedade civil e de
movimentos sociais a respeito da implantação do Comperj e das transformações a ele
associadas é distinta da percepção difusa revelada pela pesquisa quantitativa. Estas
lideranças apresentam pontos de vista mais críticos em relação às transformações
vindouras e procuram se articular para lidar com estas mudanças.
Os principais conflitos, até agora, referiram-se ao questionamento, por parte de
organizações ambientalistas e gestores de unidades de conservação, da localização
próxima a áreas protegidas (APA de Guapimirim e Estação Ecológica da Guanabara,
principalmente)14 e da utilização de grande volume de recursos hídricos, em uma região
14
Giuliani chama a atenção para o fato de que, embora, do ponto de vista empresarial, as razões
da escolha de Itaboraí sejam as mais "racionais" - a localização naquela área colocará o COMPERJ
em posição logística muito favorável: disponibilidade de terrenos baratos, proximidade dos maiores
centros urbanos, de terminais portuários, de aeroportos, de refinarias e pólos gás-químicos,
14
populosa e já caracterizada pela escassez15. Foram questionados, também, os impactos
sobre os meios de vida dos catadores de caranguejo da comunidade de Itambi, no
município de Itaboraí16.
Com o avanço das obras, cresce a articulação em torno do Fórum Popular
Comperj, que reúne associações de moradores e pescadores atingidos pela construção
do empreendimento e organizações que procuram mobilizar a população com vistas às
transformações que estão por vir, tais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST). Este fórum realizou seu primeiro encontro em maio de 2012.
De acordo com representante do Sindipetro-RJ em entrevista17, antes mesmo da
implantação do projeto Agenda21 Comperj, a Petrobras estimulou a organização de
grupos e associações dos 14 municípios a formarem conselhos comunitários: “Então
cada município criou um conselho comunitário do Comperj, que era composto de
ONGs, associações de moradores, rotary clubes, maçonaria, centro espírita, o que você
imaginasse, tinha. (...) Cada município tinha uma estrutura com 20, 30 – dependendo do
tamanho do município e da importância dele, ele tinha um número maior ou menor de
participantes nos conselhos comunitários municipais, que juntos formavam o regional
[Conselho Comunitário Regional do Comperj – Concrecomperj]. Então a gente
[Sindipetro-RJ] participou disso”.
disponibilidade de uma vasta malha rodoviária e, sobretudo, imediato acesso ao futuro anel rodoviário
Itaguaí-Niteroi – do ponto de vista da política ambiental do Estado do Rio de Janeiro, “esta localização
foi considerada absolutamente imprópria, seja pelo Conselho Gestor da Apa de Guapimirím, seja
pelo Conselho Gestor do Mosaico das Unidades de Conservação da Mata Atlântica Central
Fluminense” (2008b: 11)
15
Em 5 de maio de 2011, o jornal O Globo noticiava a construção de barragem no rio Guapiaçu
para abastecimento do Comperj, revelando a opção pelo impacto sobre as áreas protegidas, diante das
demais alternativas expostas até então. O surgimento de uma alternativa melhor foi anunciada pelo
Secretário de Estado do Meio Ambiente, Carlos Minc, durante audiência pública realizada na Assembléia
Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), no dia 30 de maio subsequente, pela “Comissão Especial para
Discutir e Construir a Interlocução com os Municípios que Sofrem a Influência do Comperj junto à
Petrobras”. A exposição de Minc teve início com a explicação de que a água para abastecer o Comperj
não pressionará rios e lagos da região, pois será utilizada água de esgoto tratada. Eloise Botelho, em
Dissertação de Mestrado sobre conflitos na gestão do Parque Estadual da Serra dos Três Picos, afirma que,
“ao reverter a análise dos impactos negativos em positivos, o RIMA desconsidera o problema
crônico da questão hídrica regional e passa a responsabilidade de gestão dos recursos hídricos, que
é estatal, ao COMPERJ. Além disso, não é possível garantir que a empresa responsável pelo
empreendimento irá de fato atender às carências regionais de abastecimento e saneamento. (...)
16
Moysés 2010.
17
Entrevista com Edson Munhoz, Coordenador da Secretaria Jurídica do Sindipetro – RJ, Secretário de
Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT-RJ) e Coordenador Geral do Concrecomperj.
Entrevista realizada no âmbito do projeto Observatório do Pré-sal/Ibase, em abril de 2011.
15
Segundo o entrevistado, o interesse da empresa era obter uma certificação
internacional: “a Petrobras precisava dar uma resposta à ISO 1400018, que dizia que
para ter negociado na bolsa de valores de Nova York ações, você tem que fazer esta
pesquisa e garantir a participação popular, a aprovação, na verdade, aprovação popular
neste projeto.”
“N: Esses conselhos comunitários surgiram então com o apoio da Petrobras?
EM: Sim, com o apoio da Petrobras. Inclusive com dinheiro.
N: Com dinheiro da Petrobras?
EM: Através de ONGs de meio ambiente. Então, ela aproveitou isso também porque
não havia nesses locais a Agenda 21 na maioria deles, com exceção de 2 ou 3
municípios. Ela criou a Agenda 21 para facilitar a aprovação de um PLDS [Plano Local
de Desenvolvimento Sustentável] que facilitasse o interesse da Petrobras. A Petrobras
uniu a necessidade que ela tinha de fazer com que houvesse, por parte da comunidade, o
controle social. Ela era obrigada a ter esse controle social. Que pra ela, na verdade, o
que interessava, era a participação desse pessoal para referendar. Onde, nos momentos
em que realmente houve participação popular, e que se bateu de frente com a Petrobras,
ela mostrou a verdadeira face dela, que era de usar como massa de manobra, usar pra
assinar embaixo o projeto dela, as comunidades. Isso gerou um grande tumulto com o
passar do tempo, porque ficou bem claro que ela não queria muita discussão sobre o
tema. Ela queria ser referendada nas possibilidades dela e usar a Agenda 21 local,
transformar o local em Comperj, fazer um misto, onde os prefeitos usaram, sempre que
eles podiam, para colocar seus pares nesta Agenda 21 local. Isso gerou ações iniciais,
gerou mais conflitos, porque ficou muito claro que a idéia não era a participação
popular, a idéia era que, gente que tivesse interesse em comum com o projeto, viesse a
subscrever, a referendar a proposta da Petrobras. Isso levou algum tempo para ficar
claro.”
O discurso desta liderança reforça a constatação de Acselrad de que os conflitos
sociais têm sido constrangidos “pelo estreitamento do espaço aberto para sua
politização, espaço onde os mesmo poderiam vir a ser trabalhados na perspectiva de
18
ISO 14000 é um conjunto de normas desenvolvidas pela International Organization for Standardization
(ISO) e que estabelecem diretrizes sobre a área de gestão ambiental dentro de empresas.
16
uma construção crescentemente democrática do território. (...) Tecnologias de formação
de consenso são então formuladas de modo a caracterizar todo litígio como problema a
ser eliminado. E todo conflito remanescente tenderá a ser visto como resultante da
carência de capacitação para o consenso e não como expressão de diferenças reais entre
atores e projetos sociais, a serem trabalhadas no espaço público” (2004:29).
Como chama a atenção Leite Lopes, a partir da etnografia de situações como as
de conselhos locais, audiências públicas e outras instâncias “participativas” é que
transparecem os “efeitos de dominação exercidos pela presença técnica de expertise,
bem como o abafamento e a falta de espaço de diálogo com o saber leigo”. Mas ressalta
que a “eficácia de conselhos locais de meio ambiente e de programas de Agenda 21
locais geralmente depende da experiência da participação política da população, de sua
história de mobilização” (2004:29).
No caso analisado, o entrevistado reconhece que “o Concrecomperj perdeu um
pouco de credibilidade e passou a ter uso político, partidário, pessoal que a gente tem
tentado no último ano, um ano e pouco, resgatar.” Mas vê o conselho como “uma
ferramenta social muito importante, muito boa, que pode ajudar a pressionar o interesse
popular.” Segundo o sindicalista, hoje estão mais à frente do Concrecomperj as
federações de moradores de Itaboraí, Niterói, São Gonçalo, Nova Friburgo e Maricá,
bem como os sindicatos. E enxerga ganhos na apropriação de alguns destes conselhos
locais por parte das comunidades: “Em alguns locais, esses conselhos criados pelo
Comperj, acabaram virando conselho comunitário local. Maricá é um exemplo.
Friburgo é outro. São Gonçalo é outro. Esse conselho do Comperj acabou virando
conselho comunitário municipal. Em Maricá, por ser conselho comunitário municipal...
ele tem os sindicatos locais, o Sepe [Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação]
, Sindipetro, sindicato dos professores, e Sindisprev comunitário, que tem base em
Maricá. São 4 sindicatos, várias ONGs, ele acabou virando um conselhão muito grande.
Hoje não é mais só do Comperj. Em Maricá, o procurador diz que nós somos um
governo paralelo. Ele tem tanto peso, é tão grande, tem tantas entidades de peso, que
abava virando quase... que fiscaliza o governo. A verdade é essa. Em alguns locais,
infelizmente, esses conselhos acabaram sendo trampolim para cargos políticos na
prefeitura. Outros não. Outros continuam sendo de luta, mas isso é uma coisa natural da
vida.”
17
O Concrecomperj também tem sido convidado a participar de diferentes
conselhos locais, o que é percebido pelo entrevistado como uma estratégia importante
para influenciar as políticas públicas de alguns municípios: “A gente tem sido
convidado, por alguns prefeitos que fazem parte do Conleste, para participar, por
exemplo, do Conselho de Saúde de Itaboraí, de alguns conselhos de meio ambiente
municipais, de conselhos de educação, de emprego e renda, para, através desses
conselhos, a gente participar do Conleste. É uma participação indireta, mas é
importante. Esses conselhos são o que dão, muitas vezes, embasamento para as ações da
prefeitura.”
Finalmente, cabe chamar a atenção para a organização e as prolongadas greves
dos trabalhadores da construção do Comperj. Trata-se de uma imensa massa de
trabalhadores temporários (de acordo com uma liderança ligada ao Fórum Popular
Comperj, 18.632 trabalhadores, contabilizados na última reunião de negociação entre o
sindicato e os consórcios responsáveis pelas obras – maio/2012; no auge da obra, devem
chegar a 32 mil), cuja rotatividade depende das especificidades de cada parte que está
sendo construída, relacionadas no cronograma das obras. A imensa maioria dos
trabalhadores é do sexo masculino e metade é natural de outros estados do Brasil,
especialmente da região Nordeste, segundo informações da imprensa19. São contratados
por 9 consórcios, cada um deles formados por várias empresas, encarregadas da
construção de diferentes partes do empreendimento, segundo contratos de trabalho
diferentes. Realizando assembléias que chegam a reunir 10 mil trabalhadores, em um
movimento grevista que durou cerca de seis meses (dezembro de 2011 a maio de 2012,
com interrupções), os trabalhadores lutam, de uma maneira geral, pelo estabelecimento
de um piso salarial para os empregados de diferentes consórcios, pelo direito de retornar
para visitar suas famílias com passagens pagas e mais dias de folga, pela aumento do
valor fornecido para as refeições (devido à elevação do custo de vida no local), e
buscam responsabilizar a Petrobras pela situação de precariedade na qual se encontram.
A presença desta grande quantidade de trabalhadores traz mudanças para o sindicalismo
local e sua organização começa a estabelecer um diálogo com o fórum que reúne a
população local atingida.
De acordo com uma liderança do Fórum Popular Comperj, organização que
19
http://www.redebrasilatual.com.br/temas/trabalho/2011/11/operarios-encerram-greve-no-comperj-comabono-e-plano-de-saude-gratuito
18
estabeleceu uma relação de solidariedade com o movimento grevista, freqüentando
assembléias e convidando trabalhadores para as suas reuniões, o “sindicato dos
trabalhadores da construção civil [de São Gonçalo] é filiado à CUT e não tem tradição
de grandes mobilizações ou mesmo paralisações, visto que eles nunca atuaram junto a
um canteiro de obra da dimensão do Comperj. Essa situação é visível com as lideranças
novas que estão surgindo durante esse período. A grande maioria dessas lideranças não
tinha nenhum vínculo com o sindicato.”
Assim sendo, é possível observar que o surgimento do Leste Fluminense
enquanto região está associado a um projeto hegemônico que reúne interesses
governamentais e empresariais em torno do posicionamento do estado do Rio de Janeiro
e do Brasil na organização econômica global. Grzybowski bem caracteriza esta
conjuntura: não “se trata de mudar substancialmente, mas de crescer e aproveitar-se do
momento do “Brasil emergente”, num mundo capitalista de desenfreada competição
entre conglomerados e países, onde uns sobem enquanto outros vão para o brejo”20.
É possível perceber na região estudada forças que convergem no sentido de
adequar a ação de diferentes agentes, vinculados em diferentes escalas, ao projeto
hegemônico em processo de implantação na região. Desse modo, governos, populações
e organizações locais devem adotar novos procedimentos – como o empreendedorismo,
a capacitação, ou o realinhamento e a articulação com outros atores – tanto para colher
os benefícios prometidos pelo progresso quanto para denunciar e contestar seus
princípios.
De que maneira a criação do Leste Fluminense, de forma hegemônica,
modificará as condições, os modos de vida e os pertencimentos de seus habitantes?
Quais segmentos da população local serão beneficiados pelo advento do Comperj e a
transformação do Leste Fluminense em uma região industrial? Experiências anteriores
mencionadas acima como a região do entorno da Reduc, a cidade de Macaé e a “região
de influência” da Bacia de Campos apontam para a ampliação de desigualdades no
interior destas regiões, com locais que tendem a se adequar às necessidades de novas
elites locais em contraposição a outras partes do território que passam a abrigar bolsões
de pobreza e de exclusão.
20
http://www.canalibase.org.br/grandes-obras-mas-a-cidadania-nem-tanto/
19
É possível visualizar uma sociedade civil mais atuante no decorrer das obras e
do funcionamento do complexo? Ao mesmo tempo em que há incentivos à participação
e à formação de organizações, grande parte dos espaços criados neste sentido tendem a
privilegiar o saber de uma expertise em detrimento do saber leigo, restringindo as
possibilidades de participação efetiva de determinados grupos. Além disso, as
tecnologias de formação de consenso tendem a obliterar contradições estruturais e vozes
que se contrapõem ao modelo hegemônico. Por outro lado, o acirramento das
desigualdades e dos “impactos negativos”, bem como perspectivas de articulação de
grupos locais com organizações e movimentos sociais mais experientes abrem novas
perspectivas de lutas.
20
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Como nasce uma região - trabalho completo - Observatório do Pré-sal