PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA MOTRICIDADE
(PEDAGOGIA DA MOTRICIDADE HUMANA)
CAPOEIRA ANGOLA:
SABERES, VALORES E ATITUDES NA FORMAÇÃO DO MESTRE
THIAGO VIEIRA DE SOUZA
Dissertação apresentada ao Instituto de
Biociências do Campus de Rio Claro,
Universidade Estadual Paulista, como parte
dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Ciências da Motricidade.
Rio Claro
Estado de São Paulo – Brasil
Setembro / 2010
CAPOEIRA ANGOLA:
SABERES, VALORES E ATITUDES NA FORMAÇÃO DO MESTRE
THIAGO VIEIRA DE SOUZA
Orientador:
Prof. Dr. Samuel de Souza Neto
Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências
do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual
Paulista, como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em Ciências da Motricidade.
Rio Claro
Estado de São Paulo – Brasil
Setembro / 2010
THIAGO VIEIRA DE SOUZA
CAPOEIRA ANGOLA:
SABERES, VALORES E ATITUDES NA FORMAÇÃO DO MESTRE
Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências
do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual
Paulista, como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em Ciências da Motricidade.
Comissão Examinadora
Profº Dr. Samuel de Souza Neto
Profº Dr. Luiz Gonçalves Junior
Profº Dr. Alexandre Janotta Drigo
Rio Claro, 27 de Setembro de 2010
iii
Agradecimentos
Primeiramente quero agradecer a Oxalá (Jesus), por ter permitido que eu
completasse mais esta etapa da minha vida. Aos meus orixás Oxossi, Oxum e Ogum,
guias e protetores que sempre me orientaram nos caminhos que trilhei e que se tornaram
ao longo de minha vida verdadeiros alicerces, onde obtive a base de minha educação.
Agradeço aos meus pais (Tolentino e Antonia) por toda a compreensão e
paciência que tiveram durante minha vida, por sempre me conduzirem ao caminho do
bem e por me ensinar o valor que o estudo possui não permitindo jamais que eu
desistisse. Amo muito Vocês!
Agradeço aos meus outros pais (Isidoro e Sebastiana) dirigentes espirituais do
Templo de Umbanda Cacique Pena Vermelha e Ogum Iara onde nasci, cresci, e
permanecerei até o fim. Agradeço por ter sido o local que mais me incentivou a prática da
capoeira, sendo posteriormente o primeiro local que ministrei aulas. Sou grato por todos
os ensinamentos que me deram ao longo de meus 27 anos de vida.
Agradeço a minha noiva (Simone) por todo seu amor, carinho e compreensão,
principalmente nas situações onde precisei estar ausente. Te amo!
Aos irmãos (Jéssica e Geronimo) que sempre estiveram ao meu lado, me
apoiando em toda e qualquer situação e sempre sentiram orgulho das minhas conquistas.
Agradeço ao Profo Ms. Adriano Pires de Campos, primeiro orientador que através
de seus ensinamentos me fez perceber a capoeira enquanto área de estudos e me levou
até o Profo Samuel Souza Neto, que acreditou em meu trabalho e em minha capacidade,
me acolhendo em sua grande família chamada NEPEF, na qual me recebeu de braços
abertos. Lá fiz grandes amigos, como Camila, Aline, Evandro, Carol, Larissa, Marcelo
(grande companheiro de labutas) e tantos outros que mesmo distantes sempre torceram
pelo meu sucesso.
A você, Profo Dr. Samuel, o meu mais sincero agradecimento, por toda sua
paciência e confiança, por me ensinar, por me preparar e principalmente por me orientar
nesta etapa de meus estudos.
A amiga Profa Ms. Mellissa que pacientemente com suas orientações me ajudou
em toda estruturação deste estudo.
Ao Profo Dr. Luiz Gonçalves Junior e ao Profo Dr. Alexandre Janotta Drigo que
aceitaram o convite para compor a banca de mestrado e me presentearam com suas
valiosas contribuições.
A meu mestre Plínio que solicitou aos mestres entrevistados, a confiança neste
estudo. A todos os mestres participantes que confiaram a mim seus depoimentos.
Por último, mas não menos importante às amigas Carla, Kátia e Janaína, pelas valiosas
contribuições para que o estudo se concretizasse. Agradeço à todas as pessoas que
direta ou indiretamente contribuíram para que este estudo se realizasse.
iv
RESUMO
Esta pesquisa teve como objeto de estudo os saberes na formação do mestre de
capoeira Angola, considerando os valores, artefatos e atitudes presentes neste
contexto. Pressupõe-se que os saberes provenientes de uma escola de vida
formam a identidade e um perfil profissional, assim como o habitus que emerge
dessa prática social. Há dois objetivos principais neste estudo: (a) Investigar os
saberes constitutivos da capoeira Angola, bem como o perfil profissional de
indivíduos que atuam no ensino desta atividade; e (b) identificar os elementos que
auxiliam na caracterização da capoeira Angola enquanto escola. Entre as técnicas
escolhidas adotamos a entrevista narrativa semi-estruturada, complementada pelo
método de análise de conteúdo sob a ótica das representações sociais para
proceder à análise e interpretação dos depoimentos de 7 mestres da capoeira
Angola da cidade de Salvador-BA. Neste contexto, os depoimentos apontaram
para uma estrutura e organização da capoeira que se assemelha às escolas de
ofícios, onde são constituídos grupos que possuem formas peculiares de ensino,
dotados de valores e rituais específicos. Esses valores e rituais formam um
conjunto de elementos tais como a música, o canto, o toque, os movimentos e a
roda, que se configuram em saberes adquiridos na vivência na capoeira Angola.
Os mestres possuem valores pautados em uma tradição que tem sua essência na
relação mestre-aprendiz, onde o tempo e a proximidade com o mestre são fatores
preponderantes para que se obtenha o conhecimento. Juntamente com suas
práticas de ensino, os mestres trazem uma gama de gestos, códigos, sinais e
movimentos que os auxiliam durante seu ensino e expressam uma hexis corporal
que também é expressa na forma de valores, fundamentos e rituais legitimados no
passado e que permanecem vivos no presente. A partir deste panorama,
concluímos que a caracterização da capoeira Angola como escola de ofício é uma
realidade, principalmente no que se refere ao ensino e à organização de seus
espaços de formação. Os valores, as ações didáticas e a postura dos mestres
visam sempre à preservação de uma tradição e destacam-se como principais
características dos perfis profissionais. Apontamos assim para a existência de um
habitus profissional do mestre de capoeira Angola que tem sua constituição a
partir de sua trajetória na capoeira Angola. Os resultados dessa investigação
contribuem para melhor delinearmos os saberes que constituem o universo da
capoeira Angola, assim como o perfil profissional de seus mestres no Brasil.
Palavras-Chave: Capoeira Angola, Saberes, Representação, Habitus profissional.
v
ABSTRACT
This research was based on the teaching knowledge of an Angola Capoeira
master, involving moral values, artifacts and attitudes around this subject. It is
assumed that knowledge acquired from life lessons build up an identity and a
professional profile, such as habitus wich emerges from social practice. There are
two main objectives to this study: (a) Investigating the standard knowledge on
Angola capoeira professionals’ profiles who teach such activity; and (b) identifying
elements which feature Angola Capoeira as schooling. Among the chosen
techniques, we picked the semi-structered narrative interview, complemented by
the method of content analysis under the social representations perspective
proceding the 7 Angola Capoeira masters’ brief from Salvador – BA. In this
abstract, briefs point to the structure and organization resemblance between
capoeira and trade schools in which groups are formed carrying peculiar ways of
teaching, full of moral values and specific rituals. These values and rituals build up
a series of elements such as music, singing, playing, moves and the circle which
become the main knowledge amongst Angola Capoeira experiences. Masters own
moral standards based on a tradition which follows the master-apprentice relation
pattern. Spending time and keeping close to a master are key factors to obtaining
knowledge. Besides teaching techniques, masters bring along a range of gestures,
codes, signals and moves that will assist themselves during their teaching process
and express a body hexis transmitting other legitimate values, fundamentals and
rituals from the ancient times that have survived throughout the years. From this
point, we conclude that featuring Angola Capoeira as a trade school is a reality,
especially on the educational and organizational content. Values, didactic actions
and masters’ postures tend to reach a preservation of traditions and stand out as
main features to professional profiles. Thus, we point out to an Angola master’s
professional habitus existance which has its foundations carved in his own
trajectory inside Angola Capoeira. Results created from this investigation
contribute to a better outlined view of the Angola Capoeira knowledge universe,
like masters’ professional profiles around Brazil.
Palavras-Chave: Capoeira Angola, Knowledge, Impersonation, Professional
habitus.
vi
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Movimentos corporais.................................................................. 40
Quadro 2 – Características mais relevantes no jogo....................................
41
Quadro 3 – Toques de Berimbau....................................................................
41
Quadro 4 – Saberes dos Professores............................................................. 62
Quadro 5 – Caracterização dos Participantes...............................................
99
vii
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.............................
203
Anexo 2 - Entrevista com o Mestre B ...........................................................
204
Anexo 3 - Entrevista com o Mestre C............................................................
208
Anexo 4 - Entrevista com o Mestre J.............................................................
214
Anexo 5 - Entrevista com o Mestre JD..........................................................
225
Anexo 6 - Entrevista com o Mestre M............................................................
230
Anexo 7 - Entrevista com o Mestre P............................................................. 236
Anexo 8 - Entrevista com o Mestre V............................................................. 244
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................
11
Capítulo 1 - SABERES E PRÁTICA PROFISSIONAL NA CAPOEIRA
ANGOLA............................................................................................................
22
1.1 A CAPOEIRA NO TEMPO E NO ESPAÇO..…...........................................
23
1.1.1 Escravidão: origem e inserção do negro na cultura
brasileira....................................................................................................
26
1.1.2 Capoeira: uma arte, uma luta, um jogo, uma dança?..................
31
1.2 OS MESTRES DE CAPOEIRA E A SUA FORMAÇÃO: OS SABERES
PROFISSIONAIS...............................................................................................
43
1.2.1 A capoeira na perspectiva das corporações e escolas de
ofício..........................................................................................................
56
1.2.2 A questão dos saberes como chave de leitura para a
compreensão da produção de conhecimentos na capoeira................
1.3.
A
CAPOEIRA
ANGOLA
COMO
REPRESENTAÇÃO
SOCIAL.........................................................................................................
1.3.1 Representação social....................................................................
1.3.2
A
presença
do
habitus
60
nas
67
68
representações
sociais........................................................................................................
73
ix
1.3.3 O habitus como elemento fundamental de um espaço social
78
denominado “campo” que abarca uma illusio............................
Capítulo 2 - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ..................…………….
86
Capítulo 3 - OS SABERES E A PRÁTICA PROFISSIONAL NAS
TRAJETÓRIAS DE VIDA DOS MESTRES DE CAPOEIRA ANGOLA.............
3.1
CULTURA,
HISTÓRIA
E
CONHECIMENTO
PRESENTES
90
NA
TRAJETÓRIA DE VIDA DO MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA....................
91
3.1.1 Os mestres de capoeira Angola: uma breve biografia.................
91
3.1.2 A capoeira Angola como cultura e a cultura da capoeira............
103
3.2 A CAPOEIRA ANGOLA COMO CORPORAÇÃO E ESCOLA DE
OFÍCIO: UM CURRÍCULO OCULTO A DESCOBRIR.......................................
119
3.2.1 Valores, artefatos e rituais presentes na capoeira Angola..........
120
3.2.2 Os saberes profissionais que emergem dos mestres das
escolas de capoeira Angola....................................................................
131
3.2.3 A capoeira Angola como um espaço social (“campo”) de
lutas: dominantes e dominados..............................................................
144
3.3 O HABITUS PROFISSIONAL DO MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA.....
147
x
3.3.1 O mestre de capoeira Angola ensina pegando pela mão............
148
3.3.1.1 A ação didática do mestre de capoeira Angola no processo
de formação do capoeirista.....................................................................
157
3.3.1.2 A dança, o jogo, a musica, o canto e a roda de capoeira
como artefatos da hexis corporal do mestre de capoeira Angola.......
162
3.3.1.3 A formação do mestre de capoeira Angola como um
“aprendiz de feiticeiro”: a postura no processo de se tornar
mestre........................................................................................................
165
3.3.2 O habitus profissional como identidade do mestre de capoeira
Angola........................................................................................................
175
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................
180
REFERÊNCIAS ……............................................…..………….………..............
187
11
INTRODUÇÃO
Meu primeiro contato com a capoeira ocorreu no final de 1997, quando
cursava a oitava série do ensino fundamental. Em uma das aulas de Educação
Física, o professor informou que a Educação Física, enquanto componente
curricular era muito mais do que apenas a prática do esporte. Envolvia, também,
atividades culturais e reflexivas, como discussões sobre temas polêmicos,
atividades de circo, entre outras atividades, como a capoeira, por exemplo, um dos
conteúdos inerentes a essa disciplina escolar. Assim, aquele professor destinou
algumas de suas aulas ao ensino da capoeira, falando um pouco de sua história e
de seus fundamentos. Inicialmente, encarei esse conteúdo com reprovação, pois,
em minha visão, as aulas de Educação Física deveriam ser voltadas para a prática
dos esportes de quadra, como basquetebol, futebol, handebol e voleibol.
Devido ao meu envolvimento com o voleibol, atuando como atleta federado,
recusei-me a participar de algumas das aulas de capoeira ministradas no período
escolar. Tal conteúdo fora previsto para seis aulas, devendo ser ministrado em
duas semanas. Afastei-me, então, das aulas de Educação Física, pois
considerava este conteúdo como algo “sem valor”, quando o comparava ao
voleibol. Mantive minha posição na primeira semana, não participando de
nenhuma aula. Entretanto, na segunda semana, acabei cedendo à insistência de
meus colegas de classe, pois era o único a não participar daquelas aulas. Achei-a
muito interessante quanto à diversidade de movimentos, quanto ao ritmo musical e
nos desafios proporcionados pelos golpes que exigiam grande habilidade. O ciclo
de aulas foi encerrado com a apresentação de um grupo de capoeira conhecido
no bairro onde morava, quando pude ver, na prática, o contexto de alguns dos
movimentos por nós realizados. Obviamente, tais movimentos adquiriram uma
forma bem mais complexa e dinâmica, sem falar nos diversos saltos que aqueles
capoeiristas realizavam. Desde então, mudei meu conceito com relação à
capoeira, praticando-a e a considerando como uma prática potencialmente
12
educativa. Tal mudança de pensamento pode ser associada a um remanejamento
de estruturas, remodelação de elementos, bem como reconstrução de dados,
levando em consideração o contexto de valores, das regras e noções (DOTTA,
2006). Para a autora, esta mudança de perspectiva está baseada no conceito de
representação social, conforme definido por Moscovici (1978, p.26 apud DOTTA,
2006, p.17) que a delimita como sendo “uma modalidade de conhecimento
particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação
entre indivíduos”.
No ano escolar seguinte, com a falta de apoio para a continuidade no
esporte e com a mudança para o ensino médio, o voleibol deixou de ser uma
realidade tangível.
Interrompi meus treinamentos para me dedicar mais aos
estudos e preparação para o mercado de trabalho.
Contudo, influenciado por familiares, fui orientado sobre a necessidade de
realizar uma atividade física em que pudesse extravasar minha ansiedade pelo
término do voleibol e minha vida. Foi então que optei por prosseguir com a
capoeira, seguindo a sugestão de parentes próximos que admiravam essa
modalidade. A partir desse momento, comecei a procurar e visitar alguns grupos
de capoeira no bairro onde morava.
Havia muitos grupos e muitos locais de
prática e, após ter visitado alguns deles, decidi, treinar na associação de bairro,
em função da capoeira ser parte integrante do quadro de atividades.
Iniciei a prática da capoeira em maio de 1998, época que já tinha escolhido
a Educação Física como profissão. No universo da capoeira, pude perceber que
havia muitos quesitos ou áreas e que cada um procurava se destacar naquelas de
maior interesse. Alguns alunos eram bons no jogo alto, outros no jogo baixo,
alguns no jogo de Angola, outros na Regional, nos ataques, nas esquivas, no
canto, nos saltos, no berimbau, no pandeiro, no atabaque e, até mesmo, na parte
teórica que, mais tarde, percebi como algo muito forte dentro daquele grupo.
Neste aspecto podemos, citar Souza e Oliveira (2001) ao considerar que:
A capoeira é um conteúdo [...] que pelos seus múltiplos enfoques
que possibilitam a luta, a dança e a arte, o folclore, o esporte, a
educação, o lazer e o jogo. A mesma deve ser ensinada
13
globalizadamente, deixando que o aluno identifique-se com os
aspectos que mais lhe convier (p.44).
A parte com a qual me identifiquei inicialmente foi à musicalidade, prática
esta advinda da doutrina religiosa que percorro até hoje. Neste ponto, dou-me a
licença para discorrer sobre aspectos de minha vida pessoal que se conectam
com minhas inquietações acadêmicas no presente estudo. Assim, é importante
ressaltar que sou praticante da religião umbandista há vinte sete anos, inclusive
frequentando o mesmo templo durante todo esse período. Para os umbandistas, o
canto é um fator de grande relevância durante os cultos, pois, através da oralidade
musical que se atinge a energia para a realização das práticas espirituais. Os
responsáveis pelo canto são chamados de Curimbeiros e devem estar totalmente
em sintonia com tudo que esta sendo realizado, sabendo o que cantar, porque
cantar e quando cantar, além de dominar os toques no atabaque, instrumento
sagrado utilizado pela religião umbandista.
Aos poucos fui percebendo que tal situação também ocorria na capoeira e
fui me deixando envolver por aquela infinidade de conhecimentos e domínios que
se faziam presentes naquele universo, passando esta prática a tomar conta do
meu ser, me dando a certeza de que queria muito mais que praticá-la, mas
também ensiná-la. Isso atrelado a minha escolha pela Educação Física como
carreira profissional fez com que visse a universidade como um local onde iria
aprimorar meus conhecimentos para alcançar este objetivo.
Com o ingresso na graduação no ano de 2001, reconheci em pouco tempo
que a Educação Física era mais que uma prática esportiva, era um universo que
jamais imaginei como área de estudo e profissão. Esta descoberta me impulsionou
ha nesse mesmo ano, ministrar aulas como voluntário, na Organização Não
Governamental (ONG) de minha madrinha chamada Projeto Filhos do Cacique,
nome este que se dá devido ao templo ter a entidade1 Cacique Pena Vermelha
como principal responsável.
1
Entidade é o nome dado a todos os espíritos que estão em uma faixa de vibração astral, boa para o trabalho
na Umbanda. Conforme seu grau de evolução espiritual, esses espíritos são levados a fazer parte de uma
falange (agrupamento de espíritos), a fim de atuarem, aprenderem e evoluírem espiritualmente.
14
Este projeto teve início em 1987, porém com o nome de encontro de
crianças, e era destinado aos filhos dos médiuns que freqüentavam o templo,
neste encontro realizávamos atividades artesanais como desenho, pintura,
bordados entre outras atividades, além de aulas com algumas das entidades que
faziam parte do templo, onde tínhamos oportunidade de conversar desde assuntos
diversos como estudo, família, conflitos até o aprendizado de doutrinas que regem
nossa religião como respeito ao próximo, caridade, responsabilidade com a
humanidade e com a natureza e principalmente sempre agir corretamente e
jamais negar a religião, pois éramos umbandistas e deveríamos dar exemplo para
que não sofrêssemos discriminação alguma perante a sociedade.
Após o templo inaugurar sua sede própria em 15 de abril de 1995, o
encontro de crianças passou a ser chamado de projeto Filhos do Cacique, e já não
era mais destinado apenas aos filhos dos médiuns, configurando-se em um
espaço social que propiciava atividades gratuitas como pintura, culinária,
artesanato entre outras, para crianças do bairro, e como a capoeira foi uma
atividade que contribuiu muito em minha adolescência, minha vontade de levar
esta prática para outras pessoas era grande e desta forma houve a sugestão que
esta fosse uma das atividades oferecidas pelo projeto, considerando que já estava
na capoeira há três anos e possuía a graduação necessária para iniciar um
trabalho.
Em nosso grupo tínhamos como base o modelo de formação da Federação
Paulista de Capoeira (1974) com a seguinte gradação nos cordões: verde, verdeamarelo, amarelo que eram chamadas graduações de alunos, seguidos de
amarelo-azul estágio de primeiro grau ou aluno graduado, a graduação azul em
nosso grupo era considerado estagiário, seguido das graduações verde-amareloazul instrutor e verde-amarelo-azul e branco formado ou professor.
Assim, em 2001 estava no cordão amarelo e iria adquirir o cordão amareloazul em agosto, tendo o consentimento do mestre para iniciar atividades de
capoeira naquele espaço social. Portanto, vindo de uma formação do tipo “escola
de ofício” (como será visto no capítulo que fala sobre o assunto) poderia assumir
responsabilidades de acordo com o meu grau de instrução na capoeira.
15
Outrossim, cabe ainda colocar que esta perspectiva é valida no mundo da
capoeira não tendo a mesma compreensão no universo ocupacional.
Sobre esta questão, podemos nos apoiar em Rugiu (1998, p.49), que ao
explanar sobre a relação mestre-aprendiz, afirma que os aprendizes “eram
submetidos à obrigação de estar sob o comando do mestre” sendo “sempre e de
qualquer modo, uma relação educativamente relevante e compreensiva de
procedimentos do aprendizado formal e informal”.
Quando iniciei, o trabalho foi marcado por alguns embates com relação à
maneira como conduzia as aulas, pois era da forma como havia aprendido, não
levando em consideração alguns aspectos dos alunos, como faixa etária, nível de
desenvolvimento, grau de dificuldade dos movimentos a serem ensinados, e até
mesmo os exercícios físicos que utilizava como aquecimento. À medida que
avançava nos estudos percebia que algumas estratégias não estavam de acordo,
mas outras estavam, buscava modificar algumas formas de ensino que aprendi no
meio da capoeira, e em outros momentos acrescentava os conhecimentos que
obtinha na universidade como planejar as aulas, levar em consideração as faixas
etárias bem como níveis de desenvolvimento dos alunos, formas pedagógicas
para o ensino de determinados movimentos, selecionar melhor os exercícios
utilizados para preparação dos alunos, entre outros pontos. Desta forma o projeto
passou a ser um laboratório onde colocava em prática não só o que havia
aprendido na capoeira, mas também os conhecimentos que obtinha durante minha
graduação.
Refletindo sobre a prática pedagógica e o ensino da capoeira posso dizer
que estas antes eram vistas por mim como fonte de lazer em virtude uma prática
desinteressada ou até de perspectiva artística.
No entanto, a partir do momento que entrei no curso de graduação em
Educação Física (2003) comecei a entender melhor o universo das práticas
profissionais, vendo a capoeira com outros olhos.
Neste contexto percebi que haviam processos de ensino diferenciados, da
mesma forma que a relação mestre-aprendiz ou professor-aluno. Portanto, tendo
como perspectiva esta compreensão desenvolvi o meu pré-projeto de trabalho de
16
conclusão de curso, investigando os aspectos didáticos e metodológicos no
processo de ensino da capoeira, ou seja, a identificação destes processos em
mestres sem formação acadêmica. Conclui que os mestres de capoeira dividem a
aula em blocos ou em partes, separando os praticantes por faixa etária ou em
etapas e com um estilo de ensino que ia do comando ou por tarefa até descoberta
dirigida (MOSSTON, 1992), constatando assim a existência de conceitos didáticopedagógicos e a preocupação com o ensino em suas aulas.
Todavia, na medida em que avancei nos estudos e atuação no ensino da
capoeira compreendi a sua complexidade enquanto conteúdo que traz consigo
uma gama de conhecimentos e formas de transmissão peculiares, bem como um
conjunto de saberes que lhe são próprios. Pude observar que os mestres são
formados no próprio espaço social em que praticam, sendo constituído de um
corpo de conhecimento próprio, advindos de um “saber” e de um “saber-fazer”
configurando uma semelhança com o estudo de Pintassilgo (1999). Estes saberes
na visão de Tardif (2002), são adquiridos através de um processo mental e social,
que consiste em uma inter-relação entre o “eu” levando em consideração suas
emoções, cognição, expectativas, história de vida, entre outras e o “outro”, pois
partilha de um grupo de agentes, repousa sobre um sistema que garante sua
legitimidade e tem em sua essência objetos sociais ou seja agir com outros seres
humanos.
Partindo desta perspectiva, pode-se afirmar a priori que estes espaços
sociais da Capoeira estruturam-se aparentemente de forma autônoma no que diz
respeito ao aprendizado, no sentido de que cada grupo possui sua hierarquização
(mestre, contra-mestre, professor, instrutor ou monitor, estagiário ou treinel e
aluno), regras e nomenclatura, bem como uma prática pedagógica próprias
construídas temporalmente a partir de estruturas sociais e mentais.
Este cenário nos remete a uma possível associação ao conceito de escola
de ofício, em que o mestre artesão era detentor de todos os segredos do ofício,
além de possuir o poder de estabelecer de que maneira tais segredos seriam
transmitidos ou não, bem como o tempo de duração de tal tirocínio (RUGIU,
1998).
17
Assim sendo, estas escolas poderiam ser classificadas em artes mecânicas
(composta por indivíduos considerados trabalhadores manuais) ou artes liberais
(composta por indivíduos considerados intelectuais), sendo que as primeiras
ficaram conhecidas como ofício, e as segundas como profissão (SILVA, 2009). No
caso da capoeira ela se enquadra na perspectiva da escola de ofício dado às
características que assume no decorrer de sua história. Para Sousa Neto (2005, p.
258)...:
[...] o ofício é antes de tudo um dever e exige uma certa disciplina,
uma dose de trabalho, ao ponto de se esperar que o profissional
seja melhor que o amador, porque não faz apenas uma vez ou
outra, quando deseja ou quando lhe convém. Por ofício temos a
obrigação de fazer o melhor que pudermos aquilo que nos
identifica como profissional em uma determinada área (p. 254).
Deste modo o presente estudo irá considerar a Capoeira como um ofício
que possui um perfil profissional formador de uma identidade proveniente do
exercício deste ofício. Sousa Neto (2005) assinala também que o exercício de
qualquer ofício:
[...] pressupõe que o seu realizador domine os processos que lhe
são inerentes e seja capaz de executá-los de maneira a observar
como cada momento, cada detalhe por diminuto que seja, cada
gesto ainda que automático, resulta de uma unidade em que os
fragmentos só justificam sua existência por fazerem parte do todo.
E os ofícios, como decorrentes de um dado ritual, requerem
oficinas, lugares onde se deve encontrar os artefatos para o
trabalho – a matéria-prima que se manipulará, as ferramentas de
que se disporá para a tarefa, os espaços em que o corpo se
flexionará assumindo várias formas para o uso da força e da
delicadeza em diferentes medidas (p.250).
Sobre estes espaços de formação o autor afirma que se constituem na
identidade do mestre, pois é a oficina o templo onde os rituais de um dado ofício
se realizam, ou seja, certos saberes e certos fazeres se conjugam em uma ação
que produz objetos materiais, imateriais e simbólicos, os caracterizando da
seguinte forma:
18
[...] pressupõe-se a perspectiva de um lugar de onde, a partir
desse processo que inclui rituais constitutivos de coisas e idéias,
instituem-se regras, códigos, relações que identificam, naqueles
que fazem a oficina funcionar, os sujeitos que são feitos pelo ofício
que executam.
Em outras palavras, a realização de um ofício no interior de uma
dada oficina cria, dentre outras coisas, uma identidade entre os
indivíduos e os objetos que estes manipulam, as ferramentas que
manuseiam, os processos com os quais interagem. E ainda mais,
cria uma identidade entre os indivíduos que são parceiros de
rituais comuns, realizadores de um dado ofício e situados no
ambiente da mesma oficina (SOUSA NETO, 2005, p. 250).
É no interior desta oficina cultural que a evolução de seus integrantes vem
marcada pela adoção de uma simbologia que pode variar, de acordo com cada
grupo. No que diz respeito à capoeira, esta possui duas vertentes com saberes
diferenciados entre si: a capoeira Angola e a capoeira Regional2. Enquanto a
primeira busca, através dos rituais dos preceitos, o preparo para defender-se com
uma grande dose de malícia baseada na calma e na velocidade (OLIVEIRA, 2001)
a segunda une fragmentos da capoeira Angola com outras lutas como batuque,
jiu-jítsu, judô, savate, entre outras, assumindo assim uma característica voltada
para luta, defesa pessoal e esporte (REIS, 2000).
Porém, cada uma traz subjacente, formas particulares de transmissão e
aquisição de saberes, nos levanto a escolher, nesse momento, a capoeira Angola
em função de ser aquela que busca conservar as raízes de uma tradição, bem
como a sua arte e jogo. Neste contexto, esta pesquisa apresenta como problema
de investigação a seguinte questão:
Os saberes constitutivos da capoeira Angola, o perfil profissional dos
mestres, bem como a caracterização da capoeira, enquanto escola de
ofício, a partir das representações sociais dos mestres, permite identificar
esta segunda pele que se denomina de habitus profissional?
Parte-se do pressuposto (hipótese) de que as representações sociais
permeadas de saberes provenientes de uma escola de vida, e de ofício, formam a
2
Neste estudo utilizaremos o termo Regional para referendar somente a capoeira criada por mestre Bimba em
sua essência e não da forma que nos dias de hoje é utilizado (para diferenciar todas as escolas que não sejam
apenas capoeira Angola).
19
identidade, perfil profissional, assim como o habitus que emerge dessa prática
social traz subjacente a ele uma historicidade travestida de cultura presente no
corpo do mestre. Da compreensão das nuances desse problema e pressuposto
objetiva-se:
•
Investigar, nas representações sociais acerca da capoeira, os
saberes constitutivos da capoeira Angola, bem como o perfil profissional
dos que atuam no ensino desta vertente e;
•
Identificar os elementos ou aspectos que auxiliam na caracterização
da capoeira enquanto escola de ofício, visando apontar a perspectiva de
constituição do habitus profissional do mestre.
A escolha destes objetivos teve como referência o quadro apresentado por
Araujo (2005, p.22) ao ressaltar que os estudos de caráter pedagógico no âmbito
da capoeira são escassos apesar da “existência de novas bibliografias neste
campo de pesquisa, descobrindo o contexto educacional como campo fértil para
experiências desta natureza”.
Para proceder à coleta dos dados, utilizar-se-á, como perspectiva, as
representações sociais. Segundo Dotta (2006), a utilização da teoria das
representações sociais, enquanto fundamentação teórica em estudos tem um grau
de importância relevante no país, sendo utilizada nas áreas da educação, saúde e
meio ambiente. Deste modo os dados coletados são predominantemente
descritivos, sendo submetidos a uma análise de conteúdo.
Neste âmbito, as pesquisas de caráter qualitativo, sugerem que o
pesquisador se aproxime do objeto de estudo em uma fase anterior à estruturação
da pesquisa, o que permitiria a definição de pelo menos algumas questões iniciais
(MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 2002). Assim o processo foi facilitado, pois
enquanto pesquisador, já possuía contato com o objeto de estudo, o que permitiu
uma aproximação rápida em relação a este espaço social.
20
No anseio de que os objetivos propostos fossem alcançados, esta pesquisa
foi estruturada em três momentos. O primeiro, no qual estamos, constituiu-se na
apresentação do problema de estudo, justificativa e objetivos.
O capítulo um, intitulado “Saberes e prática profissional na capoeira
Angola” trata da pesquisa bibliográfica sobre o assunto em três eixos: o primeiro
trata “A capoeira no tempo e no espaço” - abarca as questões históricas
pertinentes a capoeira em dois tópicos: “Escravidão: origem e inserção do negro
na cultura brasileira”, no qual fala sobre como se deu o processo de entrada do
negro no Brasil, a exploração de seu trabalho, seu cotidiano, suas relações e o
seu lugar na sociedade brasileira. O segundo tópico chamado “Capoeira: uma
arte, uma luta, um jogo, uma dança? Trata da sua relação com a escravidão e a
questão da necessidade de seus múltiplos enfoques constituindo assim sua
identidade. O segundo eixo “Os mestres de capoeira e sua formação: os saberes
profissionais” apontam para os processos de formação contidos no universo da
capoeira em dois tópicos: “A capoeira na perspectiva das corporações e escolas
de ofícios” - no qual destacamos os aspectos do ensino da capoeira como um
processo artesanal de formação que apresenta muitas semelhanças com as
corporações e escolas de ofício; enquanto que o segundo “A questão dos saberes
como chave de leitura para a compreensão da produção de conhecimentos na
capoeira” - abarca os saberes presentes na literatura, como componentes para o
entendimento dos conhecimentos produzidos pela capoeira Angola. O terceiro
eixo sob o título “A capoeira Angola como representação social” trata sobre as
representações sociais acerca da capoeira Angola. Este esta dividido em três
tópicos: “Representação social”, “A presença do habitus nas representações
sociais” e “O habitus como elemento fundamental de um espaço social
denominado ‘campo’ que abarca uma illusio” - nos quais discorremos
primeiramente sobre o conceito de representação social, em seguida sobre a
conceito de habitus bem como a sua presença nas representações sociais e
posteriormente tratamos o habitus como elemento constituinte de um campo que
abarca uma illusio.
21
No capítulo dois são apresentados os procedimentos metodológicos
utilizados para o desenvolvimento do estudo; enquanto que no terceiro capítulo
são apresentados os resultados obtidos na investigação, bem como a discussão
dos mesmos em três eixos: “Cultura, história e conhecimento presentes na
trajetória de vida do mestre de capoeira Angola”, “Capoeira Angola como
corporação e escola de ofício um currículo oculto a descobrir” e “O habitus
profissional do mestre de capoeira Angola”.
Finalizando, apresentamos as considerações finais, momento em que
realizo uma interpretação particular a respeito dos resultados obtidos através
deste estudo. Fazem parte do corpo do trabalho as Referências e Anexos.
22
Capítulo 1 - SABERES E PRÁTICA PROFISSIONAL NA CAPOEIRA ANGOLA
Este capítulo foi organizado em três eixos, tendo como temas: “A capoeira
no tempo e no espaço”; “Os mestres de capoeira e sua formação: os saberes
profissionais” e “A capoeira Angola como representação social”.
O primeiro eixo abarca questões históricas pertinentes à capoeira em dois
tópicos: “Escravidão: origem e inserção do negro na cultura brasileira”, momento
em que falo sobre como se deu o processo de entrada do negro no Brasil, a
exploração de seu trabalho, seu cotidiano, suas relações e o seu lugar na
sociedade brasileira; enquanto que o segundo tópico, “Capoeira: uma arte, uma
luta, um jogo, uma dança?” tratou da sua relação com a escravidão, assim como
de seus múltiplos enfoques na constituição de sua identidade.
Ao contrário do primeiro, o segundo eixo buscou apontar para os processos
de formação contidos no universo da capoeira em dois tópicos: “A capoeira na
perspectiva das corporações e escolas de ofícios”, momento em que se destacam
os aspectos do ensino da capoeira como um processo artesanal de formação,
apresentando semelhanças com as corporações e escolas de ofício. Nesta
direção o segundo tópico “A questão dos saberes como chave de leitura para a
compreensão da produção de conhecimentos na capoeira” apontou para os
saberes presentes na literatura em relação à capoeira Angola.
Visando fechar este quadro, o terceiro eixo fala sobre as representações
sociais no âmbito da capoeira Angola em três tópicos: “Representação social”, “A
presença do habitus nas representações sociais” e “O habitus como elemento
fundamental de um espaço social denominado ‘campo’ que abarca uma illusio”.
Neste momento aprofunda-se a mediação com o referencial teórico utilizado no
trabalho que começou com a compreensão dos saberes presentes na capoeira
Angola e se dirige para o conceito de representação social contemplando também
a teoria do habitus.
23
1.1.
A CAPOEIRA NO TEMPO E NO ESPAÇO
A história da capoeira esta intimamente ligada à entrada dos negros no
Brasil (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002), por isso para melhor compreensão
deste processo, se fez necessário recorrer aos anais da história do Brasil
(AREIAS, 1984). Reis (2000) coloca que a ausência de pesquisas neste âmbito
entre os séculos XVI e XVIII, impossibilitou a identificação e a reconstrução do
processo que conduziu a capoeira do berço de sua prática até a cidade e talvez
por essa razão tratar sobre questões relacionadas ao processo histórico da
capoeira muitas vezes torna-se uma difícil tarefa.
Outro dado histórico em que se acredita ter contribuído para a dificuldade
de informações a respeito do negro, foi o fato de Rui Barbosa quando ministro da
fazenda, ter determinado a destruição de documentos referentes à escravidão
(CAMPOS, 2001a; OLIVEIRA, 2001; AREIAS, 1984; FONTOURA; GUIMARÃES,
2002) . Diante desta situação tais autores convergem em afirmar que tal iniciativa
tomada pelo então Ministro da Fazenda contribuiu significativamente para falta de
esclarecimentos acerca da escravidão, aparentemente refletindo nos estudos no
âmbito da capoeira. Rego (1968) em sua obra avaliada como um dos mais
importantes estudos a respeito da capoeira, considera que Rui Barbosa, nos
prestou um mau serviço, quando afirmou que:
Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de
sua evolução histórica eliminou do solo da pátria a escravidão [...]
a Republica está obrigada a destruir esses vestígios por honra da
pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e
solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela
abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira.
Rui Barbosa (REGO, 1968, p. 10).
Dentro desta perspectiva foi elaborada a resolução de 15 de dezembro de
1890, referente à retirada dos documentos existentes no Ministério da Fazenda no
que diz respeito aos registros dos escravos:
24
1º - Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos
os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do
Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula de
escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos
sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta
capital e reunidos em lugar apropriado na recebedoria.
2º - Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp,
presidente da confederação abolicionista, e do administrador da
recebedoria desta capital, dirigirá a arrecadação dos referidos
livros e papéis e procederá a queima e destruição imediata deles,
o que se fará na casa de máquina da alfândega, desta capital, pelo
modo que mais conveniente parecer à comissão.
Capital Federal, 15 de dezembro de 1890 – Rui Barbosa (REGO,
1968, p.10)
Todavia com relação ao arrolado, existem também opiniões divergentes,
como de Francisco de Assis Barbosa, jornalista e historiador que em seu texto de
apresentação ao livro: Rui Barbosa e a queima de arquivos (1988) ressalta: “O
historiador não pode nem deve alhear-se do clima da época, muito menos das
circunstâncias que cercaram o episódio, para que possa avaliar o ato de Rui
Barbosa e seus desdobramentos” (p. 9).
Segundo o autor o ato que levou Rui Barbosa a queimar todos os papéis,
livros de matrícula e documentos relativos a escravos nas repartições do
Ministério da Fazenda teve por finalidade eliminar os comprovantes de natureza
fiscal que pudessem ser utilizados pelos ex-senhores para pleitear a indenização
junto ao governo da República, já que a Lei de 13 de Maio de 1888 havia
declarado extinta a escravidão, sem reconhecer o direito de propriedade servil. O
autor afirma que a incompreensão desse clima e a falta de sensibilidade para
aceitá-lo que certamente escaparam aos que condenaram tão veementemente a
decisão do Ministro da Fazenda de 1890-1891. Torna-se impossível mensuraremse os danos, porém é chamada atenção no que se refere à falta de um estudo
sério e em profundidade mesmo que em termos de dados aproximativos ou para o
levantamento referentes aos danos, destacando:
Graças a Deus, há muita coisa a ser pesquisada nos arquivos e
nos cartórios, em documentos que precisam ser protegidos da
poeira e dos insetos e também postos a salvo do fogo, já que se
encontram instalados em condições precaríssimas: as repartições
25
são inadequadas, mal-arejadas e mal-equipadas, sem que se
observem as normas mais elementares de organização de
trabalho e de segurança ambiental (p. 10).
Apontando outros acontecimentos que também contribuíram para a
dificuldade de obtenção de dados a respeito da escravidão Barbosa (1988),
destaca a mudança de instalação do Ministério da Fazenda da antiga Academia
Imperial de Belas Artes para o luxuoso edifício da Esplanada do Castelo como um
dos maiores desastres da história da conservação de arquivos brasileiros, e
afirma:
Perdeu-se muito mais do que com a incineração das matrículas de
escravos ordenada por Rui Barbosa e Alencar Araripe. Grande
parte de livros alfandegários, importação e exportação de
mercadorias, levou-se de roldão: foi para o lixo nessa mudança
(p.15).
Todos estes dados nos remetem a grande dificuldade de obtenção de
informações sobre esta temática no período entre os séculos XVI e XVIII, bem
como as divergências de opiniões de autores a respeito de um mesmo fato,
porém, o que se constata é que todos nós arcamos com os prejuízos causados
por estes acontecimentos, pois importantes fontes de informação se perderam ou
foram destruídas ao longo de nossa história.
Apontando para outra perspectiva voltada para a capoeira, Sodré (1972,
p.5) apud Capoeira (2002, p. 20) comenta:
[...] a questão do começo é um falso problema, a data histórica não
tem tanto interesse assim, mas sim o princípio, quais são as
condições que a geraram e o que a mantém em expansão. Isto é,
o conjunto de condições e circunstancias históricas e culturais para
que aquele jogo tenha se expandido.
Todavia se existe uma dificuldade de obtenção de dados entre os séculos
XVI e XVIII, no século seguinte esta situação já se altera, pois as primeiras
referências históricas a respeito dos capoeiras urbanos datam a partir do século
XIX (REIS, 2000). Partindo da questão destacada por Sodré (1972) citada
26
anteriormente, discorreremos sobre as condições que contribuíram para sua
criação.
1.1.1. A Escravidão como um artefato histórico na construção da
capoeira
No fosso da escravidão encontramos os primeiros passos da capoeira, vista
como luta/dança, ao longo de um processo histórico, que sobreviveu a inúmeras
perseguições, gerando grandes embates na busca pela libertação de um povo que
muito sofreu com o regime da escravidão (AREIAS, 1984), criando a capoeira para
dar um significado na produção dos sentidos do negro.
Por este motivo apelamos neste momento a falar de um episódio
vergonhoso de nossa história para com isso compreender a capoeira em seu
berço de criação.
Segundo Lovejoy (2002) a escravidão se constitui como um importante
fenômeno da história, estando presente em muitos lugares da antiguidade
clássica, como uma forma de exploração transmitindo a idéia de que os escravos
eram uma propriedade, ou seja, bens móveis que podiam ser comprados e
vendidos, pois:
[...] a escravidão era fundamentalmente um meio de negar aos
estrangeiros os direitos e privilégios de uma determinada
sociedade para que eles pudessem ser explorados com objetivos
econômicos, políticos e/ou sociais (p. 31).
No século XVI o tráfico de escravos gerou um negócio organizado, que
representava enormes riquezas, principalmente depois que os portugueses
criaram uma rota envolvendo os continentes, europeu, africano, americano e
posteriormente asiático, transformando então milhões de negros em lucrativa
moeda de troca e fácil riqueza (CAMPOS, 2001a). Neste sentido Rego (1968)
coloca que o espírito desbravador do português o impulsionou a Navegar para
África em busca de um comércio fácil e rentável, porém humilhante e desumano,
27
onde a escravidão ocorria sempre por intermédio da violência, tirando a liberdade
do ser humano o reduzindo para uma condição de escravo (LOVEJOY, 2002).
Os negros eram retirados de sua terra e tratados de forma brutal, como nos
mostra Campos (2001a):
Esses negros eram transportados nos porões dos chamados
navios negreiros ou tumbeiros, em condições precárias onde
muitos sucumbiam por não agüentar os rigores da longa viagem,
acometidos de doenças em virtude dos maus tratos (p. 21).
Chegando a nova terra, continuavam-se os maus tratos, os negros eram
desembarcados, marcados a ferro em brasa, repartidos e empilhados em
depósitos (AREIAS, 1984). O contexto social no qual suas personalidades faziam
parte já não mais existia, agora divididos em grupos, o que os diferenciavam de
seus companheiros era o sexo, idade, aspecto físico e reações imprevistas
(FERNANDES, 2006). Neste sentido Campos (2001a) afirma que:
[...] os negros escravos eram desembarcados nos portos, pagando
impostos como qualquer outra mercadoria [...] ficavam expostos à
venda nos mercados onde os senhores e senhoras os
examinavam escolhendo de acordo com os ofícios e serviços que
seriam submetidos. Nessa escolha tinha-se preferência por
determinado tipo físico, aspecto de saúde e até região de onde
vinham (p. 23).
Com isso a região de origem do negro também se constituía em um quesito
de grande importância, para que seus compradores os adquirissem, todavia como
vimos anteriormente existe uma dificuldade acerca da precisão de informações no
que concerne à chegada dos negros no Brasil, bem como suas respectivas
regiões de origem, a este respeito Rego (1968) relata:
Outro problema ainda sem solução é a origem do local de onde
vieram realmente os primeiros negros escravos. Os primeiros
documentos são lacônicos, falam somente em gentio da Guiné...
Sabe-se apenas que a uma vasta área de terra da África
chamavam os portugueses de guiné, não se tendo notícia de sua
divisão geográfica e étnica (p. 14).
28
Segundo Pinsky (2006) isso ocorria, pois na época o nome era usado de
uma forma muito genérica, pois incluía toda região que vai da embocadura do rio
Senegal, limite da região desértica entre Senegal e Mauritânia até a do rio Orange
no atual Gabão, por este motivo quase todos os escravos eram considerados da
“Guiné” mesmo sem ser realmente. Todavia o autor chama atenção para o fato de
que o porto no qual o escravo saíra, não possuía necessariamente relação com
sua etnia de origem, pois a captação de escravos ocorria com maior freqüência no
interior e muitas vezes a distâncias significativas dos portos de embarque. Este
fato para Soares (2002) constata que:
[...] as nações do tráfico foram “inventadas” pelo comércio
negreiro, em intercâmbio com seus parceiros africanos do
mercado de almas. Denominações como Benguela, Angola e
Congo não se referiam a grupos étnicos, ou mesmo a federações
de povos, mas tinham significado primordialmente geográfico,
indicando regiões específicas do continente Negro (p. 124).
Ainda sobre o assunto Adorno (1999) assinala que nos séculos XVI e XVII
Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram importantes centros receptores de negros
sudaneses como os iorubás, geges, haussas e minas; de bantus como os angolas
e os cabindas; e de malês, de idioma árabe e islamizados. Todavia um ponto de
vista uniforme entre historiadores, a respeito do local de origem dos primeiros
escravos, seria que Angola era o local de maior safra e o centro mais importante
da época sendo considerada pelos conselheiros da rainha regente viúva de D.
João IV e membros do conselho da fazenda como “o nervo das fábricas do Brasil”
(TAUNAY, 1941 p. 211 apud REGO 1968 p.15)
O autor explica que esta corrida para os portos de Angola ocorria devido à
boa qualidade dos escravos, principalmente no que se refere à submissão, o que
já não ocorria com os nagôs que eram muito arredios. O que nos remete a Pinsky
(2006) que se refere sobre a existência de uma multiplicidade de etnias e clãs,
decorrente principalmente dos interesses dos senhores em possuir escravos de
diferentes origens, pois isso representaria diversificação de hábitos, língua e
religião, dificultando sua integração e o surgimento de qualquer organização por
parte dos cativos. Talvez por esta diversidade, contida no mercado de Angola, que
29
existia uma facilidade, associada à boa qualidade de suas remessas, que se dá
seu pioneirismo no abastecimento de escravos para o Brasil (REGO, 1968).
Fazendo parte de grupos de etnias totalmente distintas, sem conhecerem a
nova terra, separados de suas famílias, impossibilitados de praticar seus hábitos e
costumes, os negros eram uma valiosa mercadoria, pois com o amargor de seu
suor, desempenhavam inúmeras funções que tinham um único objetivo, o de
suprir as necessidades de seus senhores bem como trazer grandes lucros para
eles (AREIAS, 1984). O que caracteriza Lovejoy (2002) como “modo de produção
escravista” que consistia em um sistema integrado de uma determinada
sociedade, no processo de escravização, tráfico de escravos e utilização dos
cativos. No que se refere à utilização dos cativos o autor cita:
[...] os escravos eram utilizados na agricultura e/ou mineração,
mas também podia se referir à sua utilização em transporte como
carregadores, capatazes e remadores de canoas. Os escravos
podiam ainda exercer outras funções, incluindo concubinato,
adoção em grupos familiares, e o sacrifício, mas estas funções
sociais e religiosas tinham de ser secundárias em relação aos
usos produtivos. (p. 40)
Contribuindo também com relato sobre as funções desempenhadas pelos
escravos, Campos (2001a, p. 23) aponta que:
[...] eram usados nos mais diversos tipos de serviços: plantadores,
roceiros, semeadores, moedores de cana, vaqueiros, remeiros,
mineiros,
artífices,
pescadores,
lavradores,
caldeireiros,
marceneiros, pedreiros, oleiros e ferreiros; eram domésticos,
pagens, guarda-costas, capangas, capatazes, feitores e capitãesdo-mato, sendo carrascos de outros negros.
Diante de todas estas condições e situações impostas nas novas terras,
aliada a falta de sua família e de sua terra natal, os negros passam a nutrir um
sentimento de ódio pela situação e passavam a demonstrar de diversas formas
sua rebeldia, tais como: “corpo mole” no trabalho, quebra intencional de
ferramentas, incêndio de plantações, agressão aos seus senhores e até mesmo
suicídio (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002; AREIAS, 1984; MELLO, 2002; REIS e
GOMES, 1996). Destas a mais típica e talvez uma das mais importantes foram as
30
fugas, ocorrendo de forma individual e até grupal. Aqueles que preferiam de forma
isolada misturavam-se a grande massa de negros libertos e escravos que
habitavam as cidades, já as fugas em conjunto resultavam na formação de
determinados grupos denominados Quilombos, como nos mostra Reis e Gomes
(1996, p. 10):
[...] a fuga que levava a formação de grupos de escravos fugidos,
aos quais frequentemente se associavam outros personagens
sociais (...) No Brasil esses eram chamados principalmente de
quilombos e mocambos e seus membros quilombolas,
calhambolas ou mocambeiros.
Tais movimentos organizados manifestaram-se mais visivelmente nas
províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Rio de Janeiro, sendo o Quilombo de
Palmares o mais reconhecido dentre todos (ARAÚJO, 2005). As invasões
holandesas, ocorridas principalmente nos anos de 1624 na (Bahia) e 1630 em
Pernambuco, contribuíram para o fortalecimento e formação dos quilombos uma
vez que senhores e governantes estariam direcionando sua total atenção a este
fato diminuindo assim a rigidez e vigilância exercida sobre o escravo, que vê neste
período a possibilidade de alcançar, sua tão sonhada liberdade, ocorrendo assim
grandes e frequentes fugas por parte dos cativos (AREIAS, 1984; FUNARI e
CARVALHO, 2005). Segundo Reis (2000) a existência da capoeira parece
remontar aos quilombos brasileiros na época colonial, quando os escravos
fugitivos utilizavam o próprio corpo como arma para sua defesa. A este respeito
Mello (2002) e Vieira (1995) também atribuem o período quilombista a gênese da
capoeira.
Uma vez apontados alguns aspectos que contribuíram para o surgimento
de uma manifestação que simbolizasse a luta pela liberdade do negro, se faz
necessário também a abordagem de como se deu sua origem e denominação
capoeira bem como suas configurações ao longo da história.
31
1.1.2. Capoeira: uma arte, uma luta, um jogo, uma dança?
Como vimos no tópico anterior os negros se utilizavam de várias formas
para expressar resistência ao regime escravista. Impulsionados a se autodefender
contra os maus tratos e a resistirem à opressão a eles imposta, os negros
desenvolveram uma técnica de defesa e ataque no qual utilizavam de seu próprio
corpo para enfrentar seus opressores (MELLO, 2002). Todavia não é uma tarefa
fácil falar sobre a origem da capoeira devido a várias concepções e opiniões
divergentes, sobre esta temática (LIMA, 1991). Não com intuito de esgotar o
assunto, procuramos apresentar algumas das opiniões a respeito da origem da
capoeira, o que caracteriza um quadro ainda não plenamente definido a respeito
desta temática.
No livro, “A arte da gramática mais usada na Costa do Brasil” um dos mais
antigos, com edição em 1595, cujo autor é Padre José de Anchieta, apresentado
por Silva (1989), consta uma citação referente aos índios tupi-guaranis que se
divertiam jogando capoeira.
Em uma outra versão apresentada por Câmara Cascudo (1967), apud Lima
(1991), afirma que a capoeira foi trazida pelos negros Bantus, de Angola, que
praticavam danças litúrgicas ao som de instrumentos de percussão, transformados
em lutas aqui no Brasil.
Segundo Rego (1968) levando em consideração fatores colhidos em
documentos escritos, diálogos e convívio com antigos capoeiras, tudo leva a crer
que a capoeira seja uma invenção dos negros africanos no Brasil.
Esta divergência entre opiniões apresentadas por diferentes autores para
Araújo (2005):
[...] diz respeito aos aspectos de natureza histórica da Capoeira,
constato residir neste ponto à existência de um número
significativo de dúvidas que se avolumam com o passar dos anos,
dúvidas estas que têm permitido muitas repetições das ditas
verdades até então difundidas, as quais, no meu ponto de vista,
carecem de um maior aprofundamento a nível histórico,
antropológico, etnográfico e sociológico das sociedades tribais
32
africanas e/ou ameríndias, para então consolidarem-se como
verdades incontestes (p. 28 – 29)
Em seu livro o autor dedica um capítulo onde realiza uma análise
historiográfica da bibliografia básica sobre capoeira, na qual se obteve grandes
contribuições acerca desta temática. Como ponto de partida ele divide a questão
da origem da capoeira em dois focos, sendo eles:
A) Questão espacial macro: referindo-se sobre a região/estado do
presumível aparecimento. Autores que defendem ter esta
atividade surgida na Bahia; autores que omitem seu parecer
sobre esta matéria; autores que se posicionam sobre esta
atividade ter origem no seio da comunidade indígena; autores
que se posicionam ter sido esta atividade trazida pelos
escravos da África para o Brasil com a característica marcial,
(p. 32).
B) Questão espacial micro: referindo-se sobre a estrutura
orgânica que permitiu o aparecimento, ou seja, senzalas ou
quilombos (p. 32). A não apresentação de elementos que
atestem a sua veracidade; a escassez de documentos
específicos sobre esta prática no seio destes espaços
declarados; o não aprofundamento dos pesquisadores
brasileiros ou estrangeiros das bibliografias existentes sobre
estas temáticas buscando detectar a interpretar as possíveis
manifestações sócio-culturais neles presentes (p. 33).
Referente ao quadro apresentado acima, Araújo (2005) acredita que devido
à escassez dos dados referente às atividades sócio-culturais nos quilombos, a
ausência de análises mais consistentes e aprofundadas sobre suas práticas e a
quase inexistência de descrições dos movimentos, danças e festas dos negros
escravos no interior das senzalas, torna-se logicamente impossível afirmar-se,
como verdade única ter como espaço de surgimento da capoeira o ambiente
restrito das fazendas seja nos engenhos ou mesmo em qualquer outro espaço no
Brasil, todavia apresenta-nos um posicionamento referente a esta questão:
Estando esses negros agrupados nos quilombos, e sabendo,
segundo os historiadores existirem manifestações muitas vezes
distintas ou mesmo coincidentes, quer sejam religiosas,
ritualísticas, festivas, lúdicas, guerreiras ou outras, acreditamos
terem sido estes organismos, um campo fértil de expressões de
33
ordem corporal, as quais aliadas às condições adversas a que
estavam submetidos, por certo concorreram para o nascimento da
capoeira, inicialmente como arte marcial, face ao contexto social
do período (p. 74).
Contribuindo também para compreensão sobre o surgimento da capoeira
Areias (1984), coloca que os negros por não possuírem armas suficientes para se
defenderem, quase nem mesmo armas convencionais da época, se fez necessário
adquirir uma forma de enfrentar as armas inimigas desta forma:
[...] utilizando-se das estruturas das manifestações culturais
trazidas da África como brincadeiras, competições etc. que lá
praticavam em momentos cerimoniais e ritualísticos [...] os negros
criam e praticam uma luta de autodefesa para enfrentar o inimigo,
(p. 15 – 16).
Existem muitas divergências acerca da designação do termo “capoeira3”,
dentre elas podemos encontrar as opiniões de Areias (1984) e Oliveira (2001) que
convergem quando destacam que o termo teria sido atribuído em virtude das
tentativas de captura dos negros fugidos por parte dos capitães-do-mato
responsáveis por tal função, que travavam combates mortais com os negros no
interior das matas. Os que conseguiam voltar relatavam a utilização por parte dos
negros de um estranho jogo de corpo, desferindo coices, e marradas como se
fossem animais, vindos de repente do interior das capoeiras.
Diante de tal situação podemos citar Soares (2002, p. 43) que apresenta a
visão de um articulista anônimo que escreveu em uma revista especializada em
assuntos de criminalística chamado Vida Policial no qual consta:
Nasceu, pois a capoeiragem, de uma necessidade imperiosa de
defesa humana contra o ataque desumano. Eram os exercícios de
agilidade que faziam frente aos escravocratas que tentavam reaver
os pobres pretos.
3
Não obstante existem diversas discussões acerca da etimologia do termo capoeira, prosseguindo
por vários anos. Conforme Lima (1990) acredita-se que tal discussão perdure até o presente
momento devido os diversos significados atribuídos ao termo. Rego (1968, p.21) afirma que: “são
quase unânimes os tupinólogos em aceitar o étimo “caa”, para designar mato, floresta virgem,
“puêra”, pretérito nominal que significaria “o que foi”, “o que não existe mais”“. Neste sentido o
autor cita Soares (1880, p.228) que define o termo capoeira como do tupi-guarani que significa
“mato que deixou de existir”.
34
Desde sua criação a capoeira era praticada de maneira “clandestina”,
enquanto arma de luta, era coibida veemente pelos senhores de engenho,
submetendo os infratores, praticantes, a castigos e torturas. Os primeiros
colonizadores perceberam o poder fatal da capoeira, proibindo-a e rotulando-a
como a arte negra (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002).
Segundo Reis (2000, p.14-15) entre as primeiras décadas e a metade do
século XIX a capoeira configura-se como uma atividade eminentemente escrava
que sempre causou incomodo ao poder público que por sua vez destinou punições
através da criação de decretos aos chamados “capoeiras” como nos mostra a
autora:
[...] entre 1821 e 1834 veremos três deles que aludem
explicitamente aos “escravos capoeiras” (6 de outubro de 1822; 13
de setembro de 1824; 9 de outubro de 1824), outros três referemse ao castigo dos açoites, aplicado aos escravos (31 de outubro de
1821; 5 de novembro de 1821; 30 de agosto de 1824); (...) quatro
decretos pedem providencias sobre “negros chamados
capoeiras”(5 de novembro de 1821), “pretos capoeiras” (17 de abril
de 1834), “capoeiras e malfeitores” (27 de julho de 1831; há uma
nota neste decreto esclarecendo que “capoeiras” era dada a
negros que “viviam no mato e assaltavam passageiros”)
Diante de tal situação a repressão policial ganha forças, o que acarretou em
um número maior de prisões de capoeiras, onde através do levantamento das
ocorrências policias é que se torna possível afirmar o panorama relatado (SILVA,
2001). Na segunda metade do século XIX, segundo a autora, a capoeira até
então escrava, espalha-se adquirindo outros adeptos, dentre eles imigrantes,
portugueses, negros forros, brasileiros, entre outros, atingindo basicamente a
camada popular e assim se fortalecendo e configurando-se em:
[...] uma prática predominantemente popular, a capoeira torna-se
uma manifestação aglutinadora e organizadora de grupos que irão
reivindicar, por meio da violência, seu espaço social. Neste
momento histórico temos a capoeira das ruas e dos grupos
denominados pelo aparato policial de maltas (p.134)
35
Segundo Reis (2000) essas maltas possuíam uma rivalidade na disputa
pelo domínio político espacial da cidade, ameaçavam através da força a ordem
social vigente, seus embates se davam principalmente por divergências políticas,
pois algumas destas organizações apoiavam a causa republicana enquanto outras
se posicionavam a favor da monarquia, alguns dos integrantes destas
organizações não compartilhavam dos mesmos ideais, mas se mantinham no
grupo apenas para usufruir de vantagens políticas ou financeiras.
Com isso temos a capoeira como uma prática que ao longo de seu
processo histórico esteve envolvida em conflitos tanto de ordem política quanto
social sendo coibida pela lei de diversas formas, contribuindo assim para que no
ano de 1890 fosse considerada “fora da lei” pelo código penal da República, tendo
como penalidade a prisão para quem ousasse praticá-la, através do Decreto 847,
de 11 de outubro de 1890 que no capítulo XIII, intitulado Dos vadios e capoeiras,
constam os artigos:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e
destreza corporal conhecida pela denominação capoeiragem:
andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de
produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens,
ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum
mal,
Pena – de prisão celular por dois a seis meses
Parágrafo único. É considerada circunstancia agravante pertencer
o capoeira a alguma banda ou malta.
Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro
Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no
graus máximo, a pena do art. 400.
Parágrafo único se for estrangeiro, será deportado depois de
cumprida a pena.
Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar
homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e
particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou cumulativamente
nas penas cominadas para tais crimes, (REGO, 1968, p. 292).
O autor ainda destaca mais duas medidas legislativas com relação aos
capoeiras, quando se idealizaram as colônias correcionais, sendo uma através do
decreto 145 no código publicado em 1893 que resolve:
36
Art. 1.º. O governo fundará uma colônia correcional no próprio
território nacional “Fazenda da Boa Vista”, existente na Paraíba do
Sul, ou onde melhor lhe parecer, devendo aproveitar, além da
fazenda, as colônias militares atuais que a isso se prestarem, para
correção, pelo trabalho, dos vadios, vagabundos e capoeiras que
forem encontrados, e como tais processados na Capital Federal,
(REGO, 1968, p. 292 – 293).
Posteriormente com o Decreto 6.994, de 19 de julho de 1908, “Título II,
Capítulo I – Dos casos de internação. Art. 51. A internação na Colônia é
estabelecida para os vadios, mendigos, capoeiras e desordeiros” (p. 293).
A autora ainda ressalta que com a marginalização da capoeira em 1890,
observa-se a desorganização gradativa das maltas. Os praticantes que provinham
dessas antigas organizações e que conseguiram escapar à perseguição policial
irão praticá-la em locais próprios e refugiados da repressão, porém construindo
lentamente um novo significado para esta manifestação.
Toda essa coerção caracterizava uma representação social sobre os
capoeiras sendo associados a vadios, vagabundos ou gatunos, todavia o registro
de profissões revela que os ramos de atuação dos capoeiras contavam de
artesãos, vendedores, empregados nos transportes e serviços urbanos e muitos
deles trabalhando nas ruas (REIS, 2000).
A partir deste cenário, ao longo de sua história foram feitas adequações,
transformando-a em uma verdadeira luta acrobática, aperfeiçoada e mesclada
com artifícios, buscando evitar estas visões estereotipadas (AREIAS, 1984).
Na capoeira sua constituição, foi caracterizada em duas principais vertentes
que permanecem até os dias atuais: a capoeira Regional e a capoeira Angola. A
primeira foi desenvolvida na década de 1920 por Manoel dos Reis Machado,
conhecido na capoeira como mestre Bimba, sendo esta uma mistura da capoeira
tradicional com outras lutas que visavam caracterizá-la como uma verdadeira luta,
possibilitando a melhora física e mental (CAMPOS, 2001a; SILVA, 2002).
Nesta perspectiva, em entrevista concedida a Waldeloir Rego mestre Bimba
relata sobre os motivos que o levaram a criação desta modalidade e diz:
37
[...] que criou a regional, pois achava a Angola muito fraca como
divertimento, educação física, ataque e defesa pessoal [...] que se
valeu de golpes de batuque, como banda armada, banda fechada,
encruzilhada, rapa, cruze de carreira e baú, assim como detalhes
da coreografia de maculelê, de folguedos outros e muita coisa que
não se lembrava, além dos golpes de luta Greco-romana, jiu-jitsu,
judô e a savate, perfazendo o total de 52 golpes, (REGO, 1968, p.
33).
Silva (2002) destaca que o intuito de mestre Bimba, no momento em que
cria a Luta Regional Baiana, era de elevar o status da Capoeira. Para que isso
ocorresse, ele se apropriou de vários elementos provenientes das instituições
legais vigentes no período, tal como a escola formal e os órgãos ligados ao
esporte e Educação Física, com isso, o aprendizado da capoeira passou a ser
realizado em ambiente fechado, e esta passou a ser vista como modalidade
esportiva na academia, tirando assim a Capoeira da rua, um local que estaria
associado às práticas de contravenção. Com isso em 1937 a secretaria de
Educação, Saúde e Assistência Pública do Estado da Bahia outorga-lhe o
certificado de professor de Educação Física e reconhece oficialmente sua
academia sendo a primeira a obter tal reconhecimento (VIEIRA; ASSUNÇÃO,
1998).
Seu método pedagógico de ensino consta de uma seqüência lógica de
movimentos, sendo estes de ataque, defesa e contra-ataque, podendo ser
ministrada aos iniciantes de forma que os alunos aprendem jogando com uma
forte motivação (CAMPOS, 2001a, REIS, 2000).
No jogo da capoeira Regional, predominam os ataques e esquivas pelo
alto, devido ao aumento do repertório de movimentos e das sequências
pedagógicas, ocorre também um improviso por parte dos jogadores (REIS, 2000).
Neste sentido podemos citar Falcão (2004, p. 37):
Nestes espaços Bimba metodizou um sistema de seqüências de
movimentos de capoeira e criou uma série de procedimentos
didáticos, dentre eles, exame de admissão, curso de
especialização, emboscadas, o “esquenta banho” a “cintura
desprezada”, cerimônias de batismo e graduação, sistema de
hierarquia com graduações, formaturas, que caracterizaram o que
se tornou mundialmente conhecido como Capoeira Regional.
38
No que se refere à relação mestre aprendiz, Campos (2000a, p.38) relata
um momento que classifica como importantíssimo, pois transmite ao aluno
coragem e segurança:
Mestre Bimba convidava o aluno para o centro da sala e frente a
frente, pegava-o pelas mãos e ensinava primeiramente os
movimentos das pernas e a colocação exata dos pés, e em
seguida realizava o movimento completo em coordenação com os
braços.
Na análise crítica do autor, com a criação da capoeira Regional mestre
Bimba apontou para uma nova abordagem pedagógica com a criação de sua
academia, pois estabeleceu uma agenda de trabalho que contemplava aulas,
lições e turmas de alunos com horários preestabelecidos. O método não se
baseava somente na oralidade, mas tinha incorporado a escrita em avisos,
lembretes, códigos, gravuras e auxílios pedagógicos que compunham sua técnica
de ensino.
A segunda vertente, por sua vez, tem como principal referência Vicente
Ferreira Pastinha, conhecido na capoeira como mestre Pastinha, contemporâneo
de mestre Bimba, que funda o Centro Esportivo de Capoeira Angola, alguns anos
depois na década de 1940, com ênfase no estilo tradicional – denominado de
Capoeira Angola (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002). Neste sentido Pastinha,
segundo Reis (2000):
[...] reafirma a raiz africana da luta, que teria sido trazida ao Brasil
pelos escravos provenientes daquela região, sendo que na Bahia
estes teriam-se notabilizado em sua prática. Daí explica o mestre,
a designação capoeira Angola. Entretanto continua Pastinha, em
sua terra nativa a capoeira recebia o nome de “dança da zebra”,
também conhecida como N’Golo (p.112-113)4.
Deste modo, pressupõe-se que da vertente tradicional da capoeira originouse a capoeira Angola, tendo como pressuposto a performance dos escravos de
4
Depoimento de Pastinha à revista Realidade, 1967 e ao jornal Diário de Notícias de 31 de
novembro e 1º de dezembro de 1965 (REIS, 2000, p.113)
39
origem angolana em sua maestria. Em sua configuração esta modalidade
assemelha-se a uma dança com “ginga” maliciosa baseada na calma e na
velocidade de movimentos, trazendo subjacente a ela os elementos de uma luta
violenta. O mestre angoleiro procura passar para seu discípulo todos os rituais,
bem como uma grande dose de malícia, caracterizando-se um tipo de escola.
Neste âmbito, a partir de Reis (2000, p. 192), pode-se caracterizar a
capoeira Angola desta maneira:
O jogo na capoeira Angola chamado de vadiação pelos angoleiros,
predominam os movimentos corporais rasteiros, sendo que os
capoeiristas jogam boa parte do tempo com as mãos e os pés
apoiados no chão. Demonstram possuir um total domínio sobre
seu próprio corpo [...] acabam por reinventá-lo criando posições
novas e surpreendentes. Seus movimentos giratórios consistem
em contorcionismos inusitados [...] parecem desarticular o corpo
[...] são fundamentais o improviso e a inventividade.
Segundo Silva (2002) a capoeira Angola busca uma maior aproximação à
cultura africana, existe uma preocupação por parte dos angoleiros em manter
algumas características encontradas na forma com a qual estavam acostumados a
praticar a Capoeira, mantendo dessa forma sua tradição destacando:
•
•
•
•
•
a musicalidade é mais valorizada, pois adquire a função de
narrar o jogo, sendo executada pela charanga, composta por
três berimbaus (berra-boi, médio e violinha), um atabaque, um
agogô, um reco-reco e um ou dois pandeiros;
uma maior participação de instrumentos ligados à herança
cultural africana (o atabaque, o reco-reco, o agogô);
não adota o ritual de formatura. Sendo assim, o aluno está apto
a exercer a função de mestre através de sua experiência na
Capoeira Angola e seu reconhecimento pela comunidade
capoeirística;
o berimbau é tocado com os toques característicos do jogo de
Angola;
a ginga é designada como ponto principal para o
desenvolvimento da malícia do capoeirista e a teatralização é
um elemento fundamental das jogadas, considerada como a
mandinga do capoeirista, acrescentando a ela uma conotação
por vezes lúdica, identificando-a com o termo vadiagem (p. 123
– 124)
40
No âmbito desse processo, a capoeira e os capoeiristas conseguiram
atravessar esse período e obter maior reconhecimento ganhando maior espaço na
sociedade civil (na década de 1950) durante governo Vargas (1930 – 1945 e 1950
– 1954)5 como um esporte autenticamente brasileiro, favorecendo a prática dessa
modalidade em locais fechados (REIS, 2000; VIEIRA; ASSUNÇÃO, 1998;
CAMPOS, 2001a; SCALDAFERRI, 2009).
Com a divisão da capoeira a partir do surgimento destas duas escolas,
emergem alguns embates entre ambas por parte de seus adeptos, estas disputas
tem origem e contornos de acordo com o contexto em que está inserida cada
escola (REIS, 2000). Talvez pelo fato de a Capoeira Regional ter se expandido
amplamente pelo Brasil, principalmente como uma modalidade de luta, passou-se
a difundir a idéia de que a Angola não dispunha de recursos para o enfrentamento,
afirmando-se ainda que as antigas rodas de capoeira, anteriores a Mestre Bimba,
não apresentavam situações reais de combate. Porém, os velhos mestres fazem
questão de afirmar que estes ocorriam de uma forma diferente da atual, em que os
lutadores se valiam mais da agilidade e da malícia ou da "mandinga6", como se diz
na capoeira do que da força propriamente dita (SILVA, 2002).
Diante das características particulares de cada vertente, Reis (2000)
elabora quadros sintetizando-as nas seguintes categorias:
Referência
Capoeira
Capoeira Angola
Capoeira Regional
5
Movimentos Corporais
Jogo mais pelo chão; ginga baixa; jogo mais na defesa; jogo mais lento;
corpos não se tocam; ginga mais dançada; ênfase no lúdico; maior
teatrabilidade.
Jogo mais pelo alto; ginga alta; jogo mais no ataque; jogo mais rápido;
corpos se tocam; ginga menos dançada; ênfase na competição; menos
teatrabilidade.
Fonte: adaptado de Reis (2000)
Quadro 1. Referente aos movimentos corporais
Diniz (2004).
Para Silva (2002, p.67), quer dizer colocar malícia no que está se fazendo. No jogo da Capoeira,
significa fazer um jogo com malícia, astúcia, ânimo.
6
41
Referência
Características mais relevantes no jogo
Capoeira
Movimentação constante pela ginga baixa;
Os jogadores mantêm-se aparentemente na defesa e atacam quando o
oponente menos espera;
O alvo é o ataque é a cabeça do outro;
Os corpos não se tocam;
Apenas as mão e os pés devem tocar o chão (o bom capoeirista de angola
não suja a roupa);
Capoeira Angola
A intenção deve ser sempre a de desequilibrar o outro, o que é conquistado
menos pela força e mais pela malícia, pela mandinga, no sentido dado ao
termo anteriormente de simulação e dissimulação da intenção do ataque;
Há uma ênfase na dança, como podemos notar na chamada de Angola
exclusiva dessa modalidade, onde os passos de dança são explícitos;
Há uma maior preocupação com o ritual da roda: benzer-se antes de entrar,
dar a mão ao parceiro antes e depois do jogo, aguardar a ordem do
berimbau para entrar na roda, entrar nela pela boca da roda, etc.
Movimentação constante pela ginga alta;
O jogo deve ser centrado no ataque;
Há uma ênfase na luta, pois os movimentos devem ser traumatizantes com
velocidade e exposição;
Capoeira Regional Quando não há espaço suficiente para se movimentar, o capoeirista deve
usar os golpes cinturados ou ligados, tocando o corpo do outro;
O alvo é a cabeça do outro;
A intenção deve ser sempre a de derrubar o outro, em geral com a aplicação
de golpes desequilibrantes (a rasteira e a tesoura são muito utilizadas).
Fonte: adaptado de Reis (2000)
Quadro 2. Referente às características mais relevantes no jogo
Referência
Toques de Berimbau
Capoeira
Angola, São Bento Pequeno, São Bento Grande de Angola,
Santa Maria de Angola.
Capoeira Angola
Capoeira Regional
São Bento Grande Regional; Cavalaria; Banguela (também
chamado Benguela); Santa Maria de Regional; Iúna;
Amazonas; Idalina.
Fonte: adaptado de Reis (2000)
Quadro 3. Referente aos toques de berimbau
Todavia neste último item vale ressaltar a colocação de Rego (1968), que
alerta sobre os toques que podem se chamar de gerais, pois são comuns a todos,
e os que são particulares de determinada academia ou mestre, não sendo raro
também o mesmo toque com denominações diferentes.
42
A formação nestas duas vertentes também ocorre de maneiras diferentes, a
capoeira Angola não possui graduação e também um período estabelecido de
aprendizado como nos mostra Castro Junior (2003, p. 95):
A revelação do segredo é um processo de rigorosidade na
dinâmica cultural entre mestre-aprendiz. O tempo de revelação
não é padronizado para todos os aprendizes; cada um tem o seu
próprio momento. Cabe ao mestre, na sua sutileza, iniciar o
aprendiz nos ensinamentos mais secretos. São formas legítimas
oriundas da tradição africano-brasileira que não obedecem à lógica
formalista da racionalidade do mundo europocêntrico. O segredo
na capoeira aparece enquanto uma essência das formas mais
primitivas. Ele é revelado a partir de um conjunto de elementos
estéticos na corporalidade do capoeirista. Desse modo, o aprendiz
iniciado na capoeira captura e revela um significado de constante
busca dos saberes ancestrais.
Na capoeira regional através da “pedagogia” instituída por mestre Bimba o
curso ainda não possuía um tempo estabelecido, porém existia uma expectativa
sobre a duração do mesmo variando de acordo com o desenvolvimento de cada
discípulo.
A graduação ocorria por intermédio de uma cerimônia chamada de
formatura, um momento especial para os capoeiristas, este momento se
assemelha a uma cerimônia, possuindo paraninfo, orador, e madrinha. Os
formados vestidos de branco, realizavam a demonstração do jogo de esquete,
recebiam o lenço de seda azul que representava o aluno formado, em seguida
eram submetidos a um jogo com outros formados intitulado de “Tira Medalha” cujo
objetivo era retirar a medalha do recém formado com um golpe aplicado com o pé
e caso isso acontecesse o aluno deixaria de se formar. Além da formatura havia
também mais dois cursos de especialização, sendo o primeiro com duração de
sessenta dias e o outro com duração de trinta dias. Nestes cursos eram
ministrados ensinamentos de defesa, contra ataques situações com armas como
faca, canivete, porrete, facão e até armas de fogo, sendo atribuído aos concluintes
o lenço vermelho e para o segundo o lenço amarelo (CAMPOS, 2001a). Neste
sentido podemos citar a contribuição de Silva (2002, p. 115):
43
Vemos, com a inclusão da formatura, a busca de mestre Bimba em
legitimar sua invenção, dando a ela o status de um ensino formal
com os elementos apropriados do modo de vida ocidental. No
entanto, estes entravam em confronto com a forma de
relacionamento entre o professor-aluno, porque o mestre é o
detentor do conhecimento da Capoeira. Poderíamos dizer que a
relação entre quem ensina e quem recebe o ensinamento
aproxima-se muito mais das artes marciais milenares, da cultura
oriental, do que da cultura ocidental. Nas comunidades africanas,
esse tipo de relação também existe e demonstra que o
conhecimento deve ser repassado pela figura ancestral, ou seja, o
mais velho é quem ensina, pois possui mais experiência de vida
[...] Essa atitude encontrada na Capoeira valoriza em demasia o
mestre e a caracteriza de forma marcante. Cabe a ele, entre outras
tarefas, reconhecer o momento certo de amadurecimento de seu
discípulo e preparar seu ritual de passagem, estabelecido na
Capoeira Regional como o batizado. Tal como no candomblé, no
qual existem momentos de passagens de seus adeptos
determinados pela figura do pai ou mãe de santo, a Capoeira
também irá se valer desse mecanismo. (grifo do autor)
Todavia em ambas vertentes o aprendizado ocorre em um processo
interno, ou seja, as próprias escolas são responsáveis pela gênese de seus
procedimentos pedagógicos de ensino, que deriva de uma relação que se
estabelece entre mestre e aprendiz. No próximo tópico discorreremos sobre como
se estabeleceu a origem desta relação onde o ensino acontecia em um processo
de formação artesanal.
1.2.
OS MESTRES DE CAPOEIRA E A SUA FORMAÇÃO: OS SABERES
PROFISSIONAIS
Antigamente, a capoeira se aprendia “de oitiva”, esta constitui-se como um
claro exemplo de como se dá a transmissão do conhecimento através da oralidade
na capoeira, baseada na experiência e na observação. O mestre pegava na mão
do aluno e o conduzia aos seus primeiros passos dentro do universo da capoeira,
esta compreensão apresentada por Abib (2004), nos leva a ver a capoeira dentro
de um processo artesanal de formação, apresentando grandes similaridades em
44
suas formas de produção e de transmissão de saberes com as chamadas
“Escolas de ofício”. A partir deste cenário surge a necessidade de estendermos
nossa compreensão a respeito do funcionamento, organização e importância
destas escolas enquanto espaços de formação como aponta Rugiu (1998):
As histórias da pedagogia ou da educação quase nunca tratam do
artesanato e da sua importância formativa, elas também
submissas ao princípio segundo qual a educação diz respeito
somente a quem se forma através dos livros (p. I).
Nesta fala o autor aponta uma posição tradicionalmente firmada pelas
classes dominantes, que pregam que a verdadeira educação e instrução ocorrem
apenas através do exercício intelectual estudando-se os livros.
Todavia a pedagogia do “aprender-fazendo” é tão antiga quanto os
primeiros artesãos, é quase tão antiga quanto o antigo desprezo que encontrou ao
fazer frente ao saber oficial (falar e raciocinar), que os distinguia do saber fazer,
onde um representava o saber do homem livre (livre da necessidade de trabalhar),
e o outro o saber do trabalhador (RUGIU, 1998)
A palavra ofício é derivada do latim officiu que significa o cumprimento de
uma obrigação a partir de um ritual já determinado (SILVA; SOUZA NETO;
BENITES, 2009, p. 876). Ela é atribuída a um saber-fazer àqueles que partilham
do mesmo conjunto de conhecimentos e habilidades e rituais bem como a
reprodução de certos objetivos (SOUSA NETO, 2005). Neste sentido o termo
corporação nos remete a escola, grupo ou associação de artesãos (RUGIU, 1998).
Temos assim a constituição de “espaços de formação” onde o aprendizado ocorre
de uma forma artesanal de ensino. Silva, Souza Neto e Benites (2009, p. 876)
classificando estes espaços de formação artesanal colocam:
As corporações de ofício podem ser compreendidas como
“locais” que tem a arte como um dever a ser cumprido, e as
escolas de ofício são a maneira pela qual a arte é ensinada
para que venha a se tornar um ofício.
Diante disso constatamos que o surgimento destes espaços de formação
ocorreu de forma conjunta não existindo um sem o outro. Todavia discorreremos
45
sobre ambos de forma separada com intuito de tornar mais didática sua
compreensão, iniciando com as corporações de ofícios e posteriormente com as
escolas de ofícios
Corporações de ofício
O surgimento das corporações de ofícios nos traz a tona similares
instituições da Roma antiga. Segundo Mokyr (2003), apud MARTINS (2008), na lei
romana o termo corpora ou collegia eram associações voluntárias de indivíduos
que compartilhavam da mesma profissão ou função na sociedade e no que se
refere ao processo histórico do surgimento destas corporações:
[...] foram extintas no período das invasões bárbaras e só voltaram
a renascer por volta do século XII, a partir das transformações
ocorridas no sistema feudal, recebendo diferentes designações
nas várias regiões da Europa: mercadantia ou collegia notariorum,
na Itália; confréries, na França; guilds, na Inglaterra, Suécia e
Holanda; Innungen, Gilden ou Zünfle, na Alemanha; grêmios, na
Espanha (p.18)
Antes do século XII na Itália alta tem-se notícia de associações de ofício de
pescadores e açougueiros em Ravena, utilizando o termo scholae para referir-se a
estas associações que indicaria não somente a preocupação com a formação de
seus integrantes, mas também com as formas de transmissão de seus
conhecimentos. As corporações de ofício tiveram um forte desenvolvimento a
partir do século XII e alcançaram seu auge no século XIV, onde a partir daí iniciam
um lento e contínuo enfraquecimento até serem extintas em fins do século XVIII e
início do século XIX (RUGIU, 1998). Segundo Dubar (1997, p. 125) as atividades
das confrarias de ofício demonstram que:
[...] eram “corpos e comunidades” tanto no sentido moral como no
sentido legal do termo e que os seus membros estavam unidos por
laços morais e por um respeito às regulamentações
pormenorizadas dos seus estatutos.
46
Na economia primitiva a unidade econômica básica estava na família, o ser
humano alimentava-se dos produtos que conseguia através da coleta, da caça e
da pesca. Nesta fase eram dependentes do que a natureza lhes oferecia para
viver e aos poucos, aprenderam a cultivar a terra e a produzir o seu sustento,
tornando-se menos dependentes e exercendo domínio sobre as condições
naturais de sobrevivência (CORAZZA; MARTINELLI JÚNIOR, 2002). É neste
“sistema familiar” em que se produziam os instrumentos rudimentares necessários
a subsistência através da agricultura, bem como os ensinamentos transmitidos de
geração para geração através da oralidade, revestidos de simbolismos e
concepções religiosas (RUGIU, 1998).
Com o processo de desenvolvimento urbano as atividades se expandiam e
se consolidavam fazendo com que os indivíduos que exerciam o mesmo ofício
passassem a se organizar juridicamente elaborando estatutos com base nos
antigos costumes (CUNHA, 2000). Desta forma no século XII surge o “sistema de
corporações”, que assegurava ao mestre autonomia no que diz respeito a todo
processo de formação do futuro artesão, bem como de seu produto tornando o
mestre livre para comercializá-lo entre os habitantes locais (RUGIU, 1998).
Devido ao crescimento do mercado local estas associações sentiam uma
crescente consciência de que este mercado local era constituído por um grupo
particular que partilhava de necessidades específicas, onde a partir do
fortalecimento em seu meio, surge um espírito que despertava relações coletivas
(RUGIU, 1998). Reuniam artesãos, que em diversas regiões foram unidos
mediante a interferência de irmandades religiosas, desempenhando assim um
importante papel de auxílio social e econômico. A religiosidade exerceu papel
preponderante na vida das corporações, não apenas em defesa do ofício e seus
membros, mas também no que se refere à moral, aos valores e a ética na
profissão (MARTINS, 2008).
Estas corporações possuíam direitos e deveres particulares e dispunham
de um monopólio para o exercício e ensino da sua atividade em determinado
território, consistindo também na gestão do ensino, qualificação e inserção
profissional dos aprendizes integrantes daquela corporação. A continuidade desta
47
tradição se mantinha graças à pedagogia do “aprender fazendo”, passada de pai
para filho ou do mestre para aprendiz, tornando-se uma técnica de grande
importância para o desenvolvimento histórico da educação, em especial sob esta
forma que permanece viva e difusa na tradição popular e que integra a mesma
essência do fenômeno educativo (RUGIU, 1998). Corroborando com o assunto
Reis (2004) coloca que:
As corporações estabeleciam suas próprias leis profissionais e
recebiam, privilégios concedidos pelos reis, desejosos de
enfraquecer o poderio dos nobres senhores da terra e, também,
pelo serviço que prestavam ao erário, como órgãos de
arrecadação de certos tributos (p. 653)
Com o advento das corporações, surge também a busca pelo monopólio de
gestão e inserção profissional, que desencadeou conflitos de competência entre
diferentes organizações que disputavam entre si o direito de incorporar ofícios
menores incapazes de se organizar autonomamente não importando se de
mesmo ou outro gênero produtivo (RUGIU, 1998). Cada corporação possuía um
determinado número de ofícios nos quais exerciam o domínio estes por sua vez
eram representados na forma de bandeiras (MARTINS, 2008). As corporações
eram responsáveis por programar a aprendizagem sistemática de todos os ofícios
incorporados bem como mecanismos de avaliação, registros de contratos entre
outras questões (CUNHA, 2000).
O trabalho era considerado uma arte e abrangia todos os que integravam
as corporações, as artes eram identificadas em “artes liberais” sendo atividades
ligadas ao intelecto própria de homens livres e as “artes mecânicas” ligadas a
ofícios manuais, com isso artesãos e intelectuais provinham de um mesmo tipo de
organização que assumia a forma de “ofícios juramentados”. Deste modo a
palavra arte foi assumindo um significado ambíguo, onde com a expansão das
universidades se produziu uma classificação dos saberes e intensificando a
valorização de um sobre o outro (ALMEIDA FILHO, 2007; DUBAR, 1997; RUSSI,
2004)
48
Este juramento constava basicamente de 3 compromissos: “observar
regras, guardar segredos e prestar honra e respeito aos jurados, controladores
eleitos e reconhecidos pelo poder real”. Desta forma o ato essencial que
interligava os membros das corporações era o juramento religioso solene, pois o
ofício de um artesão era considerado sua profissão e implicava em um juramento
público e solene. Com isso constatamos que as corporações não se contentavam
em ser uma associação de homens, mas também uma fraternidade espiritual
juramentada (DUBAR 1997).
Todavia seja nas artes liberais ou nas artes mecânicas, suas corporações
caracterizavam uma organização particular que respeitava níveis hierárquicos
como nos mostra Castanho (2005, p. 6 – 7):
As corporações tinham uma hierarquia, que funcionava também
como uma espécie de “currículo” da verdadeira “escola de
artífices” em que se constituía: na base dessa hierarquia estavam
os aprendizes; no topo, os mestres; entre os primeiros, que se
formavam sob a orientação dos últimos, e estes, que detinham os
direitos corporativos plenos, estavam os oficiais, que executavam
a maior parte dos serviços.
Como vimos o mestre esta no topo da hierarquia nas corporações, estes
por sua vez exerciam domínio político nas organizações, pois possuíam ascensão
profissional sobre seus ajudantes, contato com fornecedores e consumidores,
assemelhando-se a uma postura patronal (CALVETE, 2003). Onde no “sistema de
Corporações” eles possuíam domínio de um ofício que só eles sabiam fazer que
lhe pertenciam pois aprenderam seus segredos seus saberes e suas artes
(ARROYO, 2000). Com isso aprendizes e artesãos se mantinham sob o controle
daqueles que possuíam o monopólio do conhecimento, do ensino e da
profissionalização, estabelecendo assim um vínculo relacionado ao bom
desempenho e a transmissão do conhecimento (MARTINS, 2008). Neste sentido
Reis (2004) coloca:
[...] no início das corporações de ofício, só existiam dois graus:
mestres e aprendizes. Os mestres eram os proprietários das
oficinas, que já tinham passado pela prova da obra-mestra. Os
49
companheiros eram trabalhadores que percebiam salários dos
mestres. Os aprendizes eram menores que recebiam dos mestres
o ensino metódico do ofício ou profissão (p. 654).
As corporações desempenhavam um papel fundamental na manutenção
dessa hierarquia, assegurando a autoridade do mestre junto aos demais artesãos,
todavia não fiscalizava o excesso de cobrança dos mestres sobre o trabalho dos
aprendizes e delegavam a ele toda a autoridade necessária ao exercício da
mestrança (MARTINS, 2008).
O “sistema de corporações” prevaleceu até o final da idade média, onde no
século XVI com a ampliação de mercado este regime é substituído pelo chamado
“sistema doméstico”, este não altera as formas de produção, porém os mestres já
não possuem independência, pois passam a depender de um mercador que lhes
fornece a matéria-prima, recrutar aprendizes, revender as mercadorias tornando
assim os mestres em tarefeiros assalariados. Os mercadores como eram
chamados extraiam toda preocupação comercial do artífice fazendo com que este
se concentrasse apenas na produção (RUGIU, 1998)
As práticas que ocorriam no interior das Corporações possuíam um alto
valor educativo, devido à forma como eram trabalhadas, pois não existia modo
comparável a este de ensinar cada uma das habilidades essenciais, onde as
pessoas que se interessavam por esta prática obteriam seu aprendizado de duas
formas: em contato com mestres de grande experiência ou mediante a associação
de arte e prática profissional (RUGIU, 1998)
Sua principal característica cultural e profissional como nos mostra o autor
eram os segredos do ofício que por sua vez nos traz o interesse em saber, como e
quando estes segredos seriam revelados? Em quais doses progressivas, com
quais percepções e com quais técnicas? Todas as formas pedagógico-didáticas
de transmissão de conhecimentos nas corporações permaneceram acerca do
mistério. Neste sentido Martins (2008) relata que o aprendizado cujo principal
objetivo era a transmissão da experiência do artesão-mestre se constituía de uma
maneira universal no interior das corporações. Todavia a ausência de textos e
documentos escritos sobre a atividade interna das corporações dificulta o
50
conhecimento e a precisão nas informações sobre o que ocorria no interior das
Corporações.
A partir do século XVII o “regime doméstico” vai se enfraquecendo e se
desestruturando em função das novas relações entre mercadores e mestres
artesões na produção dos bens, levando as corporações de ofício à quase sua
total extinção com o advento do “sistema terciário”, “sistema fabril”, instaurado no
século XIX, com a revolução industrial (SILVA, 2009).
No Brasil as corporações de ofício fizeram parte principalmente no período
escravista, estas assumiram diversas configurações de acordo com circunstâncias
locais. O seu principal objetivo era o controle do mercado de trabalho dos ofícios,
mediante a certificação daqueles que estavam aptos a exercê-los, além de
dificultar e vetar o exercício dos ofícios por escravos atribuindo estes apenas a
homens livres (CASTANHO, 2005). Todavia desde o período colonial em
decorrência das relações escravistas o artesanato e a manufatura foram afastados
da força de trabalho livre, como nos mostra Cunha (2000, p. 2):
O emprego de escravos como carpinteiros, ferreiros, pedreiros,
tecelões etc. afugentava trabalhadores livres dessas atividades,
empenhados todos em se diferenciar do escravo. Ou seja: homens
livres se afastavam do trabalho manual para não deixar dúvidas
quanto a sua própria condição, esforçando-se para eliminar as
ambigüidades de classificação social.
O autor ressalta que com isso o trabalho manual passava então a ser “coisa
de escravo” ou da “repartição de negros” e por inversão ideológica os ofícios
mecânicos passavam a ser desprezados como se houvesse algo repugnante no
trabalho manual, quando na verdade exposição do escravo é que deveria ser.
Com isso restava aos senhores de escravo:
[...] duas possibilidades: ou faziam com que seus escravos
exercessem ofícios em “tendas” autônomas, gerando renda, ou
alugavam seus escravos para serviços diversos. Neste último
caso, eles eram denominados “moços de ganho” ou “escravos de
ganho” (CASTANHO, 2006, p. 5).
51
Tal situação ocorria, pois havia nas fazendas oficinas para serviços
essenciais, estas oficinas ou tendas, era parte integrante da casa grande onde o
processo de ensino não se diferenciava das corporações, ou seja, os artífices
procuravam transmitir de maneira sistemática aos mais jovens os conhecimentos
e habilidades profissionais (CASTANHO, 2005).
O
autor
ainda acrescenta
que durante este período
colonial, a
aprendizagem de ofícios artesanais e manufatureiros ocorria nas fazendas, nos
engenhos, nos colégios e residências dos jesuítas e outras ordens religiosas, nos
arsenais
em
que
se
produziam
embarcações
chamadas
“ribeiras”,
e
principalmente nas corporações, também ditas “bandeiras”, como a Irmandade de
São José, no Rio de Janeiro, que reunia sob a mesma bandeira os ofícios de
pedreiro e carpinteiro e como anexos os de ladrilheiro, azulejeiro, carpinteiro de
móveis, marceneiro, entalhador, torneiro e violeiro , e ainda nas minas e nos
estabelecimentos anexos como as Casas de Fundição e da Moeda. Porém
existiam ofícios que não convinham à execução por parte dos escravos, as
corporações por sua vez baixavam normas rigorosas impedindo ou coibindo a
atuação
de
escravos
em
determinado
ofícios,
buscando
assim
o
embranquecimento dos mesmos, dificultando o acesso a negros e mulatos
(CUNHA, 2000; CASTANHO, 2005).
A partir da necessidade e importância das práticas de comércio e produção
de gêneros e com o envolvimento do negro neste meio, viriam a se evidenciar
fortemente a criação de organizações de trabalho mantidas e lideradas cativos e
libertos, que desempenhavam funções específicas ao longo de todo perímetro
urbano: as corporações de ofício de pretos como nos mostra Monte (2008, p. 2):
As corporações de ofício eram organizações de trabalho
sustentadas administradas por pretos livres ou cativos, que
desempenhavam funções essenciais dentro dos núcleos urbanos.
Muitos serviços eram requisitados dentro das urbes açucareiras,
serviços de suma importância atrelados ao transporte, comércio e
ao provimento de gêneros do mercado interno: “pescadores,
canoeiros, ganhadores, marcadores de caixas de açúcar,
pombeiras, boceteiras e comerciantes” faziam parte das
corporações.
52
Segundo Cunha (2000) a sistemática de ofícios no Brasil colônia não
adquire a forma escolar, somente a partir da estada da família real que veio a ser
criada a primeira escola para ensino de ofícios manufatureiros:
Ao contrário do que ocorreu nos países europeus, no Brasil as
manufaturas não se originaram do artesanato nem as indústrias
das manufaturas. Com efeito, a produção fabril já se havia
generalizado na Europa, correlativamente a produção
manufatureira dava os primeiros no Brasil. Para isso transferiram
equipamentos, técnicas, matérias-primas e força de trabalho (p.
03).
Todavia isso nos remete a indagação sobre como dava o ensino no interior
das oficinas. Que pedagogia se fazia presente neste aprendizado? Segundo
Castanho (2005) se pensarmos no modelo escolar que se tornou praticamente
universal nos tempos de hoje, com certeza não entenderemos o que ocorria no
ambiente de aprendizagem de ofícios no interior das corporações. A partir deste
cenário é que procuramos estender nossa compreensão acerca do aprendizado
que ocorre na cotidiana relação mestre-aprendiz no interior das escolas de ofício.
Escolas de ofícios
Segundo Rugiu (1998) o desenvolvimento das faculdades intelectuais, nas
escolas de ofício, tinha por premissa que a educação deveria ser adquirida a
partir do crescimento mental-comportamental e das disciplinas específicas que
valorizavam os conteúdos exclusivamente teóricos. Ao contrário disso, o
desenvolvimento das faculdades práticas eram pautadas em atividades que
exigiam mais das habilidades manuais do que mentais.
Todavia Rugiu (1998) nos mostra que existe uma afinidade substancial
entre as Artes liberais, e as Artes mecânicas onde o aprendizado de ambas se
dava principalmente através de uma traditio feita de conhecimentos e habilidades
profissionais específicas e pelas atitudes adequadas a cada personalidade seja
53
ela respectiva a ideologia do artífice ou àquelas respectivas as regras dos
intelectuais, estudantes e professores. As circunstâncias nas quais se trabalhava e
se aprendia favoreciam o segredo, principalmente o prevalecer absoluto da
tradição oral ou intuitivo-gestual (“escute minhas palavras”, nas Artes liberais e
“olhe como eu faço”, nas Artes mecânicas)
Desta forma tanto nas Artes liberais quanto nas Artes mecânicas existia
uma figura comum, responsável pela transmissão do conhecimento, detentor de
um saber, um patriarca na comunidade formativa, os mestres como são
chamados, termo atribuído aos professores de toda ordem e grau e que se origina
a partir das estruturas artesãs, possui conhecimentos e habilidades secretas,
conhecia não apenas os segredos referentes à sua atividade como também o
segredo de como e em que medida transmiti-los aos seus aprendizes e até
mesmo esconde-los caso julgasse necessário (RUGIU, 1998). Possuíam traços
bem definidos, uma identidade respeitada, reconhecida socialmente e carregavam
o orgulho de sua maestria (ARROYO, 2000).
Nestes espaços de formação a figura do mestre representa um patriarca
responsável pela formação do aprendiz, pelo tempo de duração do aprendizado, e
também a maneira que o ofício seria ensinado ao aprendiz, constituindo um
modelo artesanal de educação que para Cunha (2000, p. 2 – 3):
[...] desenvolve-se mediante processos não sistemáticos, a partir
de um trabalho de um jovem aprendiz com um mestre de ofício,
em sua própria oficina, com seus próprios instrumentos e até
mesmo morando em sua casa. Ajudando-o em pequenas tarefas
que lhe são atribuídas de acordo com a lógica da produção, o
aprendiz vai dominando, aos poucos o ofício.
Os aprendizes passavam horas com o mestre e sua família e em alguns
casos se hospedavam à casa dele. O ambiente familiar acabava por se tornar uma
espécie de internato fazendo com que a formação do aprendiz transcendesse as
fronteiras da oficina, mas ocorresse, também, através de experiências no
ambiente da comunidade doméstica na qual era hospedado. Desta forma o âmbito
familiar poderia também oferecer por ocasiões a apropriação de certos mistérios
54
do mestre, talvez melhor que no ambiente da oficina. Todavia um bom mestre de
oficina devia não somente conhecer os segredos do ofício mas também o segredo
de como e em que doses passar aos aprendizes, ou até mesmo como escondêlos em determinados momentos (RUGIU, 1998, p. 33).
Aludia-se a uma atividade que tinha o segredo dos seus
procedimentos e dos seus ritos [...] geridos e guardados pelos
iniciados. Neles estavam os procedimentos didáticos para iniciar
gradualmente os aprendizes-mestres e as vezes, os melhores
ajudantes. Procedimentos tanto mais secretos enquanto unidos ao
cotidiano e ao uso minucioso de determinadas técnicas e também
com a prática de ritualismos propiciatórios e algumas vezes até
comportamento nos limites da magia (RUGIU, 1998, p. 33).
Este segredo tão bem guardado pelos mestres, segundo o autor, não
poderia ser revelado facilmente aos aprendizes e por isso ele era introduzido em
alguns graus dos segredos do ofício sendo colocado em companhia de
trabalhadores experientes e não do mestre em pessoa, para evitar assim que
pudesse lhe extrair algum segredo que deveria permanecer como tal. Neste
sentido Saviani (1994) relata que o aprendiz adquiria o domínio do ofício através
do exercício juntamente dos oficias sob a orientação do mestre.
No interior das oficinas os aprendizes eram jovens trabalhadores,
submetidos à pessoa do mestre, que aprendiam o ofício. Essa aprendizagem era
um sistema duro de trabalho e os mestres sempre impunham aos aprendizes um
regime férreo de disciplina, usando largamente dos poderes que lhes eram
conferidos pelas normas estatutárias da corporação. Neste sentido Reis (2004, p.
654) nos mostra que existiam além dos aspirantes a mestres outro tipo de
aprendiz, caracterizando assim a existência dos níveis hierárquicos no interior das
oficinas:
[...] terminada a aprendizagem, subiam eles à categoria de
companheiros, que eram oficiais formados, mas sem condições de
ascenderem à mestria, pela compressão exercida pelos mestres,
que desejavam, dessa forma, impedir a concorrência, e assegurar
a transmissão dos privilégios das mestrias aos seus filhos ou
sucessores.
Contextualmente,
os
companheiros
eram
trabalhadores qualificados, que dispunham de liberdade pessoal,
55
mas que sabiam lhes seria vedado o acesso à condição de
mestres, por mais técnica que fosse sua formação profissional.
Fato este que provocou a criação de organizações de
companheiros (companhias) e organizações de mestres
(mestrias).
Este contexto fornecia uma grande contribuição para que o aprendizado
ocorresse, sobretudo através da capacidade individual dos aprendizes em
adivinhar, induzir e deduzir por iniciativa própria e por vezes os resultados do
aprendizado superavam os oferecidos pelo ensinamento. O papel do aprendiz era
quase exclusivamente de ouvinte e expectador, a duração de seu curso, os
conteúdos e métodos de ensino e a composição dos grupos de alunos variavam
de situação para situação uma vez que não haviam estabelecidos critérios
pedagógicos universais em exemplo era o fato de ser normal encontrar um aluno
de quinze anos ao lado de um de trinta e cinco (RUGIU, 1998).
Segundo Cunha (2000) no caso da existência de alguma norma reguladora
da aprendizagem artesanal, ela tem a ver com o controle que as corporações de
ofício exercem sobre o mercado de trabalho, desta forma os mestres de ofícios
foram obrigados a obedecer critérios como número máximo de aprendizes, tempo
de aprendizagem e outros. Neste sentido Castanho (2005, p. 7) relata:
Cada mestre tinha sob sua orientação determinado número de
aprendizes, variável conforme as diversas regulamentações, mas
geralmente de dois a quatro. Também a duração do aprendizado
era variável ao cabo de um período de, digamos, quatro anos.
Nesta perspectiva, o ofício de mestre só seria exercido pelos melhores ou
mais afortunados aprendizes, mediante o pagamento prévio de uma taxa, o
cumprimento de deveres estabelecidos pelo mestre (apresentação de uma “obra
de arte” ou uma “obra prima”), bem como a pronuncia do tradicional juramento
(RUGIU, 1998).
De acordo com as compreensões sobre este processo de formação,
veremos de que forma este ocorre no âmbito da capoeira e como se relaciona
com as corporações e escolas de ofícios.
56
1.2.1.
A capoeira Angola na perspectiva das corporações e escolas de
ofício
Para Silva, Souza Neto e Benites (2009) entender a capoeira como escola
de ofício significa buscar no percurso da história brasileira a composição dessa
arte-luta-jogo, isto nos remete a refletir sobre os modelos de aprendizagem, dentro
do universo da capoeira, em que se tem a figura do mestre como o guardião
responsável pela preservação e transmissão destes saberes, como nos mostra
Abib (2006, p. 92):
O mestre é aquele que é reconhecido por sua comunidade, como
o detentor de um saber que encarna as lutas e sofrimentos,
alegrias e celebrações, derrotas e vitórias, orgulho e heroísmo das
gerações passadas, e tem a missão quase religiosa de
disponibilizar esse saber, àqueles que a ele recorrem [...]
corporifica assim, a ancestralidade e a história de seu povo.
Neste sentido, Castro Junior (2003), contribui dizendo que o ser mestre no
âmbito da capoeira é ter o reconhecimento do meio o qual faz parte, constituído
por um conjunto de regras e exigências a serem adquiridas para tal
reconhecimento:
Existe um “consenso” de que, para ser “mestre” de capoeira é
necessário ter experiência nesta arte enquanto jogador de
capoeira, como educador, que vem desenvolvendo algum tipo de
trabalho de ensinamento da capoeira e o "reconhecimento” que se
dá pela sua competência técnica e domínio dos elementos
estéticos da capoeira, ou seja, saber tocar, saber cantar, saber
confeccionar os instrumentos e outras habilidades (p. 55).
São estes conhecimentos, estes saberes adquiridos ao longo de sua
vivência no âmbito da capoeira que tornam o mestre uma figura extremamente
importante para preservação e transmissão dos conhecimentos específicos da
capoeira. Abib (2006, p. 93) afirma: “que o mestre é aquele que permite que os
saberes transmitidos pelos antepassados vivam e sejam dignificados na memória
coletiva”. Para o mestre existe uma atenção extrema na transmissão de seus
57
conhecimentos, estabelecendo uma relação entre a realidade atual e o passado
(CASTRO JUNIOR, 2003).
O aprendizado no âmbito da capoeira ocorre de uma forma particular, que
nos remete a uma forma artesanal de ensino, como nos mostra Sodré (2002, p.
38):
Tradicionalmente o mestre não ensinava o seu discípulo, pelo
menos no sentido que a pedagogia ocidental nos habituou a
entender o verbo ensinar, ou seja, o mestre não verbalizava, nem
conceituava o seu conhecimento para transmiti-lo metodicamente
ao aluno. Ele criava as condições de aprendizagem formando a
roda de capoeira e assistindo a ela. Era um processo sem
qualquer intelectualização [...] em que se buscava um reflexo
corporal, comandado não pelo cérebro, mas por alguma coisa
resultante da sua integração com o corpo.
Neste sentido uma das grandes lições que a capoeira traz em seu
arcabouço
ritualístico
é
a
questão
do
“aprender
fazendo”
atrelado
à
contextualização do conteúdo, ou seja, a não dicotomização da ação prática e do
aprendizado teórico. Desta forma o aprendizado na capoeira acontece por meio da
prática, sendo pontencializado por um ambiente que mescla indivíduos com
diferentes experiências, mediados pela intervenção do mestre para a produção de
um bem comum a todos (SILVA, 2003). Esta situação coincide com algumas
características das escolas de ofícios como: os aprendizes em essência aprendem
fazendo e a valorização da imagem do mestre (RUGIU, 1998)
Este processo de ensinamento na visão de Abreu (1998), apud Castro
Junior (2004, p. 150), corresponde a uma característica da pedagogia africana,
onde os alunos aprendem pela repetição, neste caso:
O mestre não precisa estar dando explicação, o aluno vai
aprendendo à medida do possível, ele vai (re) descobrindo, a partir
do aprendizado integrado, as diversas linguagens estéticas (teatro,
dança, música, arte marcial, o lúdico e a poesia). A relação do
mestre com o aluno na capoeira é uma relação extremamente
importante porque ela é pessoal, e os ensinamentos são
transmitidos como se fosse um segredo, com certo grau de
intimidade. [...] o mestre preocupa-se em estar próximo dos
alunos. Os movimentos são feitos bem de perto, ele ensina
pegando em sua mão, vai “ajeitando” o seu corpo. Todo esse
58
processo é próprio da pedagogia africana; é uma forma rica de
suscetibilidade na passagem dos movimentos, através dos toques.
O fragmento acima nos remete ao modelo utilizado pelas escolas de ofício
no século XIV em que os ensinamentos são transmitidos como se fosse um
segredo pautado em um grau de intimidade entre o mestre e o aprendiz (RUGIU,
1998). Desta forma existe um cuidado por parte dos mestres no que concerne a
transmissão dos conhecimentos, pois, o mestre além de ser o detentor deste
saber ele também é aquele que sabe ocultar determinados conhecimentos de
grande importância para sua tradição, como nos mostra Abib (2006, p. 94):
São saberes ou conhecimentos que não podem ser
disponibilizados a qualquer pessoa ou em qualquer momento, mas
necessitam, para serem transmitidos, de uma certa preparação por
parte da pessoa interessada, que inclui muitas vezes uma
“iniciação” que faz parte da ritualidade característica daquele
grupo. Essas estratégias são importantes no sentido de manter
certa coesão em torno desses saberes e tradições, fundamentais
em relação ao sentimento de pertencimento identitário e de
transmissão da memória coletiva do grupo, que se constitui a partir
dessas práticas.
Neste
sentido
temos
a
consideração
do
corpo
como
fonte
de
conhecimentos múltiplos, no qual gravou muitas experiências e sabe aquilo que o
discurso racional muitas vezes não pode expressar clara e distintamente pela
razão. Porém, isto se faz pela emoção, pelas sensações, pela intuição
(fundamental quando o conhecimento desenvolve-se em registros espirituais), a
gestualidade e o canto, a imaginação e o sonho. (GAUTHIER; CASTRO JUNIOR;
BATISTA, 2004, p.137). Desta forma a pedagogia da capoeira concretiza-se em
inúmeros elementos estéticos, esses processos ocorrem de forma diversificada,
podendo ser através das histórias da capoeira, de estórias da cultura popular ou
até do canto na roda de capoeira (CASTRO JUNIOR, 2003).
A hierarquia na capoeira e a semelhança das escolas de ofício esta
pautada na sabedoria adquirida através dos ensinamentos ancestrais e a
revelação do segredo, é um processo decorrente da dinâmica cultural na relação
59
entre mestre-aprendiz, ou seja, não possui um prazo estabelecido. Conforme
Castro Junior (2004, p. 151):
O tempo de revelação não é padronizado para todos os
aprendizes; cada um tem o seu próprio momento. Cabe ao mestre,
na sua sutileza, iniciar o aprendiz nos ensinamentos mais
secretos. São formas legítimas oriundas da tradição africanobrasileira que não obedecem à lógica formalista da racionalidade
do mundo eurocêntrico.
O aprendiz iniciado na capoeira busca constantemente os saberes
ancestrais, ou seja, procura sempre encontrar as raízes de suas tradições e de
seus ritos, adquirindo através da “oitiva” os conhecimentos necessários para sua
prática (ABIB, 2006; CASTRO JÚNIOR, 2004). Todavia no final do século XIX
surgem outras propostas metodológicas para o ensino da capoeira. Suas formas
pedagógicas
eram
fundadas
em
referências
nacionalistas,
chauvinistas,
higienistas, ufanistas, etnicistas essencialistas e esportivizantes, geralmente
vinculadas a projetos pessoais de alguns expoentes dessa manifestação, sendo
que nos últimos anos surgem novas possibilidades que ampliam o seu espectro de
tratamento pedagógico e visam uma sistematização (FALCÃO, 2004).
Tal sistematização, dentro do contexto das corporações e escolas de ofício
nos leva a pensar no processo de estruturação da capoeira enquanto um ofício o
propriamente dito, pois mesmo apesar das “artes mecânicas” e as “artes liberais”
possuírem a mesma origem a partir do século VIII, com a expansão e
consolidação das universidades, estas “artes” passaram a ter funcionalidades
diferentes entre si e perante a sociedade (DUBAR, 1997). A respeito dessa
questão Silva (2009, p. 34) afirma que:
As artes liberais, que consistiam em ofícios voltados para o uso do
intelecto, derivadas das “sete artes liberais” ensinadas nas
universidades, passaram a ser reconhecidas como profissões, pois
os seus integrantes professavam mediante a um juramento solene
religioso o propósito de cumprirem os compromissos assumidos ao
dar início a este tirocínio.
Por sua vez, as artes mecânicas, conhecidas por ofícios
predominantemente manuais e que, aparentemente, não
necessitavam de um desenvolvimento intelectual exacerbado,
60
ficaram conhecidas como ofícios, apesar de, assim como nas artes
liberais, seus integrantes também professarem um juramento
público solene de cumprirem os compromissos assumidos.
A partir do arrolado, pode-se compreender que o surgimento de tais
nomenclaturas era proveniente de um mesmo arcabouço e que por este motivo se
torna tão difícil diferenciar um termo do outro ao tentar classificar o exercício de
uma determinada atividade. No entanto, com respeito à capoeira pode-se dizer
que esta se aproxima mais das “artes mecânicas” (devido à transmissão de seus
ensinamentos serem pautados na oralidade) do que das “artes liberais” (pautado
mais no ensinamento através da escrita). Nesta perspectiva, se faz necessário
compreender qual o significado atribuído para os termos ofício e profissão
atualmente, com o intuito de se poder estabelecer uma relação mais exata com o
exercício da capoeira.
Tendo como compreensão este breve quadro a respeito da capoeira
enquanto escola de ofício e espaço de formação, buscamos auxílio nos saberes
presentes no âmbito da formação para assim entendermos o processo de
produção e sistematização dos conhecimentos presentes no universo da capoeira
Angola. Utiliza-se o termo saber por entendê-lo como algo não tão sistematizado
da forma como a aparece a expressão conhecimento para as questões
acadêmicas, mas na dimensão daquilo que dá sabor e sentido aos artefatos,
rituais e conteúdos veiculados na roda de capoeira.
1.2.2.
A questão dos saberes como chave de leitura para a
compreensão da produção de conhecimentos na capoeira
A capoeira ao transmitir conhecimentos, desenvolver habilidades, trabalhar
atitudes positivas, valorizar a relação mestre-aprendiz, enfatizar as características
afetivas, técnicas e políticas, constituí elementos não só de grande importância
para a educação, mas também para a construção de uma identidade e um corpo
de saberes, que fazem parte de seu universo cultural.
61
Desta forma, para ampliar o nosso enfoque na busca de respostas que nos
auxiliam a configurar um quadro que tenha como referência os saberes que
emergem da didática, da prática pedagógica, da experiência, entre outros,
buscamos também auxílio no âmbito dos saberes constituintes da formação
profissional, considerando que não se encontrou mais informações sobre esta
temática nas pesquisas relacionadas à capoeira.
Segundo Tardif (2002) os saberes se originam através de construções
sociais e mentais que consistem em elementos que decorrem da experiência de
vida, história profissional etc., estabelecendo uma articulação entre os aspectos
sociais e individuais.
No meio social, o processo de construção da identidade de uma pessoa
caminha entre um resultado estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e
objetivo, biográfico e estrutural de diversos percursos de socialização que
constroem em conjunto e definem as instituições. Neste contexto esta é sempre
construída, num verdadeiro processo de negociação, entre os que a procuram e
os que a oferecem, ou seja, é atribuída pelos agentes e instituições que interagem
diretamente com o sujeito.
Neste construto, a identidade social/profissional nos auxilia a compreender
uma “ocupação”, pois tem como objeto de estudo as origens sociais e as histórias
de vida dos professores, a formação e as instituições de formação, o local de
trabalho e a sua inserção social, o associativismo docente, considerando a sua
articulação entre o biográfico e o relacional.
Entretanto, não se pode desconsiderar que a sua construção não é
transmitida de uma geração a outra, mas é construída por cada geração com base
nas categorias e posições herdadas da geração precedente (o que incluí as
limitações e conquistas).
Portanto, neste inventário, as bases da cultura dos profissionais que
trabalham com a capoeira localiza-se na sua origem social (quem são), na história
da ocupação (trajetória ocupacional), no mercado de trabalho (características ou
qualidades desejadas), enfim, numa construção que se dá no tempo e no espaço.
62
Tendo como perspectiva estes aspectos Tardif (2002) apresentou suas
considerações sobre o assunto na forma de um mapeamento em que faz uma
triangulação com os saberes dos professores, as fontes sociais de aquisição
desses saberes e os modos de integração no trabalho docente.
A seguir, no quadro apresentado, se pode observar que alguns dos
itinerários não seriam estranhos a capoeira, podendo-se constituir também em sua
fonte de informação com o devido cuidado.
SABERES DOS
PROFESSORES
Saberes pessoais dos
professores.
Saberes provenientes da
formação escolar anterior
FONTES SOCIAIS DE
AQUISIÇÃO
A família, o ambiente de vida, a
educação no sentido lato etc.
A escola primária e
secundarista, os estudos póssecundários não especializados
etc.
Saberes provenientes da
Os estabelecimentos de
formação profissional para
formação de professores, os
o magistério.
estágios, os cursos de
reciclagem etc.
Saberes provenientes dos
A utilização das “ferramentas”
programas e livros
dos professores: programas,
didáticos usados no
livros didáticos, cadernos de
trabalho.
exercícios, fichas etc.
Saberes provenientes de
A prática do ofício na escola e
sua própria experiência na
na sala de aula, a experiência
profissão, na sala de aula e
dos pares etc.
na escola
MODOS DE INTEGRAÇÃO NO
TRABALHO DOCENTE
Pela história de vida e pela
socialização primária.
Pela formação e pela socialização
pré-profissionais.
Pela formação e pela socialização
profissional nas instituições de
formação de professores.
Pela utilização das “ferramentas” de
trabalho, sua adaptação às tarefas.
Pela prática do trabalho e pela
socialização profissional.
TARDIF, 2002
Quadro 4. Saberes dos Professores
Na leitura de Tardif (2000, p. 64) “o saber profissional está, de certo modo,
na confluência entre várias fontes de saberes provenientes da história de vida
individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores educativos, dos
lugares de formação, etc.”, configurando-se como um sincretismo (sem uma
unidade teórica) em virtude de que a relação entre os saberes e o trabalho
docente não pode ser pensada, segundo o modelo aplicacionista da racionalidade
técnica, pois nela os saberes antecedem a prática, criando uma espécie de
repertório de conhecimentos prévios.
63
Se os saberes dos professores possuem certa coerência, não se
trata de uma coerência teórica nem conceitual, mas pragmática e
biográfica: assim como as diferentes ferramentas de um artesão,
eles fazem parte da mesma caixa de ferramentas, pois o artesão
que os adotou ou adaptou pode precisar deles em seu trabalho. A
associação existente entre todas as ferramentas e a relação do
artesão com todas as suas ferramentas não é teórica ou
conceitual, mas pragmática: elas estão lá porque podem servir
para alguma coisa ou ser solicitadas no processo de trabalho
(TARDIF, 2002, p. 65).
O agir do professor, assim como do profissional que trabalha com a
capoeira, se baseia em vários tipos de juízos práticos (valores morais, normas
sociais, bem como das tradições escolares, pedagógicas e profissionais) que
servem para orientar e estruturar a sua atividade profissional, tendo como fonte de
orientação a sua “experiência vivida“, constitutivos dos saberes-na-ação. Daí a
importância de estarmos revendo a nossa trajetória escolar e as nossas
experiências
profissionais
no
sentido
de
entendermos
porque
fazemos
determinadas coisas e outras não.
Na trajetória escolar se observa que quando chegamos ao curso de
formação inicial já possuímos determinados saberes sobre o que é ser professor
ou profissional de capoeira, mas vinculados aos saberes de nossa experiência
como alunos de diferentes professores, possibilitando-nos dizer “quais que foram
os bons professores, quais eram bons em conteúdo, mas não em didática, isto é,
não sabiam ensinar. Quais professores foram significativos em suas vidas, isto é,
contribuíram para sua formação humana” (PIMENTA, 1997, p. 7).
Da mesma
forma, em outro nível, os saberes de nossa experiência no cotidiano docente
ganham importância, enquanto processo de reflexão sobre a própria prática,
buscando assim conhecer a complexidade da prática pedagógica e os saberes
pedagógicos
e
epistemológicos
relativos
ao
conteúdo
escolar
a
ser
ensinado/aprendido. (FIORENTINI et al, 2000).
Para Habermas, na leitura de Fiorentini et. al (2000), o saber é o resultado
da atividade humana motivada por necessidades naturais e interesses, nos quais
se constituem em três:
64
•
•
•
o técnico - o interesse técnico-instrumental adotou como forma
as explicações objetivas e causais do modelo da racionalidade
técnica que se filia às ciências empírico-analíticas. Nesta
perspectiva o objetivo é produzir instrumentos racionais de
intervenção no mundo.
o prático - o interesse prático segue os procedimentos
interpretativos do modelo antropológico ou hermenêutico,
buscando identificar/interpretar os significados produzidos
pelos praticantes no mundo-vida com o intuito de informar e
subsidiar o juízo prático e;
o emancipatório. – o interesse emancipador exige que se
ultrapasse quaisquer interpretações estreitas e acríticas para
com os significados subjetivos a fim de alcançar um
conhecimento emancipador que permita avaliar as
condições/determinações sociais, culturais e políticas em que
se produzem a comunicação e a ação social (p. 314 – 315).
Em se tratando da realidade brasileira as pesquisas educacionais que
investigam a prática escolar tendem a priorizar os dois primeiros interesses
(FIORENTINI et al, 2000), configurando o momento atual.
Nos estudos sobre os saberes considerados necessários Gil-Perez (1993) e
Carvalho (1985) relatam que a formação docente deve ser embasada em cinco
eixos: sólida formação teórica, unidade teoria e prática, compromisso social,
trabalho coletivo, e articulação entre a formação inicial e continuada. Além disto
citam que uma sólida formação teórica deve compreender os seguintes saberes:
•
•
saberes conceituais e metodológicos da área a ser
ensinada – os quais devem ir além da simples apropriação dos
conteúdos, e avançar no sentido de “conhecer os problemas
que originaram a construção de tais conhecimentos”. (p. 109),
conhecer os aspectos históricos, metodológicos, filosóficos e
interacionais as ciências, a tecnologia e a sociedade. Além
disto, os autores apontam a necessidade do professor
ultrapassar a concepção de conteúdo como algo restrito à
memorização, alcançando-se o conceito de conteúdo escolar,
que envolve conceitos, atitudes e procedimentos,
saberes integradores - que compreende o ensino dos
conteúdos e são originários das pesquisas das áreas de
conteúdos específicos. Para além da transmissão linear dos
conteúdos, os autores afirmam que o professor deve criar um
ambiente fértil e encorajador no qual os alunos tenham
oportunidade de participar, argumentar e reformular as suas
concepções,
65
•
saberes pedagógicos – provenientes das pesquisas
da Didática Geral e da Psicologia da Aprendizagem, como por
exemplo, “o saber avaliar, o compreender as interações
professor-aluno, o conhecer o caráter social da construção do
conhecimento, etc” (p. 115).
-
Tardif (2002), por sua vez, estruturou a sua investigação em quatro
categorias:
•
•
•
•
os saberes da formação profissional - das ciências da
educação e da ideologia pedagógica;
os saberes das disciplinas - conteúdos das disciplinas
específicas;
os saberes curriculares - objetivos, conteúdos e métodos e;
os saberes experienciais - da prática profissional,
considerando, particularmente, os primeiros cinco anos do
exercício profissional.
Em outro levantamento, Saviani (1996, p.148), fazendo uma leitura dos
trabalhos nessa área, colocou a complexidade do fenômeno educativo e assinalou
que “os saberes neles envolvidos também se revertem da aparência de um caos
irredutível”.
Diante desta característica o autor apontou alguns saberes que
deveriam compor o processo de formação de todos os educadores, como:
•
•
•
•
•
saber atitudinal – compreendendo aspectos como as atitudes,
o comportamento, a disciplina, a pontualidade, a coerência, e o
respeito, que são características pessoais, mas também
podem ser objeto de formação;
saber crítico contextual – constitui-se na compreensão da
sociedade como um todo, as suas condições sócio-históricas;
saberes específicos – correspondem às disciplinas
produzidas pelos homens e que compõem o currículo escolar;
saberes pedagógicos – produzidos pelas ciências da
educação e suas diversas teorias e;
saberes didáticos curriculares – compreendem o saberfazer, no que se refere às relações do professor-aluno e aos
conteúdos de ensino.
Os estudos sobre esta questão receberam ainda outras contribuições como
a de Pimenta (2002, 1997) que elaborou uma organização dos saberes,
considerando três aspectos, julgados, fundamentais:
66
•
•
•
a experiência - conhecimento que o futuro professor já traz
consigo, obtido a partir das experiências como alunos;
o conhecimento - parte específica da formação do professor
e;
os saberes pedagógicos - didática, saber ensinar,
transmissão dos conteúdos específicos.
De uma forma geral, as inferências que se pode fazer desses diferentes
estudos, tomando como referência as categorias de Tardif (2002) é que o saber da
experiência pode compreender um continuum que vai desde o período de
educação básica, tempo passado na escola até o exercício profissional; os
saberes das disciplinas podem ser entendidos como o conteúdo das disciplinas,
conhecimento específico ou saberes integradores; os saberes curriculares podem
englobar objetivos, conteúdos e métodos, a didática e o saber ensinar e/ou
psicologia
da
metodológicos,
aprendizagem (saber
saberes
didáticos
pedagógico),
curriculares;
os
saberes
conceituais
saberes
da
e
formação
profissional podem incluir ou ser concomitante aos saberes provenientes
das
ciências da educação e da ideologia pedagógica, os saberes pedagógicos
(ciências da educação e suas diversas teorias).
Em se tratando da capoeira Angola, faríamos uma transposição
(adequação), considerando as diferentes contribuições, mas principalmente com
base na origem social dos mestres de capoeira Angola, bem como de seus
saberes veiculados no corpo desse texto. Emergindo dessa compreensão um
quadro não fechado sobre estes:
- Saberes Institucionais da Capoeira Angola – que emergem dos
diferentes grupos que formam a instituição capoeira Angola, tendo como
patrimônio da formação desse ofício as tradições (artefatos, rituais, códigos)
e a ideologia no que se refere aos grupos fundados pelos mestres que
cultivam uma identidade comum, na diversidade de suas escolas.
67
- Saberes da Vadiação – que se constitui no saber específico naquilo que
é mais característico no jogo da capoeira Angola, predominando os
movimentos corporais rasteiros, o domínio do próprio corpo, os movimentos
giratórios, o improviso e a inventividade.
- Saberes Instrucionais-Programáticos – que compreendem o saberfazer de forma sistematizada, abarcando tanto a organização dos
conteúdos, objetivos,
a instrução do ensino ou “didática” como os
programas que emergem dessa prática social, podendo se constituir
também num currículo ou itinerário que o aprendiz percorre para atingir
determinado fim.
- Saberes da Experiência – diz respeito à relação mestre-aprendiz e a
relação mestre-discipulo, assim como
as experiências e vivências
decorrentes dessa prática, contato como o meio, re-significação desse
processo, nos mais diferentes estágios de graduação na capoeira.
Portanto, no seu conjunto são plurais, formando as representações sociais que
o mestre de capoeira ou praticante carregam consigo na forma de artefatos,
crenças e rituais.
1.3.
A CAPOEIRA ANGOLA COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Dotada de grande riqueza cultural, a capoeira Angola traz consigo um
universo simbólico repleto de elementos que fornecem referências multiculturais. É
uma célula presente num contexto histórico e social, atuando como meio de
formação de representações simbólicas, valores sociais e uma identidade cultural
para seus atores (CASTRO JÚNIOR, 2004).
Os praticantes desta vertente possuem uma forma de particular de
pensamento no que diz respeito ao que a capoeira Angola significa e ao que ela
68
propicia principalmente do ponto de vista social. Desta forma podemos associar ao
conceito de representação social, pois se trata de um produto dinâmico da
atividade mental que possibilita sinais e significados psicossociais pertinentes ao
cotidiano e a realidade, elaboradas na modalidade de pensamento de cada
indivíduo (MONTEIRO; CABRAL; JODELET, 1999). Observamos também a
presença do habitus referindo-se a prática do sujeito, atuando como uma matriz de
percepção, orientação e apreciação contidas nas ações, um sistema que gera e
que guia as práticas produzindo a interiorização da exterioridade e a
exteriorização da interioridade (PERRENOUD, 1993; ALMEIDA, 2003; SILVA,
2007; NORONHA; ROCHA, 2007).
Isto nos remete a um espaço ou sistema que possui uma estrutura própria e
relativamente autônoma, como uma lógica própria de funcionamento, contendo
princípios que regulam as relações entre os agentes sociais sendo denominado
campo (SILVA, 2007; NORONHA; ROCHA, 2007; LAHIRE, 2002). Estes espaços
abarcam mecanismos internos incapazes de serem percebidos a olho nu, sendo
denominados de illusio, que consiste em uma espécie de relação de
“encantamento” com um jogo6, ou seja, o reconhecimento, a utilidade e a crença
no valor do jogo bem como o interesse que os participantes de um determinado
campo possuem (NORONHA; ROCHA, 2007; AZEVEDO, 2008).
Os conceitos de representação social, habitus, campo e illusio trazem
grandes contribuições para a análise e interpretação dos relatos dos mestres de
capoeira Angola, deste modo se faz necessário estendermos nossa compreensão
acerca destes conceitos, nos quais serão tratados nos tópicos posteriores.
1.3.1. Representação Social
O entendimento sobre as representações sociais nesta pesquisa se faz
pertinente devido à mesma se tratar de um referencial teórico-metodológico que
nos ajuda a produzir e determinar comportamentos, definindo simultaneamente a
6
Por jogo se entende todo tipo de relação social entre os agentes, sejam eles grupos ou estruturas sociais.
69
natureza dos estímulos que cercam e provocam os indivíduos, desta forma
poderemos utilizá-la também enquanto parte integrante dos procedimentos
metodológicos para que possa nos auxiliar a alcançar os objetivos propostos.
Buscou-se um referencial que fosse capaz de auxiliar não apenas nas respostas,
mas também no contexto de um quadro teórico no qual estas eram construídas.
Encontramos amparo em uma teoria, que teve seu início em 1961, na
França, através de um estudo desenvolvido por Sergé Moscovici, causando certa
indagação devido à inovação da proposta, pois transferia a psicanálise enquanto
disciplina científica do domínio de especialistas para o domínio público. Para
Moscovici a psicanálise ocupava uma posição de destaque entre as correntes de
intelectuais da época, esta poderia ser contestada por diversos motivos como seu
valor enquanto terapia, sua interpretação de fenômeno, mas seu impacto não
seria contestado por ninguém (DOTTA, 2006; ARRUDA, 2002).
Palavras como complexo, repressão, infância, e ato falho, conquistaram o
cotidiano das pessoas afetando assim sua maneira de ver, pois estas interpretam
e formulam sua opinião sobre o que lhes acontece bem como seu modo de ser e
agir Moscovici constata que diversas expressões oriundas da psicanálise estão
presentes na linguagem e que todos compreendem tais expressões pois estas são
difundidas através de filmes, histórias, consultórios médicos entre outros. Desta
forma cada um aprende a sua maneira a manusear os conhecimentos científicos,
impregnando-se do conteúdo e do estilo que eles representam, como nos mostra
Dotta (2006):
Não se trata de considerar essas interpretações da ciência como
vulgarização, mas de entender um fato ou uma situação como uma
formação de um outro tipo de conhecimento adaptado a outras
necessidades obedecendo critérios variados em um contexto
social determinado. Não tem a pretensão de reproduzir um saber
armazenado na ciência, mas reelabora segundo sua própria
conveniência, meios e materiais encontrados (p. 16).
Esta análise do processo de disseminação da Psicanálise na sociedade lhe
foi possível por intermédio da Teoria das Representações Sociais. Todavia não
houve grandes desdobramentos, mas sim um breve momento que não causou
70
grandes e visíveis impactos, permanecendo assim a teoria Moscoviciana
encerrada no Laboratório de Psicologia Social da École de Hautes Étudesen
Sciences Sociales, em Paris, onde aparentemente não vinga, todavia esta surge
com grande força na década de 1980 (ARRUDA, 2002). A autora ainda contribui
descrevendo que a pesquisa de Moscovici é:
[...] voltada para fenômenos marcados pelo subjetivo, captados
indiretamente, cujo estudo se baseava em metodologias inabituais
na psicologia da época e dependia da interpretação do
pesquisador, fugia aos cânones da ciência psicológica normal de
então. Seria preciso esperar quase vinte anos para que o degelo
do paradigma permitisse o despontar de possibilidades
divergentes (p.128).
Buscando uma primeira contrapartida conceitual Moscovici encontra no
conceito
de
representações
coletivas
de
Durkheim
o
amparo
para
o
desenvolvimento de sua teoria. Teorias aquelas que afirmavam ser um erro
grotesco a tentativa de explicar psicologicamente os fatos sociais. Para Moscovici
a descoberta de por que uma representação é produzida é mais instrutivo do que
apenas definir o agente que a produz para então qualificá-la de social. Desta
forma, enfatizar a função permite melhor apreensão do qualitativo social uma vez
que a representação contribui para os processos de formação de conduta e de
orientação das comunidades sociais (DOTTA, 2006). Sobre o assunto Franco
(2004, p. 171) afirma que as representações sociais:
[...] são elaborações mentais construídas socialmente, a partir da
dinâmica que se estabelece entre a atividade psíquica do sujeito e
o objeto do conhecimento. Relação que se dá na prática social e
histórica da humanidade e que se generaliza pela linguagem.
Com o tempo a transferência de materiais do senso comum para a ciência
foi sendo invertido, esta por sua vez é responsável por propor e inventar grande
parte dos conceitos que incorporamos para auxiliar em nossas tarefas cotidianas
(econômicas, políticas ou intelectuais). Com isso as concepções que formulamos
são secundárias e reelaboradas das pesquisas (DOTTA, 2006)
71
Com base na sociologia de Durkheim, é na psicologia social que o conceito
de Representação Social de Sérge Moscovici ganha uma teorização que
posteriormente é aprofundada por Denise Jodelet. Desta forma temos a gênese de
um conceito em uma área que ganha uma teoria em outra. Com o advento dessa
teorização, esta passa a servir como ferramenta em outros campos como
educação, saúde, didática, entre outros se tornando escola e apresentando
diversificadas propostas teóricas (ARRUDA, 2002)
Desta forma temos a gênese de uma representação sobre experiências ou
conhecimentos a partir de duas formas:
Primeiro, ligá-los a um sistema de valores, de noções e práticas
que proporcionam aos indivíduos formas de se orientarem no meio
social e material, dominando-o. Em segundo propondo-os aos
membros de uma comunidade como forma de trocas e de código
para denominar e classificar claramente as partes do seu mundo,
história individual ou coletiva (DOTTA, 2006 p.17).
Para a autora o que motivo justifica a construção de uma Representação
Social pelos indivíduos, se encontra em uma necessidade destes estar ao
corrente, não ser ignorante, tão pouco ficar de fora do circuito coletivo. Ela é
empregada uma vez que um conteúdo se insere em nosso campo de atenção
estabelecendo um desequilíbrio, para reduzir este desequilíbrio se faz necessário
que este conteúdo se desloque para o interior de um conteúdo corrente e o que
esta fora de nosso ambiente penetre no seu interior.
A noção de Representação Social fica mais clara quando, a fim de penetrar
no universo de um indivíduo ou grupo, o objeto em questão entra em uma série de
relacionamentos, articulações e movimentações com outros objetos também
presentes neste universo. Deste modo temos dois processos que constituem a
Representação Social, onde no primeiro a integração cognitiva do objeto
representado (idéias, pessoas, relações) a um sistema de pensamento social que
realiza a classificação e denominação, ou seja, o objeto é associado a formas
conhecidas e reconsiderado por meio delas simultaneamente, sendo este
processo é denominado ancoragem, e o segundo que realiza a transformação de
72
um esquema conceitual em real, uma atribuição do material a imagem sendo este
processo chamado de objetivação (DOTTA, 2006).
Nos últimos anos o conceito de representação social tem sido utilizado com
grande freqüência em trabalhos de diversas áreas. (ARRUDA, 2002).
A
valorização do estudo das representações sociais como categoria analítica nas
áreas da educação e da psicologia da educação ocorre, pois esta representa um
avanço, significa efetuar um corte epistemológico que contribui para o
enriquecimento e aprofundamento dos velhos e já desgastados paradigmas das
ciências psicossociais (FRANCO 2004), o autor ainda ressalta:
[...] há que se considerar que as representações sociais (muitas
vezes idealizadas a partir da disseminação de mensagens e de
percepções advindas do “senso comum”) sempre refletem as
condições contextuais dos sujeitos que as elaboram, ou seja, suas
condições socioeconômicas e culturais (p. 170 – 171)
Almeida e Cunha (2003) ainda sobre a importância de se utilizar as
representações sociais como técnica de pesquisa em investigações no campo da
Educação ressaltam:
O estudo das representações sociais dos professores expressa
uma tentativa de compreender a forma pela qual as crenças, os
valores, as teorias, enfim, os pensamentos sociais se integram
com as práticas sociais desses profissionais, e estas com o
processo de desenvolvimento dos seus alunos (p.149).
Dotta (2006) destaca que enquanto sistema de interpretação que conduz as
relações das humanas em diversos contextos e com diversas pessoas as
representações
sociais
tem
participação
em
processos
variados
como
desenvolvimento individual, definição de identidades pessoais e sociais bem como
as transformações sociais e expressão dos grupos.
A partir desta contribuição feita pela autora, no processo de elaboração das
representações sociais nos atentamos para a presença de estruturas imaginárias,
comportamentos, idéias, senso prático entre outros artefatos que caminham em
73
direção a um determinado habitus, sendo este conceito melhor explicitado no
tópico que seguinte.
1.3.2. A presença do habitus nas representações sociais
Para Setton (2002) a palavra habitus possui uma extensa relação com as
ciências humanas, foi utilizada para traduzir a noção grega hexis utilizada por
Aristóteles na qual designa características do corpo e da alma adquiridas em um
processo de aprendizagem. Wacquant (2007) relata que no século XIII o termo
surge a partir de uma tradução do verbo habere, (ter ou possuir) para o latim, feita
por Tomás de Aquino sendo designada como habitus, na qual adquiriu o sentido
de capacidade para crescer através da atividade, um caminho entre potência e
ação propositada.
Para Wacquant (2007) o termo foi utilizado por grandes estudiosos ao longo
da história como Émilie Durkheim, que em seu trabalho o emprega para designar
um estado geral do indivíduo interior e profundo que orienta suas ações, Marcel
Mauss, Max Weber, Thorstein Veblen, Edmund Hursserl, Merleu-Ponty e Norbert
Elias, todavia segundo o autor foi no trabalho de Pierre Bourdieu que encontrou-se
a mais completa renovação sociológica do conceito, no qual disserta sobre o
conceito como:
[...] habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a
dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar
“a interiorização da exterioridade e a exteriorização da
interioridade”, ou seja, o modo como à sociedade se torna
depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis,
capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar,
sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas
respostas criativas aos constrangimentos e solicitações de seu
meio social existente (WACQUANT, 2007, p.8).
Bourdieu retoma a utilização do conceito, sob uma perspectiva original na
qual entende que este surge da necessidade empírica de aprender as relações de
74
afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas condicionantes
sociais (SETTON, 2002). Bourdieu mostrou que a efetivação de práticas exercidas
social e coletivamente, deixam de ser meros saberes práticos e se configuram um
comportamento, no qual denominou habitus (SILVA, 2005). Neste sentido Lahire
(2002, p. ) coloca: “o habitus é essa espécie de senso prático do que se deve
fazer em dada situação; é o “sentido do jogo”. É então arquitetado como um
sistema de esquemas individuais, socialmente constituídos de disposições
estruturadas (social) e estruturantes (nas mentes) adquirindo nas e pelas
experiências
práticas, orientações para funções e ações do agir do cotidiano
(SETTON, 2002).
Desta forma Silva (2005) aponta para a semelhança entre a lógica da noção
de experiência e a noção de habitus que se torna evidente. Na visão da autora,
uma não existe sem a outra, pois o habitus é a substância da experiência, e viceversa e com isso ressalta:
[...] habitus e experiência que mostram a vida prática produzida por
critérios e elementos que fazem parte das ações práticas que se
repetem todos os dias em um determinado fazer e que nelas há
gestos corporais, apreciações estilos que compõem aquela
atividade (SILVA, 2005 p.158).
Todavia segundo Setton (2002), o habitus não pode ser interpretado
apenas como algo sedimentado e imutável, mas também um sistema de
disposições aberto e constantemente sujeito a novas experiências que predispõe
à reflexão e a certa consciência prática. Para a autora este conceito não expressa
uma ordem social funcionando pela lógica pura da reprodução e conservação; ao
contrário, a ordem social constitui-se através de estratégias e de práticas nas
quais e pelas quais os agentes reagem, adaptam-se e contribuem no fazer da
história. Neste sentido Junqueira (2005) contribui ressaltando:
[...] o habitus é produtor de práticas novas: É uma matriz, uma
gramática geradora, espaço a partir do qual torna-se possível uma
exteriorização da interiorização, de modos diferentes ou novos
(p.153).
75
O habitus desperta, nos agentes, a necessidade de respeitar as normas e
valores sociais, possibilitando assim uma convivência adequada às exigências da
sociedade. Estes agentes estão enraizados em um tempo e espaço determinados;
portanto, as forças dinâmicas das representações sociais decorrem desse
enraizamento espaço-temporal dos agentes e de sua inserção em contextos
relacionais (ALBUQUERQUE, 2005). Assim, para a autora, de uma forma similar
ao habitus à teoria das representações sociais são um guia para ação, busca
alcançar certo tipo de produção mental e simbólica que se forma nas relações
sociais e conversas cotidianas. Fazendo uma referência aos dois principais
autores destas teorias Subtil (2005) ressalta:
Se para Moscovici, dentro da perspectiva da psicologia social, as
representações
são
expressão
de
conhecimentos
objetivo/subjetivo sobre o mundo, em Bourdieu, numa dimensão
sociológica, elas são o resultado de um processo mediado pelo
habitus (p.67).
Para Albuquerque (2005) as representações sociais podem ser
consideradas uma via de acesso ao habitus, que as configura e da forma, tais
representações são construídas coletivamente para dar sentido a determinados
objetos do mundo social, portanto, devem ser entendidas como resultante da ação
do indivíduo sobre si mesmo e sobre o mundo exterior. Neste sentido Silva (2005)
ressalta:
Bourdieu formulou a noção de habitus em consonância com sua
idéia de representação e sobre a força da representação na autoorganização objetivo/subjetiva dos agentes no âmbito da ação
prática [...] as representações “representam” a compreensão dos
sujeitos a partir da observação real [...] a construção das
representações é operacionalizada dinamicamente com as
informações cognitivas já estabelecidas (p. 156).
As representações sociais, portanto, na visão de Macedo e Passos (2006)
evidenciam-se por meio de ações, atitudes, raciocínios, conjuntamente dispostos,
têm por base processos mentais e cognitivos, possui exterioridade e interioridade
76
e uma estrutura que produz novas estruturas, o que nos remete a noção de
habitus, desta forma:
Percebe-se que a objetividade de uma representação de um dado
objeto deve ser buscada não apenas nos processos de formação
destas e nos elementos que essas envolvem, mas também nas
condições materiais de vida dos sujeitos que as expressam, posto
que são produtos de um certo habitus e esse, como estrutura que
também é estruturada é produto de um tipo particular de meio (p.7
e 8).
Para Junqueira (2005) o habitus por sua vez é um conceito fundamental
para entender a idéia de representações sociais, pois é o conceito que articula os
dois elementos da oposição, o pensamento filosófico e sociológico: as idéias e as
práticas sociais, dentro da qual a idéia de representações aparecem sendo
possível o confronto entre a regra e o improviso.
Neste sentido Gomes, Skaba e Vieira (2002), entendem as representações
sociais ou habitus como um conceito dinâmico, sintetizador de estruturas
cristalizadas, todavia com possibilidades de reinvenção, que opera na mediação
entre estruturas objetivas e a reconstrução da ordem simbólica, subjetiva. Isso nos
remete a Herzelich (2005) onde observa que:
[...] embora Bourdieu confira um peso maior ao passado, dimensão
pouco explorada pelos estudos das representações sociais, esta
teoria não se afasta totalmente do conceito bourdiano de habitus
(p.63)
Deste modo as representações sociais construídas pelos agentes
permitem-lhes explanar a realidade a partir dos referentes culturais incorporados
ao longo de suas vidas, através do contato com outros campos sociais ou pela
incorporação de outros habitus, sendo a representação social capaz de traduzir
esta síntese (ALBUQUERQUE, 2005).
Todavia Montagner (2006) ressalta que o conceito de habitus apresenta
distinções em relação ao de representações, nas quais apontam para
características que exercem a mesma função sem serem idênticas, destacando
três delas. A primeira refere-se à questão da temporalidade:
77
O habitus é o resultado histórico de uma integração do social, de
uma interiorização realizada em algum ponto da primeira educação
e que correspondia às homologias estruturais entre o espaço
social e o grupo social no qual estava inserido o indivíduo [...]
Dessa maneira, a atuação via habitus ocorre no presente, sob as
luzes de um passado incorporado e que corresponde a um
determinado momento histórico, tanto individual como coletivo
(p.523).
A segunda distinção destacada pelo autor refere-se ao caráter ativo do
habitus ele acaba por ser mais que um repertório coletivo de construções sociais:
[...] ele atua como uma gramática gerativa, criando um repertório
que varia de acordo com os espaços sociais nos quais o indivíduo
está inserido. Em suma, possui um caráter classificatório (p.523).
A terceira distinção apontada como fundamental pelo autor refere-se, ao
caráter prático do habitus ou seja, “o habitus só pode se tornar inteligível através
de suas manifestações ativas, através da aplicação de sua gramática gerativa a
objetos e coisas” (p.523).
Assim percorremos o caminho apontado por Albuquerque (2005), onde
ressalta que a aplicação da Teoria das Representações Sociais articulada ao
estudo do habitus é um caminho teórico-metodológico produtivo, pois estas:
[...] são, assim, manifestações de um habitus e dessa forma
podem ser proficuamente apreendidas e estudadas, sobretudo em
suas características de conceito mediador entre o que pensa o
indivíduo e o papel que ele representa na sociedade
(MONTAGNER, 2006, p. 524).
Para Setton (2002), estes habitus individuais são produtos da socialização,
são constituídos em condições sociais específicas, por diferentes sistemas de
disposições produzidos em trajetórias diferentes, em espaços distintos como,
família, escola, trabalho, grupos de amigos e/ou a outra cultura de massa, estas
instâncias de socialização configuram um campo, híbrido e diversificado de
referências e padrões identitários, caracterizando modelos de referência. Assim a
autora destaca:
78
Pensar a relação entre indivíduo e sociedade com base na
categoria habitus implica afirmar que o individual, pessoal e o
subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente
orquestrados. Dessa forma, deve ser visto como um conjunto de
esquemas de percepção apropriação e ação que é experimentado
e posto em prática, tendo em vista que as conjunturas de um
campo o estimulam (p.63).
Esta relação de interdependência entre o conceito de habitus e campo
implica em um diálogo entre sujeito e sociedade, uma relação de mão dupla entre
o habitus individual e a estrutura de campo socialmente determinado (SETTON,
2002). No tópico seguinte discorreremos sobre como se estabelece esta relação.
1.3.3. O habitus como elemento fundamental de um espaço social
denominado “campo” que abarca uma illusio
Como vimos anteriormente o habitus surge como um instrumento conceitual
que reflete as práticas exercidas social e coletivamente. Todavia segundo
Noronha e Rocha (2007, p.53): “Para se compreender um habitus de um indivíduo,
é preciso analisar sua trajetória individual, ao mesmo tempo em que a história do
ambiente em que vivia”. Assim este conceito propõem identificar a mediação
relacional entre indivíduo e sociedade, ambos em processo de transformação
(SETTON, 2002). Desta forma podemos nos remeter a outro conceito formulado
por Bourdieu, o conceito de campo. Thiry-Cherques (2006) faz uma referência aos
conceitos formulados por Bourdieu e destaca a contribuição destes, classificandoos como um importante referencial:
Os conceitos que utiliza são sistêmicos, pressupõem uma
referência permanente ao sistema completo de suas interrelações, pressupõem uma teoria. [...] Bourdieu elabora conceitos
da tradição filosófica clássica — /habitus/, /hétis/ — e provenientes
de outros segmentos do saber — /capital/, /campo/ [...] Em vez de
tomar conceitos consagrados ou de depurar conceitos de uso
comum, ele forja novos conceitos a partir de termos conhecidos.
Com isto, não só ilumina segmentos obscuros do fenômeno social,
79
como renova conteúdos e traz luz nova ao que se pretendia
conhecido e sabido (p.47).
Azevedo (2008, p.4) ressalta: “Para Bourdieu, há uma cumplicidade
ontológica entre os agentes e o mundo social, ou entre o habitus e o “campo”. Do
ponto de vista lingüístico Montagner (2003) afirma que o termo campo tem origem
no latim campus, no qual se designa planície, terreno plano, campina, terreno para
plantio ou exercícios. Silva (2007), afirma que num primeiro momento o campo
pode ser descrito como um espaço físico, destacando, instituições, agentes,
hierarquias entre instituições e distribuição de poder entre os agentes, no entanto
o campo pode ser o fruto das relações objetivas entre os agentes que nele se
encontram. Neste sentido Setton (2002) ressalta que o campo poderia definir-se
como: [...] um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos
sociais, espaços de disputa e jogo de poder (p.64). Segundo Bourdieu, a
sociedade é composta por vários espaços dotados de relativa autonomia, mas
regidos por regras próprias, onde:
O campo é o universo no qual estão inseridos os agentes e as
instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a
literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os
outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas.
A noção de campo está aí para designar esse espaço
relativamente autônomo, dotado de suas leis próprias
(BOURDIEU, 2003, p.20).
Para o autor os campos não são estruturas fixas, mas sim produtos da
história das suas posições constitutivas e das disposições que elas privilegiam
Bourdieu, (2003), ou seja, o objetivo do campo é compreender a constituição de
um espaço com uma autonomia relativa do resto da sociedade, com uma dialética
particular, mas que se relaciona de uma forma semelhante em relação aos outros
campos. Desta forma, campo pode ser considerado uma ferramenta de pesquisa
capaz de superar os limites entre a análise externa e interna das estruturas que
escapam à ação dos homens (NORONHA; ROCHA, 2007).
80
Para Thiry-Cherques (2006) os campos resultam de processos de
diferenciação social, tanto em sua forma de ser quanto no conhecimento de
mundo, ou seja:
[...] cada campo cria o seu próprio objeto (artístico, educacional,
político etc.) e o seu princípio de compreensão. São “espaços
estruturados de posições” em um determinado momento. Podem
ser analisados independentemente das características dos seus
ocupantes, isto é, como estrutura objetiva (p.36).
Desta forma podemos entender os campos como universos, no sentido em
que comenta o autor, no universo literário, artístico, político, religioso, científico.
São microcosmos autônomos no interior do mundo social (BOURDIEU 1998). O
social por sua vez é constituído por estes campos que possuem relações objetivas
e uma lógica própria e podem assumir a forma:
[...] tanto um “campo de forças”, uma estrutura que constrange os
agentes nele envolvidos, quanto um “campo de lutas”, em que os
agentes atuam conforme suas posições relativas no campo de
forças, conservando ou transformando a sua estrutura
(BOURDIEU, 1996, p.50).
Esta estrutura do campo em um determinado momento representa o
resultado da relação de força entre os agentes, localizados em suas posições
dentro do campo, esta por sua vez resulta da distribuição do capital bem como as
instituições engajadas na luta (MONTAGNER, 2003). Bourdieu (1983) destaca que
cada campo tem um interesse comum a todos os agentes, algo fundamental que
está ligado a própria existência/sobrevivência do campo, recursos úteis na
determinação e na reprodução das posições sociais, ou seja, diversas formas de
capital, sendo este conceito utilizado para designar além do econômico, pois a
admissão no campo demanda a detenção de diferentes tipos de capital, na
quantidade e qualidade que importa para o propósito do jogo. Para ThiryCherques (2006, p.39) Bourdieu considera três tipos de capital:
•
capital cultural: que compreende o conhecimento, as
habilidades, as informações etc., correspondente ao conjunto
de qualificações intelectuais produzidas e transmitidas pela
família, e pelas instituições escolares, sob três formas: o
81
•
•
estado incorporado, como disposição durável do corpo (por
exemplo, a forma de se apresentar em público); o estado
objetivo, como a posse de bens culturais (por exemplo, a posse
de obras de arte); estado institucionalizado, sancionado pelas
instituições, como os títulos acadêmicos;
capital social: correspondente ao conjunto de acessos sociais,
que compreende o relacionamento e a rede de contatos;
capital simbólico: correspondente ao conjunto de rituais de
reconhecimento social, e que compreende o prestígio, a honra
etc. O capital simbólico é uma síntese dos demais, cultural,
econômico e social (o grifo é nosso).
Em todo campo a distribuição de capital é desigual, o que acaba por
resultar em constantes conflitos entre os agentes e grupos dominantes, que
buscam preservar seus privilégios com relação aos demais grupos e indivíduos,
tendo como estratégias mais comuns: a conservação de suas formas de capital; o
investimento visando sua reprodução; a sucessão com vista à manutenção das
heranças e o ingresso nas camadas dominantes; na educação com estes mesmo
propósitos; na acumulação econômica, social, cultural e principalmente a
simbólica (THIRY-CHERQUES, 2006).
Os agentes (indivíduos ou instituições)
caracterizados pelo volume de seu capital determinam a estrutura do campo
(BOURDIEU, 2003), que pode ser dividido em regiões menores, os subcampos
que se comportam da mesma forma que os campos:
A dinâmica dos campos e dos subcampos é dada pela luta das
classes sociais, na tentativa de modificar a sua estrutura, isto é, na
tentativa de alterar o princípio hierárquico (econômico, cultural,
simbólico...) das posições internas ao campo. As classes ou
frações sociais dominantes são aquelas que impõem a sua
espécie de capital como princípio de hierarquização do campo
(THIRY-CHERQUES, 2006, p.40).
Outra grande questão acerca dos campos esta ligada ao grau de autonomia
que cada um possui, Bourdieu (2003) relata que uma das manifestações mais
aparentes da autonomia de um campo refere-se a sua capacidade refratar, ou
seja, retraduzir sob uma perspectiva específica às pressões ou ações externas:
Dizemos que quanto mais autônomo for um campo maior será o
seu poder de refração e mais imposições externas serão
82
transfiguradas, a ponto frequentemente de se tornarem
perfeitamente irreconhecíveis (BOURDIEU, 2003, p.22).
Para Thiry-Cherques (2006) a existência de um campo bem como a
demarcação de seus limites, é determinada pelos interesses específicos, os
investimentos econômicos e psicológicos que ele solicita aos agentes dotados de
um habitus e as instituições nele inseridas, ou seja, “todo campo se caracteriza
por agentes dotados de um mesmo habitus. O campo estrutura o habitus e o
habitus constitui o campo” (BOURDIEU, 1992, p.102). Neste sentido Montagner
(2003) contribui destacando que o habitus é o mediador entre o campo e o
indivíduo, é um princípio que permite uma criatividade estratégica gerando
práticas que podem ser flexíveis e adaptadas ao senso do jogo ou mais
precisamente ao senso prático. Isto nos remete a Lahire (2002) que ressalta:
A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições
incorporadas) próprio do campo (por exemplo o habitus da filologia
ou o habitus do pugilismo). Apenas quem tiver incorporado o
habitus próprio do campo tem condição de jogar o jogo e de
acreditar na importância desse jogo. Cada agente do campo é
caracterizado por sua trajetória social, seu habitus e sua posição
no campo (p.48).
Esta posição no campo é destacada por Thiry-Cherques (2006) como a
face objetiva do campo que se articula com a face subjetiva, a disposição. A
posição é causa e resultado do habitus do campo, ela conforma e indica o habitus
da classe e da subclasse em que se posiciona o agente. De modo que: “em cada
campo o habitus, socialmente constituído por embates entre indivíduos e grupos,
determina as posições e o conjunto de posições determina o habitus” (THIRYCHERQUES, 2006, p.31). O autor ainda destaca, que o habitus se refere a um
campo e se encontra entre o sistema tênue das relações, que moldam as ações e
as instituições, e as ações visíveis desses atores, que estruturam suas relações;
sendo sob a forma de habitus o direito de entrada, aceitação e a incorporação
desse jogo, este estabelece então a relação entre habitus individual e o campo
específico residindo nesta interrelação a característica fundamental que define a
dimensão do habitus (MONTAGNER, 2003).
83
Este habitus que inclina os agentes a adentrarem no jogo de estratégias
proposto por determinado campo assumem e incorporam uma illusio que se faz
presente em um estado incorporado nos indivíduos tanto nas estruturas mentais
quanto nos elementos constituintes do habitus, como saberes, técnicas e
habilidades. Como vimos o conceito de campo pressupõe uma determinada
autonomia que resulta de uma dinâmica específica e interna a cada campo.
Resultante deste processo se funda um conjunto de normas, regras, esquemas de
percepção e classificação particular a esse campo. Este código é chamado por
Bourdieu de illusio (MONTAGNER, 2003).
Para Oliveira (2005) diferentemente dos conceitos de habitus e campo
formulados por Bourdieu o conceito de illusio é pouco divulgado, não sendo
associado rapidamente às obras do sociólogo francês, todavia para o autor, este
tem uma ligação umbilical tanto ao conceito de habitus quanto ao conceito de
campo. Segundo Bourdieu (2008) a origem de illusio vem de ludus (jogo), que
pode significar fazer parte do jogo, estar envolvido, levá-lo a sério:
A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o
jogo vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que
vale a pena jogar [...] é dar importância a um jogo social, perceber
que o que se passa aí é importante para os envolvidos, para os
que estão nele [...] é ‘estar em’, participar, admitir, portanto, que o
jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato
de jogar merecem ser perseguidos; é reconhecer o jogo e
reconhecer os alvos (p.139).
O autor coloca que a illusio é uma relação de encantamento com o jogo
fruto de uma relação de cumplicidade entre as estruturas mentais e estruturas
objetivas do campo, pautando assim as relações contidas neste campo. Setton
(2002) destaca que a illusio pode ser entendida como interesse ou motivação
inerente a todo indivíduo que possui um habitus em determinado campo. Neste
sentido Bourdieu (2008) aponta:
[...] a illusio é estar envolvido, é investir nos alvos que existem em
certo jogo, por efeito da concorrência, e que apenas existem para
as pessoas que presas ao jogo, e tendo as disposições para
84
reconhecer os alvos que aí estão em jogo, estão prontas a morrer
pelos alvos [...] (p.140).
Oliveira (2005) menciona que a existência de alvos, apostas, capitais,
prêmios, orientações e valores que pautam a organização dos microcosmos
sociais que Bourdieu chama de campo, podem constituir o alicerce de uma illusio
coletiva, a composição deste campo poderia ser vista como um lugar simbólico de
sentido estruturante que origina padrões de possibilidade de composição de
illusios subjetivas, estabelecidas pelos agentes:
A illusio subjetiva é aqui uma “formação de compromisso”
socialmente sancionada, em que a busca identitária da fantasia
originária de autocentramento se refaz, intermediada por objetos
culturalmente valorizados (p. 539).
O autor complementa relatando que a illusio é um jogo social levado a
sério, um investimento no espaço de socialização, algo que impulsiona e
metaforiza alvos, que desloca e recria objetos, que estipula metas, que concentra
interesses, enfim, que direciona os esforços explícitos e implícitos de uma cultura
que hierarquiza os seus valores enquanto lugares simbólicos. Um estado de
objetivação do campo em suas estruturas sociais e materiais (MONTAGNER,
2003).
Para Oliveira (2005) a illusio está associada ou incorporada de modo
indispensável à idéia de habitus e campo, o que nos remete a Montagner (2003):
Essa parcela incorporada pode ser entendida como uma parcela
própria do habitus que se refere a um campo específico, ou, em
outros termos, uma especialização do habitus, devida à teoria dos
campos e restrita a cada um deles. Nesse sentido, a illusio pode
ser percebida como o resultado de um processo social específico
(p.100).
Essa especialização destacada pelo autor se torna o resultado da posse de
uma herança cultural reservada a um campo, e significa aceitar e incorporar a
illusio desse campo.
Com isso vimos que é na relação entre o habitus e o campo que se produz
o que é o fundamento de todo e qualquer interesse: a illusio, ou seja, o
85
reconhecimento do jogo e da utilidade do jogo, a crença no valor do jogo e de sua
aposta que fundam todas as atribuições de sentido e de valor particulares
(AZEVEDO, 2008). De modo que cada campo produz sua illusio particular e esta
só é reconhecida por aqueles que possuem o habitus propenso a isso,
constatando assim uma forte cumplicidade entre estes conceitos.
86
Capítulo 2 - PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa de análise qualitativa
O presente estudo caracteriza-se por uma pesquisa de análise qualitativa
do tipo descritiva. Em se tratando de pesquisa de análise qualitativa Rampazzo
(2002) afirma que esta busca uma “compreensão particular” daquilo que estuda,
almejando sempre a compreensão e não a explicação dos fenômenos estudados.
O autor, ainda, coloca que os dados da pesquisa qualitativa não são coisas
isoladas, acontecimentos fixos, captados em um instante de observação. Eles se
dão em um contexto fluente de relações: são “fenômenos” que não se restringem
às percepções sensíveis e aparentes, mas se manifestam em uma complexidade
de oposições, de revelações e de ocultamentos.
A principal característica das pesquisas qualitativas é o fato de que estas
seguem a tradição “compreensiva” ou interpretativa. Isto significa que essas
pesquisas partem do pressuposto de que as pessoas agem em função de suas
crenças, percepções, sentimentos e valores e que seu comportamento tem
sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato,
precisando ser desvelado.
Na pesquisa qualitativa, todos os fenômenos são igualmente importantes e
preciosos, a constância das manifestações e sua ocasionalidade, freqüência e a
interrupção, a fala e o silêncio. Procura-se entender a experiência que todos os
“sujeitos” têm (RAMPAZZO, 2002). O autor afirma que a pesquisa qualitativa é
considerada basicamente descritiva.
O método descritivo
O método descritivo tem como características observar, registrar, analisar,
descrever e correlacionar fatos ou fenômenos sem manipulá-los, procurando
descobrir, com precisão, a freqüência em que um fenômeno ocorre e sua relação
com outros fatores (MATTOS; ROSSETTO JUNIOR; BLECHER, 2004).
87
No âmbito desse processo Marconi e Lakatos (2001) vão entender por
método o conjunto de atividades sistemáticas e racionais que permitem alcançar
um objetivo, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando nas
decisões do pesquisador. Entretanto, Mattos, Rossetto Junior e Blecher (2004),
colocam que, por meio do método, têm–se condições de alcançar objetivos,
conhecer, investigar e demarcar o caminho a ser seguido, detectando erros e
acertos,
auxiliando,
desta
forma, nas
decisões
do
pesquisador,
dando
direcionamento para a execução do estudo.
No presente estudo buscamos um método que fosse capaz de nos fornecer
não apenas simples respostas, mas o contexto em que estas são construídas.
Portanto, adotamos procedimentos metodológicos que nos permitisse investigar,
através de depoimentos, os saberes constitutivos da capoeira Angola, bem como
a caracterização da capoeira Angola enquanto escola de ofício.
Neste universo, a teoria das representações sociais configurou-se como um
referencial teórico-metodológico que nos auxiliou, com a sua dinâmica, identificar
ações, atitudes, conceitos, formas de ser e fazer, apresentando, dessa forma,
possibilidades concretas de alcançar nossos objetivos (MORAIS, 2008, DOTTA,
2006).
As representações sociais possuem por definição “elementos simbólicos
que os homens expressam mediante o uso de palavras e de Gestos” (FRANCO,
2004, p. 170). Por meio das palavras, ou seja, da linguagem oral pode-se captar o
pensamento ou uma situação a partir da percepção de quem as profere. A autora
afirma também que “essas mensagens, mediadas pela linguagem, são
construídas socialmente e estão, necessariamente, ancoradas no âmbito da
situação real e concreta dos indivíduos que as emitem” (p. 170). Deste modo, foi
utilizada a entrevista narrativa como instrumento para coleta de dados com intuito
de apreender esta linguagem oral contida nas representações sociais.
88
As entrevistas
Nesta perspectiva para Marconi e Lakatos (2002) e Rampazzo (2002) a
entrevista é um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha
informações a respeito de determinado assunto, mediante uma conversação de
natureza profissional; um procedimento utilizado na investigação social, para a
coleta de dados ou para ajudar no diagnóstico ou tratamento de um problema
social. Neste sentido Mazzotti e Gewandsznajder (1998) afirmam que, por sua
natureza interativa, a entrevista permite tratar de temas complexos que
dificilmente poderiam ser investigados adequadamente através de questionários,
explorando-os em profundidade, podendo ser a principal técnica de coleta de
dados ou parte integrante de outros métodos como a observação participante.
A narrativa por sua vez surge na vida humana como uma necessidade de
contar, pois “contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana e,
independentemente
do
desempenho
da
linguagem estratificada,
é
uma
capacidade universal”. Deste modo a entrevista narrativa tem por objetivo
estimular o entrevistado a contar a história sobre algum acontecimento importante
de sua vida dentro de um contexto social (BAUER; GASKELL, 2004, p. 91).
Os autores ressaltam ainda que um fator importante no desenvolvimento de
uma pesquisa é decidir a área do tópico e analisar os fatores que podem
influenciar diretamente nos resultados da pesquisa (sexo, idade, religião,
profissão, etc.). Em face desse mapeamento ou itinerário/roteiro convidamos 20
mestres de capoeira7 que se enquadravam no perfil traçado para participar dos
estudos, preliminares, tendo sido selecionados posteriormente, somente 7 mestres
de capoeira da vertente Angola, residentes em Salvador, no estado da Bahia e
que fossem provenientes da “linhagem de ensino” do mestre Pastinha. As
entrevistas realizadas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de
conteúdo.
7
No desenvolvimento do estudo entendemos que 20 mestres de capoeira, sendo 10 da vertente Regional e 10
da vertente Angola era um número muito grande para se aprofundar o trabalho de campo, além de serem
provenientes de diferentes cidades e estados brasileiros.
89
A técnica de análise de conteúdo
A técnica de análise de conteúdo consiste em sistematizar informações
através de uma descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo de uma
comunicação, visando atingir os seguintes objetivos:
a) a ultrapassagem da incerteza, procurando demonstrar se o que o
investigador vê está efetivamente contido na mensagem;
b) ao enriquecimento da leitura, ou seja, visando aumentar a produtividade
e a pertinência da investigação através da descoberta de conteúdos e estruturas
que desvendam mecanismos não compreendidos em uma primeira análise
(BARDIN; BERELSON apud CAMPOS, 2003).
Contribuindo com o entendimento sobre análise de conteúdo Marconi e
Lakatos (2002), ressaltam que esta técnica vem se desenvolvendo nestes últimos
anos com a finalidade de descrever sistematicamente o conteúdo das
comunicações. Por meio das análises realizadas nas entrevistas delineou-se o
capítulo seguinte que se destina a discussão dos resultados obtidos neste estudo.
90
Capítulo 3 - OS SABERES E A PRÁTICA PROFISSIONAL NAS
TRAJETORIAS DE VIDA DOS MESTRES DE CAPOEIRA ANGOLA
Para Castro Júnior (2004) a capoeira se torna uma escola da vida, onde
não se aprende apenas a jogar capoeira, mas também a jogar na roda do mundo,
a tomar posição, analisar circunstâncias de classes sociais com interesses
antagônicos, interferir no sentido de querer transformar a realidade. Neste sentido
a capoeira Angola possui em seu universo elementos e conhecimentos que
caracterizam um processo de educação baseados nos saberes e nas tradições
populares (ABIB, 2002).
De acordo com Silva (2009) os saberes:
[...] são resultados de processos mentais baseados na atividade
cognitiva dos indivíduos, bem como de processos sociais pautados
em convivências nos grupos sociais e nas relações complexas
existente entre indivíduos desses grupos ou entre indivíduos de
diferentes grupos sociais (p.24).
Na capoeira Angola estes saberes são personificados na figura do mestre,
que possui a responsabilidade da preservação e transmissão dos conhecimentos,
tendo o exercício de seu ensino sendo guiado e validado através destes (ABIB,
2006).
Neste sentido Tardif (2002) ressalta que os saberes têm uma ligação
temporal, pois um indivíduo que ensina durante muitos anos, traz consigo uma
identidade que carrega as marcas de sua atividade específica e uma grande parte
de sua existência se caracteriza por sua atuação profissional.
O autor ainda ressalta que estas situações exigem o desenvolvimento
progressivo de saberes oriundos do próprio campo de atuação e nele baseados,
exigindo assim tempo, prática experiência, hábito etc.
Tendo em vista esta perspectiva apresentada por Tardif (2002) e com base
nos dados coletados; este capítulo destina-se ao trato com os depoimentos
obtidos através de nossa pesquisa os quais possibilitaram a organização deste em
três
grandes eixos
sendo o primeiro denominado: “Cultura,
história e
91
conhecimentos presentes na trajetória de vida do mestre de capoeira Angola”,
onde serão abarcados aspectos sobre a constituição dos grupos, bem como
aspectos sobre a biografia dos mestres. O segundo eixo intitulado: “A capoeira
Angola como corporação e escola de ofício: um currículo oculto a descobrir” no
qual trataremos dos artefatos que apontam para caracterização da capoeira
Angola enquanto escola de ofício se constituindo em um campo dotado de
saberes, valores e rituais criados e validados por ela. Por fim no terceiro eixo
denominado: “O habitus profissional do mestre de capoeira Angola” trataremos
sobre aspectos da formação do mestre, como se estabelece a organização e a
prática profissional bem como a constituição de sua identidade.
3.1.
CULTURA,
HISTÓRIA
E
CONHECIMENTO
PRESENTES
NA
TRAJETÓRIA DE VIDA DO MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA
Como mencionado anteriormente neste eixo temático trataremos sobre
aspectos ligados ao histórico, à cultura, bem como os conhecimentos adquiridos
ao longo da vida dos mestres de capoeira Angola. Assim este eixo foi dividido em
dois tópicos intitulados: “Os mestres de capoeira Angola: uma breve biografia” e “A
capoeira Angola como cultura e a cultura da capoeira”. No primeiro momento
traremos de forma resumida sobre a biografia dos mestres entrevistados enquanto
que no segundo momento trataremos dos aspectos da constituição da cultura da
capoeira Angola e o processo de gênese de seus grupos.
3.1.1. Os mestres de capoeira Angola: uma breve biografia
Para Bueno (2002) a biografia, oferece como uma opção e alternativa para
mediar à história individual e a história social, estas informações podem contribuir
também para a composição de um quadro interpretativo no que diz respeito a
estas informações. Neste sentido Alberti (2000) contribui ressaltando a grande
ajuda que uso da biografia traz para estudos, pois:
92
[...] a biografia mostra o que é potencialmente possível em dada
sociedade ou grupo. Acredita-se que as biografias ilustram formas
típicas de comportamento e concentram todas as características
do grupo; mesmo as desviantes mostram o que é estrutural e
estatisticamente próprio ao grupo, elas permitem identificar as
possibilidades latentes da cultura (p.3).
A autora comenta que o relato costuma ser a apresentação de si mesmo,
conforme a situação no qual é mencionado, ou seja, a biografia, a trajetória
individual, não é algo dado, mas sim construído de acordo com a situação, mesmo
no decorrer da entrevista. Se o participante tem o hábito de refletir sobre sua vida,
pode ser que alguns acontecimentos já estejam mais enraizados com relação a
outros e por este motivo preferir relatar estes ao invés de outros.
Por isso notamos a relevância deste relato e neste tópico apresentaremos
uma breve biografia dos mestres participantes do estudo a fim de se conhecer um
pouco mais de cada um, obtendo assim informações sobre como se deu o
primeiro contato, tempo de prática e ensino entre outras informações relevantes
ao estudo. Foram utilizados os depoimentos de 7 mestres de capoeira Angola, da
cidade de Salvador-BA, sendo 6 homens e 1 mulher caracterizados no estudo
pelas letras iniciais de seus nomes.
(a)
Mestre B
Nasceu em 1950, possui o segundo grau completo e chegou a ingressar no
curso de Filosofia de uma universidade pública do estado da Bahia, mas não
concluiu o curso por motivos de trabalho. Iniciou sua prática de capoeira na cidade
de Salvador no ano de 1962 sendo esta praticada na rua. Em 1968 estando em
um bar da cidade, presenciou a cena de uma briga em que um homem derrotou
outros três sem muito esforço. Presenciar tal cena o motivou a procurar
insistentemente por aquele homem que havia vencido a luta para questionar-lhe
onde havia aprendido a lutar daquela maneira. Até que um dia caminhando pela
cidade em companhia de um amigo avistou o sujeito por quem procurava e que
para sua surpresa era conhecido de seu compadre, este lhe informou que aquele
era considerado um dos melhores alunos do lendário mestre Pastinha. Logo o
93
amigo tratou de apresentá-los um ao outro. Ao ser questionado pelo homem se
teria coragem de ser ensinado por ele Mestre B respondeu prontamente que sim.
Deste modo seu treinamento teve início no dia seguinte já com um teste de
paciência onde aguardou o seu “novo professor” por mais três horas no local
combinado. Após um treinamento árduo foi apresentado ao Mestre Pastinha em
1969 onde permaneceu junto por treze anos, mesmo após o fechamento de sua
academia em 1972. Em 1979 a academia de Pastinha é reaberta, porém em um
outro local, e neste mesmo ano Mestre B recebeu seu diploma e abriu sua
primeira academia, apesar de já auxiliar seu primeiro professor no ensino desde
1969, sendo um dos primeiros alunos de Pastinha a possuir uma academia, mas
mesmo assim permaneceu junto ao mestre fazendo parte de sua academia até o
seu falecimento em 1981. Em 1980 funda o Centro de Cultura da Capoeira
Tradicional Baiana trabalho este que perdura até o presente momento no então
Centro de Cultura Popular Forte de Santo Antonio. Preocupado com as questões
culturais e históricas da capoeira Angola lança em 1989 seu primeiro livro
intitulado Capoeira Angola na Bahia. Em 1994 ingressa na Associação Brasileira
de Capoeira Angola (ABCA) fazendo parte do conselho de mestres. Em 1996
lança seu segundo trabalho sob o título Histórias e Estórias da Capoeira contando
experiências vivenciadas ao longo de sua vida na capoeira. No ano de 2000 se
torna presidente do conselho de mestres da ABCA e em 2003 lança seu terceiro
livro intitulado Capoeira Angola: do iniciante ao mestre. Em 2009 deixa o cargo de
presidente do conselho, mas permanece na diretoria do órgão. Atualmente
continua com seu espaço no então Centro de Cultura Popular Forte de Santo
Antonio.
(b)
Mestre C
Nasceu em 1960, graduou-se em Educação Física em uma universidade
particular de Salvador e deu inicio ao curso de Antropologia em uma universidade
nos Estados Unidos o qual não chegou a concluir. Seu contato inicial com a
capoeira ocorreu quando assistiu a apresentação de um grupo de capoeira em
uma festa carnavalesca da cidade. Os movimentos realizados por aquele grupo o
94
encantaram de tal forma que Mestre C e o irmão passaram a tentar reproduzi-los
em casa. No ano de 1973 ingressa na academia de mestre JS na cidade do Rio
de Janeiro, local em que conheceu e se encantou pela capoeira apresentada por
Mestre M, dando início, no ano seguinte, ao tirocínio junto a esse mestre. Em
1975 Mestre C juntamente com Mestre M criam, na mesma cidade, o Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho (GCAP). Em 1980 vai para Belo Horizonte – MG e lá
inicia um trabalho de capoeira em uma escola e em uma universidade pública. Em
1982 regressa a Salvador juntamente com Mestre M auxiliando-o nas aulas. Em
1994, vai para Washington DC nos EUA onde também inicia um trabalho e
posteriormente começa a atuar como professor adjunto em uma universidade da
cidade. Em 1995 cria a Fundação Internacional de Capoeira Angola (FICA), e
juntamente com V e J companheiros de GCAP na qual possui um ótimo trabalho
de divulgação e estudos na capoeira Angola com forte representatividade nos
EUA (Filadélfia, Washington, Chicago, Atlanta, Califórnia e Texas), Dinamarca,
Suécia, Inglaterra, Colômbia, Nicarágua, Peru, Costa Rica e Itália, além dos
grupos no Brasil cuja as principais cidades representantes são Salvador, Rio de
Janeiro e Belo Horizonte. Em 2004 retorna ao Brasil voltando a residir em
Salvador criando o projeto Kilombo Tenondé voltado para disseminação da
agricultura orgânica.
(c)
Mestra J
Nasceu em 1960, é graduada em Educação Física e História em uma
faculdade pública da Bahia, bem como Doutora em Educação por uma
universidade pública de São Paulo na área de concentração Sociologia da
Educação. Seu interesse pela capoeira aconteceu na década de 1980 quando
estava no último ano da graduação em Educação Física, onde uma amiga a
convidou para freqüentarem juntas um grupo de capoeira. Como a disciplina
capoeira passou a fazer parte do currículo de sua graduação, ela já obtinha
informações da capoeira Angola, porém como algo que havia se esquecido no
passado e por isso teve interesse em aceitar o convite da amiga. Chegando ao
Parque Santo Antonio, situado na cidade de Salvador, presenciou Mestre M e
95
Mestre C jogando e interessada perguntou se qualquer pessoa poderia entrar, ao
receber uma resposta afirmativa Mestra J iniciou seu treinamento no início de
1982 no GCAP, onde permaneceu por dezesseis anos. Lá teve oportunidade de
conviver com grandes mestres como João Grande, João Pequeno entre outros.
Sua atuação no ensino da capoeira inicia desde o GCAP auxiliando nas aulas. Em
São Paulo quando iniciou seu trabalho estava sob orientação de Mestre M e seu
grupo era apenas conhecido como grupo da J. Sempre preocupada com as
questões culturais e com a importância e presença da mulher na sociedade e no
universo da capoeira sente necessidade de criar sua própria identidade e em 1995
juntamente com seus companheiros de GCAP funda o Grupo Nzinga de capoeira
Angola buscando justamente chamar atenção para a presença da mulher na
capoeira. Desde sua criação o grupo desenvolve inúmeros projetos e parcerias
sociais divulgando as bases educativas da capoeira Angola e a inclusão da
capoeira para todo tipo de público que venha a se interessar pela prática. Em
2003 transforma em Instituto Nzinga de Capoeira Angola (INCAB), se dedicando
aos estudos não só de Capoeira Angola, mas de educação anti-racista e tradições
educativas Bantu no Brasil, possuindo núcleos em Salvador, São Paulo e no
exterior.
(d)
Mestre JD
Nasceu em 1965. Tem o ensino médio completo teve seu primeiro contato
com a capoeira aos cinco anos de idade através de seu irmão mais velho que
praticava capoeira de rua. Nesta idade presenciou durante o carnaval uma roda de
capoeira que segundo ele, marcou muito sua vida, pois despertou seu interesse
pela prática. Iniciou na capoeira Angola apenas na década de 1980 no Forte Santo
Antonio, como aluno do mestre João Pequeno, seis meses após a abertura da
academia. Em 1986 já atuava como responsável pelas aulas na ausência do
mestre, tendo assumido a sua linha de trabalho posteriormente. Na década de
1990 funda sua própria academia em Salvador. Em 1996 vai para Campinas
recebe um convite de uma universidade pública para desenvolver um trabalho
dentro da universidade, onde após termino deste projeto devido a grande procura
96
por parte dos alunos o mestre continua com o trabalho na mesma cidade. Nesta
mesma época tem o seu primeiro núcleo fora do país, no Canadá. Permaneceu
em São Paulo por 12 anos e retorna a Bahia em 2007 e retoma as atividades do
grupo. Atualmente possui núcleos na Bahia, São Paulo, Campinas, Mauá e
Peruíbe, Montreal, Ottawa e Toronto no Canadá e Milão, Monza e Bari na Itália.
(e)
Mestre M
Nasceu em 1950. É formado em Letras e mestre em História Social pela por
uma universidade pública da Bahia. Aos oito anos de idade já iniciava a confecção
de seu próprio berimbau e sentia uma necessidade constante de estar em
movimento, não importava como e nem o que estaria fazendo, queria mesmo era
movimentar-se. Quando então conheceu o filho de um senhor chamado A, no qual
tinha interesse de colocar seu filho para aprender capoeira, e então levou Mestre
M para aprender também, na academia de mestre Pastinha, onde se tornou
discípulo de mestre João Grande um dos principais alunos de Pastinha em 1958,
tendo oportunidade de conviver com grandes capoeiristas da época. Na década
de 1970 foi para o Rio de Janeiro como militar fazer um curso relacionado à área e
sentiu a necessidade de formar um grupo de capoeira naquele local. Trabalhou
arduamente para reunir um grupo de pessoas interessadas. Grupo este que com o
passar dos tempos culminou na criação do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho
(GCAP), nome que surge para homenagear o local onde mestre Pastinha possuía
seu espaço e onde Mestre M, com o objetivo de preservar a capoeira Angola, deu
início a essa prática não se deixando envolver pelas implicações da sociedade e
mantendo sua identidade. Em 1982 Mestre M volta para Salvador e presencia um
momento de fragilidade da capoeira Angola devido à perda de seu maior difusor,
mestre Pastinha e devido ao forte crescimento da capoeira Regional. Nesta
perspectiva dá início então a uma série de oficinas na academia de Mestre João
Pequeno no forte Santo Antonio, buscando reunir os antigos mestres da capoeira
Angola que já estavam sendo esquecidos. Em 1983 o grupo muda-se para sua
sede atual no Centro de Cultura Popular Forte de Santo Antonio, onde desde
então Mestre M vem a frente deste trabalho divulgando não só a capoeira Angola
97
como também estudos relativos a ela e a questões ligadas a cultura afro-brasileira,
possuindo núcleos em cidades do Brasil (Minas Gerais, Rio Grande do Sul,
Paraíba) e no exterior (Califórnia e Atlanta nos EUA).
(f)
Mestre P
Nasceu em 1934. Concluiu o primeiro grau, conhecido atualmente como
Ensino Fundamental – Ciclo I. Inicia sua relação com a capoeira em 1945 devido
às rodas nas festas de largo, mas o motivo que o levou a praticar foi seu interesse
por se defender nas brigas. Ficou admirado ao ver inúmeros capoeiristas se
“safando” de brigas geralmente com um número maior de oponentes devido a sua
grande agilidade e precisão nos movimentos. Em 1946 começa a aprender
capoeira tendo como mestre o finado Bugalho na rampa do Mercado Modelo,
porém não era em uma academia, mas sim na rua, seu mestre era um dos
melhores tocadores de berimbau da Bahia e o orientou nos toques de berimbau e
o orientava a observar as rodas para que assim aprendesse através da repetição
dos movimentos, da observação e do convívio com capoeiristas da época. Em
1959 já ministrava cursos de capoeira, inclusive no quartel da sexta região dos
bombeiros em que trabalhava e realizava rodas nas festas de largo e em lugares
como Boa Viagem, Lapinha, Rio Vermelho, Bonfim e Ribeira onde ficou
conhecido. Em 1960 pede baixa do cargo e abre uma academia no bairro de
Brotas no clube da Redenção de futebol, onde administrava o clube e ministrava
treino aos atletas para que ficassem mais ágeis e mais leves. Criou também uma
academia dentro do corpo de bombeiros onde ensinou por quinze anos, na Boca
do Rio e nos Aflitos. Em 1990 fundou o Grupo de Capoeira Angola Pai e Filho –
devido ao seu filho também se dedicar à prática da capoeira – ganhando espaço
no atual Centro de Cultura Popular Forte Santo Antonio. No primeiro ano do
século XXI seu filho vai para Munique na Alemanha divulgar o trabalho do grupo e
onde permanece até o presente momento. Atualmente Mestre P faz parte da
diretoria administrativa e do conselho de mestres da Associação Brasileira de
Capoeira Angola (ABCA).
98
(g)
Mestre V
Nasceu em 1965. Tem o ensino médio completo e trabalhou como
metalúrgico atuando na área de mecânica industrial e líder sindical. Sempre teve
uma grande admiração pela capoeira e sempre presenciava apresentações nas
festas de largo, porém iniciou a prática apenas na década de 1980, pois se
considerava inadequado fisicamente para a prática da capoeira por estar “acima
do peso” até que Mestre M o convidou para treinar. Deu início ao tirocínio em
1981 no Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP) onde permaneceu por 13
anos saindo no final de 1994. Em 1995 começou a reunir algumas pessoas que
tinham interesse em praticar capoeira e passaram a se encontrar no parque da
cidade em Salvador aos sábados. Treinavam, faziam roda e depois se reuniam na
casa de um dos integrantes para comer e assim foram formando e consolidando
um grupo. No ano de 1996 consegue espaço em uma escola pública de Salvador
onde o grupo passou a se reunir. Neste período pensava em chamar seu grupo de
Capoeira Angola Salvador, devido ao fato de as reuniões ocorrerem na cidade de
Salvador e com a intenção do resgate da cultura da capoeira. Neste mesmo ano
recebeu um convite de seu companheiro de GCAP (Mestre C) que já idealizava
Fundação Internacional de Capoeira Angola (FICA), para ser o representante na
Bahia. Desde então vem ministrando inúmeras palestras em universidades,
organizando e participando de eventos e encontros nacionais e internacionais
além de coordenar o Projeto Acervo Áudio Visual da Capoeira Angola, que é parte
do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura exercendo tal função até o
presente momento.
A constituição destas breves biografias dos mestres nos possibilitou
construir o seguinte quadro de caracterização dos mestres:
99
Caracterização dos Participantes
Mestre(a)
Mestre B
Gênero
Masculino
Idade
60 anos
Tempo de
Tempo de
Prática
Ensino
48 anos
41 anos
Etnia
Religião
Escolaridade
Branca
Informa
Superior
não possuir
incompleto
nenhuma
Mestre C
Masculino
50 anos
37 anos
30 anos
Negra
Não
Superior
Identificada
Mestra J
Feminino
50 anos
28 anos
17 anos
Negra
Candomblé
Doutorado
de nação
Angola
Mestre JD
Masculino
45 anos
30 anos
24 anos
Negra
Candomblé
Ensino médio
de nação
Angola
Mestre M
Masculino
60 anos
52 anos
40 anos
Negra
Candomblé
Mestrado
Mestre P
Masculino
76 anos
64 anos
50 anos
Negra
Católico
Ensino
Fundamental I
Mestre V
Masculino
46 anos
29 anos
15 anos
Negra
Candomblé
Ensino Médio
de nação
Angola
Quadro 5. Caracterização dos Participantes
Através destes dados podemos constatar que a idade dos participantes
varia entre 45 e 76 anos com um tempo de prática na capoeira variando entre 28 e
64 anos e tempo de ensino entre 15 e 50 anos. Deste modo pode-se constatar
que a capoeira se faz presente em mais da metade da vida de cada mestre
marcando e modificando suas trajetórias de vida. Para Born (2001) este fato se
caracteriza através uma série de acontecimentos que fundamentam a vida do
indivíduo, sendo determinados por sua localização, duração e freqüência,
demonstrando assim uma profunda ligação com a capoeira Angola. Vale a pena
ressaltar que este dado pode possuir variação, tanto no que se refere à precisão
das datas por parte dos mestres quanto o momento de seu trabalho individual, ou
100
seja, sem contar o período onde cada um ministrava os treinos nas academias dos
seus respectivos mestres sendo na ausência ou na presença destes,
demonstrando assim uma grande experiência deste grupo no que se refere ao
ensino da capoeira.
Neste contexto, o contato com os mestre revelou predominância da etnia
negra, possuindo alguns mestres um alto grau de escolaridade. Sobre a questão
da educação do negro Gonçalves; Silva (2005) relataram que a partir do século
XX ocorreram mudanças bruscas de valores sociais, associadas a transformações
no mercado de trabalho que exigiam dos diferentes segmentos sociais a criação
de novos dispositivos que os auxiliassem a se inserir na sociedade moderna. De
modo que surgem mudanças sociais favorecendo estratégias de mobilidade
social, destacando, assim, a educação como o principal veículo para atingir o tal
objetivo:
O saber ler e escrever é visto como condição para ascensão
social, ou seja, para encontrar uma situação econômica estável, e,
ainda, para ler e interpretar leis e assim poder fazer valer seus
direitos (p.191).
O direito à educação foi uma das bandeiras de luta da população negra,
sendo que com o passar dos anos não se reivindicaria apenas o acesso ao ensino
fundamental, mas em todos os níveis. Todavia o ingresso para esta população foi
concebido com significados diferentes, ou seja, por vezes visto como estratégia
capaz de equiparar os negros aos brancos, dando-lhes oportunidades iguais no
mercado de trabalho; ou visto como veículo de ascensão social e, por conseguinte
de integração e até mesmo visto como instrumento de conscientização, por meio
do qual os negros aprenderiam a história de seus ancestrais, os valores e a
cultura de seu povo, podendo a partir deles reivindicar direitos sociais e políticos,
direito à diferença e respeito humano (GONÇALVES; SILVA, 2005).
Entretanto os autores destacam que apesar de todo o incentivo à educação
tinha-se consciência por parte da população negra de que esta não deveria
representar um distanciamento da educação de tradição africana e tampouco
101
permitir-se aprisionar por ideologias que os levassem a concordância com classes
poderosas da sociedade afastando-se de seu grupo racial. Tal consciência
apontada pelos autores além de poder ser visualizada através dos depoimentos
no decorrer do estudo, nos levam a destacar também a presença da religiosidade.
Dentre as religiões apontadas temos uma predominância do candomblé,
religião que na visão de Vassallo (2005) partilha de características comuns à
capoeira Angola, onde um dos principais laços entre ambas seria a autêntica visão
de mundo, além de serem:
[...] vistas como rituais dotados dos mesmos instrumentos
musicais, por exemplo. O agogô e o pandeiro são tocados da
mesma maneira e a função dos três atabaques no candomblé
seria retomada pelos três berimbaus na capoeira (p.32).
Em seu estudo Vassallo (2005) relata que em alguns grupos há uma busca
de tradicionalismo através da adoção do candomblé como religião, onde cada
grupo pode articular-se a uma específica nação, baseando sua legitimidade num
tipo de discurso e representação de diferentes origens podendo ser banto, nagô
entre outras, tendo como foco principal a idéia de uma origem africana
compartilhada.
Segundo a autora o candomblé representa um adicional de tradicionalismo,
atestando um maior vínculo com a ancestralidade tanto do mestre quanto de sua
academia demonstrando:
[...] engajamento do mesmo em preservar a visão de mundo
africana. Consiste, então, numa maneira de se intensificar os
vínculos com a visão de mundo africana. Neste sentido, passa a
ser investido de um novo significado: torna-se uma garantia da
africanidade e, portanto, da autenticidade daquele grupo de
capoeira. Através da adoção do candomblé, acredita-se que os
vínculos ancestrais com a África, terra mãe de ambas as
atividades, são mais intensamente preservados (p.37).
Portanto, é através da espiritualidade do candomblé que se chega a visão
de mundo africana e a capoeira Angola na luta contra dominação (VASSALLO,
2005). Neste sentido, as obras de autores como Jorge Amado (1958) e Waldeloir
102
Rego (1968) contribuíram também para a crença na continuidade histórica da
articulação entre capoeira Angola e Candomblé, perpetuando-se na atualidade.
Embora os mestres possam apresentar um significativo grau de
desenvolvimento no processo de escolarização e serem influenciados com
aspectos da didática moderna não deixam de referendar a oralidade africana em
que o mestre ensina pegando pela mão, conta histórias, tendo nos espaços e
núcleos a sua fonte de desenvolvimento e perpetuação de uma tradição, proposta.
Assim falar em escola de oficio vinculando-a a mestres com títulos
acadêmicos não significa mascarar uma realidade, mas reconhecer que há o
conhecimento acadêmico e o saber dos mestres. O primeiro valoriza mais a
dimensão discursiva das coisas, enquanto que o segundo busca emancipar a
sabedoria que brota do saber da experiência. .
Desse modo, as somatórias dos fatores encontrados nos relatos dos
mestres foram de encontro aos critérios estabelecidos para a escolha dos
participantes, sendo: ser mestre de capoeira Angola, o que traz subjacente ao
título características importantes como o seu papel central na preservação e
transmissão
dos
conhecimentos
inerentes
a
capoeira,
o
domínio
dos
conhecimentos específicos da prática e do ensino da capoeira Angola, sua grande
experiência de vida e o seu reconhecimento por parte da comunidade (ABIB,
2006); ter uma expressiva representatividade no meio da capoeira no sentido de
uma “qualidade de alguém cujo embasamento na população”, no caso capoeirista,
faz com que “ele possa exprimir-se verdadeiramente em seu nome” (HOUAISS,
2009, p. 1648).
Desta forma temos um grupo de mestres que possuem uma grande
representatividade no meio da capoeira Angola que se estende não só pelo Brasil
como também em outros países onde todos possuem vivências e constantemente
são convidados a participarem de eventos ligados a capoeira e a outras
manifestações, caracterizando assim um grupo de grandes nomes que se
tornaram referência na capoeira Angola não apenas porque praticavam, mas por
se envolverem com ela de uma tal forma, que esta tomou conta do seu ser
incorporando assim um alto grau de importância na vida de cada um.
103
Conhecendo um pouco mais sobre a vida dos mestres participantes do
estudo através das breves biografias construídas, o próximo tópico se pautará em
uma análise mais profunda dos dados obtidos por meio das entrevistas com os
mestres que participaram desta investigação.
3.1.2. A capoeira Angola como cultura e a cultura da capoeira
A questão da cultura permeia toda a sociedade quer seja no nosso jeito de
vestir, falar andar, podendo adquirir características específicas em determinados
grupos. Portanto, podemos falar que a capoeira Angola no Brasil faz parte da
cultura brasileira com sua história e legado, mas que também no âmbito dessa
cultura pode se constituir numa cultura particular.
Neste contexto cabe apontar que o termo cultura foi empregado pela
primeira vez em 1877 por Edward Burnett Tylor, para se referir aos produtos
comportamentais, espirituais e materiais da vida social humana (MINTZ, 1982).
Porém, Mintz (1982) destacou que dentre os significados mais antigos da
expressão dois deles sobreviveram:
No primeiro caso a linha divisória é estabelecida usualmente entre
discurso apropriado e inapropriado, comportamento apropriado e
inapropriado, e contrastes similares. Cultura, nessa visão, seria um
conjunto formado por nascimento, posição social, educação e
criação, que se traduziria em idéias e comportamentos; seria
portanto também uma questão de privilégios. No segundo caso, a
cultura em si era vista como o produto de certas peculiaridades da
história do grupo. Sua gênese poderia ser atribuída ao gênio de
seus portadores, a alguns heróis míticos, a uma divindade
benigna, ou o que seja, mas apenas algumas sociedades teriam a
sorte de possuí-la (p.224).
Facina (2004) aponta que os antropólogos lançaram a noção de cultura
para esclarecer as disparidades existentes entre sociedades humanas, em função
das teorias que se apoiavam em critérios biológicos e ambientais, no final do
século XIX e início do século XX, marcadas por uma hierarquização e valorização
104
da raça branca e da sociedade européia. Por este motivo passaram a
compreender a cultura não sob aqueles padrões, mas como diferenças, frutos das
inúmeras culturas dos mais variados povos, ou seja: “[...] cada povo possui sua
própria história sua própria cultura [...] o correto seria falar em culturas no plural,
remetendo a idéia de um processo sócio fundamental que modela ’modos de vida’
específicos e distintos” (p.15).
Neste sentido Gusmão (1997) compreende, então, que o mundo da cultura
e seu movimento é parte da história, tradição e herança de um povo, o que nos
remete a Silva (2004) que destaca:
[...] a cultura, entendida como valores, representações, símbolos e
patrimônio, assimilados e compartilhados por uma comunidade [...]
conotando
acepções
diversas,
a
noção
de
cultura,
tradicionalmente, aplica-se a realidades específicas [...] cultura
seria, pois, o “lugar” onde se manifestam uma estética e um saber
(p. 173-174).
Neste sentido a capoeira Angola, segundo Abib (2004), aparece como uma
manifestação cultural difícil de ser definida, trazendo em seu bojo uma identidade
muito forte e profunda, arquitetada através de todo um passado marcado por
embates pela sua libertação e afirmação de sua cultura. Desta forma podemos
entender a capoeira Angola como uma sociedade, um grupo que é dotado de uma
cultura, o que nos remete a Mintz (2009) que ressalta:
[...] “cultura” (significando o modo de vida particular de um grupo
definido) e “sociedade” (significando um grupo organizado tendo
continuidade ao longo do tempo) são meios convenientes de se
falar de duas faces de um mesmo fenômeno que se encaixam.
Temos “um povo”, organizado como uma “sociedade”, que possui
um conjunto de instituições, tecnologias, linguagens, crenças,
valores – em resumo, uma “cultura” (p.230).
Assim sendo, podemos apontar para a cultura como categoria fundamental
para o empenho de se compreender a vida e a organização da sociedade
(MOREIRA; CANDAU, 2003). Todavia não destacaremos apenas neste tópico,
todos os relatos que nos auxiliam a compreender a cultura da capoeira Angola,
105
devido a sua abrangência (organização, artefatos, valores, representações,
símbolos e ações, etc.), pois estes aspectos serão abarcados ao longo do estudo
nos tópicos posteriores. Optamos, então, por dar ênfase aos aspectos que se
referem à formação dos grupos, por serem estes os organismos que carregam em
seu interior os elementos que compõem a cultura da capoeira Angola, como nos
mostra Santos (2004):
Compreendemos o grupo de capoeira como uma instituição que
calcada numa herança cultural africana que foi reelaborada no
movimento histórico, produz um pensamento e por conseqüência
um projeto educativo (p.52).
Assim, para os mestres desse estudo esta questão se traduz no fato de que
a capoeira se constituiu também numa escola de vida e para a vida, pois:
A capoeira pra mim é muito mais que um jogo. A capoeira me deu tudo,
abriu tantas portas na minha vida, me deu uma base na minha vida que
hoje tudo o que eu tenho eu agradeço à ela!!! (Mestre JD – o grifo é nosso).
Pra mim ela tem vários significados e um deles é a fusão de corpo e
mente não é só corpo e nem só mente. Outra coisa é que a capoeira tem a
condição de ser um instrumento de questionamento social, um dialogo
entre o capoeirista e o poder. Outra coisa é que a capoeira ela é remédio pra
muitas doenças que temos hoje aí! E uma delas é a violência (Mestre M –
o grifo é nosso).
A capoeira Angola pra mim é tudo! A capoeira Angola pra mim ela é vida,
ela é relação, é estar bem, é instrumento de consciência, de resistência,
de libertação. Capoeira pra mim é você estar bem consigo mesmo (Mestre
V – o grifo é nosso).
Não obstante, o grupo traz também certas preocupações em comum, como:
[...] capoeira antigamente era mais ligada aos rituais é por isso que aqui na
minha escola e na associação eu procuro preservar as tradições e rituais
da capoeira, que se perdeu muito os conhecimentos e rituais sobre o que é
realmente a capoeira se perderam. Pastinha dizia sempre que capoeira se
joga mais com a cabeça que com os pés, no sentido do pensamento, do
raciocínio. (Mestre B – o grifo é nosso).
[...] a capoeira Angola ela nunca perdeu o valor dela, porque ela é a mãe
da capoeira, de toda capoeira ela é mãe, então ela não perdeu a
106
possibilidade dela, ninguém teve o poder de combater, porque ela é infinita,
primeiro veio à base e a base não tem fim e ela nunca perde a capacidade
(Mestre P – o grifo é nosso).
De acordo com estes relatos podemos constatar uma preocupação na
preservação da essência da capoeira Angola no que se refere aos rituais e
tradições. Neste sentido, para Silva (2004) “o processo de resistência, cultura
negra no centro da práxis pedagógica e a abertura às diferentes identidades”
(p.52), apresenta os principais aspectos estruturantes que fundamentam o projeto
de um grupo de capoeira.
Estes aspectos se fazem sempre presentes nos depoimentos de todos os
mestres. Todavia podemos notar uma ênfase maior sobre dois aspectos: (a) todos
os mestres apresentam uma grande preocupação com o processo de resistência
na constituição de seus grupos, assim como (b) buscam dar uma identidade na
constituição de seus respectivos grupos.
Para Magalhães e Gil (2008) as ações destes grupos se estruturam a partir
da tentativa de resolução de problemas vivenciados pelo grupo em seu cotidiano
na sociedade, como nos mostra o depoimento do Mestre M:
Eu vi naquele momento a oportunidade, porque quando você
institucionaliza você tem a consciência disso você não se deixa envolver
pelas implicações da sociedade que reprime o que acontece dentro da
instituição. Essa coisa da possibilidade de você negociar em conflito (Mestre
M – o grifo é nosso).
Neste trecho de seu depoimento o Mestre M relata sobre a oportunidade da
criação de seu grupo como forma de preservação dos valores e tradições,
aprendidos por ele, os mantendo assim no seio de sua instituição, não deixando
se envolver pela sociedade e suas imposições. Todavia sobre este aspecto
também destaca:
Você sabe que a sua instituição não tem nada a ver com as normas
ditadas pela sociedade, mas você mesmo assim pra que ela seja aceita por
essa sociedade que reprime o que você faz, então você vai e apresenta
sua instituição nos moldes sociais para que a sociedade não tenha muito
107
que cobrar de você. Foi unicamente esse o objetivo (Mestre M – o grifo é
nosso).
Desta forma o grupo na visão do Mestre M aparece como um organismo
que se apresenta nos moldes sociais, porém dotado de uma cultura própria; assim
este se desenvolve a partir, de interesses comuns entre seus membros
desenvolvendo assim uma identidade coletiva (MAGALHÃES e GIL, 2008). Os
autores ainda destacam que a presença desta identidade é muito importante para
o processo formativo do grupo, ela inicia sua formação de acordo com as práticas
e projetos do grupo. Esta passagem dita pelos autores pode ser identificada no
seguinte trecho da entrevista do Mestre M:
Eu criei o GCAP, registrei, redigi o estatuto [...] mas questiono muito isso
hoje, quando vejo capoeiristas se envolvendo com o poder e se deixando
envolver pelo que é ditado pelo poder, deixando a capoeira perder sua
identidade e sua essência, se tornando só mais uma forma de fazer
ginástica (Mestre M – o grifo é nosso).
O Mestre M demonstra uma grande preocupação com a preservação da
identidade e a essência da capoeira Angola não permitindo que esta se deixe
envolver pelo poder se reduzindo a uma simples prática corporal. Por isso procura
através de seus princípios instituir a organização de seu grupo. Neste sentido
Casado (2002) destaca:
A existência de padrões morais, valores e regras de
funcionamento nos grupos auxilia os componentes a saber o que é
esperado, válido e legítimo em termos de comportamento. As
regras e normas podem ser explícitas ou implícitas e surgem com
a história do grupo desenvolvendo-se e perpetuando-se na medida
de sua evolução (p.241).
Ainda destacando a característica do processo de resistência na
constituição dos grupos de capoeira, os símbolos aparecem como outro elemento
presente nos depoimentos dos mestres entrevistados. Na visão de Bourdieu
(1998), estes surgem com o poder que consegue reproduzir. Os símbolos
afirmam-se, assim, como os instrumentos que conseguem impor significações
108
legítimas. Como vimos anteriormente a capoeira Angola possui em seu interior um
universo repleto de símbolos e significações, para os mestres J, JD, M, esta
simbologia se faz presente desde a escolha dos nomes dos seus respectivos
grupos, refletindo assim a construção/afirmação da identidade étnico cultural
destes grupos.
Dentro deste contexto a Mestra J, relata sobre a forte influência de suas
características de capoeirista, bem como os valores hábitos e costumes a ela
ligados que a impulsionaram a iniciar um trabalho que posteriormente denominouse Grupo N’Zinga de Capoeira Angola:
[...] e acabei tendo de começar a fazer um trabalho porque a minha
identidade capoeiristica era muito específica e foi aí que meu ato moral
começou a me estimular e dessa forma me autorizou a começar este
trabalho [...] então criar, dar este nome de grupo Nzinga da Capoeira
Angola, uma forma de chamar a atenção para a presença da mulher no
interior da capoeira [...] (Mestra J – o grifo é nosso).
O Mestre JD na escolha do nome de seu grupo faz uma reverência a duas
figuras muito respeitadas no meio da capoeira Angola que foram alunos de grande
destaque de mestre Pastinha, mestre João Grande e João Pequeno que
conduziram o trabalho de seu mestre com muito empenho. Do mesmo modo,
aluno de mestre João Pequeno, o Mestre JD teve o seu aprendizado em meio a
estas duas grandes referências da capoeira Angola, o que faz com que o nome de
seu grupo levasse o nome destas duas figuras:
[...] com a necessidade de eu ter um nome pro meu grupo eu coloquei
Filhos de Mestre João Pequeno e João Grande, que era a relação que
tinha com eles [...] Na verdade eu coloquei dois nomes, porque como eu
comecei a capoeira com Mestre João Pequeno, tinha a referência dele e
mestre João Grande (Mestre JD – o grifo é nosso).
Sua escolha se dá também em virtude da mudança do mestre João Grande
para os Estados Unidos, onde seus alunos ficaram sob o comando do Mestre JD,
porém após um período os alunos foram saindo e o mestre sente necessidade de
um outro nome, que por sua vez também faz reverência a uma grande figura da
capoeira Angola:
109
[...] Aí quando não tinha nenhuma referência mais eu coloquei Herança de
Pastinha. Só que quando coloquei Herança de Pastinha, a mulher dele, ela
veio em cima, perguntar porque eu coloquei o nome de Mestre Pastinha no
grupo e aí uma confusão danada e acabei tirando. Aí foi quando eu coloquei
em 90, Semente do Jogo de Angola (Mestre JD – o grifo é nosso).
Esta forte ligação entre mestre-discípulo apresentada no relato do Mestre
JD pode ser destacada por Abib (2002) onde relata que a capoeira sempre teve
na figura do mestre uma referência fundamental para sua ancestralidade;
tornando-se essa figura um ícone, um símbolo para a capoeira Angola e para o
grupo. Não obstante em seu depoimento do Mestre M, na escolha do nome de
seu grupo também faz menção a um outro símbolo que nos remete a capoeira
Angola:
Grupo de Capoeira Angola pelo estilo de capoeira e Pelourinho em
homenagem onde mestre Pastinha tinha a academia dele (Mestre M – o
grifo é nosso).
O Pelourinho, local onde mestre Pastinha em 1941 abriu o Centro Esportivo
de Capoeira de Angola (CECA), (VASSALLO, 2003), se tornou uma referência
para todos os capoeiristas da época e principalmente para o Mestre M que
também teve oportunidade de frequentar este local:
Eu treinei na academia do mestre Pastinha e faço questão de frisar que eu
não fui aluno do mestre Pastinha [...]. Eu não tive esse privilégio, mas
também não me faltou nada pelo fato de eu ter treinado com os mestres
João Grande, o mestre João Pequeno, dentro da academia do mestre
Pastinha! Tive o prazer de conhecê-lo, sou da época em que mestre João
Grande estava na academia do mestre. Entre outros que eu conheço e que
estão vivos e que também foram contemporâneos (Mestre M – o grifo é
nosso).
Já para o Mestre P houveram outros fatores que foram determinantes para
o nome de seu grupo:
[...] quando nóis botava o pessoal pra brincar, se divertir e eles dizia grupo de
capoeira Angola do Mestre P, mas botei assim (...), porque eles que disse
mestre P, porque eu jogando rápido com aquela cacetada que eu dava, e
110
quando eu parava o berimbau cantava também com o mestre Valdemar,
Maré, Majé, Coqueiro, Barrão, Avanir, Mão de Onça, Toninho, Cleoni esse
pessoal de Dejavá da Ponteira, esse pessoal todo que via e aí me dava valor
aí foi onde que eu me criei e hoje to avoando (Mestre P – o grifo é nosso).
Em seguida altera o nome de seu grupo na década de 1990:
Esse Grupo de Capoeira Angola Pai e Filho tá desde 90 pra cá. Por que
eu tenho um filho praticando capoeira que está na Alemanha e nós temos
uma academia na Alemanha, e se chama Academia Arapuã e estamos
localizados em Munich (Mestre P – o grifo é nosso).
O Mestre V antes de ser convidado a integrar o grupo no qual hoje faz
parte, também pensava em reverenciar um local que também é um símbolo para
capoeira Angola, a cidade de Salvador, atribuindo também a esta palavra o
significado de preservação e resgate das tradições, de sua prática, uma
preocupação muito comum e presente nos relatos dos mestres participantes do
estudo:
[...] no início eu pensei no Grupo de Capoeira Angola Salvador, esse
Salvador pra mim ele tem duplo sentido. Sentido da própria cidade e da
própria palavra na sua essência Salvador, salvar o nome do grupo,
resgatar (...) (Mestre V – o grifo é nosso).
No que concerne ao nome de seus respectivos grupos, notamos nos
trechos apresentados, a presença de elementos que possuem representações e
significados para capoeira Angola e em especial para os respectivos mestres.
Podemos constatar então que a presença destes elementos nos remete a idéia da
existência de diferentes símbolos da capoeira Angola que se fazem presentes
tanto na escolha do nome quanto na representação deste para o grupo e para o
meio da capoeira. Para Vieira (2004) estes símbolos em uma organização/grupo,
são elementos indispensáveis à cultura ali presente:
A cultura é organizada, sustentada e mantida por elementos
constitutivos, indispensáveis e universais, entre eles os símbolos,
heróis, rituais, valores mitos e histórias. Símbolos são palavras
gestos gravuras ou objetos que carregam significados particulares
que são somente reconhecidos por aqueles que partilham à cultura
(p.65).
111
Para Chanlat (1996) as organizações enquanto espaços de relações
humanas são lugares favoráveis ao nascimento do simbólico. A capoeira Angola
por sua vez carrega em seu universo simbólico, um conjunto de elementos que
fornecem referências dentro de sua cultura (CASTRO JÚNIOR, 2004). De acordo
com Chanlat (1996), este simbólico busca representar em primeiro plano o
ausente o imperceptível e acrescenta: “[...] estas representações simbólicas que
calcam a existência nas relações com o mundo, vão participar da construção
deste universo de significações inerentes ao ser humano (p.30)”. Esta afirmação
feita pelo autor se torna visível no depoimento da Mestra J que utiliza como nome
de seu grupo um símbolo que representa a presença da mulher no universo da
capoeira e suas atitudes e ações pautam-se na representação deste símbolo que
por sua vez traz sentido a sua prática:
[...] é o simbólico que remete ao universo das representações
individuais e coletivas que dão sentido as ações, interpretam,
organizam e legitimam as atividades e as relações que homens e
mulheres mantêm entre si (CHANLAT, 1996, p.40).
Já no depoimento do Mestra J, para a escolha do nome de seu grupo
verificamos inicialmente a referência de figuras de grande importância, tidas como
heróis para a capoeira Angola, que por sua vez acabam por se tornar exemplos de
conduta, doutrina, dedicação, empenho e destreza. Neste sentido podemos citar
Vieira (2004) que ressalta:
Heróis são pessoas vivas ou mortas, reais ou imaginárias, que
possuem características que são altamente valorizadas numa
cultura e que servem como modelos para comportamentos (p.66).
O Mestre M tem como nome de seu grupo, algo que representa um marco
para capoeira Angola, um símbolo que traz consigo a história de um espaço que
foi concebido para o encontro de grandes capoeiristas da época tendo como
guardião deste local mestre Pastinha. Para o Mestre M este espaço tem um
grande significado, pois lá teve oportunidades de aprendizado tanto no convívio
112
com seu mestre quanto com outros capoeiristas, nos remetendo assim a presença
de uma valorização do espaço onde se aprende, como um símbolo que
fundamenta sua prática, como nos mostra Chanlat (1996):
Não se pode conceber, um ser humano ou uma coletividade que
não tenha nenhum tipo de vinculação espacial, por mais ínfima
que seja. [...] por essa razão que os lugares [...] são objetos de
diversos investimentos: afetivo, material, profissional, político e
outros mais. Fontes de enraizamento, estes [...] reafirmam a
identidade pessoal e coletiva (p.31).
Neste mesmo sentido que observamos o depoimento do Mestre V, no
momento em que relata sua intenção, caso não fizesse parte do grupo a que
pertence hoje.
No depoimento do Mestre P, notamos a presença de outros fatores para
determinação do nome de seu grupo, onde em um primeiro momento o mestre
destaca apenas um grupo de pessoas que treinavam/praticavam sob sua
orientação e que possuía o seu próprio apelido como nome do grupo, o Mestre P,
destaca também o motivo pelo qual recebeu seu apelido, prática esta que é muito
comum no meio da capoeira. Posteriormente impulsionado pelo envolvimento de
seu filho na prática da capoeira o mestre muda o nome de seu grupo para Grupo
de Capoeira Angola Pai e Filho, tornando visível o fator afetivo como algo
importante no universo dos grupos de capoeira, pois estes de acordo com Casado
(2002) enfocam prioritariamente as ligações afetivas entre seus componentes.
Cabe também ressaltar que notamos nos depoimentos dos J, M e V a mesma
situação apresentada pelo Mestre P, onde inicialmente seus grupos surgiram
apenas como um conjunto de pessoas que treinavam sob sua orientação e que
não possuíam um nome específico, mas sim o nome dos respectivos mestres:
Eu era do GCAP ainda nessa época, mas a gente lá era um grupo
começando a fazer alguma coisa e não podia nascer imediatamente com
o nome de GCAP, então as pessoas chamavam de grupo da J, só depois
de um determinado tempo, já três a quatro anos que a gente até para dar
uma definição institucional para o trabalho desse projeto que a gente cria e
tem a identidade (Mestra J – o grifo é nosso).
113
[...] não, não tinha nada disso, era o pessoal que treinava capoeira comigo e
tinha o pessoal que inclusive eu tive que bater na porta da casa deles de
manhã, pra acordar pra treinar! Foi um trabalho árduo pra formar esse
grupo (Mestre M – o grifo é nosso).
Eu saí do GCAP de 94 para 95 e aí comecei a reunir um grupo de pessoas
que já tinha saído que queriam fazer capoeira e a gente se encontrava no
parque da cidade em dia de sábado treinava no parque ao ar livre e aí a
gente fazia uma roda e depois ia à casa de alguém e se reunia pra fazer
uma comida, pra ta junto! A gente foi formando um grupo de pessoas
(Mestre V – o grifo é nosso).
Estes trechos mostram, que a partir das relações construídas no convívio
deste conjunto de pessoas é que o grupo passa a se constituir, sua visão é
fundamentalmente relacional onde através destas interações e alianças afetivas é
que surgem a unidade e identidade deste conjunto de pessoas (CASADO, 2002).
Esta identidade constitui um coeficiente de crenças (valores, expressões, etc.) e
consequentemente nos remete a uma idéia de ideologia (SILVA, 2005), o que nos
leva a destacar o seguinte trecho no depoimento do Mestre V:
Apesar de eu ter vindo do GCAP, muita gente vinha de lá, mas eu acho que a
capoeira ajuda a cada um de nós desenvolvermos uma visão. Existe uma
base, que é importante, mas eu acho que cada um é cada um. Cada um tem
a sua forma de jogar e cada um tem a sua forma de se expressar e cada
um busca alguma coisa dentro da capoeira [...] (Mestre V – o grifo é
nosso).
O Mestre V relata que com o tempo a capoeira faz com que o indivíduo crie
sua própria opinião sobre o universo da capoeira bem como o universo em que
vive, logo, esta identidade de capoeira não é uma, é um elemento hierárquico que
pode produzir conflitos internos e externos ao grupo (SANTOS, 2004), e
impulsionar o surgimento de novos grupos dando abertura à diferentes
identidades, sendo esta outra categoria fundamental para a gênese dos grupos,
apontada por Silva (2004).
Os mestres C, J e V, são provenientes do grupo do Mestre M, todos
tiveram um tempo médio de permanência em seu grupo de mais de 14 anos,
participando de inúmeras etapas e momentos vividos pelo grupo, tendo não
114
apenas a figura do mestre como uma grande referência, mas todos os seus
ensinamentos como base para construir seus respectivos grupos, como destaca a
Mestra J:
[...] eu fazia parte de uma comunidade que se formava, éramos muito
pequenos, não tinham muitos grupos de capoeira Angola como a gente
vê hoje [...] (Mestra J – o grifo é nosso).
O pioneirismo destacado no trecho acima foi um dos itens vivenciados por
este pelo conjunto de mestres que fizeram parte daquele grupo, e continua em seu
depoimento:
[...] à medida que o grupo foi crescendo, sobretudo com essa dinâmica da
gente de dois mestres que volta e meia estavam fora do Brasil, fora de
Salvador, a gente foi tendo que dividir entre nós os mais velhos algumas
tarefas, entre elas era dar aula de capoeira, construir coletivamente um grupo,
passar os saberes de um grupo, ou seja, a definição dos valores,
estruturas ou a identidade daquele grupo, a prática corporal como a
prática coletiva (Mestra J – o grifo é nosso).
Neste trecho a Mestra J relata momentos de aprendizagem, que auxiliaram
na construção coletiva do grupo no qual fazia parte, o que nos remete a Bettoni
(2002):
Após descobrir na materialidade as exigências a serem
trabalhadas, o grupo se desdobra em várias ocupações, onde
tarefas são distribuídas entre seus membros que agora passam a
cumprir múltiplas práxis individuais. As ações passam a ser
mutuamente necessárias umas às outras, e a práxis comum só
pode ocorrer por causa das práxis individuais que a integram, ou
seja, cada membro compreende que a sua função é necessária às
funções dos outros membros, e vice-versa (p.71).
Estas práticas coletivas relatadas nos depoimentos do Mestre V e Mestra J
impulsionam a aquisição de determinados valores, que para Vieira (2004), podem
ser vistos como intenções, preferências de certos acontecimentos sobre outros,
sentimentos, opiniões etc, contribuindo assim para a construção de uma
identidade, ou seja aquilo que se é realmente (SILVA, 2000). Na busca por esta
identidade que reside à gênese dos grupos de capoeira, podendo estes ser
115
considerados como uma afirmação de tal identidade e a demarcação das
diferenças. Estas provocando sempre intervenções de incluir e excluir (SILVA,
2000). Neste sentido vejamos o depoimento do Mestre C:
A FICA é um trabalho que vem dessa dicotomia que acontece [...] então
decidi formar um outro grupo, um pouco com as características do GCAP,
em termos de trabalho e filosofia, mas também com uma abertura maior
para os estudantes poderem desenvolver o seu trabalho. O grande lance do
grupo de estudo é que não tem um líder, todos são líderes, todos são
responsáveis pelo trabalho, mas a pessoa que apontar ter mais liderança
nós vamos tirar como líder do grupo. E esse líder não precisa ser
necessariamente brasileiro, por isso é que tem essa necessidade de vir aqui
para o treinamento (Mestre C – o grifo é nosso).
Em seu relato o Mestre C relata que a partir das diferenças, estas serviram
de mola propulsora para a gênese de seu grupo: a Fundação Internacional de
Capoeira Angola (FICA). Todavia este não deixa de ressaltar a existência de
características que se assemelham ao grupo no qual fazia parte o GCAP,
reverenciando assim as bases de seu aprendizado. Na entrevista o mestre relata o
funcionamento do grupo e no trecho acima destaca uma característica mais
voltada para o estudo da capoeira Angola.
Neste mesmo sentido a Mestra J sentindo a necessidade de busca pela
sua autonomia e pelo espaço de atuação na capoeiragem paulistana, procura
formar um grupo que fosse de encontro às propostas de ação de seu conjunto,
pois semelhante ao Mestre C, a mestra também se une a ex-integrantes do GCAP
para formar o seu grupo chamado N’Zinga:
[...] a gente estava necessitando de fazer um trabalho que tivesse as
características das nossas propostas de atuação na capoeiragem de São
Paulo, a gente não formava um grupo para expansão naquele momento, a
gente buscava a formação da autonomia da gente para atuar dentro de
um espaço, dentro do cenário da capoeira (Mestra J – o grifo é nosso).
Esta autonomia buscada pela mestra foi alcançada, e hoje em seu trabalho
procura pregá-la em todos os pólos que seu grupo possui, estabelecendo assim
uma relação com um caráter mais de parceria do que de comando:
116
Hoje no N’Zinga somos uma ONG e por essa razão a gente consegue se
manter trabalhando lá em conjunto como grupos e de uma maneira a
respeitar a autonomia desses grupos, eu penso que eles tem um caminho
muito mais difícil atuando em liberdade do que tendo alguém a frente, e eu
tenho que me manter parceira, você entende, quando eu tenho que sair de lá
pra vir pra cá, porque a gente já tinha um nome, uma atuação muito
grande (Mestra J – o grifo é nosso)
Também no sentido da busca de uma identidade o Mestre M, se vê em
uma situação de pioneirismo, pois o Rio de Janeiro não possuía capoeira Angola,
como ela se apresenta hoje, ou seja, de uma forma organizada, ocorrendo assim o
surgimento desta a partir de sua presença e atuação:
[...] fui para o Rio de Janeiro como militar, exatamente nos meados de 70 e
lá jogando capoeira eu vi que precisava formar um grupo que se
identificasse comigo. Eu não vi capoeira Angola como conhecemos hoje, no
Rio de Janeiro. Não tinha capoeira Angola como estamos acostumados
hoje, o que aconteceu foi o surgimento dela, a partir da minha presença
(Mestre M – o grifo é nosso).
Tendo assim o surgimento de seu grupo no estado do Rio de Janeiro:
[...] foi justamente com os alunos que preparei de 70 a 80 que eu formei o
Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (Mestre M – o grifo é nosso).
Já o Mestre V, como vimos anteriormente, tinha uma idéia inicial de formar
o seu próprio grupo também, porém recebeu um convite do Mestre C para
representar a FICA no estado da Bahia, e relata como se estabeleceu este
contato, destacando as relações afetivas como fator principal para a sua entrada
no projeto:
[...] o mestre C já tava nessa época nos Estados Unidos e necessitava de
um representante em Salvador e naquela época ele ligou pra mim. Aí falou
da proposta dele, da formação da Fundação de Capoeira Angola [...] mas
eu disse a ele desde o inicio:-eu só vou entrar porque tenho confiança,
conheço você sei que é uma coisa legal e eu não sou de caminhar pra trás, e
a partir daquele momento uns seis meses depois a gente já tava
formando a FICA [...] eu já tinha reunido o grupo, eu já tinha exposto pra
algumas pessoas que já conheciam o Mestre C, a confiança que eu tinha
nele e que inclusive dentro do GCAP a gente tinha uma relação muito
grande e quando ele chegou para reunião com o grupo, levou até um susto
117
porque as pessoas já estavam usando a camiseta da Fundação
Internacional de Capoeira Angola [...] (Mestre V – o grifo é nosso).
No que tange a questão da gênese dos grupos, vimos a questão busca pela
construção de uma identidade como um fator preponderante nos depoimentos dos
mestres, principalmente para os mestres C, J, M e V, é através dela que os grupos
fundamentam sua prática, não sendo ela algo pronto, mas sim construído no
contexto das relações culturais e sociais (SILVA, 2000). Para Vieira (2004),
construir a identidade é:
[...] buscar o equilíbrio entre aquilo que se é e que os outros
esperam que sejamos, ou seja, é a tentativa de resolução de
conflitos resultantes de exigências às vezes contraditórias,
fundadas na honestidade, na lealdade, na capacidade de
estabelecer e manter a confiança das organizações em relação
aos seus membros [...] (p.72).
Neste sentido temos esta busca expressada de diferentes formas nos
depoimentos, porém todas tendo esta como objetivo. O Mestre C, em seu relato
valoriza a formação de grupos de estudo, o que para Santos (2004), pode se
enquadrar em uma identidade cultural, que possui em grande parte uma
construção intelectual ideal, calcada em informações seletivas, que podem ser
reais e imaginárias. A Mestra J destaca com mais ênfase a importância da busca
pela autonomia que para Chanlat (1996) é marcada por deter um grau de
liberdade que possui desejos, aspirações, possibilidades e sabe o que pode
atingir. Ela destaca também a importância da manutenção desta autonomia
mesmo para outros pólos de seu grupo, permitindo assim os grupos agirem de
formas diferentes, porém em terrenos semelhantes, preferindo a sua atuação mais
em um sentido de parceria. Podemos atrelar este mesmo sentido ao relato
apresentado pelo Mestre V, que devido as relações afetivas, se torna
representante de um grupo no qual possui liberdade para atuar a sua maneira.
Neste sentido citamos Mintz (2009):
As pessoas adquirem experiência enquanto estão sendo
acionadas e enquanto agem. Na maior parte do tempo e na
118
maioria das formas, elas agem de acordo com um código
socialmente herdado de comportamento [...] mas esse código não
é jamais uma camisa-de-força; existem escolhas e alternativas.
Estas, incluindo a opção pela não ação são utilizadas em várias
permutações, embora finalmente sujeitas às condições externas
(p.235-236).
O Mestre M tem sua prática individual, pautada em sua capacidade de agir
para uma finalidade, ou seja a formação de um grupo que detivesse suas
características, ou sua identidade de capoeirista, este ato por sua vez esta sempre
relacionado a um determinado fator da realidade (BETTONI, 2002), no caso a não
existência de um grupo específico e organizado de capoeira Angola que fez com
que o mestre o estruturasse e o tornasse realidade.
Deste modo tivemos um panorama sobre os fatores que levam a
constituição dos grupos de capoeira Angola, onde as práticas cotidianas, a tensão
entre fatos subjetivos e objetivos, as representações internas do indivíduo e a
realidade em que este se encontra fundamentam a construção de uma identidade
de capoeirista, onde esta transmite seus significados a partir de uma linguagem
própria e de símbolos reconhecidos pelo grupo (SANTOS, 2004).
Cabe mencionar que a busca por uma identidade defendida pelos grupos
de capoeira Angola estabelece também laços com o candomblé, pois a articulação
entre ambas encarnam a síntese dos princípios sagrados do aprender/viver
(VASSALLO, 2005)
O grupo por sua vez é o reduto para o aprendizado da capoeira, tendo esta
função como objetivo principal de sua atuação, todavia Santos (2004) faz
destaque a uma outra característica presente no ensino da capoeira pelo grupo:
A princípio o objetivo fundamental de um grupo de capoeira é
obviamente ensinar capoeira. Entretanto, um olhar mais cuidadoso
nos leva a ler esse “ensinar capoeira” como uma iniciação em um
processo continuo de aprendizagem que vai envolver o (re)
encontro com a herança africana, abrangendo desde o
aprendizado de um conhecimento específico historicamente
produzido os fundamentos do jogo e até uma forma específica de
ensinar e de aprender, baseada no sentido da comunidade, na
oralidade, no respeito, e na reverencia aos ancestrais, na
corporalidade, no olhar, no toque na musicalidade, na mandinga.
119
Esses aspectos delineiam a práxis pedagógica do grupo de
capoeira (p.53).
Estes elementos sabiamente apresentados pelo autor nos remetem a
formas antigas e tradicionais de ensino, que tem no passado a fonte para a
transmissão dos conhecimentos, que por sua vez ocorrem em um processo que
pode ser considerado artesanal, estabelecendo assim uma forte relação com as
chamadas escolas de ofício. No tópico seguinte discorreremos sobre os elementos
da capoeira que nos permitem mencionar esta relação.
3.2.
A CAPOEIRA ANGOLA COMO CORPORAÇÃO E ESCOLA DE
OFÍCIO: UM CURRÍCULO A DESCOBRIR
Ao abordarmos no tópico anterior aspectos da trajetória de vida dos
mestres, vimos também elementos que se tornaram preponderantes para
constituição/ formação de seus respectivos grupos. Para Santos (2004), estes
grupos, por sua vez, têm como objetivo principal formar o capoeirista; um
processo que visa uma formação que compreende a concepção de humanidade,
sociedade, capoeira, capoeirista e o processo histórico dos negros no Brasil,
configurando-se em um projeto no qual permite uma analogia com a escola como
nos mostra o autor:
Esse projeto sistematiza-se através de uma seleção de conteúdos
(fundamentos da capoeira – movimentos, ritos, música...) de um
conjunto de procedimentos metodológicos (como as aulas se
organizam, como o conhecimento é socializado) e ainda um
processo de avaliação que indica o quanto e como um indivíduo
está aprendendo capoeira. A definição destes elementos se
diferencia variando de grupo para grupo a depender das
concepções que norteiam seu trabalho (p.58).
Estes elementos constituintes do processo de ensino e de aprendizagem na
capoeira Angola, nos permitem uma correlação com as chamadas: “Escolas de
Ofícios”, como vimos nos tópicos 2.2 e 2.2.1 deste estudo. Estas organizações no
120
que tange a transmissão dos conhecimentos possuíam a relação mestre-aprendiz,
a oralidade, o movimento e o corpo como núcleos e porta vozes do conhecimento,
artefatos estes que compõem a essência de sua prática pedagógica. Assim de
uma forma semelhante o grupo de capoeira Angola, pode ser considerado um
verdadeiro espetáculo educativo no processo de construção/afirmação do
capoeirista (SANTOS, 2004), que merece um maior aprofundamento.
Desta forma, o segundo eixo que compõem os resultados deste estudo
dedica-se, a uma analogia da capoeira Angola enquanto escola de ofício,
buscando encontrar a partir dos relatos dos mestres indicativos que possam
classificá-la como tal. Assim este eixo esta dividido em três tópicos, sendo o
primeiro intitulado: “Valores, artefatos e rituais presentes na capoeira Angola”, no
qual busca identificar tais aspectos presentes na capoeira Angola que se
relacionam em paridade com os das escolas de ofícios. O segundo tópico tem
como título: ”Os saberes profissionais que emergem dos mestres das escolas de
capoeira Angola”, onde discorreremos sobre quais os saberes que se fazem
presentes e que surgem no universo da capoeira Angola. O terceiro tópico
chamado: “A capoeira Angola como um espaço social (“campo”) de lutas:
dominantes e dominados” trata da questão da capoeira Angola com um espaço
social, um campo no qual se estabelecem inúmeras disputas pelas conquistas
deste espaço. Vejamos então o primeiro deles.
3.2.1. Valores, artefatos e rituais presentes na capoeira Angola
Como vimos anteriormente existiram organizações, que possuíam uma
grande valorização pela arte e tinham a mesma como um dever a ser cumprido
(RUGIU, 1998). Estas organizações eram chamadas de “corporações e escolas de
ofícios”, onde uma atuava enquanto responsável pela organização, dos ofícios, no
que se refere às regras, normas e condutas, podendo esta agregar diferentes
ofícios, enquanto a outra era a maneira pela qual a arte era ensinada, para que
venha a se tornar um ofício (Silva 2009). Exemplo de riqueza no que se refere à
transmissão dos conhecimentos, estas organizações possuíam valores, artefatos
121
e rituais nos quais se diferenciavam da pedagogia convencional onde Rugiu
(1998) destaca:
[...] todas as formas pedagógico-didáticas [...] permaneceram
envoltas no próprio mistério com o qual, na época, eram tutelados
os relativos procedimentos. As circunstâncias nas quais se
trabalhava e se aprendiam favoreciam o segredo, principalmente o
prevalecer quase absoluto da tradição oral ou intuitivo gestual
“escute as minhas palavras”, “olhe como eu faço” (p.38).
Não obstante a capoeira Angola também nos traz admiráveis exemplos de
como seus saberes são transmitidos, onde as músicas, ladainhas, rodas e os
movimentos
presentes
em
seu
universo
se
configuram
em
elementos
importantíssimos no processo de transmissão dos saberes, como destaca ABIB
(2006):
[...] através destes que se cultuam os antepassados, seus feitos
heróicos, seus exemplos de conduta, fatos históricos e lugares
importantes para o imaginário dos capoeiras, o passado de dor e
sofrimento dos tempos da escravidão, as estratégias e astúcias
presentes nesse universo, assim como também as mensagens
(p.93-94).
É neste cenário que observa-se uma forte inter-relação entre ambas, onde
através dos depoimentos dos mestres identificaremos os elementos (valores,
artefatos, rituais, entre outros) que nos permitem mencionar a caracterização da
capoeira Angola enquanto corporação e escola de ofícios.
Ao selecionarmos os trechos dos depoimentos dos mestres, nos quais
apontavam tais elementos para caracterização, notamos a presença destes em
todos os relatos, ou seja, todos os mestres participantes do estudo em algum
momento mencionaram elementos que apontavam para a relação da capoeira
Angola enquanto escola de ofício, o que nos permitiu a identificação de quatro
aspectos: relação mestre-aprendiz, valores, artefatos e rituais.
O aspecto de mais destaque foi a relação mestre-aprendiz, sendo
mencionada nos relatos dos mestres J, JD, M, P e V, na qual como vimos em
Rugiu (1998), compreende os laços estabelecidos pelo aprendiz a partir do
convívio com o mestre durante o aprendizado. Em seguida alguns artefatos
122
aparecem mencionados nos depoimentos dos mestres C, J e P, que na visão de
Marteleto (1995) podem ser compreendidos como: “[...] criações culturais e
históricas que, uma vez instituídas, dão coesão e unidade interna à “instituição
total da sociedade”, funcionando como um tecido imenso e complexo de
significações (p.3)”.
No aspecto valores fazem menção os mestres B e J, seguido do aspecto
rituais no qual a Mestra J, onde estes para Vieira (2004) podem ser entendidos da
seguinte forma:
Valores são tendências para preferir certos estados de
acontecimentos sobre outros, fundamentaram-se em sentimentos
[...]. Rituais são atividades coletivas para o alcance de finais
desejados, considerado essenciais. Maneiras de cumprimentar e
agradecer aos outros, cerimônias religiosas são alguns exemplos
(p.66).
Vejamos então os trechos dos depoimentos nos quais é possível identificar
os aspectos acima citados.
Destacado em seu relato o Mestre V aponta o primeiro passo para que se
estabeleça a relação mestre-aprendiz:
Acho que o primeiro passo é haver uma identificação com o mestre, pois é
a pessoas que vai te levar até a graduação ou te encaminhar para outro
mestre ou te levar a caminhar com suas próprias pernas (Mestre V – o
grifo é nosso).
De maneira semelhante o ingresso na escola de ofício também ocorria a
partir de uma identificação com determinado mestre, podendo ser por amizade,
parentesco, admiração pelo trabalho ou grande reconhecimento do mesmo por
parte da comunidade, todavia de uma forma diferente dos dias atuais esta
identificação era determinada pelo pai ou responsável, e não pelo próprio
aprendiz. Ainda em seu relato o Mestre V destaca outras características:
A capoeira enquanto cultura você precisa de toda uma vivencia do saber
popular, é você ter 30,40 ou mais anos de prática naquilo para você ter o
123
mínimo de conhecimento [...] é um eterno aprendizado! A vivência você só
aprende na relação com o mestre de capoeira. (Mestre V – o grifo é nosso).
Podemos notar que o Mestre V destaca a questão do tempo e o convívio
com o mestre, como principais fatores para se adquirir os conhecimentos
presentes na capoeira. Neste sentido citamos Rugiu (1998), onde destaca que nas
escolas de ofícios o mestre artesão era investido de alguns poderes como, o de
estabelecer o tempo de duração de um aprendizado e também a maneira pela
qual o ofício seria ensinado ao aprendiz. De maneira semelhante destacamos um
trecho do depoimento do Mestre P:
[...] mestre, tem o conhecimento, os antigos mestres que formaram
mestres, mestres e mais mestres, nós já temos um jeito próprio de ensinar
[...] só pode se ensinar quem tem condições a capoeira, [...] então a pessoa
necessita de fazer seus movimentos, praticar seus movimentos, todos os
movimentos que o mestre treinar então a obrigação é ter a atitude de
aprender (Mestre P – o grifo é nosso).
Castro Júnior (2004) também contribui destacando que o tempo para
aprendizagem não é padronizado para todos os aprendizes; cada um tem o seu
próprio momento, onde o mestre em sua sutileza tem a incumbência de iniciar o
aprendiz em todos os ensinamentos desde os mais secretos, até os mais simples,
como ressaltam os mestres P e JD:
[...] e qualquer um não pode ensinar, tem que procurar os mestres que
tenha conhecimento, o pessoal que não tem conhecimento não pode ensinar
(Mestre P – o grifo é nosso).
[...] qualquer dúvida que você tiver, você vai buscar na sua referência em
fulano, você tem que ter um fundamento (Mestre JD - o grifo é nosso).
[...] uma grande coisa que temos é entrar em uma academia, ter maior
respeito aos mestres,
quem vai ensinar e tudo que acontecer a
responsabilidade é dele, do mestre (Mestre P – o grifo é nosso).
Estes trechos referendam a importância da figura do mestre para o ensino
da capoeira Angola, onde este “exerce um papel central na preservação e
transmissão dos saberes [...]” (ABIB, 2006, p.91). De maneira semelhante nas
124
escolas de ofícios o mestre era considerado como um patriarca, pois era total
responsável pela formação de seu aprendiz, sendo de sua responsabilidade não
só os segredos de seu ofício, mas também como e em que medida transmiti-los
aos seus aprendizes (RUGIU, 1998). Desta forma o convívio passa a ser um fator
preponderante para a transmissão dos conhecimentos (CASTRO JÚNIOR, 2004).
Onde a Mestra J em seu relato destaca:
[...] dizendo pros meus alunos que nossa relação não se resume em uma
relação letiva, não é um ano letivo, mas sim que o mundo em movimento é
capaz de produzir entre a gente o tempo todo, (Mestra J – o grifo é nosso).
Valorizando os laços que possui com seus alunos a Mestra J, relata que a
relação com seus alunos não se resume apenas no aprendizado da capoeira
Angola, mas sim uma relação que será construída coletivamente no decorrer do
tempo, dentro e fora do espaço de aprendizado. Neste sentido Rugiu (1998)
contribui relatando que a formação do aprendiz não ocorria apenas no interior da
oficina, mas também no ambiente e nas experiências das comunidades nas quais
vivia. Ainda neste âmbito o Mestre M, em seu depoimento, menciona o seu
processo de formação familiar como base para as relações que estabelece com
seus alunos destacando o respeito como a principal delas:
Então minha relação com meus alunos têm relação com a minha
formação, meus pais meus avós e tal [...] meus alunos são ótimos, o que eu
tenho com meus alunos e eles comigo é respeito! Respeito tem que ter!
(Mestre M - o grifo é nosso).
Sobre este aspecto Abib (2006) contribui dizendo:
[...] o mestre corporifica, assim, a ancestralidade e a história de
seu povo e [...] é capaz de restituir esse passado como força
instauradora, que irrompe para dignificar o presente e conduzir a
ação construtiva do futuro (p. 92).
Dando continuidade a questão da presença e importância do respeito na
relação mestre-aprendiz, o Mestre M, em um outro trecho, destaca um exemplo
do grau em que este respeito se encontrava:
125
Antigamente não era assim, antigamente o mestre dizia que o berimbau
era de plástico e mesmo que o cara tivesse vendo que não era ele tinha
que aceitar, mas hoje não! (Mestre M - o grifo é nosso).
Neste mesmo sentido, este respeito também pode ser complementado por
um trecho contido no depoimento do Mestre JD:
O aluno ia lá devagarzinho, escutando, ouvindo, mas não questionava (Mestre
JD).
Este grande respeito à figura do mestre ocorre devido à mesma representar
o porte e a guarda da memória e tradição do seu povo, sendo esta figura,
fundamental no seio de uma cultura, pois possui a função de disponibilizar o saber
às novas gerações (ABIB, 2002), adquirindo assim um reconhecimento muito
grande por parte de seus discípulos, como nos mostra a Mestra J:
[...] eu posso sair do GCAP mas, o Moraes vai comigo pra vida toda, meus
mestres, vão estar comigo nas aulas, não apenas porque estão vivos e
vendo o que eu estou fazendo e como eu estou atuando em nome deles e
em nome do conhecimento que eles me passaram, mas eu reconheço o
quanto eles modificaram minha vida, e é essa professora angoleira que eu
quero ser (Mestra J – o grifo é nosso).
A partir deste trecho podemos citar Rugiu (1998), que referindo-se a esta
relação que se estabelece entre mestre-aprendiz, destaca:
A relação mestre aprendiz era e sempre e de qualquer modo uma
relação
educativamente
relevante
e compreensiva de
procedimentos de aprendizado, comportamentos requeridos pela
classe social e pelo grupo e constituição de comportamentos
típicos nas relações com a realidade cotidiana (p. 48-49).
Deste modo a Mestra J destaca não somente a valorização da relação com
o mestre, como também de certos elementos que a capoeira Angola produz, no
qual podemos chamá-los de artefatos:
[...] a necessidade de valorizar o mestre, a necessidade de valorizar o lugar
de quem aprende, como um eterno aprendiz, a necessidade da gente
desmistificar alguns conceitos que estão situando à tradição numa relação
126
meramente autoritária para assim entendermos que a essência da
capoeira produz tantos encantamentos (Mestra J – o grifo é nosso).
Este encantamento mencionado pela Mestra J, nos remete a uma filosofia
de vida, onde os ensinamentos dos velhos mestres orientam a vida de muitos
capoeiristas do presente, fazendo assim a capoeira Angola ser marcada pela
volta, em um sentido onde o tempo vai e volta, caracterizando uma circularidade
do conhecimento. (SCALDAFERRI, 2009). Ainda neste sentido a mestra
acrescenta:
[...] eu entendo que eu faço parte de um elo, aliás que eu sou o elo entre
uma tradição que apesar de todas as modificações tecnológicas e modernas
em torno dela ela se manteve num patamar da comunidade, da oralidade e
que meu lugar é exatamente valorizar através da memória essa tradição,
formando uma geração de pessoas que estejam sendo de certa forma
preparada para geração seguinte (Mestra J – o grifo é nosso).
Esta fala nos remete a Vassallo (2005) onde destaca que a entrada no
mundo da capoeira Angola é pensada como um rito de iniciação similar ao do
candomblé, que conduz os indivíduos a uma verdadeira transformação da
identidade. Este novo sujeito que surge é dotado de consciência da sua opressão
e dos instrumentos necessários para combatê-la.
Para Castro Júnior (2003), o sentido desta relação pedagógica entre
mestre-aprendiz, não se resume a simples demonstrações de golpes e exercícios,
para que o aluno realize, como se fosse uma receita pronta e acabada, mas sim:
[...] valorizam toda uma produção cultural constituída no universo
da capoeira que consiste em respeitar o companheiro
independentemente da idade, do sexo e do ethos, afirmam a
importância de conhecer o ritual enquanto conhecimento
transmitido pelos seus antecessores e de valorizar uma tradição
cultural que produz uma certa identidade, enfatizando também, a
importância de aprender a manusear os instrumentos que
compõem uma roda de capoeira, bem como os cânticos. Enfim,
incorporar a capoeira enquanto filosofia de vida (p.80).
Neste sentido utilizamos Abib (2007) que complementa destacando que o
capoeirista da atualidade de maneira consciente ou inconsciente torna-se herdeiro
desta relação ancestral que a capoeira Angola traz subjacente a ela, não ficando
127
imune aos sentidos e significados do processo de identificação cultural pelo qual o
iniciado da capoeira vivencia que por sua vez acaba adquirindo outras atitudes,
ampliando suas formas de ver o mundo com seus perigos e adversidades.
Deste modo nota-se a partir da capoeira Angola uma forma diferente de
enxergar o mundo, que é fruto dos ensinamentos que vão passando de geração
para geração, onde uma está sendo preparada para a próxima, conforme
observamos no final do depoimento da Mestra J. De maneira semelhante nas
escolas de ofícios os ensinamentos revestidos de simbolismos e concepções
religiosas eram transmitidos de geração para geração através da oralidade para
os aprendizes que passam a ser herdeiros desta sabedoria (RUGIU, 1998). Se
referindo também a esta questão da transmissão dos conhecimentos o Mestre C
também faz a mesma afirmação e destaca um outro artefato importante ligado a
este assunto :
É um aprendizado que vai passando de um pro outro, eu acredito [...] o que
acontece é o seguinte: tem coisa que você pode passar para o aluno
agora, nesse momento, mas tem coisas que ele ainda não ta preparado
para aprender nesse momento, então isso é que é o segredo. Eu posso
passar um movimento pra um aluno, bem simples e posso passar esse
mesmo movimento pra uma pessoa com mais experiência, só que um pouco
mais complexo (Mestre C – o grifo é nosso).
Como vimos anteriormente em Rugiu (1998) e Abib (2006) tanto na escola
de ofício quanto na capoeira Angola, os mestres transmitem seus conhecimentos
cuidadosamente como se estes fossem um segredo. Este para a capoeira aparece
enquanto uma essência das formas mais primitivas (CASTRO JÚNIOR, 2003).
Todavia como destaca o Mestre C este conhecimento possui um momento certo
para sua revelação, competindo ao mestre julgar este momento, como nos mostra
Castro Júnior (2003):
A revelação do segredo é um processo de rigorosidade na
dinâmica cultural entre mestrez-aprendiz. O tempo de revelação
não é padronizado para todos os aprendizes; cada um tem o seu
próprio momento. Cabe ao mestre, na sua sutileza, iniciar o
aprendiz nos ensinamentos mais secretos (p.95).
128
Sobre este preparo o Mestre P, comenta:
[...] a energia que nós temos, o preparo é mais mágico o preparo nosso [...]
é uma caixa de peito aberto nós colhemos pra praticar isso de acordo com
o mestre e aí vamos praticando a praticando[...] (Mestre P – o grifo é
nosso).
Castro Júnior (2003) relata que existe certa situação de magia na relação
mestre-aprendiz, onde através do diálogo e da oralidade cria-se um campo de
descobertas, onde o aprendiz procura ir em busca de suas raízes, suas tradições
e suas atualizações junto ao seu mestre: “ele quer beber água na fonte”. Esta
expressão usada pelo autor, somado ao que observamos anteriormente nos
remete a um universo de produção e reprodução de artefatos culturais das escolas
de ofício que se fazem presentes na capoeira Angola, nos quais significados,
símbolos e signos culturais são transmitidos, assimilados ou rejeitados pelas
ações e representações dos aprendizes em seus espaços instituídos e concretos
de realização (VIEIRA, 2004).
No que tange aos valores, notamos no depoimento do Mestre B, uma das
principais características presentes nas corporações de ofícios:
Ele queria congregar todos os grandes mestres da Bahia e criar um
centro de capoeira, [...] quando foi dado a ele em 1941 pela mão de
Amorzinho que já sentiu naquela época que estava prestes a ir para o outro
lado, queria alguém com essa condição de capoeirista e aí viu em Pastinha
que ele era o homem pra ser o mestre geral da capoeira na Bahia e todo
mundo apoiou. (mestre B – o grifo é nosso).
Assim observamos um intuito de agregar, de unir o maior número de
praticantes de capoeira Angola, tendo como local de referência à academia de
mestre Pastinha, que também adotava uma outra característica das escolas de
ofícios como nos mostra outro trecho do depoimento do Mestre B:
Em 1979 ele me deu o diploma. Quando o mestre faleceu a academia ia
ser colocada nas mãos de João Grande e João Pequeno, que eram mais
velhos, mas a companheira de Pastinha não aceitou a aí foi cada um abrindo
a sua academia. (Mestre Bola – o grifo é nosso).
129
Mestre Pastinha seria o principal representante desta prática e em seu
espaço fazia o uso de uma certificação que marca o avanço na hierarquia como
nas escolas de ofício. Não obstante, de maneira similar, com o objetivo de
organizar e reger os ofícios, as corporações possuíam o objetivo de agregar o
maior número de bandeiras, ou seja, o maior número de ofícios sob sua
responsabilidade, possuíam um local para sua sede, constituindo assim uma
associação para formação de identidade (MARTINS, 2008; CUNHA, 2000).
Desta forma tal ato retrata o grau de compromisso do mestre com a
capoeira Angola como destaca a Mestra J:
[...] esses mestres que tem a experiência, eles ultrapassaram as dificuldades
históricas e sociais acumuladas, enfim, tem uma relação de compromisso
com a capoeira e esse entendimento de preservação está presente em
nossas ações o tempo todo (Mestra J – o grifo é nosso).
Com isso entendemos a academia ou espaço de aprendizagem da capoeira
Angola, como uma oficina onde de acordo com Sousa Neto (2005), em seu interior
situam-se valores, rituais instituem-se regras e códigos que buscam preservar sua
identidade, complementando assim o depoimento da Mestra J que menciona:
[...] o campo dos valores, que é o centro, o pólo da nossa tradição de
capoeirista, então é esse processo filosófico da capoeira Angola que a
gente busca manter sempre, ou seja, tratando o ser capoeirista, o
aprendizado de ser capoeirista através da atuação da vivência desses
valores (Mestra J – o grifo é nosso).
De tal modo, como na escola de ofício, Castro Júnior e Sobrinho (2002),
relatam que através de valores e rituais de ensino, que o aprendizado da capoeira
assegura os contos e cantos e valoriza a luta das culturas de resistências, no
sentido de afirmar suas crenças e suas singularidades. Citando um dos exemplos
dos rituais presentes no cotidiano das aulas citamos o trecho do depoimento da
Mestra J:
A aula com a bateria e com os instrumentos? Desde GCAP, é uma tradição,
eu aprendi isso agente abomina aquele sonzinho mecânico, e só usa
quando não tem jeito (Mestra J – o grifo é nosso).
130
Temos então a partir dos trechos dos depoimentos dos mestres, a
identificação da presença de características (relação mestre-aprendiz, artefatos,
valores, e rituais) que vão de encontro à caracterização da capoeira Angola
enquanto escola de ofício, onde a principal delas reside na relação mestreaprendiz. Nesta questão os mestres JD, P e V, dão ênfase a importância da figura
do mestre para o aprendizado, pois é através dele que se encontra o caminho
para se obter os conhecimentos inerentes a capoeira Angola. Assim podemos
mencionar a importância da figura do mestre para determinado ofício, pois este
possui os segredos e os saberes de sua arte, tornando-se assim uma figura
respeitada e reconhecida socialmente (ARROYO, 2000; RUGIU, 1998; SILVA;
SOUZA NETO; BENITES, 2009).
Os mestres J e M, na relação mestre-aprendiz dão mais ênfase sobre os
laços que se estabelecem a partir desta relação destacando principalmente o
respeito para com o mestre e para com os conhecimentos fornecidos por ele.
Neste sentido Reis (2004) e Rugiu (1998) relatam sobre a importância destes
laços, onde o aprendiz aprendia os segredos do ofício, como destaca Silva, Souza
Neto e Benites (2009): “Este ocorria de maneira lenta possuindo um plano de
formação continuada, gerando uma educação permanente” (p.878). Daí o respeito
gerado pelo contato com o mestre que fundamenta esta relação.
Na questão dos artefatos identificados nos relatos, o Mestre C destaca ao
segredo, que para Abib (2004):
O segredo é um componente deste universo, quando este é
institucionalizado ele é o próprio processo iniciático, constituído por
um conjunto de atos ritualísticos através dos quais se transmitem
gradualmente ao longo do tempo conteúdos secretos (p.132).
De maneira semelhante Rugiu (1998) destaca este segredo como principal
componente presente no interior das escolas de ofício, onde o preparo perpassa
inclusive pelos caminhos de certa magia, que vai de encontro ao relato do Mestre
P. Para Abib (2004) esse componente de magia que reveste o universo da
capoeira Angola, expressa o vasto campo de significados dessa manifestação, no
131
qual a Mestra J destaca a capoeira Angola enquanto uma forma de enxergar o
mundo e a necessidade de valorizar esta visão, onde Dubar (1997) destaca como
uma identidade de ofício: “[...] forma de estruturação das atividades como modo de
socialização [...]” (p.203). O que nos leva ao campo dos rituais e valores onde
também surgem destacados nos depoimentos dos mestres B e J, e que de
maneira semelhante às escolas de ofícios estes decorrem de um determinado
ofício e se fazem presentes em um determinado local que traz consigo rituais,
valores e artefatos que correspondem ao ofício.
Assim a partir do panorama apresentado neste tópico temos a constatação
de características presentes nas chamadas escolas de ofício, todavia vale
ressaltar ao longo dos tópicos que compõem este capítulo de resultados poderão
surgir trechos dos depoimentos com características que também possam
contribuir nesta constatação.
Ao identificarmos a capoeira Angola na perspectiva das escolas de ofícios,
temos esta como um local no qual a arte é ensinada. Este local esta repleto de
saberes e conhecimentos que são (re)produzidos por ela. No tópico seguinte
trataremos dos saberes presentes neste universo.
3.2.2. Os saberes profissionais que emergem dos mestres das
escolas de capoeira Angola
Para Abib (2007) a capoeira Angola possui uma grande riqueza de
significações, formando assim uma identidade muito forte e profunda, construída
com raízes em seu passado de lutas, possuindo elementos como sagacidade,
brincadeira, ancestralidade e ritualidade que constituem seu universo e compõem
um vasto campo de conhecimentos e saberes. Estes saberes guardam aspectos
importantíssimos relacionados à cultura da capoeira Angola.
Para Silva (2009) os saberes:
132
[...] são resultados de processos mentais baseados na atividade
cognitiva dos indivíduos, bem como de processos sociais pautados
em convivências nos grupos sociais e nas relações complexas
existente entre indivíduos desses grupos ou entre indivíduos de
diferentes grupos sociais (p.24).
Para Tardif (2002) eles consistem em elementos que decorrem da
identidade, experiência de vida, história profissional etc. de um indivíduo como
vimos anteriormente. Deste modo encontramos nos depoimentos dos mestres,
elementos tais como tempo, música, fundamentos, ancestralidade, que juntos dão
origem há um conjunto de saberes presentes no universo da capoeira Angola que
a caracterizam e contribuem para construção/preservação de sua identidade.
O tempo e as questões a ele ligadas, aparece como principal elemento,
sendo destacado nos depoimentos dos mestres C, J, JD, M, P e V. Em seguida a
musicalidade e seus desdobramentos no interior da capoeira Angola surgem como
o segundo elemento de maior destaque, sendo referendada nos depoimentos dos
mestres C, J, JD e P. O próximo elemento encontrado se refere a ancestralidade
sendo este referendado nos depoimentos dos mestres B, J e V.
O elemento seguinte se caracteriza como fundamentos, entendendo este
como um conjunto de valores, tradições, códigos, artefatos e rituais onde todos os
elementos que compõem o universo dos saberes, originam o que os mestres
chamam de fundamento da capoeira Angola, sendo este destacado sob esta
perspectiva pelos mestres B, C, J e M. Entretanto entendemos que todos os
mestres mencionaram sobre este fundamento uma vez que este é fruto da união
de todos elementos já citados.
Isto posto, vejamos nos depoimentos dos mestres quais os elementos
constituintes dos saberes que permeiam o universo da capoeira Angola.
Destacando o tempo como fator principal para se adquirir conhecimentos na
capoeira, o Mestre C em seu depoimento relata:
Eu costumo dizer que a capoeira não tem segredo, a vida é que tem
segredo, a capoeira a gente vai descobrindo todo dia (Mestre C – o grifo é
nosso).
133
Neste sentido o Mestre V contribui dizendo:
Como eu falei do tempo, o tempo é o senhor de tudo. O tempo é que
determina (Mestre V – o grifo é nosso).
A este respeito Castro Junior (2003) relata que: “Os saberes são
construídos na dinâmica das experiências interagidas no espaço-temporal” (p.41),
ou seja, à medida que o tempo de pratica avança, com ele os conhecimentos
também, são adquiridos pelo praticante. Com tudo o praticante deve dar tempo
para que este conhecimento seja adquirido, não possuindo intenção de acelerar
este processo como alerta o Mestre JD:
É não ter pressa! E fora isso entender um pouco da leitura sobre a
capoeira. Eu conheço tanta gente que ta com 2, 3 anos de capoeira e não
conhece nada da história da capoeira. A humildade, o respeito, eu acho que
com isso aí a pessoa vai aprender capoeira sem problema nenhum. (Mestre
JD – o grifo é nosso).
Isto nos remete a Abib (2006), onde explica que a capoeira Angola traz
belos exemplos de como os saberes são transmitidos pacientemente pelo mestre,
e este conhecimento:
[...] só é disponibilizado àqueles que demonstram amadurecimento
e compromisso suficientes para poderem utilizá-lo em benefício da
própria preservação da tradição. Essas estratégias são
importantes no sentido de manter certa coesão em torno desses
saberes e tradições, fundamentais em relação ao sentimento de
pertencimento identitário e de transmissão da memória coletiva do
grupo, que se constitui a partir dessas práticas (p.94).
Desta forma com o passar do tempo o capoeirista adquire também uma
experiência em sua pratica pautada em suas relações humanas no âmbito da
capoeira Angola, como nos mostra o depoimento do Mestre V:
[...] no caso de nós capoeiristas é trabalhar e você adquire dentro da sua
experiência e vivência com sua referência de capoeira uma relação
humana. Eu acho que isso para qualquer que seja o conhecimento é
fundamental, a relação humana! Então o primeiro passo, uma coisa que
você tem que ter é sensibilidade (Mestre V – o grifo é nosso).
134
Esta paciência em deixar o tempo atuar como escultor na construção das
qualidades de um bom capoeirista é característico dos grupos de capoeira Angola
(ABIB, 2006). Onde seus processos iniciáticos, geralmente perpassam pela
oralidade, contada através da experiência de vida (CASTRO JÚNIOR, 2003).
Com o tempo estes conhecimentos passam a fazer parte do cotidiano
desses praticantes, sendo expressos na maneira com que estes se relacionam e
aprendem com o mundo, como nos mostra em seu relato o Mestre P:
[...] a convivência é assim, porque é o mundo que está ensinando, porque
se não fosse o mundo ensinar eu não tinha academia lá na Alemanha, não
tinha academia lá na Saldanha e aí por diante, porque eu aprendi um pouco
aqui e o mundo ta me ensinando pra eu distribuir a capoeira que foi
valorizada mais cada vez mais (Mestre P – o grifo é nosso).
No entanto o tempo na capoeira não se refere apenas ao período em que
se pratica, sendo este o elemento necessário, para se obter a experiência na
modalidade, mas também algo que nos remete a um passado como referenda a
Mestra J:
[...] a gente precisa fazer o caminho de volta, humanizar aquele
conhecimento a respeito de todas as dificuldades, a respeito da miséria, e
quando eu falo da miséria eu falo de um conjunto de lições que foram
sendo deixadas de lado ao longo da vida de muitas dessas pessoas, pois
se trancaram num mundo que não gira em torno do consumo e que
encontraram na capoeira exatamente um espaço de encantamento [...]
(Mestra J – o grifo é nosso).
Neste sentido Vassallo (2005), ressalta a necessidade de se realizar um
movimento de retorno ao passado, acreditando ser possível recuperar as
características essenciais sem deformá-las e acrescenta:
Nesse sentido, a Capoeira Angola da atualidade teria que se
reproduzir tal como no passado, mantendo fidelidade às tradições.
A idéia de preservação torna-se, então, fundamental para a
compreensão deste universo. Segundo esses praticantes de
Capoeira Angola, haveria uma relação direta de continuidade entre
o presente e o passado, que asseguraria a manutenção da
“ancestralidade africana” (p.18).
135
A valorização destes laços com o passado, podem ser identificados no
depoimento do Mestre V:
Primeiramente quando eu falo de capoeira eu falo daquilo que eu tenho
conhecimento que é a capoeira Angola. Quando se fala de capoeira Angola
você fala de heranças de povo, você fala de cultura afro, então ta falando
de raízes! (Mestre V – o grifo é nosso).
Esta preservação destes laços garantem uma visão de mundo africana
considerada essencial para a capoeira Angola (VASSALLO, 2005). O que nos
remete a presença de um elemento que para Castro Júnior (2003), se faz presente
nas tradições culturais africanas, sendo chamado de ancestralidade:
A ancestralidade, de maneira geral, é considerada relativa aos
antepassados, aos antecessores, aos que passaram e aos que se
encontram presentes. Na roda de capoeira, como fora dela, a
relação do capoeirista com seus antepassados é intima. O morto,
o ancestral, está presente tanto no passado como no presente. A
essência da ancestralidade é uma relação híbrida do "velho" com o
novo', do passado com o presente, do visível com o invisível e do
imanente como o presente (p.26).
Assim temos a partir da ancestralidade um elo entre o praticante e seus
antepassados e antecessores da capoeira Angola. Esta noção de passado por sua
vez possui uma aura de autenticidade que o presente por si não contém, havendo
a necessidade do resgate (VASSALLO, 2005). Desta forma a conexão com a
ancestralidade estabelece uma ligação entre o passado ancestral e o presente,
possibilitando o futuro enquanto oportunidade concreta de afirmação social,
cultural e política (ABIB, 2006). Neste sentido a Mestra J, relata:
[...] ter reconhecimento de que com esse conhecimento que a gente vai
modificando as pessoas, se modificando, como uma transformação, e essas
coisas vão ser um momento de trocar idéias com os grandes mestres
(Mestra J – o grifo é nosso).
Temos então segundo a Mestra J, a figura do mestre enquanto a
materialização da ancestralidade, onde este tem a missão de restabelecer o
136
passado para dignificar o presente e guiar a ação construtiva para o futuro (ABIB,
2002, 2007). Esta ancestralidade para Santos (2009):
[...] remete à construção da identidade histórica de um grupo
englobando todos os aspectos sociais, econômicos e suas
dinâmicas. Ao se falar sobre ancestralidade abarca-se a
percepção das origens e dos desdobramentos da experiência
histórica específica de uma cultura (p.4-5).
Não obstante Castro Junior (2004) destaca esta ancestralidade enquanto
componente integrante da capoeira, que por sua vez traz elementos, sentidos e
significados de representações sociais que acabam por constituir uma própria
linguagem de comunicação social. O Mestre B em seu depoimento destaca um
destes elementos:
[...] uma coisa importante dentro da capoeira é que às vezes as pessoas
não dão valor, no que está contido naquele ritual, um grande percentual
de malícia, pois você pode até matar um camarada. Se o camarada não sabe
se aproximar, se não tem a malicia ele dança, a malícia é fundamental
(Mestre B – o grifo é nosso).
Para Castro Junior (2003), esta malícia pode ser chamada de mandinga,
onde através desta durante o jogo, o jogador cria uma situação e quando o seu
parceiro se aproxima ele desfaz aquela situação a transforma em outra totalmente
diferente. É aplicado um golpe inesperado e o outro não consegue sair mais, uma
situação onde um parceiro engana o outro no jogo. O autor ainda acrescenta:
[...] outra característica que podemos considerar como traço da
ancestralidade é a mandinga, que é um pré-requisito fundamental
em qualquer capoeirista, e não deve ser entendida como uma
manifestação artificial (quando, a todo custo, o capoeirista quer
pegar o outro no revide imediato e violento), mas a tranqüilidade
de perceber o momento certo para dar o "bote da cobra" (p.29).
Destacando a importância deste elemento para a capoeira Angola o autor
afirma que sem mandinga a capoeira perde sua referencia cultural, perde a graça,
137
perde o jeito manhoso brasileiro, o que vai de encontro ao depoimento do Mestre
B quando ressalta:
[...] sem malícia não tem capoeira, é só um bailarino que joga a perna e faz
melhor que um capoeirista (Mestre B – o grifo é nosso).
Esta ancestralidade destacada nos relatos acima também é expressa
através de um outro elemento que compõem o conjunto de saberes presentes na
capoeira Angola, como nos mostra Abib (2002):
[...] no cantar de uma ladainha, invocam todo um passado de luta e
sofrimento; quando se busca nesse momento de celebração, toda a
memória e a tradição espiritual de um povo que segue resistindo a
séculos de dominação; [...] expressando uma estética que remete a
toda uma ancestralidade que incorpora referências rituais de um
passado que continua vivo, tatuado no corpo de cada capoeirista
[...] a noção de circularidade do tempo [...] (p.86).
A força que o ritmo, o canto e os instrumentos possuem na capoeira Angola,
nos remetem a uma musicalidade, que se faz presente através da união destes
itens, configurando-se em mais um dos saberes de seu universo. O Berimbau
principal instrumento deste conjunto era utilizado nos primórdios da África, como
instrumento para conversar com os mortos, que eram chamados para restabelecer a
dignidade daqueles que persistem em tornarem-se herdeiros de sua sabedoria e
tradição (ABIB, 2002), como nos mostra o relato do Mestre JD:
A musicalidade, o que é a música? O que significa a ladainha? O que
significa a chula? O que significa o canto de entrada? o que a música tá
falando na roda! As chamadas, o que significa o pé do berimbau ou o
cuidado que você tem que ter com o berimbau, entendeu? E fora isso os
movimentos que você ta fazendo, muitas vezes pega de fora da Angola e
não tem nada a ver com Capoeira Angola. E aí vai ferindo cada vez mais
a tradição! (Mestre JD – o grifo é nosso).
É
nesta
musicalidade
que
a
circularidade
do
tempo
é
ritmada
constantemente pelo ritmo dos berimbaus, atabaques, pandeiros, e agogôs e seus
respectivos toques (CASTRO JUNIOR, 2003), constituindo-se como parte
138
integrante de um conjunto elementos necessários e característicos à capoeira
Angola, chamado de fundamento, como aponta o Mestre P:
O fundamento da capoeira é o seguinte, nós temos o coral pro pessoal
responder a ladainha, a ladainha é a coisa mais importante dentro da
capoeira Angola e depois puxa o relativo, é o fundamento [...] a pessoa tem
que aprender o fundamento tanto de canto, como base da capoeira, como
de toques, os toques: são oito toques que tem no berimbau formado e bateria
ele tem que aprender aquilo tudo, no gunga, médio e viola, pandeiro, recoreco, agogô e atabaque (Mestre P – o grifo é nosso).
Ainda se referindo a questão da musicalidade o Mestre P, destaca a
importância destes instrumentos enquanto verdadeiros símbolos de tradição e
respeito:
[...] com o material que a gente diz, o berimbau, atabaque, agogô, recoreco, pandeiro, é o necessário para manter e ter ordem e respeito (Mestre
P – o grifo é nosso).
Desta forma cada instrumento tem uma função específica, todavia fazendo
parte de um contexto global, não sendo isolado na periferia e mantendo ligação
com a totalidade da roda (CASTRO JUNIOR, 2003).
Neste sentido o autor ainda destaca a questão dos ritmos tais como,
Angola, São Bento pequeno e São Bento grande, contendo neles a repercussão
no conjunto com todos os instrumentos, levando a uma harmonia musical que vai
influenciar diretamente o jogador. Daí a importância da prática com os
instrumentos principalmente com o berimbau, como destaca a Mestra J,
mencionando uma método no qual participou de sua criação/desenvolvimento
para que esta familiarização com os instrumentos ocorresse:
A orquestra também foi uma coisa que a gente participou e desenvolveu
pegar os berimbaus, saber interpretar, saber fazer arranjo em cima dos
toques e não ficar literalmente ao formato como eles são tratados na
identidade do grupo, dentro da roda, porque a roda é um fenômeno
específico de apresentação dessas identidades, mas também de certa
forma vamos dizer acelerar e produzir maior intimidade das pessoas com
os instrumentos então a orquestra é essa brincadeira, e foi crescendo [...] e a
medida com que o tempo foi passando a gente foi percebendo que a
139
orquestra cumpria um papel que muitas vezes era importantíssimo...
(Mestra J – o grifo é nosso).
Esta importância, atribuída pela Mestra J, no trato com os instrumentos
presentes na capoeira Angola, em especial com o berimbau, se dá devido ao valor
e influencia destes para a roda como nos mostra Castro Júnior (2003):
Na roda de capoeira, o capoeirista, quando está jogando, entra em
sintonia com a música e os toques dos instrumentos; cada toque
do berimbau corresponde a uma necessidade durante o jogo.
Nesse processo de interação, o que ocorre é uma constante
harmonia entre o ritmo lento, melancólico, sutil e majestoso com o
jogador (p.28).
O autor ainda acrescenta que tamanha é esta interação entre instrumentos
e jogador que se torna comum a interrupção do jogo pelo próprio jogador ao
perceber que o conjunto de instrumentos não esta em harmonia, ou seja, quando
os instrumentos não estão em um ritmo apropriado, ou quando os instrumentos de
marcação estão se sobressaindo em relação aos berimbaus.
Como parte integrante da musicalidade o canto também se configura em
um dos fundamentos de grande importância, contidos na capoeira Angola, como
mostra o Mestre C:
[...] dentro da capoeira Angola mais especificadamente, é estudar, é
entender esses fundamentos, é saber à hora de começar uma roda, a
hora de parar, de começar uma música. E também é saber o que o seu
aluno necessita naquele momento (Mestre C – o grifo é nosso).
Os cantos para Castro Júnior (2003, 2004) são informações que trazem o
entendimento de inúmeras situações ao longo da história, eles podem
(re)interpretar o passado. Solicita uma grande responsabilidade por parte de quem
canta, pois para a capoeira Angola não se canta por cantar; o canto tem sentido e
significado, e explica:
No canto, acontecem dois momentos de complementares: o
primeiro momento do cantador que puxa o canto e o segundo,
momento em relação ao refrão que todos os participantes daquele
contexto cantam em conjunto. Também existe a ladainha que é o
canto que abre a roda de capoeira, geralmente ela traduz; a
140
história do povo brasileiro, homenageia os antigos mestres, enfim
qualquer tipo de expressão (p.24).
Entretanto este fundamento da Capoeira Angola se constitui da união de
inúmeros elementos, como citamos anteriormente, sendo a musicalidade um
destes elementos. O Mestre C em seu depoimento comenta sobre a composição
deste fundamento:
[...] o fundamento da capoeira, vai de acordo com cada um e com cada
aprendizado. Não tem segredo, são coisas simples, é o dia a dia [...] a
Capoeira Angola, ela não vai simplesmente se fechar dentro da questão
do movimento, ela tem muitas outras coisas, parte musical história,
Filosofia porque a capoeira envolve a filosofia do mestre Pastinha... (Mestre
C - o grifo é nosso).
Neste sentido a Mestra J também faz menção ao fundamento da capoeira
e alguns de seus elementos constituintes:
[...] desde o inicio da minha prática na capoeira, conciliando prática e
ativismo, ou seja, entrar na roda em condição de trabalhar os
fundamentos da capoeira (canto, toque , jogo , etc) não sendo melhor, nem
pior que ninguém mas estando dentro dos fundamentos e fora da roda em
posição de puro ativismo (Mestra J – o grifo é nosso).
Existe uma grande preocupação por parte dos mestres em preservar este
fundamento e seus elementos o que nos remete a conservação de uma tradição
como ressalta o depoimento do Mestre M:
[...] tudo o que você deve conservar de tradição é bom para continuidade
capoeirista (Mestre M – o grifo é nosso).
Para Castro Júnior (2004), a preservação das tradições dos antepassados
constitui-se em um respeito onde os capoeiristas realizam uma mediação entre
manter a herança cultural de seus antepassados e sua modificação em virtude das
necessidades impostas pela sociedade globalizada.
A partir do quadro apresentado temos o saber como uma relação recíproca
onde o produtor e o produto do saber é historicamente construído, guardado e
141
transmitido por gerações, que por sua vez o (re)elaboram a partir do tempo
presente (CASTRO JÚNIOR, 2003).
O fator tempo foi o elemento mais citado nos depoimentos dos mestres. Em
seus relatos os Mestres C, JD, P e V referendam este como fator preponderante
para que se adquira o conhecimento na capoeira Angola. Para eles é necessário
que o tempo prepare o praticante para receber estes conhecimentos, como se
estes fossem segredos onde não se deve ter pressa em aprendê-los, o que nos
remete a Abib (2006) no qual ressalta:
Manifesta-se, assim [...] a noção de circularidade do tempo na
capoeira angola, e os processos de aprendizagem presentes em
seu universo acabam por serem também, em certa medida,
influenciados por essa concepção de tempo (p.96).
Esta circularidade do tempo destacada pelo autor também refere-se à
presença de um conjunto de ensinamentos que são passados de geração para
geração como foi destacado pela Mestra J que acaba por apontar para outro
elemento encontrado sendo este chamado de ancestralidade. Para o Mestre V
esta se faz presente através dos ensinamentos deixados pelos mestres, pautados
em uma cultura africana. Neste sentido Vassallo (2005) destaca:
A crença no retorno a um passado [...] A busca das origens deve
ser pensada como um mito dotado de um enorme poder redentor.
Sua veiculação dá sentido à história, confere um novo significado à
vida e, sobretudo, cria modelos de ação para o presente [...] daí
todos os esforços dos angoleiros no sentido de estabelecer um
vínculo de continuidade com o passado [...] (p.39).
Estes ensinamentos e o contato com os velhos mestres para a Mestra J
acabam por impulsionar uma modificação no comportamento dos praticantes no
qual Vassallo (2005) explica:
A entrada no mundo da capoeira é pensada como um rito de
iniciação que conduz os indivíduos a uma verdadeira
transformação da identidade. Esse novo homem que surge é um
sujeito dotado de consciência da sua opressão e dos instrumentos
necessários para combatê-la. O elemento que o levou à
142
transformação foi a aquisição de uma visão de mundo africana,
que só pôde ser transmitida através da participação nas rodas
(p.36).
Desta forma a presença desta ancestralidade que reverencia um passado
permite assim uma melhor compreensão do presente e uma projeção do futuro
como nos mostra Abib, 2002:
Nesse vigorar, abre as possibilidades para projeção de um futuro
que já se faz germinado a partir da tomada de uma consciência
coletiva sobre a historicidade dos processos das relações sociais,
das quais esses sujeitos são protagonistas. Falamos de um
processo de conscientização coletiva, pois se trata de uma
consciência que abre concretas possibilidades de ação, enquanto
construção de um futuro. Na Capoeira Angola completa-se assim a
noção da circularidade do tempo: passado, presente e futuro
compreendidos enquanto unidade temporal (p.86).
Esta ancestralidade também pode ser expressa através de artefatos
produzidos pela capoeira Angola, como observamos no depoimento do Mestre B
quando destaca a malícia como elemento essencial da capoeira Angola. Para
Frigério (1989) este é um dos principais fundamentos da capoeira que consiste na
habilidade de surpreender o adversário. Esta malícia como vimos, na capoeira é
chamada de mandinga que para Castro Júnior (2003):
[...] aparece no universo da Capoeira como um instrumento do
capoeirista durante o jogo, que ajuda no seu "desempenho" no
sentido de envolver o seu parceiro naquele contexto. É a
possibilidade do capoeirista driblar o outro capoeirista. O
capoeirista cria uma situação de brincadeira, de "faz de conta" e
consegue mudar o sentido e o significado das coisas [...] (p.30-31).
O autor ainda acrescenta que a mandinga é um “estado mágico” do
capoeirista onde ocorre a interposição entre o visível e o invisível.
Destacando também outra forma de expressar a ancestralidade, os Mestres
J, JD e P referendam a importância da música e o trato com os instrumentos
presentes na capoeira Angola, no qual o Mestre JD enfatiza como musicalidade,
sendo esta o entendimento sobre os cantos e os instrumentos. A Mestra J
143
menciona uma forma na qual possui um papel de extrema importância pois auxilia
os capoeiristas a possuir maior intimidade com os instrumentos. Já o Mestre P
destaca esta musicalidade como o principal fundamento da capoeira Angola
ressaltando principalmente o canto. Neste sentido podemos citar Castro Júnior
(2003) que ressalta:
No momento da roda, os participantes ficam atentos ao canto do
capoeirista principalmente se estiverem cantando os mestres mais
experientes, porque é justamente neste momento em que a cultura
é executada, revigorada e praticada no seu contexto peculiar, na
roda de capoeira, que ela vai ser revivida e transmitida com toda
sua vitalidade expressiva da cultura popular (p.25).
Temos então o canto como parte integrante de um conjunto de
fundamentos que constituem o universo da capoeira Angola, onde o Mestre C
destaca que estes estão contidos no cotidiano dos capoeiristas e que o canto, o
toque, o jogo e a roda que podem ser considerados parte destes fundamentos
conforme a Mestra J. Configurando assim uma série de elementos que visam a
preservação da tradição de uma cultura da capoeira Angola como destaca o
Mestre M. Neste sentido Vassallo (2005) destaca que a preservação desta
tradição/fundamentos, significa a sustentação de uma essência da capoeira e:
Qualquer alteração é vista como um indício de descaracterização e
deve ser evitada. Na realidade, os angoleiros estão conscientes de
que o mundo mudou nas últimas décadas e que algumas
transformações foram necessárias. No entanto, eles acreditam que
a Capoeira Angola seria dotada de certas características originais
que não poderiam ser alteradas em hipótese alguma, ao passo
que outros elementos, menos tradicionais, poderiam sê-lo. Ou
seja, esta atividade seria dotada de um núcleo rígido, uma
essência, que não poderia ser transformada. A sua superfície, ao
contrário, poderia sofrer algumas modificações sem conduzir
necessariamente a uma descaracterização12 (p. 19-20).
Temos assim presentes no âmbito da capoeira Angola um conjunto de
saberes que na visão de Castro Júnior (2003, 2004) emergem a partir das práticas
cotidianas, estabelecendo assim uma relação profunda com mestre, significando
144
acima de tudo a herança cultural deixada pelos antepassados desta prática aos
mais novos, que possuem a missão da perpetuação destes saberes tidos como
fundamentais para a essência da capoeira Angola.
Este universo no qual a capoeira Angola se encontra, pode ser entendido
enquanto um espaço social, estabelecendo relações com o conceito de campo
formulado por Pierre Bourdieu (2003), ou seja, um universo no qual estão
inseridos seus agentes que por sua vez produzem e reproduzem um determinado
tipo de bem, nos quais podemos considerar estes conhecimentos, por ele
produzidos como bens simbólicos. Entretanto um espaço social é também palco
de disputas entre agentes que possuem interesses em comum buscando se
estabelecer (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006). Vejamos a seguir como estas
disputas ocorrem no universo da capoeira.
3.2.3. A capoeira Angola como um espaço social (“campo”) de lutas
Todo campo é um campo de forças e um campo de lutas para
conservar ou transformar este campo de forças (BOURDIEU,
2003, p.23).
Utilizando como apoio alguns dos conceitos formulados por Pierre
Bourdieu, neste tópico discorreremos sobre a capoeira Angola enquanto um
espaço social, um campo dotado de inúmeras disputas que ocorrem em seu
interior.
Como vimos em tópicos anteriores, para Bourdieu (2003, 1983) os campos
são mundos, são microcosmos dotados de autonomia, no interior do mundo social.
Neste sentido Paiva (2007) acrescenta:
[...] a idéia de campo capoeirístico, partindo do pressuposto que a
capoeira é um campo social na perspectiva teórica da sociologia
de Pierre Bourdieu. Isto significa que falar de campo é entendê-lo
como um microcosmo – um pequeno mundo social relativamente
autônomo que faz parte do grande mundo social o macrocosmo
social (p.18).
145
No interior deste microcosmo é que os agentes travam lutas em torno de
certos critérios de classificação cultural (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006).
Desta forma temos através dos relatos dos Mestres J e JD, a expressão
das disputas internas que ocorrem no universo da capoeira Angola, podendo ser
identificadas nos relatos em disputas pela padronização e disputas internas no
grupo destacadas pela Mestra J, disputas pelo espaço profissional destacado pelo
Mestre JD.
Com o processo de massificação da capoeira, ela passa a atender essas
lógicas de mercado e atua exatamente no controle do saber, e daí surgem
às ridículas discussões sobre padronizar, vamos dar só um exemplo:
padronizar sistemas de graduação, um absurdo, isso é um título antigo na
Capoeira, a capoeira é um tramite de rebeldia (Mestra J – o grifo é nosso).
Neste relato a Mestre J expressa uma disputa que gira em torno da
padronização da capoeira. Para ela o campo social da capoeira Angola é
construído por meio de um processo de resistência às visões capitalistas e de
mercado. O saber neste campo nasce a partir de interações dinâmicas cheias de
afetividade, emoção e corporalidade. O aprendizado se estabelece a partir do
convívio com o mestre oferecendo um paradigma oposto “à luz da razão”
caracterizando assim uma forma de resistência (CASTRO JÚNIOR, 2003). Neste
sentido o Mestre JD destaca a questão da tendência de se profissionalizar a
capoeira Angola, o que em sua visão leva a uma perda significativa no que se
refere ao respeito e a forma de se ensinar a capoeira.
Quando a capoeira se torna profissão, quando você começa sobreviver da
capoeira aí muda tudo, você se tornou um profissional, você já vai pra
competição. Você tem que fazer melhor que o outro, tem que mostrar pro
outro que você é melhor que ele se não você perde espaço para ele [...] ta
sendo reconhecido pelos alunos como profissional (Mestre JD – o grifo é
nosso).
Os campos possuem em seu interior processos de diferenciação entre seus
agentes, que são caracterizados pelo volume e peso de seu capital dentro deste
campo (BOURDIEU, 2003). Tal processo foi descrito pela Mestre J em seu relato
ao colocar que esta centralização de poder não esta apenas na figura do mestre
146
em seu grupo ou campo social mas sim na figura de todos aqueles que possuem
um mínimo de capital para exercer determinada função no interior daquele campo.
Este campo por sua vez busca se constituir em um espaço com uma
autonomia com uma lógica particular (NORONHA e ROCHA, 2007). Como
observamos no depoimento do Mestre M:
Eu não to ensinando capoeira no século dezoito ou dezenove, são coisas
de época, por exemplo, não vou dar o nome do mestre por ética, mas ele não
inicia uma roda de capoeira com uma mulher jogando. Eu não me deixo
envolver por esses tradicionalismos, não permitir que uma mulher abra
uma roda de capoeira. Eu respeito à postura desse mestre, assim como
outros mestres cuja aluna ou alunas não pode pegar no Gunga pra tocar. Eu
quero chamar atenção pra forma exacerbada como muitos mestres de
capoeira mesmo modernos atuam, estão se envolvendo com essas coisas
de forma muito radical, tipo, antigamente uma mulher não podia tocar
porque implicava na energia da roda. Isso tudo aí, tem muitos mestres
que estão se envolvendo de forma exacerbada, com esses mitos e
representações falsas de religiosidade ou religião (Mestre M – o grifo é
nosso).
Para Bourdieu (2003) uma das formas mais visíveis da autonomia do
campo é sua capacidade de refratar, ressignificando sob uma forma específica às
pressões ou imposições externas. Assim o Mestre M demonstra a constituição da
autonomia de seu campo no qual podemos observar não apenas neste, mas em
outros trechos de seu depoimento também. Desta forma:
[...] quanto mais autônomo for um campo maior será o seu poder
de refração e mais imposições externas serão transfiguradas, a
ponto
frequentemente
de
se
tornarem
perfeitamente
irreconhecíveis (BOURDIEU, 2003, p.22).
Observamos assim a capoeira Angola enquanto um espaço social que traz
no seu interior embates que giram em torno de sua preservação. Este espaço traz
consigo um conjunto de comportamentos, práticas e posições que são frutos da
incorporação de sua estrutura social, sendo estas classificadas como habitus
(NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2006; LAHIRE, 2002). Sendo este habitus parte
integrante deste e a ele necessário. No tópico seguinte discorreremos sobre a
maneira como se constitui este habitus.
147
3.3.
O HABITUS PROFISSIONAL DO MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA
Os homens lentos (os mestres antigos), com suas astúcias e
sutilezas, revigoram alternativas, criando estratégias de agir. Eles
criam táticas de resistência, alteram os códigos, reorganizam o
espaço e não se sujeitam passivamente à violência da ordem
social vigente. Instituem práticas corporais cheias de ritualizações
e metáforas que são contaminadas, também, por elementos da
cultura hegemônica burguesa, mas contudo de uma originalidade
artesanal [...] (CASTRO JÚNIOR, 2003, p.45 – grifo do autor).
Apoiando-nos nesta fala que iniciamos o terceiro eixo do capítulo de
resultados no qual procura justamente aumentar nossa compreensão acerca da
figura do mestre de capoeira Angola, englobando suas formas de agir, estratégias
de ensino, processos de formação entre outras características a ele pertinentes.
Tais características podem ser associadas ao conceito de habitus utilizado por
Bourdieu no qual funciona como:
Estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e
organizadores de práticas e de representações que podem ser
objetivamente adaptadas ao seu objetivo[...] (BOURDIEU, 2009,
p.87).
Para tanto este eixo foi estruturado sob um tópico, intitulado: “O mestre de
capoeira Angola ensina pegando pela mão” este discorre sobre a existência dos
processos artesanais de ensino presentes no universo da capoeira Angola onde
estes também nos auxiliam na caracterização da mesma enquanto escola de
ofícios.
Ligados a este tópico temos três sub-tópicos onde o primeiro intitulado: “A
ação didática do mestre de capoeira Angola no processo de formação do
capoeirista” no qual discorre sobre estratégias de ensino utilizadas pelos mestres.
O segundo sub-tópico tem como título: “A dança, o jogo, a música, o canto e a
roda de capoeira como artefatos da hexis corporal do mestre de capoeira Angola”,
148
busca analisar estes elementos enquanto formas de expressão corporal dos
mestres apontando assim para a constituição de uma hexis corporal do mestre de
capoeira Angola.
O terceiro sub-tópico intitulado: “A formação do mestre de capoeira Angola
como um ‘aprendiz de feiticeiro’: a postura no processo de se tornar mestre” trata
sobre os processos ligados à formação do mestre de capoeira Angola. O último
sub-tópico, através do entendimento do conceito de habitus anteriormente
abordado discorre sobre a existência deste como parte integrante de uma
personalidade do mestre, sendo intitulado: “O habitus profissional como identidade
do mestre de capoeira Angola”.
3.3.1. O mestre de capoeira Angola ensina pegando pela mão
A capoeira Angola possui em sua pedagogia inúmeros elementos e
processos que ocorrem de forma diversificada, possuindo uma estrutura que
permite uma linguagem própria de comunicação e educação (CASTRO JÚNIOR,
2003). Isto nos remete a formas tradicionais de transmissão de saberes que
apontam grandes correlações com os ensinamentos obtidos no interior das
chamadas oficinas nas escolas de ofícios.
De maneira geral encontramos nos depoimentos de todos os mestres
elementos que indicam tal semelhança, sendo a relação mestre-aprendiz o
principal deles e onde acreditamos residir à essência das formas tradicionais de
ensino. Sendo este elemento encontrado nos depoimentos dos Mestres B, C, JD,
M, P e V, estando atrelado a este outras questões como a preparação do aluno
pelo mestre ou seja o seu amadurecimento para que assim receba determinados
conhecimentos, destacado nos depoimentos dos Mestres B e C. Em seguida
temos a ênfase das formas tradicionais de ensino presentes nos depoimentos dos
mestres JD, M, P, e V. Por último a questão dos ensinamentos obtidos não só
através dos mestres, mas no universo da capoeira Angola, não se resumirem em
meras lições práticas ou teóricas de capoeira, mas sim ensinamentos para a vida
cotidiana, sendo destacados nos depoimentos dos Mestres J, JD e V.
149
Vejamos então, os trechos dos depoimentos dos mestres que permitem a
identificação dos elementos acima citados.
Como vimos anteriormente, Rugiu (1998) destaca que nas escolas de
ofícios os mestres não deveriam somente conhecer os segredos para o exercício
do ofício, mas também como e em que medida comunicá-los aos aprendizes, esta
característica também pode ser observada no depoimento do Mestre 1:
[...] tem que conversar muito com o aluno, antes durante e depois da aula,
e gradativamente passando os ensinamentos, é um aprendizado longo, é
um aprendizado para a vida toda. pra dar continuidade ao trabalho de
mestre Pastinha, um grupo que tenha um pensamento único: “Capoeira é
Doação” isso é fundamental. O convívio no dia a dia você vai lidando com
aquela pessoa e no transcorrer do tempo você vai notando quem é ele, se
ele realmente ta querendo o que você ta passando pra ele, se ele ta no
lugar certo. Então você vai tendo esse entendimento do aluno. De quem ele é,
e do que você realmente pode passar a ele. (Mestre B – o grifo é nosso).
Neste sentido o Mestre C contribui destacando a importância da
preparação do aprendiz para ser introduzido nos segredos de tal prática:
O mestre tem que primeiro educar o aluno e saber se ele está preparado.
A capoeira numa parte é uma arma então eu tenho que saber na mão de
quem eu vou dar, ou então preparar essa pessoa pra dar a arma na mão
dela (Mestre C – o grifo é nosso).
Os ensinamentos são tidos como segredos, e neles estão contidos os
procedimentos e técnicas para exercer tal ofício, o tempo para tal revelação não é
padronizado variando de acordo com cada discípulo (RUGIU, 1998). Não obstante
o Mestre C exemplifica:
[...] vamos colocar uma rasteira, por exemplo, o cara aprende a dar uma
rasteira e eu ensino que se o cara vai dar uma rasteira numa hora, aí pode
pisar no pé do cara e quebrar, mas eu não vou ensinar isso pra um cara
novo, que a primeira coisa que ele vai fazer é tentar fazer isso com um amigo
dele pra ver se quebra mesmo! Então eu não posso fazer isso porque ele
ainda não tem o amadurecimento (Mestre C – o grifo é nosso).
Desta forma temos em Abib (2006) o destaque para estes excelentes
exemplos de transmissão dos saberes que capoeira Angola possui, onde os
150
mestres na qualidade de guardiões deste conhecimento o transmitem de maneira
sabia e paciente, tendo na sua forma de ensino:
[...] um profundo sentimento de amor para com seus alunos – ou
discípulos –, traduzido pelo respeito ao “tempo de aprender” de
cada um, pela forma como toca corporalmente seus alunos para
ensinar os movimentos, herança de uma pedagogia africana,
baseada na proximidade entre o mestre e o aprendiz, onde até o
hálito de quem ensina deve ser transmitido para aquele que
aprende, como um meio por onde a tradição é repassada (p.93).
Assim, temos na relação entre mestres e aprendizes à essência para o
aprendizado da capoeira Angola, como relata em seu depoimento o Mestre JD:
[...] o Mestre João Pequeno dava uma confiança pra você pegar
resistência, conhecer os movimentos, de você poder se movimentar na
roda. Então ele dava os movimentos básicos e em cima disso aí as pessoas
iam pra roda e começavam a desenvolver o jogo em cima daquilo que ele
dava (Mestre JD – o grifo é nosso).
Neste sentido Rugiu (1998) destaca que o mestre que introduzia seus
discípulos em apenas alguns níveis dos conhecimentos, durante o aprendizado
inicial e estes por sua vez “aprendiam fazendo” (p.19).
Esta relação que se estabelece durante o aprendizado não é uma relação
qualquer, como ressalta o Mestre V:
[...] a forma que a gente se relaciona com o aluno, à forma aberta de jogar
capoeira, a forma de tocar, a forma de relacionar capoeira pra mim é uma
relação como ser humano (Mestre V – o grifo é nosso).
O que nos remete a Castro Júnior (2003) que enfatiza:
É importante considerar que a transmissão oral do mestre para os
discípulos se dá no respeito ao mais velho ou mais experiente,
numa relação de intimidade e personalizada, ou seja, uma certa
sutileza na comunicação com cada aluno (p.82).
É uma relação onde o convívio se torna constante, e acaba por trazer
através deste, formas particulares de transmissão dos saberes, como aponta o
Mestre M:
151
O mestre de capoeira ele não tinha esse contato com o aluno de duas vezes
por semana, não, o contato era constante só que a metodologia contrariava
o que diria hoje a metodologia que era assim, tipo, o mestre de capoeira não
diria o que você tinha que fazer, ele ia corrigir o que você tinha feito, se
estivesse errado. Essa maneira de chamar atenção era de um forma que
hoje você não vê, alias eu diria que a maior queixa que eu tenho de muitos
alunos de outros mestres é que eles não chamam atenção para os detalhes e
justamente os detalhes, são detalhes que são de suma importância (Mestre
M – o grifo é nosso).
Esta forma de transmissão de conhecimento é destacada por Abib (2006)
através da expressão “pedagogia do africano” que segundo o autor é muito
utilizada no meio da capoeira Angola, na qual consiste na formal tradicional de
ensinar tendo como ponto fundamental a proximidade entre mestre e aprendiz. O
toque aparece como outra característica, onde o mestre pacientemente transmite
seu conhecimento tocando seu discípulo, “ajeitando” ele no movimento, tendo
atenção sobre cada detalhe como acrescenta o Mestre M:
Detalhes que fazem à diferença, porque se você bota a perna num ponto,
bota o pé de uma forma apoiado no chão e você não se preocupa, acha
que o importante é que ele esteja com o pé no chão, é um problema. É bom
que você chame a atenção na forma de como o pé deve estar no chão
tudo certinho no movimento. (Mestre M – o grifo é nosso).
Neste sentido o Mestre V destaca algumas formas de trabalho utilizadas
pelos mestres para que o aluno tenha uma melhor desempenho na realização dos
movimentos:
[...] o mestre que ta lá na frente mostrando o movimento, vindo corrigir
os exercícios, depois trabalho dois a dois, depois treinar no escuro depois o
mestre com a beriba na mão, depois você jogando debaixo da mesa (Mestre
V– o grifo é nosso).
Temos então por parte dos mestres, uma grande porcentagem de cautela
no trato com o ensino dos movimentos. Todavia em seu depoimento o Mestre JD,
destaca uma outra situação presente no cotidiano do ensino da capoeira:
152
[...] ele não dizia tem que criar essa situação, essa e essa. Ele dizia aqui é
um rabo de arraia. Ele dava o básico e dentro daquele básico a gente
conseguia descobrir as seqüências e os movimentos, fazer a entrada e a
saída. e os mesmos treinos que ele dava, ele deu por quatro, cinco anos,
a mesma coisa. Era baseado em rabo de arraia, em negativa, em trabalho de
banco, era uma base pra quando chegasse na roda se ter esse preparo
(Mestre JD – o grifo é nosso).
Desta forma os mestres ou “homens lentos” como se refere Castro Júnior
(2003) fornecem uma base, um caminho a seguir, onde os erros e/ou acertos
durante seu percurso depende de cada um:
Os "homens lentos", com sua percepção sensível e ação do seu corpo, trazem
um conjunto de possibilidades concretas de resistências [...] Essa resistência
pauta-se em uma praxis da inclusão, no qual todos têm direito de aprender a
jogar capoeira [...] (p.47).
E através da prática desta base o discípulo vai tecendo seu repertorio, vai
desenvolvendo suas características e criando suas próprias possibilidades.
Entretanto a observação se faz presente como um componente que possui tanta
importância quanto o ensino direto fornecido pelo mestre como destaca em seu
depoimento o Mestre P:
[...] eu tive que olha, olhei, quem ta olhando aprende, eu não aprendi só
olhando, quando ele fez o toque e eu fui lá tocar junto também, eu fui no
toque e nos movimentos, eu fui pra lá aprender com os movimentos, não
aprendi só olhando, olhar pra aprender,pra brincar e quando o mestre
pedia eu tinha que fazer os movimentos, pois sem movimentos eu não
podia aprender (Mestre P – o grifo é nosso).
Na capoeira esta observação é chamada de “oitiva” que para Abib (2006)
configura-se em uma forma clara na qual a transmissão dos conhecimentos que
ocorre através da oralidade, baseada na observação, na qual o Mestre P obteve
seu aprendizado:
[...] ele orientou foi tocar o berimbau né! O que ele orientou, disse olha ta
vendo ali como ta aquele jogo, faça o mesmo movimento e aí você ficava
sempre olhando! Olhando, sempre olhando, porque a gente não aprende só
com o mestre, a gente aprende com o tempo, cada vez que o tempo vai
passando, a gente vai aprendendo, hoje eu to dando curso, amanhã to
153
aprendendo, depois eu vou dar o curso, depois de amanhã to aprendendo,
daí a convivência é assim, porque é o mundo que está ensinando (Mestre P
– o grifo é nosso).
Como vimos à observação era predominante no momento do jogo. Abreu
(2003) ressalta que este processo na maioria das vezes, ocorria durante a roda,
sem intervenção sobre seu curso, onde o deixava-se envolver por aquele
momento, absorvendo a partir das situações vividas e vistas durante a roda
valiosos aprendizados que não só contribuiriam para sua evolução na capoeira
Angola, mas modificariam sua visão de mundo e sociedade como nos mostra o
depoimento da Mestre J:
[...] você pode entrar na capoeira com muitas intenções de vencer aquilo
que está dentro de você olhando para o outro, mas uma hora você vai ter
que olhar para dentro de você (Mestre J – o grifo é nosso).
Neste sentido temos a capoeira Angola como uma escola da vida, onde não
só se aprende a jogar capoeira na roda convencionais, mas sim diante das
circunstancias, ou seja, tomar posição, analisar situações, intervir na realidade
querendo transformá-la (CASTRO JÚNIOR, 2004). É estar preparado para todas
as situações como mostra em seu relato o Mestre JD:
Eu costumo falar que ser capoeirista é fácil, mas viver no mundo da
capoeira é difícil. Então Capoeira Angola é você saber dizer sim, dizer
não, você correr, você ficar, você chorar, você sorrir, você tá preparado pra
tudo, tanto de bom como de ruim [...] (Mestre JD – o grifo é nosso).
A partir deste depoimento notamos a complexidade que permeia o universo
da capoeira Angola, pois ela propicia entender o conhecimento no conjunto das
relações sociais a partir das contradições presentes na sociedade como nos
mostra Castro Júnior (2003):
Na capoeira a ordem e a clareza são elementos alienígenas e
mesmos, os antigos mestres recusam a afirmação de que
entendem todos as travessas que a capoeira apresenta no seu
universo cheios de metáforas, de enigmas e de "caos" (p.33).
154
Desta forma temos na capoeira uma série de longas avenidas com poucas
sinalizações cujo percurso nem sempre é claro para todos (CASTRO JÚNIOR,
2003), tendo o mestre a função de tornar o mais claro possível este caminho,
preparando seus discípulos para diversas situações, como mostra o depoimento
do Mestre V:
[...] não é preparar você para jogar com seu amigo, se você não sabe no
movimento onde vai parar o pé. Pra você jogar com qualquer pessoa e
saber se virar, não parar para discutir se aquilo é ou não movimento de
capoeira (Mestre V – o grifo é nosso).
Neste sentido Abreu (2003) destaca que o aluno desde cedo deveria
aprender a se virar, pois a qualquer momento poderia ser submetido a provas
pelos mestres ou por alunos mais velho. Em outro trecho de seu depoimento o
Mestre V acrescenta:
Então a capoeira, ela funciona como um auto-conhecimento. Porque você
tem pessoas com sentimentos distintos, tem pessoas com idades distintas,
com historias de vida distintas e precisa perceber o que aquela pessoa
busca. Com criança, por exemplo, você precisa tomar cuidado pra não
alimentar a violência, naquele momento a capoeira tem a intenção de
educar. Se você pega alguém que tem muita energia, você precisa saber
direcionar essa energia, fazer essa pessoa ver qual é o melhor caminho pra
direcionar essa energia (Mestre V – o grifo é nosso).
Temos assim a capoeira Angola como uma filosofia de vida que encontra
nos conhecimentos do passado orientação para a vida dos capoeiristas do
presente (SCALDAFERRI, 2009). Onde a figura do mestre e do grupo aparece
como alicerce para a construção/ afirmação de uma identidade étnico-cultural
(SANTOS, 2009) como ressalta ainda o depoimento do Mestre V:
É por isso que Hoje eu digo que eu venho de uma boa escola, porque a
intenção do mestre na época era preparar você para roda da vida (Mestre
V – o grifo é nosso).
A partir dos relatos acima citados, pudemos observar a existência de
grandes relações com os processos artesanais de ensino nos quais a essência
esta contida basicamente na relação mestre-aprendiz, onde esta aparece nos
155
relatos da maioria dos mestres. O Mestre JD destaca a relação de confiança que
o mestre depositava em seus alunos lhe dando o mínimo de subsídios para o
desenvolvimento do jogo e a partir daí evoluírem a partir de suas próprias
experiências. Já o Mestre V enfatiza esta relação como algo forte que vai além de
uma mera relação de aprendizado, mas sim algo mais humano. O contato não se
resumia apenas ao ambiente de aprendizado, ele era constante dentro e fora
como ressalta o Mestre M.
Esta relação entre mestre e aprendiz citada pelos Mestres JD, M, e V é
destacada por Oliveira (2001) como um relacionamento similar ao de um pai para
com seu filho:
O mestre ensinava-lhe os primeiros passos da capoeiragem com
a mesma dedicação de um pai que segura as mãos do filho e o
ensina a caminhar pela primeira vez. E quando o aluno se tornava
seu discípulo, continuava a orientá-lo [...] (p.186).
Uma relação similar a patriarcal contida no interior das escolas de ofícios
citada por Rugiu (1998).
Ainda na questão da relação mestre-aprendiz, um outro ponto destacado
pelos Mestres B e C, reside no amadurecimento do aluno e a preparação deste
para aprendizagem, onde o convívio é a chave principal, pois o mestre só
transmitira o conhecimento quando o aluno se mostrar preparado para recebê-lo.
Esta atitude é também descrita por Oliveira (2001):
O mestre transmitia os seus conhecimentos aos discípulos,
observando suas atitudes e seu comportamento dentro e fora das
rodas de capoeira e só quando o discípulo, na visão do mestre,
mostrava-se merecedor de sua confiança, era que o deixava em
condições de defender-se. Não havia aquela pressa em preparar
logo o aluno e colocá-lo apto a lutar (p.185).
O próximo item abordado foi quanto as formas de transmissão destes
conhecimentos, nas quais trazem muita semelhança as formas tradicionais de
ensino. O Mestre M destaca a questão do mestre não precisar demonstrar o
movimento para que este fosse ensinado ao aluno, pois ele realizaria e se acaso
errasse o mestre faria uma correção. Todavia esta forma de ensino não deixaria
156
de ser detalhista e rigorosa em suas correções. O Mestre V ressalta alguns
métodos de ensino e destaca o uso da beriba como material de apoio, no qual tive
oportunidade de ver ele aplicar. Os alunos tinham de realizar repetidas paradas de
mão onde ele ficava passando a beriba em baixo repetidas vezes e o aluno não
poderia permitir que a beriba o tocasse. Já o Mestre JD referenda a base
fornecida pelo mestre onde o treino girava sempre em torno desta base e através
desta que o aluno desenvolveria seus próprios recursos no jogo. Tais formas de
ensino são apontadas por Sodré (2002) que afirma:
Tradicionalmente o mestre não ensinava o seu discípulo, pelo
menos no sentido que a pedagogia ocidental nos habituou a
entender o verbo ensinar. Ou seja, o mestre não verbalizava, nem
conceituava o seu conhecimento para transmiti-lo metodicamente
ao aluno. Ele criava as condições de aprendizagem formando a
roda de capoeira e assistindo a ela. Era um processo sem
qualquer intelectualização, como no zen, em que se buscava um
reflexo corporal, comandado não pelo cérebro, mas por alguma
coisa resultante da sua integração com o corpo (p. 38).
Ainda na questão das formas de transmissão dos conhecimentos o Mestre
P destaca a “oitiva”, um importante elemento presente no âmbito da capoeira
Angola, no qual relata que este foi o principal processo para seu aprendizado,
observando seu mestre tocando, realizando movimentos e principalmente
observando as rodas nas ruas e festas de largo da cidade de Salvador – BA.
Sobre este aspecto buscamos apoio em Abreu (1999):
A roda pode ser considerada, como um rito de passagem que se
incorporava ao processo de aprendizagem, como seu momento
mais rico, aberto às influências e inventividades, quando o aluno,
através dos toques e dicas do mestre que acompanhava atento o
seu desenvolvimento, dos conselhos de outros camaradas da roda
ou por si próprio, ia descobrindo as articulações, truques e manhas
do jogo. A partir de então, ele começava a moldar o seu jeito de
jogar. E começava a aprender algo mais sobre a vida (p.20).
Ë neste ensinamento sobre a vida citado por Abreu (1999) que reside o item
seguinte, no qual a Mestre J comenta que ao entrar na capoeira Angola você
passa a incorporar e modificar valores e realizar reflexões sobre si mesmo. Os
157
ensinamentos adquiridos te preparam para todas as situações sendo elas boas ou
ruins como destaca o Mestre JD. Desta forma configura-se em uma filosofia de
vida, na qual o mestre e o grupo tem um papel fundamental pois, prepara o aluno
para se sobressair nas situações cotidianas ou seja estar pronto a qualquer
momento não só para a roda de capoeira mas sim para a roda da sociedade e do
mundo como destaca o Mestre V.
Neste tópico abordamos as formas tradicionais de transmissão dos
conhecimentos presentes no universo da capoeira Angola. No tópico seguinte
trataremos sobre as formas de ensino adotadas pelos mestres no processo de
formação dos capoeiras.
3.3.1.1.
A ação didática do mestre de capoeira Angola no
processo de formação do capoeirista
As ações didáticas dizem respeito diretamente ao domínio que o
professor tem do conteúdo, bem como o modo de ensiná-lo
(SILVA, 2009, p.66).
Nos depoimentos os mestres destacam em sua maioria formas particulares
de ensino, como nos mostra Heine, Carbinatto e Nunomura (2009):
Cada Mestre possui uma filosofia, um critério, uma metodologia e
um tempo mínimo para formar [...] Assim, as estratégias de ensino,
os conteúdos, o processo de avaliação, a filosofia, o trato com
relação à violência, a postura e a ética profissional, o respeito às
tradições, entre outros temas essenciais na formação [...] são
tratados de maneira bastante diferenciada em cada Associação
e/ou Grupo de Capoeira (p.2).
Desta forma no relatos, o Mestre B, prioriza o ensino através dos próprios
movimentos. O Mestre C também faz referencia aos movimentos e demonstra
também uma preocupação com as leituras. O Mestre JD possui uma preocupação
maior com os professores que estão conduzindo os trabalhos em seu grupo. O
Mestre P enfatiza a importância da transmissão dos fundamentos específicos da
capoeira. Já o Mestre V relata a importância de adequar sua forma de ensino as
necessidades dos alunos.
158
Vejamos os trechos dos depoimentos que nos permitiram a composição
deste panorama.
Em seu depoimento o Mestre P, destaca a importância de possuir uma
base para o início ao aprendizado:
Pra gente começar, como é que eu vou saber ler se eu não começar ler
A,B,C, isso e aquilo outro? Como é que eu to no A e vô passar pra H, J? Se
eu não estudei do A até o B ou até C, e é por isso então nós temos que
procurar o fundamento. Então quem ta ensinando tem que ter
conhecimento no fundamento de capoeira que venha preparado para
ensinar (Mestre P – o grifo é nosso).
Esta base destacada pelo Mestre P se constitui nos fundamentos
existentes na capoeira, nos quais o mestre deve estar ciente de suas ações e
preparado para o ensino. Paiva (2007) relata que a figura do mestre é
determinante para afirmação e propagação do ensino da capoeira, sendo ele
indiscutivelmente o detentor do saber existente na capoeira.
Castro Júnior (2003) ressalta que há uma grande preocupação dos mestres
em transmitir os conhecimentos da capoeira explicando a relação do passado com
o presente. Neste sentido o Mestre B, destacando uma forma tradicional para o
ensino da mesma: .
[...] agora eu falando por mim, no meu estilo de capoeira tradicional, eu
acho que o aluno tem que começar pela ginga (Mestre B – o grifo é nosso)
A ginga na capoeira Angola é o mais importante dos movimentos sendo o
primeiro a ser ensinado aos alunos, logo temos o mestre que pegava nas mãos do
aluno para dar os primeiros passos com ele (ABIB, 2006).
O Mestre C menciona a questão da movimentação, que por sua vez tem
grande importância pos através desta que os capoeiras demonstram de forma
harmoniosa a beleza e o equilíbrio de seus golpes. Entretanto menciona também a
utilização de recursos teóricos:
159
[...] eu passo um tipo de treinamento e o que é mais importante para ser
treinado naquele momento, os livros que devem ler e etc (Mestre C – o grifo
é nosso).
Não obstante o Mestre JD também menciona a utilização deste recurso
destacando a importância deste enquanto uma referencia para quem esta
ensinando:
Basicamente eu passo para as pessoas que já estão dando aula de
capoeira, aí tem uma apostila com todos os movimentos. O que é
importante o aluno saber, como musica, ritmo, jogo, a chamada e o
cuidado que tem quem ta ensinando tem que ter com o aluno. Resumindo,
tem uma apostila onde as pessoas lêem e eu to sempre orientando, o
resto é o dia a dia (Mestre JD – o grifo é nosso).
Para Heine, Carbinatto; Nunomura (2009) a incorporação destes conteúdos
teóricos tradicionais à prática de ensino da Capoeira é uma tarefa essencial para o
desenvolvimento dessa modalidade. Propiciando assim aos seus praticantes não
apenas um desenvolvimento que gira em torno da prática, mas também com uma
fundamentação teórica.
Não obstante o Mestre P descreve uma de suas ações didáticas:
Eu organizo meu trabalho, eu já tive academia desde 1960. Como é que eu
ensino, eu ensino a capoeira, eu ensino as pessoas sem toque, sem canto,
só com movimentos, aí eu venho pra pessoa entender o que é um
martelo, uma chibata, um esporão, um coice de burro, um camaleão, uma
tesoura, o que é uma cabeça da presa que é uma cabeçada solta, porque a
rolo, porque uma jogada do macaco, a zebra, a onça isso tudo tem um
movimento, esses são alguns movimentos, as pessoas pra ter esses nomes
do golpe, aprender o que é o golpe, a pessoa tem que dar tempo, que com
toque ele não vai aprender isso, ele não sabe o nome dos golpes, não sabe
o que é um martelo, não sabe o que é uma tesoura, não sabe o que é uma
cabeçada presa, não sabe o que é um rolo, porque se eu tocar o berimbau e
deixar jogando ele não sabe o que é isso, então tem que ter primeiro o
movimento da capoeira, depois é o toque e o canto (Mestre P – o grifo é
nosso).
Ao realizar em suas aulas esta divisão o Mestre P, acaba por desenvolver
uma estratégia baseada em sua herança cultural, um caminho participativo para
que desta forma os alunos se auto-descubram e valorizem a si mesmos, ou seja,
utilizou uma metodologia (CASTRO JUNIOR; SOBRINHO, 2002).
160
Pode ser considerado um bom professor é aquele que possui certo
repertório de formas de ensino e não teme em combiná-los e modificá-los de
acordo com as necessidades (HEINE; CARBINATTO; NUNOMURA, 2009). O
Mestre V em seu relato vai de encontro ao proposto pelos autores:
Eu não estruturo a aula, porque primeiramente eu vejo qual é a
necessidade da demanda. Hoje essa palavrinha, globalização da capoeira,
às vezes é uma faca de dois gumes, pois você tem um grupo de várias
necessidades. Você não pode fazer uma aula e agradar a todos. Eu não
posso fazer uma aula e atender (Mestre V – o grifo é nosso)
Os autores ainda acrescentam que a escolha da estratégia de ensino
depende do entendimento detalhado dos fatores de pré-contato. Um aspecto
importante do ensino é estar preparado para o inesperado, como relata o Mestre
V:
[...] se tenho dez alunos na sala, eu preciso fazer uma aula onde todos se
sintam bem. Tem que perceber o que é necessário pra aquelas pessoas
crescer. E crescer como ser humano. Porque se for só movimento, você
chega aqui e não tem necessidade de viver capoeira (Mestre V – o grifo é
nosso).
Observamos assim nos relatos dos mestres a utilização de algumas ações
didáticas que se fazem presentes no ensino da capoeira Angola. O Mestre P
relata sua atenção no que se refere ao ensino dos fundamentos, onde o mestre
deve estar preparado para transmitir estes conhecimentos. Destacando uma de
suas ações didáticas o mestre P relata a divisão do ensino em dois momentos,
onde primeiramente ensina os movimentos e seus fundamentos para então depois
ensinar a parte rítmica (instrumentos e canto). Neste sentido o Mestre B também
inicia seu ensino pautado nos movimentos e relata que o primeiro passo a ser
dado no ensino da capoeira Angola esta na ginga. O Mestre C também
compartilha deste pensamento relatando sobre o ensino dos movimentos,
entretanto acrescenta uma atividade de cunho teórico, como também o Mestre J,
que no caso desenvolve um material escrito, para que este oriente seus alunos,
no entanto o mestre relata suas intervenções com alunos avançados ou que
161
estejam atuando no ensino. Já o Mestre V, acredita em uma atuação mais voltada
para sua experiência ou seja a partir das situações apresentadas em aula é que
se dá o processo de ensino.
Para Heine; Carbinatto; Nunomura (2009):
A Capoeira é uma modalidade extremamente rica em recursos
pedagógicos, pois seu contexto relaciona elementos corporais,
rítmicos, musicais, históricos e culturais. Provavelmente, a
combinação desses elementos em uma única atividade é o que faz
da Capoeira uma atividade física tão singular (p.3).
Desta forma se torna importante proporcionar uma ampla base de
experiências nos diversos conteúdos que integram a Capoeira (movimentos,
músicas, ritmos, instrumentos, história, tradições, rituais, entre outros), para que
assim os alunos se envolvam com a modalidade a curto, médio e, principalmente,
a longo prazo (SILVA, 1993).
Tanto em ações didáticas como em práticas cotidianas os mestres no
interior de um grupo, tem nas suas formas de agir uma (re)descoberta, estando
estas ligadas ao atuar sobre a realidade (BETTONI, 2002). Desta forma Souza;
Melo; Cordeiro (2009) acrescentam:
A capoeira, um complexo sistema de significação de “modos de
vida”, que se desdobra em diversas outras manifestações culturais
– tais como música, canto, dança, jogos, gestos e rituais e em sua
trama, traz elementos da tradição, da ancestralidade, interpretadas
e reinterpretadas ao longo da história capazes de mediar o
processo educativo, criando vínculos de pertencimento, lutando
contra os discursos hegemônicos da exclusão, do preconceito [...]
(p.10).
Observamos então nos depoimentos dos mestres a questão das ações
didáticas de ensino presentes no universo da capoeira Angola e tomando como
apoio esta ultima citação, notamos que elementos como a dança, música, gestos,
canto e a roda também fazem parte do universo educativo e cultural da capoeira
Angola, sendo estas partes integrantes de um arcabouço que traz a tradição e a
ancestralidade. No próximo tópico discorreremos sobre a presença destes
162
enquanto componentes de uma hexis corporal, ou seja a internalizarão das
práticas presentes no universo da capoeira e a sua exteriorização corporal.
3.3.1.2.
A dança, o jogo, a música, o canto e a roda de capoeira
como artefatos da hexis corporal do mestre de capoeira
Angola
As práticas corporais podem ser consideradas importantes atividades que
podem exprimir a realidade, auxiliando na construção e constituição de uma
cultura vinculada ao acervo de conhecimentos corporais (SANTOS, 2009b). Neste
sentido o autor complementa:
A capoeira é uma prática corporal originária das necessidades
materiais e simbólicas dos sujeitos de uma determinada cultura em
um determinado tempo (p.128).
Para Castro Júnior (2004) a capoeira Angola possui uma originalidade que
é própria de sua natureza, possuindo gestos e movimentos que apontam para
uma corporalidade. Esta idéia nos remete ao conceito de hexis corporal de
Bourdieu (1983) no qual compreende:
[...] movimentos corpóreos que os sujeitos que exercem uma
determinada prática laborativa realizam quando a exercem, neste
caso professores/as. Esses sujeitos realizam gestos e
comportamentos muito parecidos, quase iguais, e os exercem sem
que haja um ‘acordo’ consciente entre eles, mas esses
movimentos são harmônicos quando se olha o conjunto desses
sujeitos na prática (SILVA, 2007b, p. 66).
Neste sentido a hexis corporal no professor se expressa através da
motivação e disposição de seus movimentos que o auxiliam (COSTA, 2010). Silva
(2009) complementa considerando a hexis como uma “fala corporal”.
A partir deste entendimento trataremos sobre trechos dos depoimentos que
apontam para a existência de uma hexis corporal a partir de artefatos presentes
no universo da capoeira Angola. Como nos mostra em seu depoimento a Mestre
J:
163
[...] nesta brincadeira da orquestra é a minha forma reger, são os meus
códigos acordados com aquele grupo, e as pessoas conhecem o meu
código, outras pessoas vem e desenvolvem outros códigos e colocam quando
estão regendo [...] ela está focada dentro do nosso trabalho como uma
atividade normal dentro da capoeira [...] (Mestre J – o grifo é nosso).
Em seu relato a Mestre J menciona que envolvida pela energia que emana
o toque dos berimbaus que compõem a orquestra, ela vai deixando-se levar por
aquele momento e vai criando suas formas de expressão, gestos, e códigos
individuais. Desta forma citamos Castro Júnior (2003) que explica:
[...] é uma força sensível, rica em sutilezas, em detalhes
inteligibilidade enigmáticas que, durante uma roda de Capoeira
Angola, é representada pela harmonia dos instrumentos, pela
cadência do ritmo quando o jogador escuta o que está sendo
tocado, pelo canto que transmite situações desafiadoras e pelo
jogo que transgride qualquer tipo de lógica da racionalidade formal
(p.46).
Esta força, que permeia este universo acaba por se tornar algo que foge a
“luz da razão” como mostra o Mestre P:
Esse jeito propriamente, é que o corpo gira e a mente gira dentro do corpo,
giramos dentro dos nossos movimentos, giramos aquele fundamento da
capoeira, como a gente vem do chão, subindo cada vez mais, nós subimos,
nos levantamos os movimentos da capoeira, é isso que a coisa mais
importante que nós temos (Mestre P – o grifo é nosso)
Este estado quase que mágico é chamado de “transe capoeirano” no qual
Castro Júnior (2004) relata:
O “transe capoeirano” acontece a partir do instituído código
ritualístico que, através da música, transporta a uma estabilização
mais profunda das pessoas, no sentido da complementação dos
jogadores em interação, sob influência do ritmo. Ele é um efeito
nas manifestações motoras diante do ritmo. É um estado de
integração máxima entre os participantes, não é mais o “eu” nem o
“outro”, e sim o “nós”. É no jogo que se manifesta uma energia
imaterial, que emana da ancestralidade africana, com ligações
profundas com o praticante; é uma força vital denominada axé
(p.153).
164
O autor acrescenta que neste estado o capoeirista perde sua relação total
com o estado de consciência ocorrendo um estado totalmente modificado como
demonstra o relato do Mestre C:
Eu acho que o capoeirista ta muito intelectual, exatamente por essa questão
acadêmica, mas acho que na hora da roda é hora da roda mesmo, tem que
ter aquele extinto animal na roda (Mestre C – o grifo é nosso).
Macedo (2006) relata que ao agachar ao pé da roda o capoeirista:
[...] coloca a mão na terra e depois na cabeça, e com os braços
estendidos, indica louvor àquilo que aponta, além de diversos
outros gestos e uma ampla rede simbólica de ditos e dizeres que
se constituem em uma linguagem [...] (p.456).
O que pode ser complementado por Castro Júnior (2004) que menciona a
roda como um lugar sagrado onde o capoeirista recebe a energia de seus
ancestrais, sendo ela palco para expressão de diversas linguagens como o canto,
a dança, o jogo, a luta, entre outros. Vassallo (2005) acrescenta que a roda na
capoeira Angola pode ser comparada ao cerimonial de candomblé, onde ambos
possuem uma dimensão sagrada e expressam o pensar e o fazer dos africanos
devendo ser estes preservados e não dissociados.
Através dos depoimentos verifica-se a presença desta linguagem corporal,
na qual aponta para a existência de uma hexis corporal do mestre de capoeira que
se faz presente nas situações de ensino e principalmente no momento da roda,
onde estes gestos são utilizados a todo o momento no desenvolvimento do jogo.
Embora a hexis para ser descrita necessite da observação ou filmagem dos
capoeiristas em ação, o que queremos dizer é que na roda e/ou em outras
manifestações ela está presente, cabendo ao observador registrar as nuances
desse processo.
Neste processo, a existência desta hexis corporal também nos remete a
existência de uma postura do mestre de capoeira. No tópico seguinte trataremos
da postura adotada pelo mestre, todavia ligada ao seu processo de formação.
165
3.3.1.3.
A formação do mestre de capoeira Angola como um
“aprendiz de feiticeiro”: a postura no processo de se
tornar mestre
[...] o que a capoeira pode oferecer é um fator muito importante, que é uma
consciência da vida, uma consciência de você, a sua relação com a forma
tranqüila, consciente no meio que você optou, no meio da capoeira e
social [...] e você começa a tomar consciência da responsabilidade que é,
e aí chega o momento em que você vai ser um mestre ou um eterno
capoeirista, jogador de capoeira vivenciador daquele grupo social ou
integrante politicamente (Mestre V – o grifo é nosso).
A partir desta fala, vemos que a capoeira Angola propicia aos praticantes
um conhecimento próprio, podendo alterar sua visão de sociedade e de mundo,
como vimos anteriormente. Na medida em que o praticante avança na capoeira,
ele aumenta sua responsabilidade tanto no grupo no qual faz parte, quanto no
meio social da capoeira Angola, onde em um dado momento ele opta em
prosseguir nos ensinamentos para tornar-se um expoente, ou seja, um mestre ou
apenas seguir praticando. Todavia este processo de formação não é simples, pois
possui inúmeros caminhos que devem ser trilhados para a obtenção de tal
nomenclatura. Assim neste tópico discorreremos sobre tais processos na visão
dos mestres participantes.
Através dos depoimentos observamos que todos se completam no sentido
de fornecer uma visão sobre o processo de tornar-se um mestre na capoeira
Angola. Todavia algumas características possuem maior freqüência nos relatos
em detrimento de outras, como a questão da função do mestre, ou seja, a
importância de se conhecer antes de tudo o papel desta figura no universo da
capoeira para então almejar tal posição, constante nos depoimentos dos mestres
B, C, JD, M, P e V. Ainda neste aspecto temos a importância da transmissão dos
fundamentos da capoeira relatada nos depoimentos dos Mestres M e P. Outra
característica que também é tida como de grande importância neste processo
refere-se sobre o reconhecimento por parte da comunidade, esta é destacada nos
relatos dos mestres B, J, P e V. Por último mas não menos importante temos a
166
questão do tempo ou seja a vivencia necessária para que assim ocorra tal
reconhecimento, sendo esta ressaltada nos depoimentos dos mestres C, JD e V.
Vejamos agora os trechos dos depoimentos que nos permitiram compor
este panorama.
Eu acho que antes de tudo a palavra Mestre já diz tudo, mestre é alguém que
“mestrou” alguma coisa, alguém que conseguiu adquirir um
conhecimento profundo sobre essa atividade, acho que o necessário é se
aprofundar dentro desse conhecimento (Mestre C – o grifo é nosso).
O Mestre C, neste trecho de seu depoimento, inicia definindo a palavra
mestre que se expressa por alguém que possui um vasto conhecimento em
determinado assunto ou atividade. Como vimos anteriormente, esta palavra possui
estreita relação com a palavra tradição sendo designada para o ato de passar algo
para outrem, ou de geração para geração (ABIB, 2006).
Essa figura é fundamental no seio de uma cultura na qual a
transmissão do saber passa pela via da oralidade, e por isso
depende desses guardiões da memória coletiva para que esta seja
preservada e oferecida às novas gerações (ABIB, 2002, p.89).
Em seguida o Mestre C, destaca a aquisição de um vasto conhecimento
para que se alcance este grau, convergindo assim com o depoimento do Mestre
V:
[...] é uma pessoa que já tem o conhecimento de falar daquilo, tocar, cantar,
ter consciência e saber passar, muitas vezes você é um bom capoeirista, mas
você não sabe passar, então é desenvolver o dom (mestre Walmir – o grifo é
nosso).
Neste sentido Paiva 2007 destaca: “No campo capoeirístico é preciso
acumular uma grande quantidade de capital cultural. Além desse conhecimento
precisa dar aulas de capoeira” (p.37). Temos então além dos conhecimentos
adquiridos, a importância da prática do ensino, outro quesito para o processo de
tornar-se mestre. Como também destaca o Mestre M:
167
A capoeira Angola ela tem uma essência que é muito difícil de ser
verbalizada, tem um monte de gente que se autodenomina mestre de
capoeira Angola sem ter ainda conseguido buscar meios para transmitir
esses elementos da capoeira Angola, não tem condição mesmo! Só sabem
jogar a capoeira Angola e às vezes muito mal! (Mestre M – o grifo é nosso).
Ainda em seu relato o Mestre V acrescenta sobre a visão e consciência
que o mestre deve ter sobre seu papel:
[...] pra mim é ver o que a pessoas buscam, o que é que ele quer, ele
precisa se sentir realizado [...] ter consciência daquilo que você se
propõe a ensinar, se propõem a divulgar, porque você é o representante...
(Mestre V – o grifo é nosso).
Desta forma, Abib (2006) relata que o mestre precisa ter ciência de que é
um elo transmissor dos saberes de seus antepassados, sendo sua função
disponibilizar este aqueles que a ele solicitam. Todavia o mestre não pode apenas
dedicar-se apenas a transmissão de conhecimentos específicos da capoeira
Angola como mestre o depoimento do Mestre M:
O que precisa é que o mestre de capoeira ele tem que ser muito mais que
um jogador de capoeira [...] ele seja capoeirista [...] refletirem a capoeira
como uma manifestação sócio política, uma manifestação com mais
sentimento que movimento (Mestre M – o grifo é nosso).
Castro Júnior (2003) relata que para os mestres a capoeira Angola é
considerada uma prática social que constrói uma visão de mundo. Desta forma
como vimos em outros capítulos constantes deste estudo esta prática além de
abarcar questões sociais, também traz no seu bojo questões políticas que
ocorreram e ocorrem ao longo de seu processo histórico, nos quais o Mestre M
realizando uma critica destaca outra característica na qual acredita fazer parte do
papel do mestre:
As minhas criticas de como estão tratando a capoeira Angola, elas têm
uma direção e eu tenho , consigo atingir uma maioria, foi aí que cheguei a
uma conclusão de que a maioria dos mestres não preenche os requisitos
pra se apresentarem como tal, partindo do principio dessa necessidade da
capoeira enquanto essa manifestação que tem um fundo, uma relação com
168
as questões sócio-políticas do nosso país, mas perdeu essa identidade.
Não posso generalizar, mas a maioria não tem condição de
contextualizar capoeira Angola e sociedade política, não tem! (Mestre M –
o grifo é nosso).
Todavia questões mais específicas à capoeira Angola, no processo de
tornar-se mestre ganharam mais ênfase por parte dos mestres. Como a questão
da transmissão dos fundamentos, que na visão dos mestres também é um
importante quesito no processo de formação como nos mostra a Mestre P:
Essa transmissão desse fundamento, ele tem que passar para os alunos,
porque morrendo ele vai levar, e o aluno tem que praticar e passar pra
outros, outros e outros, o fundamento é esse, que se eles não souberem
tocar nenhum desses materiais, ele não pode ser mestre (Mestre P – o grifo
é nosso).
Paiva (2007) relata que não há uma cartilha sobre os critérios para se
construir um mestre, todavia existem alguns que são tidos como fundamentais
para habilitar o capoeirista a estar apto a tornar-se mestre, como ressalta o
Mestre P:
Se ele não souber tocar o berimbau, não souber cantar ele não pode ser
mestre. O mestre tem obrigação de saber tudo isso, o canto, toque
berimbau, se ta bom ou se ta ruim, afinar tudo ele tem que passar para os
alunos, como é que faz o berimbau, como é que raspa a cabaça, como é
que faz agogô, por ou não por, fazer o agogô de castanha, e eu já faço né, eu
não faço agogô de ferro, mas o de castanha, faço um pandeiro, já pratico ele
mais ou menos eu toco pandeiro, e tem que saber tocar o pandeiro e aí é o
fundamento que veio (Mestre P – o grifo é nosso).
Destacando um outro aspecto a autora relata sobre a relação de
complementação da vida que os mestres estabelecem com a capoeira Angola,
sendo esta muitas vezes responsável pela socialização de seus praticantes como
destaca o Mestre JD:
O Mestre de capoeira tem uma responsabilidade muito grande, acho que o
mestre tem que ter equilíbrio, além de ser o mestre ele é um educador.
Saber lidar com a educação, com a situação, com o ser humano. Ele tem o
poder de educar, no passado só era realmente chamado de mestre quem
tava realmente preparado (Mestre JD – o grifo é nosso).
169
Neste sentido para os mestres escolher a capoeira é “fazer parte dela e ela
de você” (PAIVA, 2007, p.153). Sendo este o pensamento de quem fez da
capoeira Angola um projeto de vida, buscando através dos valores do passado a
orientação para o presente como nos mostra o depoimento do Mestre B:
Hoje a função do mestre de capoeira é ser um educador, ele tem que
passar uma condição ética [...] esses valores do passado é que se tenta
transmitir hoje, como o respeito ao mestre, o conhecimento e respeito ao
berimbau e isso a gente passa hoje, pensando como um pai, como um
educador [...] (Mestre B – o grifo é nosso).
Entretanto como vimos em tópicos anteriores esta relação mestre-aprendiz
é dotada de uma grande proximidade, na qual o Mestre JD também assinala
como um dos requisitos que o mestre deve possuir:
O Mestre não pode ser distante, ele também tem que ser uma pessoa
capaz de ouvir, de conversar, desde uma criança até uma pessoa mais
velha. A capoeira Angola antigamente tinha isso, o mestre tratava o aluno
como ser humano, como uma pessoa normal, mas sabendo também que o
aluno sabia o seu lugar (Mestre JD – o grifo é nosso).
Uma outra questão apontada pelos mestres refere-se à questão da titulação
sendo este um assunto muito delicado na capoeira Angola, pois passa por todo
um reconhecimento social (PAIVA, 2007). Como mostra em seu depoimento o
Mestre B:
Mestre mesmo só a partir de 1980. Aí já todo mundo chamava de Mestre,
então essa condição me deram [...] É o camarada ter uma condição ética e
postura de educador. É ser aceito no meio capoeirístico (mestre Bola 7 – o
grifo é nosso).
Para Abib (2007) o mestre por deter um determinado saber é aquele que é
reconhecido por tal ato em sua comunidade, sendo esta figura associada às lutas
vitórias, celebrações e orgulho que nos remete as gerações passadas. Neste
sentido temos o depoimento do Mestre P que relata sobre sua titulação:
[...] meu título de mestre veio porque eu ganhei fama e o pessoal viu eu
jogando, e tive a palavra, aí está um mestre, bom mestre, o povo foi quem
170
me deu o nome de mestre. O povo que me reconheceu como mestre,
principalmente em festa de largo, quando nós botava o pessoal pra brincar,
se divertir e eles dizia grupo de capoeira Angola do mestre Pelé (Mestre P – o
grifo é nosso).
Todavia Paiva (2007) ressalta que para a comunidade legitimar o candidato
a sagrar-se mestre é imprescindível o consentimento de seu mestre. Este por sua
vez não necessita ocorrer de maneira formal como nos mostra a Mestre J,
relatando sobre a forma adotada por seu grupo:
[...] a gente não titula, a gente no máximo pode até apresentar: olha esse
aluno aqui! Sem muito protocolo, sem nada, a gente ta apresentando ele
para comunidade capoeirista em função de ser do grupo Nzinga,
representando os valores, e ele que deve a partir daí mostrara à
comunidade (Mestre J – o grifo é nosso).
Este reconhecimento enquanto mestre por parte da comunidade é um
discurso muito freqüente nas falas dos entrevistados. Entendendo-se por
comunidade não só os mestres, mas quem esta em contato direto com eles,
podendo ser alunos ou pessoas que fazem parte de seu cotidiano (PAIVA, 2007).
Neste sentido a Mestre J complementa:
[...] dentro da capoeira de São Paulo e eu deixei pra eles um grande
desafio, porque essa é a coisa bacana da capoeira Angola, quando eu entrei
comecei a ser aceita dentro da cidade de São Paulo, eram os olhos que a
comunidade capoeirista tinha sobre minha atuação [...] o pânico que isso
me causou e a responsabilidade que isso me trouxe entendeu..., mas foi o
reconhecimento da comunidade, dos mais velhos e dos mais novos,
quando eu percebi eles já me chamavam assim [...] os alunos tem de estar
conscientes de que está nas mãos deles, inclusive essa responsabilidade,
de formar um mestre (Mestre J – o grifo é nosso)
Desta forma para que este reconhecimento ocorra, um outro ponto chave
destacado por Paiva (2007) refere-se:
Além dos fundamentos movimentação, história e qualificações
musicais para tornar-se mestre os mestres enfatizam a importância
de se ter um trabalho, ou seja, desenvolver alguma atividade com
capoeira (p.138).
171
O Mestre C em seu relato destaca como se deu o início de seu trabalho
convergindo assim com o mencionado pela autora acima:
Eu na verdade eu comecei a fazer um trabalho básico, mas com muita
preocupação em passar a cultura brasileira, porque fazer o movimento às
vezes é muito fácil, o difícil é entender o que é o espírito de ser
capoeirista. (Mestre C – o grifo é nosso).
Observamos no relato acima uma dificuldade por parte do mestre em
compreender a essência do ser capoeirista, ou seja, o espírito que este possui.
Esta fala nos remete a influencia de um outro fator mencionado não só nos
depoimentos pertinentes a este tópico, mas em outros anteriores. Trata-se do fator
tempo, sendo este necessário para que se compreenda este espírito de
capoeirista, para que ocorra o processo de amadurecimento através das
vivencias, para então tornar-se um mestre. Como mostra em seu relato o Mestre
C:
Pra mim uma das coisas que o mestre de capoeira tem que ter é a vivência,
é ele aprender com a própria vida, com a própria experiência dele. Eu acho
que o mestre de capoeira ele aprende dentro desse universo, ele aprende um
pouco a cada dia e ele se torna um mestre de capoeira (Mestre C – o grifo
é nosso).
Esta temporalidade é mencionada por Tardif e Raymond (2000) onde
relatam sobre alguns ofícios tradicionais cujo tempo de aprendizagem e o tempo
da vida confundem-se, sendo este aprendido através do ambiente familiar e social,
no contato direto e cotidiano com as tarefas. Não obstante a capoeira Angola
também perpassa por este caminho, como podemos observar no depoimento do
Mestre V:
[...] onde tem as chamadas regras internas, uma coisa que é fundamental
que a gente precisa respeitar que é o tempo, o senhor tempo e aí a partir
desse momento até pela sua própria vivência você tem esse
reconhecimento. Tem esse reconhecimento porque as pessoas vêem em
você essa referência (Mestre V – o grifo é nosso).
172
Desta forma notamos que o praticante deve ser preparado antes de ser
mestre, ou seja, o capoeirista entra numa escola academia ou grupo, e passa por
vários estágios até chegar a ser mestre. Ele só adquiri tal formação a partir do
cumprimento de um tempo de capoeira, esta situação se assemelha ao tempo de
um aluno no sistema educacional (PAIVA, 2007). Por isso em seu relato Mestre
JD ressalta a paciência que o aluno deve possuir durante este processo:
É não ter pressa porque na minha época a gente não tinha pressa e em
segundo lugar é aprender sempre. Hoje as pessoas têm tanta ansiedade de
aprender, já entram na academia querendo ser um professor, querendo
ensinar. Então o mais importante agora é você estudar e ter objetivo de
aprender sem querer ensinar a capoeira. Eu tive uns 10, 15 anos da minha
vida estudando a capoeira, buscando informações da capoeira (Mestre JD – o
grifo é nosso).
O Mestre JD também ressalta o porque da importância da paciência
durante o aprendizado:
[...] nunca me preocupei em ser mestre de capoeira. Quando eu comecei
não tinha essa preocupação, até porque não se vivia de capoeira, se vivia
do seu trabalho [...] eu ia pra capoeira pela historia [...] quando eu conheci o
Mestre João Pequeno eu vi que era uma pessoa que tinha muito pra
ensinar e tinha aquela ansiedade de passar pra alguém e como eu já fazia
parte dessa coisa da capoeira eu fui indo, mas sem a preocupação de
ensinar, até porque eu naquela época achava que só tinha que ensinar
capoeira quem sabia [...] então acho que tem que ensinar são os mestres
mais velhos! Com o tempo, com a dedicação, com aquela coisa de estar se
envolvendo cada vez mais, buscar informações, vai aparecendo, o mestre vai
ganhando confiança vai vendo que é uma pessoa que ta ali para dar
continuidade do trabalho e com essa força é que eu consegui(Mestre JD – o
grifo é nosso).
A partir desta confiança como relata o Mestre JD, ao ver que seu aprendiz
cumpri níveis determinados o mestre avalia se o aspirante ao título de mestre
apresenta condições de se formar mestre, mostrando assim a importância do
tempo para este processo de formação.
De acordo com os relatos acima apresentados temos primeiramente uma
preocupação com a conscientização sobre a função do mestre, bem como os
papeis que este deve desenvolver no âmbito da capoeira Angola. O Mestre C, faz
173
destaque ao vasto conhecimento que a palavra mestre traz em seu significado,
que pode ser completada pelo Mestre V quando relata não só o conhecimento
que este possui, mas a importância de possuir o dom da transmissão destes para
os discípulos bem como a sensibilidade em perceber o que seus discípulos
buscam. Neste sentido Paiva (2007) destaca o respeito para com está figura:
O mestre seja qual ele for, tem um conhecimento a transmitir,
portanto é considerado um sábio naquilo, que escolheu fazer e por
isso é merecedor de respeito, de consideração por parte das
pessoas que dele receberam conhecimento (p.127).
Ainda na questão sobre a função, o Mestre M destaca a necessidade da
reflexão e contextualização da capoeira Angola não apenas como prática mas sim
enquanto uma manifestação social e política. Isto nos remete a Falcão (2004), no
qual trabalha o conceito de complexo temático capoeirano, que consiste em
algumas possibilidades pedagógicas para trato com o conhecimento da capoeira:
O complexo temático capoeirano, ao se articular com outros
complexos, como elos de uma mesma corrente, revela as relações
reais fundamentais do processo de produção da vida e conduz à
compreensão da realidade social. Se, na prática concreta da
capoeira intersecionam aspectos psicológicos, políticos, culturais,
econômicos da vida em sociedade, ela deve ser experimentada,
problematizada, teorizada e reconstruída coletivamente, a partir da
análise das condições objetivas de vida dos sujeitos [...] (p.165).
O Mestre P destaca a função do mestre no que se refere ao domínio dos
fundamentos da capoeira Angola que para Paiva (2007):
Para tornar-se mestre o capoeirista aspirante ao mais alto ao mais
elevado posto na hierarquia da capoeira, deverá ter passado por
um longo processo de aprendizado que consiste em conhecer e
aprender técnicas de movimentação da capoeira
e os
fundamentos que são bem ressaltados pelos capoeiras
especialmente por aqueles que desenvolvem um trabalho coma
capoeira. Esse fundamentos além dos movimentos consistem em
conhecer a história da capoeira, a música da capoeira, cantar e
tocar os instrumentos (p.137-138).
174
O Mestre JD destaca o papel do mestre enquanto um educador, sendo
complementada pela visão do Mestre B que busca através dos valores do
passado, transformar o presente, ressaltando também a importância de uma
proximidade com o aprendiz, atuando em uma relação quase que parental
tornando-se assim mais humana como relata o Mestre JD neste sentido Paiva
(2007):
Além de ensinar uma técnica de uma arte, de um ofício, contribuir
para a formação da pessoa, fazia parte da missão do mestre. Isso
significa passar conteúdos sintonizados com a sua forma de ver e
se relacionar com o mundo, orientando a sua conduta. Sendo
assim este mestre desempenha um papel de agente da cultura [...]
uma marca da construção do homem [...] produtora e produto da
humanidade (p126).
Outra questão mencionada se refere titulação, no qual o Mestre B,
menciona que para tal titulação, esta deve passar pela aceitação do meio
capoeirístico. Complementando o Mestre P, relata sobre sua titulação, na qual a
comunidade o reconheceu, como vimos em Abib (2006).
A Mestre J também caminha nesta direção e menciona a pratica realizada
em seu grupo no que se refere este respeito, relatando que apenas apresenta seu
discípulo deixando com que através de seu trabalho a comunidade o reconheça.
Destacando um outro aspecto importante Paiva (2007) relata:
Possuir um conhecimento, uma arte, um ofício, uma habilidade,
um saber que tem sua história inserida no território popular
credencia um mestre [...] No entanto apenas ter estas atribuições é
insuficiente, haja vista que nesse campo, para ser um mestre é
necessário transmitir conhecimento. Ensinar o saber que domina
proporciona uma pessoa ser reconhecida como mestre (p.123).
Esta situação pode ser encontrada no depoimento do Mestre C quando
este relata sobre seu objetivo principal ao iniciar um trabalho. O mestre também
menciona do fator tempo como um outro elemento de extrema importância no
processo de tornar-se mestre. No qual o Mestre V destaca como algo fundamental
para a formação do mestre na capoeira Angola, sendo esta visão complementada
175
pelo Mestre JD quando menciona que não deve haver uma ansiedade deixando o
tempo e a relação com o mestre se encarregar deste processo. Neste sentido
Paiva (2007) relata:
[...] um dos papeis do mestre, produzir mestre nos fala do tempo
do mestre do tempo para se fazer um mestre. O tempo para
adquirir sabedoria, experiência, maturidade, conhecimento. O
tempo para construir relações, estabelecer laços, o tempo
responsável pelos nós atados e desatados , responsável pelo fruto
que a arvore dá. Tempo também para se referir a uma época em
que não se ouvia falar de mestre de capoeira embora existissem
capoeiristas habilitados para serem reconhecidos como mestres, já
que dominavam a capoeira e ensinavam a quem quisesse
aprender (p.120).
Todas estas constatações nos remetem a existência de um habitus, no
qual a autora denomina, habitus capoeirístico, que foi adquirido pelo capoeirista no
seu processo de formação. Este por sua vez passa a ser um critério utilizado para
que o candidato a mestre seja oficializado e legitimado pelo seu mestre e por seus
pares.
Desta forma uma vez constituído, este habitus traz práticas individuais e
coletivas (BOURDIEU, 2009) para a pratica do ensino do mestre de capoeira
Angola, nas quais trataremos no tópico seguinte.
3.3.2. O habitus profissional como identidade do mestre de capoeira
Angola
Agimos em função do habitus, que orienta nossas ações [...]
seguindo as estratégias internas próprias à determinada sociedade
(NORONHA e ROCHA, 2007, p.53).
Neste tópico discorreremos sobre o habitus profissional do mestre de
capoeira Angola, tendo este como constituinte de sua identidade. Uma vez que
para Noronha e Rocha (2007) o habitus faz parte da trajetória de vida dos
indivíduos.
Como vimos anteriormente, para Bourdieu (2009):
176
O habitus é um sistema de disposições duráveis e transponíveis,
estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas
estruturantes ou seja como princípios geradores e organizadores
de praticas e de representações que podem ser objetivamente ao
seu objetivo[...] (p.87).
Nessa mesma linha de raciocínio, a noção de habitus compreende um
sistema adquirido de preferências, de gostos, de estruturas cognitivas duradouras
e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta
adequada (AZEVEDO, 2007).
Desta forma temos nos depoimentos dos Mestres B, C, J e V, atitudes que
orientam sua ação didática e que compõem um habitus profissional no qual
Perrenoud et al (2001) utilizam para referir-se a rotinas construídas pelos
professores no decorrer de sua trajetória observando:
•
Rotinas: aquelas que o professor constrói ao longo dos anos
•
Momento
oportuno:
se
refere
a
utilização
de
saberes
e
representações explícitas capazes de dirigir uma ação
•
Ação racional: compreende a utilização de certos conhecimentos,
aliados ao raciocínio rápido, em extrema urgência;
•
Improvisação regrada: compreende parte imprevista na ação
planejada, o agir na urgência.
Para Paiva (2007) os habitus dos mestres de capoeira funcionam e tem um
sentido de ser no universo em que eles estão inseridos. Vejamos os trechos dos
depoimentos nos quais demonstram a existência deste.
Como vimos anteriormente cada campo corresponde a um habitus próprio
deste campo, no qual este deve ser incorporado pelos agentes que fazem parte
deste campo como nos mostra em seu relato a Mestre J:
[...] então em nosso grupo se uma pessoa chegar uma hora
depois, eu não vou impedir que ela entre pra treinar capoeira,
ao contrário, eu espero que lá adiante ela se inquiete pelo que
ela vem perdendo, por não estar conseguindo chegar antes, a
177
resposta tem que estar dentro de cada pessoa o que te faz
escolher a capoeira? O que é que te faz sair de casa e vir pra cá?
Porque a capoeira chamou você pra ela, temos que entender
isso também, e por isso temos que buscar essas respostas
dentro da gente... (Mestre J – o grifo é nosso).
Neste sentido o Mestre B relata:
[...] os mestres têm que se preocupar em ensinar a capoeira
como receberam de seus mestres e não misturarem [...] o ensino
tem que ser como sempre foi o mestre não tem que criar ou
inovar nada, ele tem que mostrar o que ele aprendeu, isso é o
bastante! A capoeira é completa! (Mestre B – o grifo é nosso).
Desta forma o habitus torna ativas as experiências passadas, um passado
que sobrevive no atual e tende a se perpetuar (BOURDIEU, 2009). O Mestre C
em seu relato partilha desta mesma opinião, entretanto não na sua totalidade:
[...] a gente tem que ser bem claro do que é manter a tradição,
porque tem coisas que devem ser mantidas é claro, mas tem
coisas que a própria evolução vai fazendo com que a gente vá
aprendendo, acho que nenhum mestre do passado estaria
discutindo hoje coisas dentro da Internet (Mestre C – o grifo é
nosso).
Neste sentido o Mestre V que faz parte do mesmo grupo do Mestre C
também relata quanto a questão da manutenção da tradição:
A capoeira ela não exclui, normalmente somos nós que nos
excluímos da capoeira. A proposta da FICA é uma proposta de
estar refletindo a base de uma linha pastiniana, dentro dessa
linha, inclusive nas nossas cores amarelo e preto
representando a escola que a gente vem, própria herança da
capoeira a partir de Vicente Ferreira Pastinha passando pelo
GCAP e alguns mestres da capoeira Angola que conservam
sua tradição (Mestre V – o grifo é nosso). Habitus profissional
Embora seja perceptível que este habitus produto de trajetórias anteriores,
através destas experiências passadas atue como matriz em determinadas
percepções, contudo ele também fornece a possibilidade de improvisação
178
(COSTA, 2010) e torna possível a produção livre de todos os pensamentos. Como
mostra a Mestre J:
[...] hoje eu estou dando aula, na aula seguinte pode ser uma
aluna, eu coloco assim nosso trabalho horizontal, não queremos
que a autoridade esteja concentrada única e exclusivamente
nos estudos da mesma pessoa. Então é comum você chegar
aqui no nosso grupo e encontrar muitos adultos tendo aula com
uma menina ou um menino, pois como você pode perceber eu
trabalho com crianças e adultos juntos, porque a gente não tem
essa coisa que vem lá de fora de conhecimento fragmentado,
nos só entendemos o ser capoeirista no desafio, na
diversidade (Mestre J – o grifo é nosso).
Neste relato o habitus surge como um conceito capaz de conciliar a
oposição aparente entre a realidade exterior e as realidades individuais, sendo
aberto constantemente a novas experiências (SETTON, 2002).
Na relação entre o habitus individuais preexistentes à entrada em um
campo específico que reside à característica principal que define sua dimensão
(MONTAGNER, 2003). Neste sentido temos o depoimento da Mestre J:
[...] estar à frente não é estar ao lado, aprender que quando a
gente vem dar aula na realidade à gente vem treinar, a gente
vem aprender [...] eu fui iniciada na capoeira dentro de uma
comunidade muito rigorosa com relação a alguns valores da
capoeira Angola [...] e quando a gente vem para um trabalho como
esse, você tem essa noção de que está ali com o
compromisso de preservação desses valores, então o caminho
é praticamente muito simples e muito objetivo (Mestre J – o grifo é
nosso).
A partir deste trecho vemos entre o habitus e o espaço social uma relação
que produz o que é considerado o fundamento de todo e qualquer interesse: a
illusio, ou seja, o reconhecimento do jogo e da utilidade do jogo, a crença no valor
do jogo e de sua aposta que estabelecem todas as atribuições de sentido e de
valor particulares (AZEVEDO, 2007).
Através destes relatos podemos observar atitudes e posturas que apontam
para a configuração de um habitus profissional do mestre de capoeira. Onde a
prática exercida pela Mestre J faz com que se os alunos se questionem sobre o
179
que os fazem praticar capoeira, e através deste questionamento encontrem suas
respostas, que não se intimidem com questões ligadas a pontualidade, pois o
importante é participar. Desta maneira a Mestre J desenvolve nos alunos um
sentimento de pertença ao grupo.
O Mestre B demonstra uma preocupação com a preservação das formas
tradicionais de ensino presente no âmbito da capoeira Angola, onde para ele
qualquer alteração representa uma descaracterização da mesma. Não obstante os
Mestres C e V fazem parte do mesmo grupo e são a favor da preservação destes
valores e tem clareza desta da tradição, mas não deixam de incorporar o novo em
sua prática de ensino.
A Mestre J relata em seu grupo uma descentralização da figura do mestre,
ou seja a função do ensino pode ser atribuída a outras pessoas desde que tenham
um mínimo de capital necessário, propiciando o desafio da diversidade no
processo de ensino. Relata também que ao atuar no ensino você precisa estar
ciente de que se trata de um compromisso enquanto elo com a tradição.
Tratando sobre a questão da descaracterização da capoeira Angola
podemos citar Vassallo (2005), na qual destaca:
As representações veiculadas são calcadas numa lógica binária
que se dá em termos de uma oposição radical entre o tradicional e
o descaracterizado. Por isso, a descaracterização se torna uma
categoria de acusação tão acionada neste universo, fundamental
para se compreender o mesmo. Ainda de acordo com esta lógica,
há elementos que podem ser combinados e outros que,
definitivamente, não o podem. Tudo depende dos supostos
vínculos que mantêm com as origens (p37-38).
De maneira que para incorporar e decifrar os códigos do espaço social da
capoeira Angola, possuir o habitus é condição para fazer parte deste espaço, para
assim: se comunicar, se movimentar e usufruir de sua inserção com os trunfos de
seus capitais específicos (PAIVA, 2007).
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve como ponto inicial de partida o meu envolvimento
com a capoeira, na qual possibilitou, ao longo do percurso de minha prática,
despertar o interesse em tomá-la não apenas como uma atividade de lazer, mas
como
exercício
profissional,
suscitando
alguns
questionamentos
que
possibilitaram configurá-la como objeto de estudo.
Assim, no desenvolvimento desta investigação, considerando a pesquisa
bibliográfica e o trabalho de campo circunscrito prioritariamente nos depoimentos
dos mestres, foi possível organizar os resultados e sua discussão em três eixos
principais, compreendendo:
•
Aspectos da trajetória de vida dos mestres na capoeira Angola:
observou-se nas trajetórias de vida deste grupo de mestres que eles
apresentavam uma grande incidência de representatividade no meio
da capoeira Angola. São vistos como uma espécie de porta vozes de
um clã, exibindo como certificação ou qualificação um tempo de
prática entre 29 a 64 anos e de ensino de 15 a 50 anos. Porém, o
grupo também apresenta para surpresa nossa um alto grau de
escolaridade, sendo a maioria de etnia negra, tendo o candomblé
como religião predominante. Neste contexto aponta-se para a
existência de uma cultura que margeia a capoeira Angola formada
por artefatos, valores, religiosidade, ligados também a uma visão de
mundo africana e preservação das tradições, instituindo grupos que
acabam por se tornar espaços onde esta cultura emerge e se
estabelece ganhando força e visibilidade.
•
A capoeira Angola enquanto corporação e escola de ofício:
caracteriza-se pela semelhança de seus grupos, com as antigas
181
corporações de ofício descritas por Rugiu (1998), constituindo-se
como espaços de formação destes grupos responsáveis pelo
processo de ensino e aprendizagem dotados de valores, rituais e
formas particulares de transmissão de conhecimentos pautadas na
experiência e por ela validados. Nesta direção apresenta um
conjunto de elementos específicos, tais como: música, canto, toque,
movimentos e
roda que se configuram em saberes, trazendo
subjacente a eles uma ritualidade que através da circularidade do
tempo se faz presente por meio de uma ancestralidade personificada
na figura do mestre. Este, por sua vez, não deixa também de
manifestar uma religiosidade vinculada, como já foi assinalado, à
visão africana de mundo. Portanto, sob a ótica de Bourdieu (2003,
2009) este universo pode ser entendido como um espaço social
dotado de forças e palco de disputas que buscam conservar ou
transformar os valores que a ele pertencem.
•
O habitus profissional do mestre de capoeira Angola: no âmbito
desse universo, a constituição desse espaço social engendra um
habitus (BOURDIEU, 2003, 2009) que se configura em princípios
geradores e organizadores de práticas, enfim, uma gramática que
expressa as nossas rotinas e procedimentos. Assim, este habitus
ligado a trajetória de vida de cada mestre tem raízes em experiências
passadas, nos quais estes obtiveram seu aprendizado por meio de
processos artesanais de ensino, no qual apresenta a sua essência
pautada na relação que se estabelece entre mestre-aprendiz, onde o
mestre prepara o aluno para que este seja introduzido no mundo da
capoeira. Dessa forma, este conhecimento é tratado e transmitido
como se fosse um segredo que passa de pai para filho, onde o
tempo e a convivência passam a ser fatores preponderantes para se
alcançar tal formação. Portanto, as ações didáticas utilizadas na
transmissão
deste
conhecimento
são
pautadas
em
valores
182
tradicionais da capoeira Angola, levando em conta todos os
fundamentos que dela fazem parte. Estas, por sua vez, trazem
consigo um conjunto de códigos, gestos e movimentos corporais que
tanto
auxiliam
no
ensino,
quanto
expressam
situações
experienciadas no cotidiano, configurando a hexis corporal do mestre
de capoeira. Esta hexis pode ser entendida como a expressão
corporal que o mestre utiliza no falar, andar, demonstrar, expressar,
em sua corporeidade, uma cultura viva na qual a história esta
perspectivada no corpo mestre. Dessa forma a ação didática do
mestre e a sua hexis se complementam com o terceiro elemento que
se elucida na postura (atitude) que o mestre adota em cada
circunstância, configurando existência de um habitus específico do
mestre de capoeira Angola.
A partir das considerações expressas nos três eixos foram possíveis alguns
apontamentos a respeito das descobertas decorrentes da pesquisa desenvolvida
na qual são observadas algumas categorias expressas nos seguintes temas:
•
A capoeira Angola e seus saberes
Para Castro Júnior (2003) os saberes no universo da capoeira surgem a
partir de interações cheias de afetividade, emoção e corporalidade. Elas trazem
um conjunto de situações que, por vezes, caminham em uma via contrária a “luz
da razão”, sendo por este motivo objeto de estudo no reconhecimento que se faz a
este universo cultural.
Como vimos à capoeira Angola apresenta um conjunto de elementos
(toque, canto, jogo, movimentos, roda, etc.) que se configuraram em saberes,
constituindo o universo de sua prática. Estes se estruturam de uma forma
particular, podendo-se estabelecer uma correlação na forma de uma tipologia que
foi confirmada nos estudos.
183
Saberes Institucionais da Capoeira Angola – emergem dos diferentes
grupos que formam a instituição capoeira Angola, tendo como patrimônio da
formação desse ofício as tradições (artefatos, rituais, códigos) e a ideologia
no que se refere aos grupos fundados pelos mestres que cultivam uma
identidade comum, na diversidade de suas escolas.
Saberes da Vadiação – se constitui no saber específico naquilo que é mais
característico no jogo da capoeira Angola, predominando os movimentos
corporais rasteiros, o domínio do próprio corpo, os movimentos giratórios,
os movimentos diretos o improviso e a inventividade.
Saberes Instrucionais-Programáticos – compreendem o saber-fazer de
forma sistematizada, abarcando tanto a organização dos conteúdos,
objetivos,
a instrução do ensino ou “didática” como os programas que
emergem dessa prática social, podendo se constituir também num currículo
ou itinerário que o aprendiz percorre para atingir determinado fim.
Saberes da Experiência – diz respeito à relação mestre-aprendiz e a
relação mestre-discípulo, assim como as experiências e vivências
decorrentes dessa prática, contato como o meio, re-significação desse
processo, nos mais diferentes estágios de graduação na capoeira.
Desse modo para Benites e Souza Neto (2005) a estruturação dos
conhecimentos/saberes pode ser vista como um desdobramento das orientações
(ou diretrizes), apontando para a perspectiva de um corpo de conhecimento
sistematizado, dando um maior embasamento para a prática profissional.
•
Perfil profissional do mestre de capoeira Angola
Em nossos estudos o perfil profissional dos mestres apresentou
características próprias, nas quais Mueller (1989) vai dizer que este, enquanto um
184
conjunto de qualidades e conhecimentos próprios e integrantes de uma profissão,
pode ser delineado por competências, habilidades e atitudes necessárias para o
desempenho de determinada função. Assim, as características mais significativas
foram identificadas como:
o Valores: se voltam, principalmente, para a preservação da essência
da capoeira Angola, tendo o grupo enquanto espaço social onde
ocorre tal preservação, no qual demonstra a busca por uma
identidade, bem como de seus conhecimentos. Nesta, a existência
do sagrado convive com a visão africana de mundo, não sendo, no
entanto, exclusiva. Porém, não deixa de ter forte influência no que
diz respeito aos valores, como: hierarquia, religiosidade, tradição,
oralidade, ancestralidade, musicalidade, respeito, mandinga, entre
outros aspectos. O que no seu conjunto implica em rituais de
passagem de aluno ou treinel, contra-mestre e mestre.
o Ações didáticas: pautadas principalmente na relação que se
estabelece entre mestre e aprendiz, pois o mestre ensina pegando
pela mão, podendo-se apontar como o elemento significativo desse
processo a oitiva na qual se concentrava os fundamentos específicos
do ensino da capoeira Angola (toque, canto, jogo, movimentos,
oralidade, etc...). Embora possuem certa abertura para novas
estratégias não deixam de lado seus códigos, gestos e linguagem
corporal própria durante a prática do ensino, nos remetendo a idéia
de hexis corporal bem como a sua presença em suas ações
didáticas.
o Postura: advinda principalmente do alto grau de escolaridade do
grupo, esta se refere especialmente sobre a consciência da atuação
do mestre na capoeira Angola, sobretudo no que tange ao domínio,
transmissão e preservação dos saberes.
185
De modo que estas características apresentadas nos relatos se fazem
presentes em seu cotidiano, acabando por fomentar a existência de um perfil
profissional do mestre de capoeira Angola.
•
Caracterização da capoeira Angola enquanto escola de ofício
Os caminhos percorridos pela capoeira Angola ao longo de sua história
apontam para uma afinidade entre ambas, pois os relatos dos mestres apontam
para tal caracterização, principalmente, no que concerne:
o Ensino: sua essência consiste na relação mestre-aprendiz, havendo
uma valorização da figura do mestre como guardião e detentor da
sabedoria não apenas da capoeira, mas também na vida,
constituindo-se numa escola de vida. Neste contexto o ensino busca
preservar formas tradicionais de transmissão do conhecimento
pautado preponderantemente na oralidade.
o Espaços de formação: assim estes grupos constituem os seus
espaços, assemelhando-se com as oficinas das escolas de ofício
com os seus artefatos e rituais específicos e característicos do
universo da capoeira Angola.
Assim, de maneira semelhante ao estudo realizado por Silva; Souza Neto;
Benites (2009), no qual concluem que a capoeira enquanto escola de ofício é uma
realidade, a capoeira Angola também enquadra-se nesta caracterização devido a
sua estruturação e funcionamento principalmente no que tange ao ensino e aos
seus espaços de formação, nos levando para o próximo tópico em que se trata da
constituição do habitus social (profissional) do mestre..
186
•
Constituição do habitus do mestre de capoeira Angola
Os relatos dos mestres mostram que ao escolher a capoeira Angola, esta
passa a ser parte integrante de suas vidas. Para Vassallo (2005) este fato ocorre
em virtude da capoeira Angola ter se tornado um projeto de vida. Onde as práticas
exercidas social e coletivamente:
o Se configuraram em comportamentos (gramática gerativa).
o Estão enraizadas em um passado, sendo por ele validados
(temporalidade).
o Possui normas e valores sociais (próprios da capoeira Angola).
o É aberto e sujeito as novas experiências (reflexão e consciência
prática).
Desse modo, a presença destas características somadas aos fatores
específicos da prática do ensino já citados anteriormente apontam para a
existência do habitus do mestre de capoeira Angola.
Os resultados obtidos
caminham em direção ao pensamento de Castro Júnior (2003), cujo desafio está
em instituir uma relação de complexidade com a capoeira Angola, não havendo
garantia de responder a todos os problemas, mas, sobretudo criar a possibilidade
de trafegar por diversas avenidas com poucas sinalizações, onde o caminho a ser
percorrido, quase sempre está turvo e cheio de buracos.
Os caminhos percorridos por este estudo vão além do pressuposto
indicado, pois através das representações sociais adquiriu-se uma perspectiva
para o delineamento mais significativo sobre os saberes que constituem o
universo da capoeira Angola, apontando para características que permitiram a
demarcação do perfil profissional de seus mestres, refletindo assim uma
identidade capoeirística. Constituíram também uma via de acesso para a
identificação da presença do habitus do mestre de capoeira Angola além de
fornecer abertura de novas possibilidades de pesquisa acerca desta temática.
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203
ANEXO 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
(Conselho Nacional de Saúde, Resolução 196/96)
Venho convidá-lo(a) a participar do projeto de pesquisa “Capoeira Angola: saberes, valores e
atitudes na formação do mestre” e pedir o seu consentimento na utilização dos dados coletados para
eventuais publicações. A temática de investigação proposta parte do pressuposto de que as
representações sociais permeadas de saberes provenientes de uma escola de vida, e de ofício,
formam a identidade, perfil profissional, assim como o habitus que emerge dessa prática social trás
subjacente a ele uma historicidade travestida de cultura presente no corpo do mestre. No âmbito
desse processo busca-se averiguar se os saberes constitutivos da capoeira Angola, o perfil
profissional dos mestres, bem como a caracterização da capoeira, enquanto escola de ofício, a
partir das representações sociais dos mestres, permite identificar esta segunda pele que se
denomina de habitus profissional? Neste percurso, entre as questões que gostaríamos de ver
respondidas, consta: quais os saberes constitutivos da capoeira Angola? Qual o perfil profissional
dos mestres que atuam no ensino desta vertente? Quais os elementos ou aspectos que auxiliam
na caracterização da capoeira enquanto escola de ofício?
A partir deste cenário a proposta este estudo tem como objetivo identificar, nas
representações sociais acerca da capoeira Angola, os saberes, valores e atitudes na formação do
mestre, visando apontar a perspectiva de constituição de um habitus profissional. Acredita-se que
com base nos resultados obtidos se possa contribuir com a memória da capoeira Angola, bem
como fornecer uma boa caracterização dos artefatos, rituais e crenças que formam o universo
dessa prática social.
Cabe informar que esse tipo de pesquisa pressupõe que o participante não tenha qualquer
tipo de desconforto, constrangimento, ou risco possível em relação às questões que estará
respondendo na forma de entrevista ou no processo de observação. Da mesma forma você
poderá se recusar a responder qualquer pergunta e/ou retirar o seu consentimento em qualquer
fase da pesquisa, sem penalização alguma. Cabe também colocar que você terá a garantia do
sigilo de suas respostas, bem como de seu nome, respeitando-se as normas éticas estabelecidas
nas propostas de pesquisas com seres humanos. Dessa forma, estamos convidando-o(a) para
participar deste trabalho que visa fornecer subsídios para o processo de formação de capoeiristas.
Informamos que uma cópia desta solicitação ficará com você para esclarecimento de qualquer
dúvida. Desde já, agradecemos a sua atenção e disponibilidade.
..........................., .... de ................... de 2008.
DADOS DO PARTICIPANTE
Nome: ______________________________________________________________________
Endereço: ___________________________________________________________________
Telefone: ____________________________________________________________________
RG: ______________________
Assinatura do Participante: _________________________
Thiago Vieira de Souza
Neto
- pesquisador responsável Pesquisador Responsável: Thiago Vieira de Souza
Endereço: Av. 24 A, 1515, Bela Vista – Unesp – IB
Dept. de Educação – Rio Claro/SP Fone: 19-3526-4276
Samuel
de
Souza
- orientador -
204
ANEXO 2
Entrevista com Mestre B
Desde quando o senhor pratica capoeira?
Comecei em 1962, na capoeira de rua. Aí em 1968 eu conheci um capoeirista muito famoso e
muito temido lá onde eu morava. Quando ele entrava no bar pra tomar uma cachaça, o camarada
pra entrar tinha que pedir licença a ele, mas era uma boa pessoa, muito educado. Certa vez,
quando cheguei nesse botequim, ele tava lá no cantinho tomando sua cachacinha e eu notei que
tinha três camaradas bebendo um pouco mais afastado, quando os camaradas botaram o copo na
mesa, um outro cara veio por trás meteu a mão na cerveja de um deles e deixou o copo quase
vazio. O camarada acabou desconfiado e viu, segurou a mão dele e aí foi pra cima dele. Eu tava ali
tomando meu refrigerante quando eu vi que a coisa ia acabar em briga resolvi ficar ali e tomar
refrigerante bem devagar pra ver o que ia acontecer. Aí veio o negão que tava sozinho e disse para
os três: eu sei que vocês estão certos, o rapaz ta errado, mas leva em consideração que esse aí é
um pobre diabo que é louco pra tomar uma cerveja e não tem dinheiro pra pagar, então ele fez
essa molequeira com vocês. Então pra acabar o problema eu vou pagar a conta de vocês. Só que
um dos três, resolveu que ele tinha que apanhar de qualquer jeito e já que o negão tinha se
intrometido ele ia apanhar também. Aí foi que o negão começou a chorar. Pois é, um negão forte e
tinha tentado resolver tudo começou a chorar e rezar pra não apanhar. E aí o rapaz vendo a
frouxidão dele levantou e lhe deu um tapa. Ele tirou o rosto e pegou de raspão. Aí ele fez a carreira
pra sair, quando ele fez a carreira um cara colocou o pé na frente e ele deu um golpe, foi coisa
fulminante, uma ponteira nos órgãos genitais que o cara caiu no balcão gemendo de dor. Aí os dois
saltaram pra cima do negão e ele correu pra rua e aí em questão de segundos colocou os caras na
terra. Eu fiquei impressionado pra caramba, o cara tava chorando e aí fez esse acabamento todo,
voltou pro bar e continuou bebendo a cachaça como se nada tivesse acontecido. E eu fiquei
impressionado e disse - rapaz é essa capoeira que eu vou aprender! Aí o procurei de todas as
formas, até que um dia tava na rua e ele passou, aí fui conversar com uns camaradas pra
perguntar dele e um camarada me disse que era um dos melhores alunos do Mestre Pastinha. Aí
ele atravessou a rua e veio estender a mão pro meu camarada e esse meu camarada me
apresentou a ele. Ele olhou pra mim e falou: - o branco, você tem coragem de aprender capoeira
comigo? Eu disse – coragem eu não sei, mas vontade eu tenho muita! Aí marcamos no dia
seguinte e fui, quando cheguei encontrei dois camaradas que só me olhavam e começaram a rir. E
deram nove horas, nove e meia, dez horas e nada. E os caras rindo e dizendo que ele ainda vinha.
Rapaz eu sei que quase meio dia eu já tava pensando em ir embora, veio um voz assim: - você
ainda ta aí seu moleque? – eu to aqui esperando, e ele disse – gostei de ver! Vamos descer.
Entrou no botequim e perguntou se eu tomava conhaque. Eu disse que não. Aí ele pediu dois
conhaques. Eu virei o conhaque e quando eu virei queimou tudo! Aí ele perguntou se eu tinha
gostado. Eu disse que sim e ele pediu outro! Isso é pra você ver como era o aquecimento daquela
época! Aí ele bebeu comigo e fomos treinar. Aí começou a treinar do jeito dele, mas sem tocar o pé
em mim. Três meses depois ele pegou, deu o treino normal e aí ele falou: seu moleque, de hoje em
diante eu sou seu maior inimigo e saiu. Aí chamei Dente de Ouro e perguntei o que eu tinha feito: ah, rapaz, agora é pra você se cuidar, na rua, no bar, onde você estiver se ele te encontrar ele vai
te pegar. Essa é a prova de fogo. Aluno dele tem que saber se defender. Aí eu fiquei ligado!
Passou três meses e ele não apareceu e eu desleixei um pouco. Aí eu tava quase meia noite
sentado no muro e dois camaradas aqui na minha frente. Ele chegou e veio do outro lado da rua e
eu não vi. Abriu os dois caras e me deu uma cabeçada e eu caí do outro lado do muro. A praia tava
deserta e daqui a pouco encheu de gente. Eu apanhando, apanhando! Aí corri pro outro lado da
rua, ele foi atrás e pegou uma cadeira de criança e jogou na minha cabeça. Ele aí veio pra cima e
eu resolvi que já que tava apanhando mesmo eu ia pra cima. Ai o pau comeu! Rapaz eu saí todo
quebrado! Aí ele do outro lado da rua estendeu a mão e disse: seu moleque! Gostei de ver! Vou
atravessar a rua pra lhe cumprimentar. Ele veio atravessou a rua e me deu a mão. Eu levantei, ele
205
bateu a cabeça na minha e me deu uma joelhada nos órgãos genitais. Aí eu caí ele abaixou e
disse bem no meu ouvido: como é que você aperta a mão do seu inimigo: eu não disse que sou
seu inimigo! Aí saiu e foi embora. Quando deram 3 ou 4 dias eu tava no treino e ele chega: o seu
moleque, você ta aí? Eu disse: to, não era pra estar não? Aí ele disse que ia me entregar para o
seu mestre, como eu o havia encarado, eu já tava preparado para conhecer o Mestre. Aí ele me
levou para o mestre pastinha, que estava sentado no banco. E aí pronto, fiquei com Pastinha,
fiquei 13 anos aprendendo e aí que eu fui conhecer a filosofia da capoeira, a malandragem, a
malicia.
Mestre de 1969 pra cá, quais foram os acontecimentos dentro da sua vida em
relação à capoeira?
Bom, quando a academia de Mestre Pastinha fechou, que era lá no largo do Pelourinho, onde
funcionou de 1955 até 1972. Em 1972 fechou a aí cada um procurou jogar capoeira num lugar ou
outro. Em 1979 ele me deu o diploma, aí ele reabriu a academia, ele não, o governo que tinha
tomado a academia dele e deu em outro local, onde hoje funcionaria a academia de Mestre Bimba
no subsolo. A academia de Pastinha era no primeiro andar. Então ali funcionou o segundo espaço
de Mestre Pastinha e ali eu fiquei de 1979 até a morte de em 1981, quando fechou a academia.
Em 1979 eu estava ali com Pastinha, mas eu abri minha academia em frente ao colégio Central,
então eu fui um dos primeiros alunos de Pastinha que tinha academia. Aí fiquei lá e cá. Quando o
mestre faleceu a academia ia ser colocada nas mãos de João Grande e João Pequeno, que eram
mais velhos, mas a companheira de Pastinha não aceitou a aí foi cada um abrindo a sua
academia.
E aí a ABCA foi fundada quando?
Em 18 de julho de 1993, mas eu entrei em 1994 e hoje estou como presidente do Conselho de
Mestres. Eu estou desde 2000 como presidente e estamos lá tentando organizar a capoeira da
forma que mestre Pastinha queria. Ele queria congregar todos os grandes mestres da Bahia e criar
um centro de capoeira, o centro de capoeira quando foi dado a ele em 1941 na mão de Amorzinho
que já sentiu naquela época que estava prestes a ir para o outro lado, então queria alguém com
essa condição de capoeirista e aí viu em Pastinha que ele era o homem pra ser o mestre geral da
capoeira na Bahia e todo mundo apoiou. Aí pastinha mudou o nome que era Centro Nacional de
Capoeira Angola e passou a ser Centro Esportivo de Capoeira Angola.
O senhor ensina então desde 1979, então?
Na verdade eu ensino desde 1969. Quando eu cheguei com Pessoa eu comecei a ensinar junto
com ele e paralelo a Pastinha. E aí eu o ajudava com os mais novos.
A sua titulação de Mestre vem de quando?
Rapaz, Mestre mesmo só a partir de 1980. Aí já todo mundo chamava de Mestre, então essa
condição me deram.
O senhor falou que para começar na capoeira passou por uma prova, tinha
que ser valente! E hoje, o que o senhor acha que é necessário para alguém
iniciar na capoeira?
Bem, os tempos mudam. Hoje a função do mestre de capoeira é ser um educador, ele tem que
passar uma condição ética, bem diferente daquela época. Não quer dizer que a capoeira não tinha
ética, a capoeira sempre foi ética, tanto é que esses valores do passado é que se tenta transmitir
hoje, como o respeito ao mestre, o conhecimento e respeito ao berimbau e isso a gente passa
hoje, sem pensar naquela coisa da valentia. E sim pensando como um pai, como um educador,
embora eu considere algumas coisas antigas importantes, porque no mundo que a gente vive hoje,
206
num mundo de violência, você não pode ensinar somente a parte folclórica da capoeira, agora pra
ensinar a parte da briga mesmo, tem que ser no esconderijo da sombra, só pra aqueles alunos que
já tem a capacidade moral e técnica pra assimilar tudo isso. Você tem que conhecer a pessoa pra
saber que ela não vai usar isso para o mal. Normalmente eu passo isso mais ou menos com sete a
dez anos, mas sempre com intuito de defesa, nunca de ataque, ensino à hora para cada situação.
E pra quem está à frente de um trabalho? Para os mestres de hoje, o que o
senhor acha imprescindível para se trabalhar com capoeira?
É o camarada ter uma condição ética e postura de educador. É ser aceito no meio capoeirístico!
E quanto à questão da tradição? O senhor acha que hoje em dia essa
tradição está se perdendo?
Bom nessa parte eu acho que a capoeira perdeu muito, a capoeira antigamente era mais ligada
aos rituais, hoje o camarada só quer jogar a perna pro ar e sair com o corpo suado e tudo bem!
Totalmente alheio aos rituais. A capoeira hoje é show, começaram a dar salto de piloto, salto de
não sei o que, a capoeira só tem um salto! É por isso que aqui na minha escola e na Associação
eu procuro preservar as tradições e rituais da capoeira, que se perdeu muito. A capoeira ganhou
muito em técnica, mas em contrapartida os conhecimentos e rituais sobre o que é realmente a
capoeira se perderam, por isso acho que a capoeira ta virando show.
Falando de tradição. O senhor pode nos falar alguns fundamentos que acha
necessário que sejam trabalhados dentro da capoeira angola?
Rapaz, uma coisa importante dentro da capoeira é que às vezes as pessoas não dão valor, no que
está contido naquele ritual, um grande percentual de malicia, pois você pode até matar um
camarada. Se o camarada não sabe se aproximar, se não tem a malicia ele dança. A malícia é
fundamental, sem malicia não tem capoeira, é só um bailarino que joga a perna e faz melhor que
um capoeirista. Pastinha dizia sempre que capoeira se joga mais com a cabeça que com os pés,
no sentido do pensamento, do raciocínio.
Mestre, como o senhor vê a relação da capoeira com a Educação Física? O
senhor acredita que trouxe alguma contribuição ou limitou a capoeira?
Rapaz, eu vejo que pensaram um tempo atrás que devido ao mestre de capoeira, não ter uma
formação acadêmica, eles queriam impor essa condição, para ser professor de Educação Física. E
agora eu pergunto: o que veio primeiro, a capoeira ou a disciplina Educação Física? Quem veio
primeiro foi à capoeira, e nunca precisou da Educação Física, mas agora eles estão vendo que a
capoeira está começando a ter uma condição melhor. Os capoeiristas estão começando a ganhar
dinheiro, as academias estão muito freqüentadas, principalmente lá fora. Então eles estão de olho
grande! Não vejo nada que precise da Educação Física, nada! Acho um absurdo um mestre de
capoeira numa sala correndo ao redor da sala com os alunos, ali ele está enrolando o aluno! Esse
negócio de corrida e polichinelo não vai levar a nada, o que ele tem que trabalhar se for o caso,
são determinados movimentos da Educação Física que podem ajudar a capoeira, como um
alongamento, por exemplo, mas não é indispensável. Eles tão querendo é uma arbitrariedade
muito grande é entrar em uma academia e se não for professor de Educação Física o mestre saí!
Mestre como se dá o ensino aos alunos? O que o senhor acha necessário
para o mestre que esta desenvolvendo um trabalho?
Bom, quando eu me refiro que a capoeira não precisa de profissional de Educação Física eu estou
me referindo à capoeira que eu pratico, a Angola tradicional. Então essas capoeiras que estão
apresentando hoje como espetáculo e show, essas eu acho que precisam. Eles deram espaço pra
207
eles entrarem, e não pode reclamar, eu conheço capoeirista que dava muito salto e hoje ta com o
joelho todo arrombado, porque não é normal você dá 2,3 saltos no ar, o impacto é muito grande
para o joelho. Então esse movimento que eles fazem, aí talvez precise de um profissional, agora
eu falando por mim, no meu estilo de capoeira tradicional não precisa de nada disso. Aí
respondendo a sua pergunta eu acho que o aluno tem que começar pela ginga, tem que conversar
muito com o aluno, antes durante e depois da aula. E gradativamente passando os ensinamentos,
é um aprendizado longo, é um aprendizado para a vida toda. Eu prefiro aqui é ter grupos
pequenos, é pra dar continuidade ao trabalho de mestre Pastinha, um grupo que tenha um
pensamento único: “Capoeira é Doação” isso é fundamental.
Então o senhor trabalha dessa forma, trocando esse conhecimento com ele?
Bem, na verdade é o convívio, né! O convívio no dia a dia você vai lidando com aquela pessoa e
no transcorrer do tempo você vai notando quem é ele, se ele realmente ta querendo o que você ta
passando pra ele, se ele ta no lugar certo. Então você vai tendo esse entendimento do aluno. De
quem ele é, e do que você realmente pode passar a ele.
Mestre, qual é sua opinião sobre a entrada da capoeira na universidade?
A capoeira onde ela entra é bem vinda, eu acho que em qualquer local, principalmente na
universidade. A capoeira hoje é tratada como educação, o mestre de capoeira hoje é considerado
um educador, então nada melhor que entrar na universidade. Esse é um marco muito grande para
a capoeira, mas os mestres têm que se preocupar em ensinar a capoeira como receberam de seus
mestres e não misturarem a Capoeira com a Educação Física e não fazer um ensino direcionado
ao universitário, o ensino tem que ser como sempre foi o mestre não tem que criar ou inovar nada,
ele tem que mostrar o que ele aprendeu, isso é o bastante! A capoeira é completa!
O senhor acha que entrando na universidade a capoeira vai perder suas
características ou valores?
Não, se o mestre tiver consciência e conservar tudo o que ele aprendeu se seu mestre, não! Aí sim
vai ser valido. O mestre não vai para universidade pra agradar o aluno, é o aluno que tem que
entender o que é a capoeira. A capoeira não é fria e desumana, ou uma luta qualquer, a capoeira
deve ser respeitada e preservada.
Mestre qual é sua formação?
Estudei até o segundo grau, com supletivo e ingressei na Universidade Federal de Filosofia, mas
não concluí, fiz somente um semestre e fui obrigado a sair por motivos de trabalho.
Obrigado mestre!
208
ANEXO 3
Entrevista com Mestre C
Estamos aqui com Mestre C que está nos ajudando em nossa pesquisa.
Mestre, nós o conhecemos como Mestre C , mas qual é o nome do senhor?
Bom, na verdade eu tenho três apelidos, um original, mas quando chego a salvador o mestre João
Pequeno também tinha o mesmo apelido e depois algumas pessoas começaram a me chamar por
outro apelido, então eu fiquei com esses três apelidos. Nasci em 1960, no dia 19 de maio. No Rio
de Janeiro onde eu iniciei na capoeira com Josias da Silva e depois de um ano comecei a treinar
capoeira com o Mestre M. Em 1982 eu venho pra Salvador, juntamente com mestre Moraes para
fazer um trabalho no Grupo de Capoeira Angola Pelourinho em Salvador.
Mestre, porque de seu apelido?
Na verdade o meu apelido vem da flexibilidade que eu tenho no corpo e por ser uma pessoa quieta
e passiva. Quando eu chegava à roda tinha uma flexibilidade muito grande, então às pessoas
diziam que eu era igual, pois, mordia e ficava quietinho.
Há quanto tempo o senhor está na Capoeira?
Iniciei a capoeira aos 13 pra 14 anos e já vou fazer 35 anos na capoeira. Eu dei aula de capoeira
antes de vir pra Salvador, lá em Belo Horizonte, em 1980 e 1981 de depois vim pra Salvador e
juntamente com Mestre M. eu passei a dar aula mais como assistente do que como professor
propriamente. Mestre M. era o Mestre da academia e eu às vezes era um contramestre.
Mestre, qual é sua formação?
Eu sou formado em Educação Física, fiz a Universidade Católica aqui em Salvador e depois em
1996 eu fiz a Universidade de Antropologia do Distrito de Columbia nos Estados Unidos, na qual
está faltando eu terminar.
Mestre, como foi seu contato inicial com a capoeira?
Na verdade eu comecei capoeira porque eu estava num grupo do Carnaval e vi algumas pessoas
fazendo capoeira e achei muito interessante. Estávamos eu e meu irmão, a gente viu e aí
começamos a fazer os movimentos em casa e depois achamos uma academia lá perto e aí a gente
começou a ir pra lá. Nós não tínhamos dinheiro para ir pra academia e o mestre fez um acordo
com a gente, de que a gente podia limpar a academia e treinar. E aí foi onde o Jurandir que hoje é
mestre, também começou a treinar e treinávamos nós três, eu, Jurandir e meu irmão. Um ano
depois conheci Mestre M., pois ele ia lá às vezes. A primeira vez que eu vi Mestre M. jogando foi
uma coisa que me fascinou e realmente me chamou muita atenção, pois vi que era a capoeira que
eu gostaria de aprender.
E ele já estava com seu grupo estruturado como é hoje?
Não, na verdade era o grupo de Capoeira Angola Mestre M. e logo em seguida, em 1975 passa a
ser o grupo que é hoje, eu fiquei lá em 1980, quando fui pra Belo Horizonte, lá comecei a dar aula
numa escola, depois na Universidade Federal, mas era junto com o pessoal do diretório acadêmico
e depois vim pra Salvador, foi tudo muito rápida!
209
E como surgiu o seu grupo?
É um trabalho que vem dessa dicotomia que acontece entre mim e Mestre M e eu decidi formar
outro grupo, um pouco com as características do grupo no qual eu vim, em termos de trabalho e
filosofia, mas também com uma abertura maior para os estudantes poderem desenvolver o seu
trabalho. E aí junto com Mestre Jurandir e Mestre V montamos esse trabalho.
Você tem idéia de quantos núcleos tem hoje?
Olha, temos vários núcleos espalhados pelo mundo, agora existem as diferenças que nós temos, é
o que a gente chama de núcleos e grupos de estudos. Os grupos de estudos na verdade são
grupos em que algumas pessoas se reúnem e trocam informações sobre Capoeira Angola e
treinam juntos, mas não é um núcleo, é uma pequena formação, ou uma pequena semente. O
núcleo já é quando a gente vê um mínimo de dose pessoas que já tem uma estrutura, um espaço
pra desenvolver o trabalho e a partir daí passa a ser um núcleo. Nós temos grupo nos Estados
Unidos, na Filadélfia em Washington, em Chicago, Atlanta, Califórnia e Texas, temos um grupo na
Dinamarca com Rogerinho, um grupo na Suécia, na Inglaterra, e um grupo de estudo na Itália e os
grupos do Brasil. Temos grupos de estudos na Colômbia, Nicarágua, Peru e estamos indo para
Costa Rica pra fazer o núcleo de lá! Na verdade o que a gente tenta fazer é pedir pra que as
pessoas fiquem três meses aqui no Brasil e depois todos os anos vir pra cá pra ficar pelo menos
um mês, conhecendo a filosofia, conhecendo o trabalho e além do mais o Mestre têm que ir lá pelo
menos duas vezes no ano.
E como funciona o trabalho no grupo de estudo?
O grande lance do grupo de estudo é que não tem um líder, todos são líderes, todos são
responsáveis pelo trabalho, quando eu vou lá, eu passo um tipo de treinamento e o que é mais
importante para ser treinado naquele momento, os livros que devem ler e etc., é um grupo de
estudo mesmo!
E como são formados os núcleos?
No grupo de estudo não tem um líder, mas a pessoa que apontar ter mais liderança nós vamos
tirar como líder do grupo. E esse líder não precisa ser necessariamente brasileiro, por isso é que
tem essa necessidade de vir aqui para o treinamento.
Mestre, quando o senhor começou a treinar capoeira, como era seu dia a dia
nos treinos?
Quando eu comecei a treinar com mestre Josias, ele fazia um tipo de capoeira que não tem
definição entre Angola e Regional, era treinar e pronto. A gente tinha toda uma formação militar, de
ordem unida e aí era um treinamento de seguir o mestre na frente. Já o treinamento de mestre M.
era totalmente diferente, era sozinho com a cadeira, ou dois a dois, ou jogando mesmo com o
outro, entendeu? Não tinha muito uma estrutura, só quando ele veio pra Salvador que as aulas
começaram a ser mais estruturadas, inclusive no Rio ele criou um manualzinho com os primeiros
movimentos para a gente aprender: negativa, rasteira, rabo de arraia, chapa etc.
E como você estruturava seu trabalho quando você estava lecionando ou até
mesmo quando você vai visitar um núcleo?
Eu na verdade eu comecei a fazer um trabalho básico, mas com muita preocupação em passar a
cultura brasileira, porque fazer o movimento às vezes é muito fácil, o difícil é entender o que é o
210
espírito de ser capoeirista. Então as pessoas chegam aqui no Brasil e sentem, vêem, conseguem
sentir o cheiro, o gosto, sentem na pele o que é capoeira.
Mestre, o que o senhor acha imprescindível para quem vai praticar a
capoeira Angola?
Rapaz, eu acho que não tem nada imprescindível, eu acho que é a questão mesmo de sentir, é o
amor à primeira vista. A Capoeira Angola é o amor da sua vida, você bate o olho e pronto! Foi o
que aconteceu comigo, eu vi capoeira Angola pela primeira vez, me apaixonei e pronto, não quis
saber de outra coisa, não quis nada diferente. Dentro da Capoeira tudo o que eu tive oportunidade
de aprender eu procurei fazer.
Pra quem está à frente do trabalho de Capoeira Angola, o que o senhor
considera necessário?
Eu acho que antes de tudo a palavra Mestre já diz tudo, mestre é alguém que “mestrou” alguma
coisa, alguém que conseguiu adquirir um conhecimento profundo sobre essa atividade, acho que o
necessário é se aprofundar dentro desse conhecimento. Agora eu acho que dentro da capoeira
Angola mais especificadamente, é estudar, é entender esses fundamentos, é saber à hora de
começar uma roda, a hora de parar, de começar uma música. E também é saber! Eu não posso
ensinar um toque de berimbau se eu não sei, eu não posso ensinar um movimento se eu não sei,
eu não posso falar uma coisa de capoeira que eu não sei, então é ser honesto com você mesmo.
Hoje existe uma grande preocupação em manter os fundamentos e a
tradição. Como você vê isso em relação a quem está começando?
Olha só! Eu acho que a gente tem que ser bem claro do que é manter a tradição, porque tem
coisas que devem ser mantidas é claro, mas tem coisas que a própria evolução vai fazendo com
que a gente vá aprendendo, acho que nenhum mestre do passado estaria discutindo hoje coisas
dentro da Internet. A internet é alguma coisa muito nova, acho que os mestres hoje trocam
informações e conversas, tudo isso são recursos e tecnologias ao nosso alcance, por outro lado
tem o berimbau que é um instrumento mais antigo, rústico e primitivo e que a gente não quer um
berimbau eletrônico na hora. Então acho que o capoeirista tem que saber conviver dentro desses
dois mundos, por um lado eu quero a tecnologia, a evolução e desfrutar disso tudo, mas por outro
lado eu não quero um berimbau eletrônico na minha roda. Então tem coisas que eu tenho que
acompanhar.
Em um momento de nossa conversa o senhor falou sobre alguns
fundamentos que são difíceis de colocar em palavras. O senhor poderia falar
algo sobre esses fundamentos?
Rapaz, o fundamento da capoeira é você saber a hora de começar e terminar uma roda, saber o
que o seu aluno necessita naquele momento. Eu costumo dizer que a capoeira não tem segredo, a
vida é que tem segredo, a capoeira a gente vai descobrindo todo dia. O que acontece é o seguinte:
tem coisa que você pode passar para o aluno agora, nesse momento, mas tem coisas que ele
ainda não ta preparado para aprender nesse momento, então isso é que é o segredo. Eu posso
passar um movimento pra um aluno, bem simples e posso passar esse mesmo movimento pra
uma pessoa com mais experiência, só que um pouco mais complexo, vamos colocar uma rasteira,
por exemplo, o cara aprende a dar uma rasteira e eu ensino que se o cara vai dar uma rasteira
numa hora, aí pode pisar no pé do cara e quebrar, mas eu não vou ensinar isso pra um cara novo,
que a primeira coisa que ele vai fazer é tentar fazer isso com um amigo dele pra ver se quebra
mesmo! Então eu não posso fazer isso porque ele ainda não tem o amadurecimento. O mestre tem
que primeiro educar o aluno e saber se ele está maduro. A capoeira numa parte é uma arma então
eu tenho que saber na mão de quem eu vou dar, ou então preparar essa pessoa pra dar a arma na
211
mão dela. Então aí vai o fundamento da capoeira, vai de acordo com cada um e com cada
aprendizado. Não tem segredo, são coisas simples, é o dia a dia. Pra mim uma das coisas que o
mestre de capoeira tem que ter é a vivência, é ele aprender com a própria vida, com a própria
experiência dele.
Mestre, hoje nós vemos uma grande relação da capoeira com a Educação
Física. Como o senhor vê essa relação?
Olha só, eu acho que capoeira é capoeira e Educação Física e Educação Física. Elas até se
convergem, mas tem suas próprias independências. O que eu vejo é o seguinte, um professor de
Educação Física não está preparado pra ser um mestre de capoeira, eu acho que um mestre de
capoeira pode se preparar pra ser professor de Educação Física, mas são duas coisas totalmente
diferentes. Vou falar da Capoeira Angola, ela não vai simplesmente se fechar dentro da questão do
movimento, ela tem muitas outras coisas, então nós vamos ter que ter um professor de música, pra
cuidar da parte musical e pra isso o professor de Educação Física não está preparado, a gente não
aprende nada de música dentro da Educação Física, a gente vai precisar de um professor de
história, né? Porque o que a gente aprende da história na Educação Física é simplesmente os
métodos europeus. E aí a gente vai precisar de um professor de Filosofia porque a capoeira
envolve a filosofia do mestre Pastinha e de Mestre Bimba e a gente não aprende filosofia na
faculdade e aí um professor de Educação Física para cuidar da parte física. Então nós
precisaríamos de quatro professores para cuidar da capoeira. Então eu não acho correto que o
professor de Educação Física venha embarcar nessa, porque aí o professor de História também
pode ir, então todos eles poderiam se apoderar da capoeira. Eu acho que o mestre de capoeira ele
aprende dentro desse universo, ele aprende um pouco a cada dia e ele se torna um mestre de
capoeira.
E sobre a questão da formação acadêmica para dar aulas de Capoeira?
Eu acho que tem vários pontos aí que eu discordo. O primeiro é o seguinte, é que o trabalho de
capoeira é um dos maiores trabalhos sociais que existe no mundo, ou vamos colocar no Brasil.
Você pega um menino na favela, você dá uma perspectiva de vida pra ele, você dá condição a ele
de ganhar o mundo, muitas vezes esse menino, teve pouca educação, mas ele pega o
conhecimento que ele esta ganhando dentro da capoeira e agarra e estes conhecimentos, às
vezes criam condições pra que mais tarde ele vá para uma universidade e ele vai dentro da
capoeira abrindo caminhos para ir para uma universidade. E a gente coloca essa questão de
professor de Educação Física, primeiro você vai cortar um sonho, a chance de um menino da
favela entrar numa universidade é muito pequena, mas a chance dele dar aula de capoeira é muito
maior. Vamos colocar aqui, o menino começa a treinar capoeira com dez anos de idade e com
dezesseis, dezessete anos ele já é um instrutor e já pode pegar outro projetozinho e já começa
fazer o trabalho dele e a partir daí já sobra um tempinho pra fazer o segundo grau dele e aí se fizer
um esforçozinho ele consegue fazer uma universidade e aí quando ele tiver mais ou menos uns
vinte e cinco anos ele já está um mestre de capoeira e formado ou em Educação Física ou em
qualquer coisa que ele queira. Segundo lugar, gente a capoeira é do povo! Não existe ninguém
que possa restringir essas pessoas. É um aprendizado que vai passando de um pro outro, eu
acredito que a Educação Física se apropriar da capoeira é o maior erro do mundo. Agora o que eu
acho que deveria ser ruim, infelizmente a gente não quer educar, a gente quer punir, ou seja,
nosso sistema é de punir. Eu posso te dar vários exemplos: vamos começar pelo trânsito o cara
não te educa, ele te dá multa. Você para de fazer as coisas por ter medo da multa. Então em vez
de pegar os mestres de capoeira, aproveitar e fazer cursos extensivos, para aprender as coisas
essenciais para poder melhorar sua didática, não você quer fechar a academia dele, então qual é?
Eu quero ajudar esse cara ou quero prejudicar? Todo mestre de capoeira pode dar sua aula
tranqüilo, agora a universidade pode estar abrindo cursos para os mestres aprenderem mais. E
além do mais, tem mestre de capoeira com uma bagagem tremenda, todo mundo que está dentro
de uma universidade com conhecimento de capoeira aprendeu com um analfabeto desses. Hoje
em dia, olha a contradição, você aprendeu com um analfabeto e hoje você vai dizer que esse
212
analfabeto ensinou tudo o que você fez errado, pode ser que por falta de conhecimento aqui ou ali
ele tenha errado, mas ele te ensinou. Então pra mim não adianta, eu acho que essas coisas temos
que rever direitinho. E além do mais eu sou professor de Educação Física, mas sou totalmente
contra essa questão da Educação Física querer tomar conta de toda a atividade física, jogar dama
é uma atividade física! Daqui a pouco não vai poder andar na rua, vai ter que ter um professor de
Educação Física do meu lado, porque pra sair de casa e andar pela rua é uma atividade física!
Pelo amor de Deus, vamos ter um pouquinho mais de equilíbrio, né?
O senhor acredita que no a Educação Física trouxe alguma contribuição ou
limitou a capoeira?
Olha, eu evitaria até de entrar dentro dessa questão, se limitou ou se ajudou, na verdade eu teria
que estar mais embasado exatamente dentro dessa questão, eu me formei em Educação Física,
mas na verdade eu nunca exerci essa função de professor de Educação Física. Eu acho que por
um lado teve algumas pessoas de dentro da capoeira que por praticar capoeira e ser professor de
Educação Física, eles trouxeram algumas coisas até de postura, mas até aí eu também não sei o
quanto isso é positivo ou não, porque a gente coloca o seguinte: tem que ver certas posturas da
capoeira que lesiona o joelho, ta bom! A ginástica olímpica também lesiona tudo, ela atrofia um
atleta e aí? Ninguém fala nada! Então é um preço que se paga como atleta, até no futebol! É
aquela história do filho feio e do bonito. Ninguém quer assumir o filho feio e o bonito todo mundo
quer. Então enquanto era o filho feio ninguém queria. Quem queria aprender capoeira trinta,
quarenta anos atrás? Pergunte a Educação Física se queria? Inezil Pena Marinho, pensou, suou!!!
Eu não concordo muito com a filosofia dele não, pelo contrário, discordo dele para caramba, mas
eu sei que ele foi um cara que brigou lá dentro com os governantes, e neguinho desprezou ele a
fim de jogar ele no chão, hoje em dia ele ta dando risada de todo mundo. Hoje em dia o Brasil é
nosso, antigamente a capoeira não era nossa, não, era dos malandros, vagabundos, agora é
nossa, é patrimônio cultural do Brasil. Quem botar a mão a gente briga!!!
Qual é a sua opinião sobre a entrada da capoeira na universidade?
Olha, eu acho que por um lado é uma grande oportunidade principalmente para o universitário em
que aprende a ter uma visão muito fechada sobre o mundo, sobre cultura brasileira no geral, ela
não é respeitada dentro da universidade, o saber popular não é respeitado dentro de uma
universidade. A partir do momento que a capoeira chega num nível bem forte e as universidades
fora do Brasil também começam a apoiar esse trabalho, então já começa existir não só o interesse,
mas um respeito maior. Então eu acho que por um lado a capoeira ajuda os universitários a
entender e respeitar um pouco mais, por outro lado a capoeira começa a ficar muito
intelectualizada. Eu acho que essa questão da capoeira, os capoeiristas hoje em dia fica pensando
muito, entendeu? Eu acho que o capoeirista ta muito intelecto, exatamente por essa questão
acadêmica, mas acho que na hora da roda é hora da roda mesmo, tem que ter aquele extinto
animal na roda. Então tem que haver um equilíbrio, por um lado é bom, que se a gente for ver o
tanto que se tem aprendido sobre a história da capoeira, de música e tudo, mas por outro lado ela
fica muito intelectualizada e algum mestre que tem saberes muito grande e a gente acaba não
tendo acesso a esses saberes.
E quanto a questão sobre quem está ministrando as aulas na universidade,
na relação saber popular e saber acadêmico?
Eu acho que infelizmente nossas universidades ainda estão pecando muito nesse sentido de que o
saber popular ainda não é bem absorvido. A gente tem que pegar uns mestres mais antigos e
essas são as pessoas que vão ministrar. Nós podemos ajudar o aluno a entender esse
conhecimento, mas tem que deixar o cara se expressar como ele é.
213
Então a universidade tinha que abrir suas portas e aprender com o saber
popular?
Infelizmente a grande maioria ainda não está preparada para isso.
Mestre, pra finalizar, o que é a capoeira Angola para o senhor?
É a minha vida! É o que eu respiro, vivo, como. É a minha vida.
Obrigado mestre!
214
ANEXO 4
Entrevista com Mestre J
Mestre J, há quanto tempo você está na prática do ensino da Capoeira?
Olha, eu acho que no ensino da Capoeira, mais ou menos a partir dos meus quinze ou dezesseis
anos de capoeira, antes de ter meu próprio grupo que eu fazia parte originalmente Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho, sou da primeira turma de alunos do GCAP aqui de Salvador, então à
medida que o grupo foi crescendo, sobretudo com essa dinâmica da gente de dois mestres que
volta e meia estavam fora do Brasil, fora de Salvador, a gente foi tendo que dividir entre nós os
mais velhos algumas tarefas, entre elas era dar aula de capoeira, construir coletivamente um
grupo, passar os saberes de um grupo, ou seja, a definição dos valores, estruturas ou a identidade
daquele grupo, a prática corporal como a prática coletiva, então, eu já tenho muito tempo nisso,
antes de fundar meu grupo eu já fazia isso entende?
Quantos anos você tem?
Eu tenho 48
E de prática de Capoeira?
26 vou fazer 27
E quando foi fundado o seu grupo?
O grupo foi fundado em 1995, ele ainda não era conhecido como grupo, ao contrário, as pessoas
quando grupo foi fundado em São Paulo, se referiam ao nosso grupo sempre como Grupo de
Capoeira da J porque quando eu fui pra lá, fui por um projeto de vida pessoal, pra fazer pósgraduação e acabei tendo de começar a fazer um trabalho porque a minha identidade capoeiristica
era muito específica e foi aí que meu ato moral começou a me estimular e dessa forma me
autorizou a começar este trabalho. Eu era do GCAP ainda nessa época, mas a gente lá era um
grupo começando a fazer alguma coisa e não podia nascer imediatamente com o nome de GCAP,
então as pessoas chamavam de grupo da J, só depois de um determinado tempo, já três a quatro
anos que agente até para dar uma definição institucional para o trabalho desse projeto que a gente
cria e tem a identidade do grupo, aí foi que a gente resolveu então criar, vamos dizer assim o grupo
como uma forma de chamar a atenção para a presença da mulher no interior da capoeira, então
como era uma coisa nova assim era um grupo de capoeira sendo fundado por uma mulher nova,
fora de Salvador e fora da Bahia. Com o gigantismo que a capoeira tem em São Paulo, pensei
naquele momento em fazer esta homenagem e ao mesmo tempo reaproximar o nosso
entendimento sobre o próprio símbolo e história de vida de uma rainha negra, para dar nome ao
nosso grupo, o próprio sentido da ginga dentro da nossa linguagem cultural, com a relação que
vamos ter com a grande roda do mundo, com a sociedade mais ampla, então foi assim que a gente
começou e criamos um grupo, hoje já com alguns filhotes, e eu como uma mãe coruja olho para
eles e vejo sempre esses filhos lindos maravilhosos o que não podia ser diferente, e tento ser mais
responsável porque como eu costumo dizer, o meu grande compromisso é sempre no primeiro
momento mostrar a capoeira então eu já os apresento como meus filhotes, muito bonitinhos, muito
bem criados, porque eu percebo que eles fazem um esforço pelo grupo e para preservar este
fundamento.
Qual é a sua formação? Fale um pouco sobre ela
215
Eu tenho duas graduações a primeira que eu ignoro, eu digo que é o meu passado pardo,
eu sou historiadora, eu fiz pós em história aqui na Universidade Federal da Bahia e em
seguida eu fiz mestrado na USP, na área de concentração da Sociologia da Educação,
desenvolvendo sociologia na Capoeira, e quando a gente fala de capoeira eu acho que é
importante falar que a capoeira é agente, e hoje ela está situada em um local, está sujeita
a ser um meio de vida, a capoeira é extremamente complexa, ela não comporta mais uma
série de generalizações que ainda estão muito presentes e por isso devem ser feitas mais
pesquisas, talvez por isso que você às vezes possa encontrar os fundamentos na historia
e ter argumentos pra falar com os mestres, pois imediatamente você centra sua
interpretação num mundo muito concreto, e muitas vezes essa é uma dificuldade, mas eu
acho que a vivência dele, essa vivência do grupo de capoeira, de tentar se aproximar, no
fundo no fundo está mostrando a crença e a descrença dessas pessoas, na apresentação
das suas falas, na apresentação de suas experiências, de suas vivências. Eu estabeleço
alguns jogos preliminares vamos dizer assim em busca de reconhecer você, com que
identidade exatamente você vem para o treino? Quais são as identidades que você tem?
Eu to longe de estar no lugar que grandes mestres consagrados atingiram, mais nem por isso eu
deixei de receber muitos pesquisadores, até mesmo porque estou aqui também como
pesquisadora e professora universitária, ou seja, formando pesquisadores, e às vezes eu fico um
pouco impressionada com as identidades dos pesquisadores que vem pro campo do conhecimento
tradicional e muitas vezes debatem entre si, acho que você deve exorcizar essas balísticas, essas
elísticas acadêmicas no ramo da capoeira, na pesquisa da capoeira, porque é a universidade que
precisa agora se abrir pra entender o que a sociedade esta dialogando com ela, não ao contrário,
não é a sociedade necessariamente dependendo dos saberes acadêmicos ou dos caminhos das
balizas do academicismo, pois é isso que eles fazem, é isso que eles fazem e fazem a vida toda,
por outras razões, por outros objetivos concentrados nos caminhos, na própria forma de pessoas
se relacionarem com a vida, não necessariamente com o mundo, mas com a vida, então como
capoeirista que eu me faço nas demais identidades, eu participei de um congresso de capoeira em
Natal, e encontrei lá com um mestre que eu admiro muito, que é o mestre Medicina da capoeira
regional, assim como o mestre Itapoã e vários outros mestres, quando comecei a treinar capoeira
eles já eram mestres, um homem sábio, já era umas pessoas notáveis, e aí eu percebi que eu
tinha uma trajetória dentro da capoeira que me exponha o tempo todo aos olhares destes mais
velhos como capoeiristas, então estar naquele lugar compartilhando uma mesa de palestra, de
debate com o mestre Itapoã, em seguida uma roda de capoeira com mestre Medicina me dava
assim uma noção super importante, que eu tinha que prosseguir falando do nosso dia a dia, sobre
as voltas que o mundo deu e que o mundo dá, e isso é processo que os mais novos precisam levar
para dentro dessas cidades universitárias e do mundo acadêmico, agente precisa fazer o caminho
de volta , humanizar aquele conhecimento que está lá dentro, pelos olhares do jeito que é aqui
fora, a respeito de todas as dificuldades, a respeito da miséria, e quando eu falo da miséria eu falo
de um conjunto de lições que foram sendo deixadas de lado ao longo da vida de muitas dessas
pessoas, pois se trancaram num mundo que não gira em torno do consumo e que encontraram na
capoeira exatamente um espaço de encantamento, e essa complexidade da capoeira eu acho que
a gente tem que levar pra dentro da faculdade. Tem gente que diz: Nossa J eu fico tão
impressionado de ver você, porque lhe vi começando e aí eu queria dizer pra ele, poxa mestre eu
queria lhe dizer que o que eu sou hoje como capoeirista não está ligado apenas ao que o meu
mestre me ensinou, ao que meus mestres diretos me ensinaram: Moraes, João Grande e Cobra
Mansa, mas também porque vi em outros mestres, e ele era um deles, então é super importante
que a gente entre na Universidade dizendo: olha que pena que a gente não tem aqui dentro essas
relações em torno do conhecimento que se fazem pra vida toda que estão presentes na realidade
tradicional, eu posso sair do grupo que comecei mas ele vai comigo pra vida toda, meus mestres,
vão estar comigo nas aulas, não apenas porque estão vivos e vendo o que eu estou fazendo e
como eu estou atuando em nome deles e em nome do conhecimento que eles me passaram,
entendeu? Mas eu reconheço o quanto eles modificaram minha vida, e é essa professora Angoleira
216
que eu quero ser dentro da Universidade, dizendo pro meus alunos que nossa relação não se
resume em uma relação letiva, não é uma no letivo, mas sim que o mundo em movimento é capaz
de produzir entre a gente o tempo todo, ter reconhecimento de que com esse conhecimento que a
gente vai modificando as pessoas, se modificando, como uma transformação, e essas coisas vão
ser um momento de trocar idéias com os grandes mestres. E eu fiquei tão feliz de ter uma aluna na
faculdade de educação no semestre, que escreveu um trabalho sobre a educação popular, um
estudo que colocava Valfredo e mestre Pastinha, achei bonitinho o caminho que ela trilhou um
caminho sensível de pegar e dizer: E aí? Onde é que Paulo Freire do nosso país está?.
Como se deu o seu contato com a capoeira? Como a capoeira começou a
fazer parte da sua vida?
Eu tava terminando o último ano da faculdade da Educação Física.
Isso foi em que ano?
Isso foi em 1980/1981. Eu fiz faculdade de Educação Física, na época em que a Educação Física
era o reduto militar nas faculdades.
Na época de 80 com o movimento estudantil?
Sim, quando eu estava terminando o último ano da faculdade de Educação Física e com
esse movimento estudantil eu quase entrei em pânico, imagina o que eu ia fazer no
mundo, quando saísse daquela faculdade? Um dia uma amiga me disse assim: tem dois
caras que eu conheci essa semana que você ia enlouquecer se você conhecesse, eles
têm uma capoeira muito estranha , aí eu perguntei, onde era? E fomos eu e a Paulinha
minha amiga, companheira, que estamos juntos até hoje, nós fomos lá ao Parque Santo
Antônio só para conhecer essa capoeira esquisita e era o mestre M e o mestre C que
estavam voltando da Rio de Janeiro. Mestre M é baiano e tinha vivido 12 anos no Rio de
Janeiro e ele estava voltando numa época que quase não se via a capoeira Angola no
cenário da capoeiragem baiana, eu estava no último ano da faculdade de Educação
Física quando entrou a disciplina de capoeira, ela rolava dentro da faculdade, era uma
coisa que tinha se esquecido no passado, que tinha existido no passado, então só se
ensinava os valores, os fundamentos e a história. A filosofia da capoeira regional que
dizia que a capoeira Angola era apenas como um passado da história da capoeira e por
isso eu fui lá conhecer, quando cheguei lá eu encontrei com Mestre M e perguntei se era
possível qualquer pessoa entrar? Ele disse que sim, não me lembro à data certa, mas sei
que foi no inicio de 1982, quando nos encontramos, agente não tinha sede, agente jogava
no parque do mestre João Pequeno, que dava aula de Segunda, Quarta, Sexta e aos
Sábados liberava para gente, e quando eu comecei a fazer capoeira, comecei a perceber
as coisas da capoeira angola e aí foi que eu comecei a treinar e conciliei o ultimo ano da
faculdade de Educação Física em 1982 com o primeiro ano de capoeira Angola. Fazendo
os dois em paralelo a capoeira entrou na minha vida, eu fazia parte de uma comunidade
que se formava, éramos muito pequenos, além da gente, tinha também o mestre Virgilio
da Fazenda Grande, não tinham muitos grupos de capoeira Angola como a gente vê hoje,
até porque foi a partir dos eventos do Mestre M que começou a dar visibilidade da
ausência de um espaço para estes mestres a impossibilidade de esses mestres estarem
ainda dando aula, enfim, uma formação de uma política da capoeira no inicio dos anos 80
aqui em Salvador, e eu fiz parte desse processo, então quando eu digo: eu entrei, quero
dizer que a capoeira entrou na minha vida, me modificando, obvio que eu posso dizer hoje
olhando para traz que a gente entrara naquele momento de certa forma a fim de tratar e
217
trazer para o campo da capoeira também algumas outras abordagens que o Mestre M e
seu grupo tiveram um papel importantíssimo, e isso não dá pra negar.
Você já tinha seu grupo antes de se desligar do grupo que treinava?
Eu já era do meu grupo, mas eu ainda estava ligada ao grupo que eu treinava sob a orientação de
Mestre M e lá eu passei 16 para 17 anos mas, a gente estava necessitando de fazer um trabalho
que tivesse as características das nossas propostas de atuação na capoeiragem de São Paulo, a
gente não formava um grupo para expansão naquele momento, a gente buscava a formação da
autonomia da gente para atuar dentro de um espaço, dentro do cenário da capoeira, e aí a gente
achou que era hora de se apresentar já com cara nova.
O que você acredita que seja imprescindível para as pessoas que estão
entrando para a prática da capoeira? O que você considera imprescindível
para essa prática?
A prática é obvio, eu falo mais uma vez e repito que de dentro da capoeira Angola a prática é essa
que você tem podido observar aqui, não é um local onde as pessoas entram, malham e vão
embora, as pessoas que entram, se olham se reparam, se reconhecem, treinam e a partir desse
relacionamento que a própria capoeira produz essas transformações individuais e coletivas, essas
pessoas passam e necessitam atuar coletivamente dentro de suas comunidades, ninguém se faz
capoeirista falando da capoeira de fora dela e talvez por isso os mestres sejam tão ressabiados,
aos pesquisadores, porque existe uma prática muito intolerante daquilo que eu chamo de
vampirismo cultural, as pessoas chegam de maneira muito desatenta aos valores que são
primordiais, na fala desse sujeito elas permanecem lidando com aqueles valores que ele estruturou
como sendo os valores que balizam o seu trabalho e é com aqueles valores que eles querem
responder, que eles querem concluir seus trabalhos etc., e aí quando ele percebe , obtém naquele
trabalho, um determinado resultado que ele às vezes tem muita dificuldade, e a pergunta é: o que
eu não me fiz entender? ou as coisas que foram passadas eram meramente ilustrativas? Então é a
coisa do compromisso, pois esses mestres que tem a experiência, eles ultrapassaram as
dificuldades históricas acumuladas, sociais acumuladas, enfim, tem uma relação de compromisso
com a capoeira e esse entendimento de preservação está presente em nossas ações o tempo
todo, você imagina essas pessoas que viveram muito mais dificuldades que eu, muitas vezes não
acreditam, ou seja, passam a desacreditar dessas transformações, especialmente quando se
percebe como são tratados os valores que eles consideravam importantes, e isso acontece muito
aqui em Salvador, é como você ser chamado para dar uma entrevista sobre capoeira angola para
um jornalista e ele chega no jornal e entrega aquela matéria para o editor e aí o editor compõe
aquela matéria e no dia seguinte aquela matéria sai em uma foto, com as pessoas em movimento
tipicamente da capoeira regional, com cordão na cintura, com jogo sem camisa, quer dizer existe
ali um descuido que o jornalista está longe de compreender, mas é porque ele não está
comprometido com os valores que são os mais importantes para quem está dentro, e isso é uma
coisa muito comum que anda acontecendo tanto na ação da imprensa dos meios de comunicação
quanto na dos pesquisadores da atuação da acadêmica.
O que você considera imprescindível para quem está à frente de um
trabalho, para quem esta conduzindo um trabalho de capoeira angola?
Aprender que estar à frente não é estar ao lado, aprender que quando a gente vem dar aula na
realidade a gente vem treinar, a gente vem aprender com aquelas coisas novas que trazem os
alunos, eu fui iniciada na capoeira dentro de uma comunidade muito rigorosa com relação a alguns
valores da capoeira angola e pensando aí no legado do mestre Pastinha, tanto pela fala do mestre,
como pela convivência com seus discípulos: João Pequeno, João Grande, e vários outros, e
218
quando a gente vem para um trabalho como esse, você tem essa noção de que está ali com o
compromisso de preservação desses valores, então o caminho é praticamente muito simples e
muito objetivo, eu entendo que eu faço parte de um elo, aliás que eu sou o elo entre uma tradição
que apesar de todas as modificações tecnológicas e modernas em torno dela ela se manteve num
patamar da comunidade, da oralidade e que meu lugar é exatamente valorizar através da memória
essa tradição, formando uma geração de pessoas que estejam sendo de certa forma formada para
geração seguinte, então quando eu dou aula aos meus alunos eu quero acima de tudo que eles
aprendam a repassar com compromisso a capoeira Angola através desse caminho do
comprometimento, então a gente pode aprender tranqüilamente a identificar o novo, não tem que
temer o novo, podemos conviver, podemos estar juntos, podemos até atuar com ele, mas temos
entender que a gente enfrenta esse mundo que a gente vive hoje pelo simples ato de preservar a
tradição, a gente enfrenta o mundo que ensina a gente a educar, então quer dizer, esse mundo lá
de fora, não precisa ser contrariado, senão a capoeira perde a essência dela que é o costume da
liberdade e enquanto existir desigualdade, enquanto existir discriminação, opressões, a capoeira
tem um papel a cumprir e é isso que a gente quer que seja trabalhado, no nosso grupo a gente de
certa forma mescla a prática específica dos movimentos, dos toques, dos cânticos, alguns
entendimentos possíveis de que o autoritarismo necessariamente não tem que ser a única técnica
do lugar, da construção do lugar, do mestre, da autoridade do mestre e do grupo, a necessidade
de valorizar o mestre, a necessidade de valorizar o lugar de quem aprende, como um eterno
aprendiz, a necessidade da gente desmistificar alguns conceitos que estão situando a tradição
numa relação meramente autoritária para assim entendermos que a essência da capoeira produz
tantos encantamentos, que se essa relação esta voltada para o autoritarismo, aquele sentido,
naquele determinado momento não continua fazendo sentido, a partir do momento que nós
construímos lá atrás mudanças que estamos vivendo hoje, aquilo que mestre Pastinha sabiamente
dizia quando falava antigamente que os capoeiristas se prestavam a tudo, hoje muito me admira
ver um capoeirista se prestar a certas coisas, então se a capoeira teve uma fase ou teve um
momento, porque a história da capoeira caminha dentro da historia do Brasil, e se em determinado
momento histórico precisou do uso de uma série de símbolos para pautar os seus modelos de
resistência, a navalha, o feitiço, os mistérios, hoje a gente não pode jogar capoeira com a navalha,
então a gente tem que reconhecer essa navalha dentro de outra estrutura, então onde é que a
gente vai colocar essa navalha? Ela pode ter outra construção? Hoje por exemplo: umas das
construções que nós valorizamos dentro do grupo pra entender exatamente esse campo de
igualdade, é tentar viver dentro do que se tornou num grande fenômeno mundial, dentro de
promoções inimagináveis inclusive para própria capoeira Angola de quando eu comecei, ninguém
imaginava que aquela meia dúzia de grupinhos de capoeira Angola hoje teria tanta representação
no mundo, apesar de a gente ser muito pouco diante da capoeira Regional, mas necessário que a
gente entenda que essa estrutura de conhecimento de certa forma vai produzindo caminhos novos
e formas novas de identificarmos a opressão e o opressor.
E como você organiza o seu trabalho aqui no grupo? Eu tenho
acompanhado e tenho achado muito interessante. Você podia falar um
pouco?
Eu não gosto de falar do meu trabalho, eu gosto de falar do nosso trabalho, o máximo que eu
posso falar é como o grupo me organiza na vida, no trabalho, porque nós somos também uma
coisa nova no mundo da capoeira, pois eu, Paulinha e Poloca, começamos a treinar capoeira
juntos, nós somos três grandes amigos, inseparáveis desde que começamos a treinar capoeira
juntos até hoje, então esse é um grupo que tem como coordenadores três pessoas completamente
diferentes, na forma de passar, na forma de se movimentar, na forma de interpretar a capoeira, na
forma de posicionar a capoeira, então tem uma coisa da capoeira que chama a gente, que une a
gente, nós trabalhamos coletivamente tentamos que o trabalho extremamente horizontalizado, ou
seja, fazer com que mais do que pela cobrança, seja pela importância ao compromisso que as
pessoas que treinam capoeira com a gente tragam coisas novas, pois apostamos nessa
possibilidade de fazer qualquer idéia que qualquer pessoa traga para aqui dentro, vamos receber
219
numa boa e vamos tentar fazer jutos e construir juntos, mas isso é algo que para ser feito temos
que jogar para o campo dos valores, que é o centro, o pólo da nossa tradição de capoeirista, por
exemplo, hoje eu estou dando aula, na aula seguinte pode ser uma aluna, eu coloco assim nosso
trabalho horizontal, não queremos que a autoridade esteja concentrada única e exclusivamente
nos estudos da mesma pessoa. Então é comum você chegar aqui no nosso grupo e encontrar
muitos adultos tendo aula com uma menina ou um menino, pois como você pode perceber eu
trabalho com crianças e adultos juntos, porque a gente não tem essa coisa que vem lá de fora de
conhecimento fragmentado, nos só entendemos o ser capoeirista no desafio, na diversidade, enfim
temos muita coisa a vencer dentro da gente no ponto de vista dos valores, para poder atuar
coletivamente, para poder atuar no mundo, assim tentamos ser um grupo que não seja pautado no
nome da gente, que não tenha aquele nome imenso e por isso o que buscamos construir algumas
condutas como perceber e discutir a dor que passa pelo meu corpo quando eu estou ali vendo a
aula, uma pessoa com 15, 20, 30 anos de capoeira, chegar aqui e ter que fazer uma aula com um
menino de 12 anos e olhar pra ele fazendo, uma coisa que eu acho que ele tinha que fazer
diferente, que ele podia fazer de alguma outra forma e ter simplesmente que aceitar, então é esse
processo filosófico da capoeira Angola que a gente busca manter sempre, ou seja, tratando o ser
capoeirista, o aprendizado de ser capoeirista através da atuação da vivência desses valores e ao
mesmo tempo tentando desconstruir ou quebrar ou enfrentar uma série de coisas que estava na
minha geração quando eu comecei a treinar capoeira e que eu não quero hoje, por exemplo, por
mais que eu reconheça a importância de eu vir do GCAP, naquele momento com aquele contexto a
cobrança em relação a chegar atrasado não poder entrar e treinar, eu não vejo como disciplina
para minha natureza de capoeirista, pro meu modelo de relacionamento de pessoas e de
capoeiristas e o que eu penso sobre as mudanças sociais, a minha atuação enquanto uma pessoa
no mundo e a necessidade de não continuar com isso, então em nosso grupo se uma pessoa
chegar uma hora depois, eu não vou impedir que ela entre pra treinar capoeira, ao contrário, eu
espero que lá adiante ela se inquiete pelo que ela vem perdendo, por não estar conseguindo
chegar antes, a resposta tem que estar dentro de cada pessoa o que te faz escolher a capoeira?
O que é que te faz sair de casa e vir pra cá? Eu poderia agora ou estar na frente da TV assistindo
numa boa, ou estar num boteco tomando uma cerveja com os amigos ou estar numa praia
jogando, o que é que te faz vir? Porque a capoeira chamou você pra ela, temos que entender isso
também, e por isso temos que buscar essas respostas dentro da gente, e Yungui dizia isso, que a
gente não escolhe as coisas da vida, nós somos escolhidos pelos temas, eu por exemplo venho de
uma prática de esportes, comecei lá pequenininha com a natação passei para o atletismo, entrei na
faculdade de Educação Física nas áreas de vôlei e handebol, então eu fiz tudo isso em minha vida,
e a capoeira se torna um divisor de águas vamos dizer assim na minha vida, então eu tenho que
me dar essas respostas , não posso lidar com a capoeira só no mistério , eu tenho que ressuscitar
e estruturar e isso aqui é o que a gente tenta trabalhar aqui dentro é exatamente este
entendimento, de que você pode entrar na capoeira com muitas intenções de vencer aquilo que
está dentro de você olhando para o outro, mas uma hora você vai ter que olhar para dentro de
você e por isso não necessariamente a gente hoje precise se manter usando navalha ou continuar
naquela lógica de que você me ensina batendo e eu aprendo apanhando, como em outras épocas
em outros momentos.
Foi com esse incentivo que você aprendeu?
Não, essa não foi a perspectiva que eu aprendi, mas essa perspectiva sempre esteve em torno de
mim na capoeiragem, e eu reconheço, ainda que não verbalizada é possível ser entendida nas
condutas, então o que a gente está sendo aqui é inclusive sendo um grupo de muita gente que já
passou por outros grupos, fazendo e definindo novos caminhos, não são só esse, e a gente
reconhece que não é todo mundo que está afim desse modelo que temos ou tem gente que
prefere uma escola cuja relação com a capoeira seja mais agressiva, etc.
A perspectiva que você trabalhou difere muito da perspectiva que você
trabalha hoje? e se difere o que levou você alterar essa perspectiva?
220
Olha, eu não sei se difere, eu to sendo clara, num outro momento com voz própria com linguagem
própria enquanto estive no que treinei, atuei coletivamente, quando a gente assumiu o nome e a
identidade de estudo sobre a capoeira de Angola, a gente evidentemente vem com uma referência,
uma fonte que se mantém presente, que é próprio grupo que treinava, num modelo de movimento,
na forma de tratar o movimento, o canto, o ritmo, etc. Agora tem aquelas questões de condição de
grupo, de distinção, de administração de grupo que lá dentro muitas vezes a gente se posicionava
contrário e por isso nós optamos por não necessariamente reproduzir esse ou aquele aspecto, mas
ele é presente dentro do nosso trabalho o tempo todo e apesar de não estar treinando mais lá e ter
uma academia própria e até de não ter tantos vínculos, nós tivemos aquelas fontes diretas, como
eu disse , a gente aprende com todos os outros capoeiristas, com vários outros mestres mas como
nunca passamos por outro mestre ou por um outro grupo, como aquela foi nossa única fonte pra
poder crescer e atuando significativamente lá dentro, o GCAP se tornou naquele período o bom
fruto de nossa ação, porque essa é a coisa muito bacana de que a gente reconhece, lá foi um lugar
em que a gente teve a chance de se formar, se reconhecendo na nossa própria atuação de
capoeira, então quando eu olho e vejo o que foi naquele momento e o que o é hoje, sem sombra
de dúvidas ele também tem minhas marcas, mas como eu disse, nos aspectos de organização do
grupo, condição administrativa dos trabalhos por exemplo. Hoje no meu grupo somos uma ONG e
a sede está em São Paulo, nós somos todos mestres aqui, mas a sede institucional do nosso
grupo está em São Paulo, porém temos que tirar de lá e trazer para cá e por essa razão a gente
consegue se manter trabalhando lá em conjunto como grupos e de uma maneira a respeitar a
autonomia desses grupos, eu penso que eles tem um caminho muito mais difícil atuando em
liberdade do que tendo alguém a frente, e eu tenho que me manter parceira, você entende, quando
eu tenho que sair de lá pra vir pra cá, porque a gente já tinha um nome, uma atuação muito grande
dentro da capoeira de São Paulo e eu deixei pra eles um grande desafio, porque essa é a coisa
bacana da capoeira Angola, quando eu entrei eu comecei a ser aceita dentro da cidade de São
Paulo, era os olhos que a comunidade capoeirista tinha sobre minha atuação em Salvador antes
de ir lá ser aluna do mestre M.
E a sua titulação de mestra veio quando?
A minha titulação de mestre, não passa por um recebimento de título, de diploma ou cerimonial
neste sentido, ao contrário ela vem com nosso trabalho, ele vem exatamente deste trabalho, eu
não sei muito bem quando eu comecei a ser mestre de capoeira, o que eu posso lhe dizer é que eu
passei a ouvir ser chamada de mestra de capoeira, e a partir do primeiro momento, o pânico que
isso me causou e a responsabilidade que isso me trouxe entendeu..., mas foi o reconhecimento da
comunidade, dos mais velhos e dos mais novos, quando eu percebi eles já me chamavam assim...,
Aliás só para concluir, essa é coisa que a gente trouxe da volta para o nosso grupo, a gente não
titula, a gente no máximo pode até apresentar: olha esse aluno aqui! Sem muito protocolo, sem
nada, a gente ta apresentando ele para comunidade capoeirista em função de ser do grupo,
representando os valores, e ele que deve a partir daí mostrar a comunidade, eles são
coordenadores em núcleos e ali eles que façam pela comunidade evidentemente com meu total
apoio, com minha total presença, sempre ao lado, sempre perto, agente tem um vínculo muito
grande, e a partir daí os alunos dessas pessoas, como exemplo: os alunos do núcleo lá em Brasília
eu aceito que eles me chamem de mestra por ser a mestra do grupo, mas no meu entendimento o
mestre do grupo é o Aroldo e não eu, ainda que ele não seja reconhecido dentro da comunidade
como sendo um mestre de capoeira e nem deveria ser porque o tempo de capoeira dele não
permite isso, mas esses alunos tem de estar conscientes de que está na mão dele, inclusive essa
responsabilidade, de formar um mestre.
Você coloca o seu passado com a Educação Física, como uma passado
pardo, e hoje ela é presente na capoeira, no sentido de uma regulamentação,
existindo a discussão com CONFEF/CREF, sobre quem pode ou não
ensinar? Como você vê essa intervenção da Educação Física na capoeira?
221
Você acredita trouxe benefício ou limitou a capoeira em alguns aspectos?
Como você vê essa intervenção?
Eu acho que a intervenção que a Educação Física busca fazer, é no sentido de uma lógica de
mercado, é simples, eu acho, que ela atua nos modelos de organização da lógica de mercado, tem
muita gente de capoeira angola e tem muita gente de capoeira Regional e são grupos que não são
inseridos, filiados a nenhuma liga municipal, nenhuma federação estadual, nenhuma confederação
internacional que discute essas questões com o CREF. A capoeira Angola é tão exigente, que não
permite que essa seja a identidade primordial de um capoeirista, o mestre C é formado em
Educação Física e ele nunca apareceu como professor de Educação Física, mesmo atuando com
capoeira em escolas, dando aulas em universidades e faculdades, eu também já passei pela
mesma situação, nunca estive vinculada a esse intermédio da Educação Física, e como a gente
muitos outros capoeiristas, agora é obvio nós somos formados. Com o processo de massificação
da capoeira, ela passa a atender essas lógicas de mercado e atua exatamente no controle do
saber, e daí surgem às ridículas discussões sobre padronizar, vamos dar só um exemplo:
padronizar sistemas de graduação, um absurdo, isso é um título antigo na capoeira, que é um
tramite de rebeldia, eu não saberia lhe dizer como esse processo funciona, porque eu nunca estive
ali dentro, até encontro por aí em congresso, com pessoas que estão discutindo isto, que
participaram deste modelo de organização mas eu confesso que é uma coisa muito longe de mim,
e quando eu digo que a Educação Física é meu passado pardo é porque eu estudei Educação
Física dentro de um movimento, dentro de uma cultura onde corpo era entendido em um processo
extremamente alarmante e quando eu entrei para fazer capoeira de certa forma, me posicionei
muito com as possibilidades de afastar as minhas identidades, dentre elas a identidade racial, eu
brinco dizendo que depois da capoeira Angola , eu me senti uma mulher negra, eu me tornei uma
mulher negra, e por isso eu digo, a Educação Física é um passado pardo, é uma coisa que eu olho
para trás e não me reconheço, pois sou uma ativista.
Mas você acredita que ela chegou a trazer alguma contribuição para
capoeira?
Olha se eu disser que não seria contradizer a própria capoeira, seria dizer que a capoeira não está
dialogando com a essência, infelizmente a Educação Física se apresenta como um campo
cientifico em condições de se reavaliar, então acho que ela traz as suas contribuições, tem
conhecimentos que vem hoje para o campo da capoeira, por exemplo: eu sou de uma geração de
capoeirista que nunca falou de alongamento, eu não suporto até hoje, porque a capoeira é tão
dinâmica e eu acho essa coisa tão monótona, tão sem graça, tão anti-capoeira que eu não realizo,
eu estou com síndrome de túnel de carpo, então a fisioterapeuta fica me enchendo o saco e
também aos 48 anos a gente acumula muita coisa no corpo, mas sem sombra de duvidas hoje é
uma coisa que alguns capoeirista mesmo dentro da capoeira Angola tem consciência da
importância, enfim agora dizer que ela modifica o campo da capoeira não, não acredito.
E você acredita que ela limita a capoeira em algum ponto?
Se você quiser dizer que tem alguma capoeira na Educação Física, eu quero ver o que está em
jogo, por exemplo se ele tentar outras práticas corporais, que estão situadas historicamente, em
alguns contextos de tradição histórica, como por exemplo Judô, Karatê, que se tornaram praticas
desportivas e ingressaram no campo dos esportes de competição e etc. Tem muita gente que
continua fazendo Judô, Karatê e que esta pensando esta pratica de uma maneira completamente
distante disso, numa outra dimensão que se identifica mais com a capoeira, uma paixão que
cresce, não porque as pessoas estão vinculadas ao mundo produzido pela Educação Física mas
ao contrário, pois se hoje a Educação Física tem interesse na capoeira, na luta ou na expressão
corporal marginal e ela entrou na faculdade, Educação Física em 80/81 em Salvador, não porque é
a cultura negra no espaço feito pelo branco mas por existir um debate que precisa ser justificado e
a gente fica no pingue pongue da causa efeito. São debates em torno de um rótulo que a gente
222
precisa justificar e que está no contexto histórico no que hoje é a Educação Física, ou essas
associações, ou melhor, instituições que demonstram interesse na capoeira e pretensiosamente
acham inclusive que podem se posicionar com propostas pelas quais seriam outorgados os sinais
positivos ou negativos, de quem pode e de quem não pode, pois possuem um cenário favorável do
ponto de vista da lógica de mercado, e o que está em jogo é a disputa, do seu conhecimento, que
esta longe de ser a proteção e a preservação, eu penso que isso foi o que acelerou o processo do
registro da capoeira, mas a capoeira é mais do que isso, pois até pouco mais de cem anos atrás
ninguém tinha a menor dúvida de que a capoeira era uma coisa de negros, e uma hora tudo isso
some, o que é isso? No Brasil ela é esporte nacional, fora do Brasil é luta marcial brasileira, então
quer dizer tem um cenário nacional, pelas periferias, e que a gente não lida, pois nós somos o
centro, nós somos as delícias da capoeira, mas tem uma realidade da periferia, de diversas
periferias que a gente esta longe de reconhecer e o lugar da capoeira neste canteiro, é no meu
ponto de vista, muito frágil pois eles estão distantes do centro de poder da capoeira, pois hoje a
capoeira tem controladores, tem quem dita as normas, tem quem dita as regras, tem quem dita o
que é novo e o que é velho, o que é tradição e o que não é, hoje eu sou um mundo externo, mas
que tem gente apoiando isso, que são as presas fáceis, que são obrigados a se filiar a esta ou
aquela federação, a esta ou aquela liga, pela falta de conhecimento, não de identidade, mas pela
falta de conhecimento formal, institucional e muitas vezes é falta de informação que faz com que as
pessoas acreditem como acreditaram há algum tempo atrás que tinha que se filiar a esse negócio
de CONFEF, que tinha que pagar, que tinha que fazer, senão o CREF ia fechar a academia, e
quanto dinheiro não entrou dessas academias, dessas associações, desse povo, foi a periferia que
alimentou essa crença, eles lucram sobre muitos desprotegidos, a maioria civilizado.
Você sofreu algum preconceito por ser mulher? No universo da capoeira, a
mulher sempre esteve presente, porem não ativamente no jogo apesar da
historia possuir relatos de mulheres que participaram.
Olha! O preconceito sobre a mulher já estava na capoeira antes mesmo de eu chegar, em
símbolos, em músicas entre outras coisas. Se você quer saber se sofri discriminação é obvio que
sim muitas vezes, eu brinco que por muitos anos da minha vida eu não tive nem nome, era
chamada de aquela menina do Mestre M, a mulher passa por muitos processos de discriminação
na roda e assim ela é ridicularizada, ela minimizada, enfim ela vai sendo empurrada, existe uma
cultura que vai empurrando as mulheres para o entorno da capoeira e isso evidentemente ninguém
mais tem dúvida, sobretudo porque a mulher entrou pra capoeira e a partir do momento que ela
entrou na pagina da capoeira mudanças passaram a acontecer, ela se tornou presente, sendo mão
e filha de capoeira, e agente tem a sofisticação das praticas de discriminação, como por exemplo,
hoje a gente atua na mudança e na interpretação de algumas letras de músicas, fazendo uma
reivindicação positiva, hoje eu ainda vivo situações como sair daqui para dar um curso de capoeira
em algum lugar e normalmente algumas pessoas até brincam dizendo: você e mais quantos? Pois
normalmente só tem eu de mulher, desde o conselho de mestres do ministério da cultura que eu
era única mulher. Então eu acabei construindo uma trajetória de ser esta única mulher, e quando
eu saio daqui e viajo para dar cursos, participar de eventos, dar palestras, eu sou a única mulher
no meio de muito homens, então os homens ainda acham e juram de pés juntos serem super
ingênuos e inocentes de estar numa mesa de hotel no café da manha e falar de mulher como se eu
não estivesse ali entendeu, então eu não posso dizer que não existe um preconceito, uma
discriminação porque a capoeira ainda não qualifica a visão sobre o lugar da capoeira, ou o lugar
da mulher no interior da capoeira, eles ainda não entendem a possibilidade de posição igualitária,
então pra mim é uma grande honra ter sido formada e ter aprendido capoeira com pessoas que
nunca deixaram que eu fizesse de qualquer jeito porque eu sou mulher, pois essa seria é uma das
condutas mais sérias da discriminação hoje sobre a mulher, hoje os mestres chegam em
determinados grupos onde a maioria dos alunos são aquilo que a gente chamaria dentro do
movimento social massa de manobra daquele grupo, e ele então seleciona 3 ou 4 que a gente
pode chamar como uma forma de brincadeira de cavaleiros da Távola Redonda e é torno destas
pessoas que o poder se estabelece no grupo e é obvio que nestes paralelos de poder nunca está
223
uma mulher, é lógico, desde o inicio da minha prática na capoeira, conciliando prática e ativismo,
ou seja, entrar na roda em condição de trabalhar os fundamentos da capoeira(canto, toque , jogo ,
etc) não sendo melhor, nem pior que ninguém mas estando dentro dos fundamentos e fora da roda
em posição de puro ativismo.
O grupo tem uma turma só de mulheres é isso?
O grupo tem uma turma aqui de manhã que é uma turma específica para mulheres e que ela não
tem o caráter de segregação, ao contrário esse foi um estágio criado por solicitação de uma serie
de mulheres que não são capoeiristas, mas que são mulheres fora dos padrões da capoeira, são
mais velhas, são gordas, são mães de família ou até mulheres que são capoeiristas mas que
precisavam de um lugar para se construir as técnicas de solidariedade para poder desabafar sobre
que as coisas que vivem dentro dos seus grupos em torno da discriminação que há sobre a
mulher.
E a capoeira é uma forma dela extravasar?
É e por isso elas que vem pra cá, então esse espaço de solidariedade que logo em seguida
passou a atuar como um espaço de informação mesmo, então treinam aqui também de manhã as
mulheres que são do grupo que treinam a noite, como também mulheres de vários grupos até
mesmo de fora de Salvador. Então é um espaço que está aberto, que as mulheres podem vir, que
tem condição de sentar e processar num âmbito do sujeito coletivo coisas que tradicionalmente os
capoeiristas implantaram como armadilha para gente entende, pois aquele era um problema nosso,
então a gente quer desmistificar isso e muitas vezes sozinha, então é necessário que a gente
compreenda isso, para atuar coletivamente, porque sozinha nós somos impostas a uma série de
barreiras, inclusive nos discursos sobre a tradição, muitas vezes existem algumas tradições
reinventadas que tem essa função de situar na periferia das decisões a mulher, ou manter fora
como é o caso, por exemplo, dos gays, você percebe que a capoeira tem um curso extremamente
inclusivo mas não é um estágio assumido porém existem muitos, tantos gays quanto lésbicas, mas
não assumidos, a capoeira não se importa em entender, e o que gente tem feito é exatamente
chamar a atenção para quem está ficando de fora, o fenômeno social da capoeira, e este núcleo, e
esse grupinho da manhã nasceu com essa idéia de ser um destaque pelas mulheres gordas, e que
jovens mestres ou velhos mestres não sabem atuar pois não está preparado para ensinar todos os
tipos de pessoas, como eu também não estou mas na hora que eu me posiciono do lado das
iguais, aquilo que eu não sei eu me coloco para aprender.
De onde veio essa idéia da aula com a bateria e a orquestra de berimbau?
A aula com a bateria e com os instrumentos? Desde o grupo que eu comecei, é uma tradição, eu
aprendi isso a gente abomina aquele sonzinho mecânico, e só usa quando não tem jeito.
Quando não tem pessoas suficientes?
Sim, sempre fui criada tendo sempre esse modelo de instrumentos, pra gente não ter que fazer
aquela coisa de aula específica de música, a gente percebe que o resultado é muito satisfatório,
pois todo dia é aula de música e todo dia é aula de movimento, então se a gente tem um número
pelo menos para colocar, ainda que não dê pra colocar os oito instrumentos, mas sempre tem duas
turmas treinando com música .
E a orquestra?
A orquestra também foi uma coisa que a gente participou e desenvolveu desde quando éramos
alunos do grupo, que foi pegar os berimbaus, saber interpretar, saber fazer arranjo em cima dos
224
toques e não ficar literalmente ao formato como eles são tratados na identidade do grupo, dentro
da roda, porque a roda é um fenômeno específico de apresentação dessas identidades, mas
também de certa forma vamos dizer acelerar e produzir maior intimidade das pessoas com os
instrumentos e a medida com que o tempo foi passando a gente foi percebendo que a orquestra
cumpria um papel que muitas vezes era importantíssimo da gente discutir porque quando você
está com os três eles estão se ouvindo, os três estão conversando entre si, mas é aí que se agente
tivesse que fazer juntos, como seria atuar juntos numa mesma interpretação? Então a orquestra é
essa brincadeira, tudo começou como uma coisa de brincadeira e foi crescendo.
E hoje você rege a orquestra como se fosse uma maestria?
Faço isso da mesma forma nos treinos de capoeira, nesta brincadeira da orquestra, eu não sou a
única, tanto que aqui a gente tem uma criança que rege a orquestra, eu estava na Alemanha no
carnaval e eles se apresentaram aqui, quem regeu foi um menino de nove anos, semana que vem
eu vou a São Paulo e tem duas apresentações da orquestra e uma delas será regido por um
menino de 12 anos, então significa esta é a minha forma reger, são os meus códigos acordados
com aquele grupo, e as pessoas conhecem o meu código, outras pessoas vem e desenvolvem
outros códigos e colocam quando estão regendo a orquestra, completamente diferente de mim,
então tudo isso é tratado num âmbito de se apresentar na capoeira, as vezes saímos daqui ao
terminar um treino ou uma roda e vamos ali pro barzinho, ficar tomando uma cerveja, tudo feito no
âmbito da formação da gente de capoeirista, é certo que a orquestra dá um elemento a mais pra
gente, que facilita receber algum convite para fazer alguma coisinha, uma ajuda de custo aqui e
outra ali mas ela está focada dentro do nosso trabalho como uma atividade normal dentro da
capoeira, a gente tem muito medo que as pessoas se sintam com essa historia de que eu posso
ser capoeirista sem saber tocar berimbau, como eu disse para você tudo que a gente faz é voltado
para ensinar essas pessoas a repassar, a preservar a comunidade, a se comprometer com essa
memória.
225
ANEXO 5
Entrevista com Mestre JD
Mestre há quanto tempo o senhor está na capoeira?
Bom, na verdade eu estou na capoeira desde 1980. Na década de 80 foi quando conheci o Mestre
João Pequeno. Seis meses depois que ele abriu sua academia eu já tava com ele.
Qual é a sua idade?
Eu tenho 43 anos.
E porque de seu apelido?
Porque quando eu entrei na capoeira na academia de João Pequeno, Mestre João Grande me
colocou esse nome. Porque a identificação que eu tenho hoje numa roda de capoeira lembra a
característica deste jogo mesmo, né! Este é o jogo mais no chão, o jogo onde você cobra mais do
parceiro, mais recursos. Então é a característica do jogo, um jogo de malicia mais no chão. Mestre
João Grande me deu esse nome com 1 ano e pouco, quase 2 anos de capoeira. Eu joguei com ele
5, 10 minutos e depois ele colocou esse nome e até hoje todo mundo me conhece assim.
Mestre há quanto tempo o senhor ensina capoeira?
Rapaz, eu to ensinando capoeira tem quase 20 anos.
O senhor começou ensinar em que ano?
Na verdade quando entrei na academia de Mestre João Pequeno eu treinei quase 5 anos com ele
e depois ele me passou pra dar aula na academia dele. Então, em 85, 86 eu já tava dando aula de
capoeira, mas dentro da academia de João Pequeno.
O senhor já surgiu com o nome de seu grupo como é hoje?
Na verdade eu coloquei dois nomes que eram Filhos de Mestre João Grande e Mestre João
Pequeno, porque como eu comecei a capoeira com Mestre João Pequeno, tinha a referencia dele
e mestre João Grande porque começou um trabalho no Pelourinho e depois ele foi embora para os
Estados Unidos, então tinha alguns alunos da época que em conheciam quando o Mestre João
Grande foi embora e aí com a necessidade de eu ter um nome pro meu grupo eu coloquei Filhos
de Mestre João Pequeno e João Grande, que era a relação que tinha com eles. Só que aí o grupo
foi se desfazendo, se desfazendo e os alunos do Mestre João Grande saíram do grupo. Aí quando
não tinha nenhuma referencia mais eu coloquei Herança de Pastinha. Só que quando coloquei
Herança de Pastinha, a mulher dele, ela veio em cima, perguntar porque eu coloquei o nome de
Mestre Pastinha no grupo e aí uma confusão danada e acabei tirando. Aí foi quando eu coloquei
em 90, surgiu o grupo como é hoje.
Como foi seu contato inicial com a capoeira?
Olha eu conheço capoeira desde os cinco anos de idade, porque eu tive meu irmão mais velho que
era capoeirista. Só que era capoeira de rua. Ele não aprendeu em academia como eu. Eu tinha 5
anos de idade e tive a oportunidade no carnaval de ver a roda de capoeira e aquilo marcou na
minha vida e ficou. Então meu primeiro contato foi através do meu irmão. Só que a capoeira que
ele jogava era uma, hoje eu tenho essa visão e eu tive oportunidade de estudar e fui crescendo. Eu
226
fui estudar e saber um pouco da minha historia como brasileiro, como descendente de africano,
como negro. Então eu fui estudar um pouco da historia do negro.
Quando o senhor chegou à academia de Mestre João Pequeno, como era o
dia a dia na academia? Como era o treino?
O rapaz, o Mestre João Pequeno dava uma confiança pra você pegar resistência, conhecer os
movimentos, de você poder se movimentar na roda. Então ele dava os movimentos básicos e em
cima disso aí as pessoas iam pra roda e começavam a desenvolver o jogo em cima daquilo que ele
dava. Por exemplo num rabo de arraia ele não dizia tem que criar essa situação, essa e essa. Ele
dizia aqui é um rabo de arraia. Ele dava o básico e dentro daquele básico a gente conseguia
descobrir as seqüências e os movimentos, fazer a entrada e a saída. As aulas de Mestre João
Pequeno era de segunda-feira, quarta-feira e sexta-feira, porque terça-feira, quinta-feira e sábado é
roda até hoje e os mesmo treino que ele dava, ele deu por quatro, cinco anos, a mesma coisa. Era
baseado em rabo de arraia, em negativa, em trabalho de banco, era uma base pra quando
chegasse na roda se ter esse preparo.
Como o senhor organiza hoje o seu trabalho, dentro do grupo?
Basicamente eu passo para as pessoas que já estão dando aula de capoeira, aí tem uma apostila
com todos os movimentos. O que é importante o aluno saber, como música, ritmo, jogo, a
chamada e o cuidado que tem quem ta ensinando tem que ter com o aluno. Resumindo, tem uma
apostila onde às pessoas lêem e eu to sempre orientando. Eu to pelo menos uma vez por ano, to
com esse pessoal que ta dando aula com minha responsabilidade, então a organização está aí, o
resto é o dia a dia. De três em três meses as pessoas tem que mandar pra mim um relatório que ta
acontecendo: se o aluno se machucou, a dificuldade se aconteceu alguma pergunta, alguma
musica ou palavra que o aluno perguntou e ele não souberam fazer. Se teve alguma briga dentro
do grupo. Então com esse relatório eu vou acompanhando e quando tenho a oportunidade de ir lá
eu já chego sabendo o que vou encontrar.
Mestre, o que o senhor considera imprescindível para quem vão começar
hoje a capoeira?
É não ter pressa! É não ter pressa porque na minha época a gente não tinha pressa e em segundo
lugar é aprender sempre. Hoje as pessoas têm tanta ansiedade de aprender, já entram na
academia querendo ser um professor, querendo ensinar. E fora isso entender um pouco da leitura
sobre a capoeira. Eu conheço tanta gente que ta com 2, 3 anos de capoeira e não conhece nada
da historia da capoeira. Então o mais importante agora é você estudar e ter objetivo de aprender
sem querer ensinar a capoeira. Eu tive uns 10, 15 anos da minha vida estudando a capoeira,
buscando informações de capoeira, buscando informações da capoeira. A humildade, o respeito,
eu acho que com isso aí a pessoa vai aprender capoeira sem problema nenhum.
O senhor foi para São Paulo em que ano?
Foi em 1989, fui lá pra ficar 3 meses e depois voltei e aí continuei, uma semana, duas semanas em
São Paulo, voltava pra Salvador, foi 4 anos nisso indo e voltando. Quando foi em 1996 eu resolvi
morar de vez em São Paulo. Eu fui convidado pela Unicamp, montaram um projeto dentro da
Universidade, da capoeira Angola. Aí esse projeto levou quase um ano, depois que terminou esse
projeto, as pessoas me deram espaço pra trabalhar e com eu já tava lá, eu resolvi ficar e comecei
a trabalhar dando aula na Universidade.
Hoje o senhor. Possui quantos núcleos?
227
Aqui em Salvador, em São Paulo, Minas Gerais,Brasília e fora do Brasil no Canadá dando aula e
agora na Itália em Bali. E também agora com esse evento pintou um trabalho na Chapada
Diamantina, tem um menino que mora lá e tão querendo dar continuidade do trabalho lá.
Quando veio e de que forma veio sua titulação de Mestre?
Rapaz, como te falei eu não entrei e nunca me preocupei em ser Mestre de Capoeira. Quando eu
comecei não tinha essa preocupação, até porque não se vivia de capoeira. Se vivia do seu
trabalho. Então quando eu comecei capoeira eu trabalhava num Supermercado, o Paes Mendonça
na época, então eu ia pra capoeira pela historia, como eu te falei mesmo. Quando eu conheci o
Mestre João Pequeno eu vi que era uma pessoas que tinha muito pra ensinar e tinha aquela
ansiedade de passar pra alguém e como eu já fazia parte dessa coisa da capoeira eu fui indo, mas
sem a preocupação de ensinar, até porque eu naquela época achava que só tinha que ensinar
capoeira quem sabia. Hoje muda a história, tem gente que não sabe nada e ta ensinando , então
acho que tem que ensinar são os mestres mais velhos! Com o tempo, com a dedicação, com
aquela coisa de estar se envolvendo cada vez mais , buscar informações, vai aparecendo, o
Mestre vai ganhando confiança vai vendo que é uma pessoa que ta ali para dar continuidade do
trabalho e com essa força é que eu consegui. Fui contra mestre primeiro, em 90/92 e com o tempo
veio o reconhecimento, a comunidade. O Mestre de capoeira tem uma responsabilidade muito
grande, acho que o mestre tem que ter equilíbrio, além de ser o mestre ele é um educador. Saber
lidar com a educação, com a situação, com o ser humano. Hoje tem alguns mestres que fazem
muita loucura ele usa do titulo de Mestre, do poder pra se aproveitar do outro, então eu acho que
hoje ta complicado, tem muita confusão, muitas brigas e que se você pensa vai ver que não é um
mestre de capoeira , ele não tem essa noção do que é ser mestre de capoeira. Ele tem o poder de
educar e não de formar um exercito ou uma gangue. De qualquer forma hoje complica muito,
porque qualquer um ta sendo chamado de mestre e no passado só era realmente chamado de
mestre quem tava realmente preparado. Preparado pelo jogo, pelo equilíbrio e pelo conhecimento
da arte.
O que o senhor considera imprescindível para quem conduz um trabalho
dentro da Capoeira Angola?
Eu acho que pra fazer um trabalho de capoeira Angola tem quê ser um conhecedor em primeiro
lugar. A princípio é você ter conhecimento e ter uma referencia, porque quando você tem
conhecimento à coisa é outra. Porque qualquer dúvida que você tiver, você vai buscar na sua
referencia em fulano, você tem que ter um fundamento.
O senhor pode apontar alguns fundamentos que acha imprescindível?
A musicalidade, o que é a musica, o que significa a ladainha, o que significa a chula, o que significa
o canto de entrada, o que a musica ta falando na roda, as chamadas, o que significa o pé de
berimbau ou o cuidado que você tem que ter com o berimbau, entendeu? E fora isso os
movimentos que você ta fazendo, muitas vezes pega de fora da Angola e não tem nada a ver com
Capoeira Angola. E aí vai ferindo cada vez mais a tradição!
Mestre, hoje assistimos uma grande relação da capoeira com a Educação
Física. O que o senhor pensa a respeito dessa relação?
Eu acho que Educação Fisica è Educação Fisica e Capoeira é Capoeira. Acho que é uma grande
contribuição trabalhar em dois paralelos, juntos, mas um não pode interferir na relação do outro. O
professor de Educação Física hoje é super importante até porque tem muito capoeirista que
trabalha com Capoeira e não conhece o corpo da outra pessoas. Se alguém se machucar ele não
sabe, não conhece a musculatura ou porque se machucou, mas também o Professor de Educação
228
Física não pode querer ensinar Capoeira que a capoeira diferente, capoeira tem que ter
conhecimento para tentar transmitir aquilo. Eu acho que hoje se eu tivesse tempo e disposição eu
ia fazer Educação Física porque eu acredito que é uma grande contribuição, agora para um
Professor de Educação Física estar preparado para ensinar Capoeira tem que ter um
conhecimento que ele não tem, assim com um Mestre de Capoeira pra ensinar Educação Física
tem que estudar bastante.
Na sua visão até que ponto a Educação Física contribuiu ou limitou a
Capoeira?
Eu vejo que é uma confusão muito grande, porque quando eu comecei na capoeira existiam menos
lesões na capoeira que hoje. Hoje as pessoas falam não pode fazer pulo de sapinho, não pode
fazer isso e aquilo, vai machucar seu joelho, sua coluna etc. começa a colocar numa situação que
o capoeirista em si não está preparado se preocupar com isso. Hoje com tanto cuidado e tanta
cobrança tem mais gente com lesão do que no passado. Eu acho que pra ficar melhor e tentar
mudar é se preparar antes. Preparar o aluno antes para fazer os movimentos e mandar jogar logo.
Como o senhor vê a entrada da Capoeira na Universidade?
Rapaz, eu vejo pelos dois lados. O lado positivo e o lado negativo. Hoje tem pessoas estudando,
fazendo tese com capoeira e não são capoeiristas. Escrevendo sobre capoeira sem ser
capoeirista. Vão buscar informações com os Mestres mais velhos. Vai lá faz pergunta, pesquisa e
depois faz a tese dele. Eu acharia que deveria buscar mais informações. Os Capoeiristas têm que
ta na tese, mas precisa estar mais atendo e pesquisar mais.
Como era seu trabalho na Unicamp?
O meu trabalho, não tinha vínculo nenhum com matéria, com nada na Universidade. Deram-me
espaço,me deram uma base financeira pra eu me manter e eu fiz o meu trabalho. Só que os alunos
começaram a ter uma visão diferente e começaram a levar o discurso da Capoeira para a sala de
aula. Então teve uma grande influência da Capoeira Angola dentro da Universidade, me chamar
para discutir sobre uma matéria lá na sala de aula. Isso pra mim foi muito importante.
O senhor acredita que ao entrar na universidade ela venha incorporar
valores que não são dela? Ou que ela passe a ser descaracterizada?
Eu acredito que sim. Não só na Universidade, mas até fora mesmo pelos capoeiristas, a Capoeira
ta perdendo suas características mesmo. O jogo, as atitudes, no comportamento, trazendo vários
elementos pra dentro da capoeira. Muitos capoeiristas trazem elementos de fora, da vida dele, pra
dentro da capoeira. Então eu acredito que dentro da Universidade pode ser um pouco mais, mas
ela não tem essa influência de perder a característica só na Universidade, ta perdendo fora
também. As pessoas na Universidade talvez não tenham o tempo que eu tenho de treinar capoeira.
De segunda-feira a segunda-feira tá lá treinando. Ele tão lá tão estudando então não tem tempo de
treinar. Talvez não tenha o mesmo tempo que um cara de periferia, mas eu acho que em questão
de perder mesmo, a gente não pode generalizar pela Universidade.
Mestre, fora da Universidade como o senhor acha que a capoeira está se
perdendo? Em qual sentido o senhor vê isso?
Quando a capoeira se torna profissão, quando você começa sobreviver da capoeira aí muda tudo.
Esses valores estão relacionados a isso. O respeito, a forma de o capoeirista ensinar a capoeira.
Com tudo na vida, você se tornou um profissional você já vai pra competição. Você tem que fazer
melhor que o outro, você tem que mostrar pro outro que você é melhor que ele se não você perde
espaço para ele. Então é nessa questão do comercio da capoeira. As pessoas tão vendendo a
Capoeira como se fosse um produto qualquer. Claro que como em qualquer trabalho, quando você
229
faz seu trabalho você tem que se manter, mas tem que ir lá ganhar seu dinheiro, mas saber que ta
fazendo uma coisa honesta. Ta sendo reconhecido pelos alunos como profissional. As pessoas
não se preocupam mais em mostrar para o aluno através dos gestos, através de uma boa forma. O
Mestre não pode ser distante, ele também tem que ser uma pessoa capaz de ouvir, de conversar,
desde uma criança até uma pessoa mais velha. A Capoeira Angola antigamente tinha isso, o
mestre tratava o aluno como ser humano, como uma pessoa normal, mas sabendo também que o
aluno sabia o seu lugar e hoje não tem isso. Eu já vi vários alunos tratar o Mestre ou fazer várias
perguntas que na época não era certo fazer. O aluno ia lá devagarzinho, escutando, ouvindo, mas
não questionava. Então capoeira hoje já se perdeu muito. Época diferente!
Ontem na aula o senhor comentou que antes existia um respeito maior com
os jogadores e hoje isso se perdeu. Como o senhor vê isso?
Na verdade os capoeiristas do passado iam pra capoeira pra vadiar a capoeira, era o lazer deles.
Trabalhava de pedreiro, carroceiro, estivador a semana toda pra ter o sustento da família dele e no
final de semana, feriado ou dia de festa ele ia pra capoeira. E ali eles iam com o espírito de se
fortalecer fisicamente e se preparar pra ta bem na segunda-feira, tanto o corpo quanto o espírito,
pra dar continuidade no trabalho dele. Eles chagavam ali e jogavam capoeira, eles vadiavam,
brincavam e sabia que podia dar cabeça no outro, jogar do outro lado e matar o outro, mas eles
não iam fazer isso, porque não tinha necessidade. Nós capoeiristas tinha o respeito porque eles
sabiam que na segunda-feira tinham que ta inteiro pra trabalhar. Hoje as pessoas sobrevivem da
Capoeira, então você quer bater no outro, mostrar pro outro que você é melhor e amanhã ter mais
alunos. Antigamente era o jogo da Capoeira, sem a violência que tem hoje.
Mestre, pra finalizar o que é a Capoeira Angola para o senhor?
Olha, a Capoeira Angola é a minha historia. Foi através da capoeira Angola que eu consegui e
consigo hoje fazer minha vida. É a minha história! É minha história como brasileiro vivendo esse
mundo, essa loucura, essa violência, o sistema cada vez mais sugando a gente e você ter que
manter o jogo de cintura. É o meu alicerce pra cuidar da minha família, da minha casa, da minha
saúde, da minha vida. É uma base pra lidar com as pessoas, porque lidar com o ser humano não é
fácil. Eu costumo falar que ser capoeirista é fácil, mas viver no mundo da capoeira é difícil. Então
Capoeira Angola é você saber dizer sim, dizer não, você correr, você ficar, você chorar, você sorrir,
você ta preparado pra tudo, tanto de bom como de ruim. É você tá correndo atrás de conquistar
alguma coisa na sua vida e se você não conseguiu é porque não é o momento certo. É você
respeitar o outro e saber que o direito do outro começa quando o seu termina, são várias coisas.
Eu costumo falar que sem a capoeira não sei viver. A capoeira pra mim é a minha vida quase 100
por cento. Enquanto eu tiver fazendo isso aqui, falando de capoeira, jogando capoeira, tocando
meu berimbau, viajando. Enquanto eu estiver fazendo isso eu sou feliz. A minha vida só tem
sentido com a capoeira. Eu acredito que o ser humano vem pra Terra com uma missão e a minha
missão é essa. A minha missão é fala, aprender, jogar capoeira, ensinar capoeira. Eu vim com
essa missão aqui pra Terra,então com ela eu quero continuar enquanto eu viver. Se não, seu eu
tiver que parar que ficar sem capoeira, eu tenho que sair desse mundo porque eu não vou ser feliz.
A capoeira pra mim é muito mais que um jogo. A capoeira me deu tudo, abriu tantas portas na
minha vida, me deu uma base na minha vida que hoje tudo o que eu tenho eu agradeço a ela!!!
Obrigado Mestre!
230
ANEXO 6
Entrevista com Mestre M
Mestre M, o senhor sempre foi conhecido assim no mundo da capoeira?
Sempre, sempre! 6555-9669
Quanto tempo faz que o senhor ensina capoeira?
Estou ensinando desde a década de 70. Por motivo de ordem superior, eu era militar aqui e viajei
pra o rio para fazer um curso e fiquei no rio. Esse curso não acabou de imediato e mesmo depois
que sai da marinha eu fiquei no rio e continuei dando aula de capoeira.
Qual sua idade?
Tenho 58 anos e venho praticando capoeira aproximadamente há 47.
O senhor inicialmente treinava onde?
Eu treinei na academia do mestre Pastinha e faço questão de frisar que eu não fui aluno do mestre
Pastinha. Eu não quero cometer o erro que muitos têm cometido, pelo fato de terem treinado
capoeira ou apenas de terem só participado de rodas e capoeira na academia do mestre, se
aproveitar para dizer que foi aluno do mestre Pastinha. Eu não tive esse privilégio, mas também
não me faltou nada pelo fato de eu ter treinado com os mestres João Grande, o mestre João
Pequeno, dentro da academia do mestre Pastinha! Tive o prazer de conhecê-lo, sou da época em
que mestre João Grande estava na academia do mestre. Entre outros que eu conheço e que estão
vivos e que também foram contemporâneos.
Como se deu seu contato inicial com a capoeira?
É tinha um senhor que era meu vizinho e ele gostava muito de capoeira, o seu Augusto. E ele
queria colocar o filho dele para a capoeira e ele aproveitou e ao levar o filho dele ele me levou
também, tinha oito anos nessa época. Aos oito anos eu já estava começando a confeccionar meu
berimbau e sabia inclusive tocar o berimbau. Aí eu me interessei, gostei, fiquei, esse meu amigo,
filho desse senhor que me levou pra capoeira, ele não continuou e eu continuei, apesar da
repressão dos meus parentes que não queriam que eu fosse capoeirista, porque naquela época
ser capoeirista não era bem visto aos olhos da sociedade.
A sua idéia inicial era fazer capoeira?
Não tinha idéia de nada eu só queria fazer alguma coisa! A minha proposta inicial era estar em
movimento, como todas as crianças. Durante todo tempo que fiquei em Salvador não tive a
oportunidade de associar a capoeira a nenhuma outra coisa diferente. Aí fui para o Rio de Janeiro
como militar, exatamente nos meados de 70 e lá jogando capoeira eu vi que precisava formar um
grupo que se identificasse comigo. Eu não vi capoeira Angola como conhecemos hoje, no Rio de
Janeiro. Não tinha capoeira Angola como estamos acostumados hoje, o que aconteceu foi o
surgimento dela, a partir da minha presença. Tinha grupos de capoeira, que apresentavam a
capoeira do Rio de Janeiro, que é questionável, e naquele momento tudo que significasse rebeldia
pra sociedade, tudo, tudo, tudo estava vindo de um capoeirista. Tem até um autor que escreve
sobre policia no Rio de Janeiro, ele conta o seguinte, que o cara dava pedrada no outro, a policia já
via o cara como capoeirista! Já rotulava! Capoeira no Rio de Janeiro naquela época era isso! Então
estava diretamente relacionado à marginalidade. Esse conceito de capoeira que temos hoje era
231
muito genérico nesse momento, pelo menos no Rio de Janeiro. Quando cheguei lá eu encontrei
esses capoeiristas, que a maioria dos historiadores falam, e encontrei pessoas fazendo alguma
coisa mais parecida com capoeira. Dois grupos distintos que era o grupo senzala com raízes no
trabalho do mestre Bimba e o grupo não tinham um grupo na zona, na baixada fluminense, mas
sim varias pessoas que jogavam capoeira sem preocupação com essa identidade. Jogava
capoeira! Eu tive a oportunidade de ver e vejo até hoje a capoeira como luta de classe e naquele
momento era bem evidente, um grupo da baixada fluminense e um grupo da zona sul do Rio de
Janeiro. Hoje já está mais difuso. Essa luta de classe está mais difusa, mas se você parar pra
analisar as relações, você vai ver muito claro essa luta de classes, entendeu?
Mestre, o senhor vai para o Rio de Janeiro e vê a necessidade de criar um
grupo que se identificasse com sua perspectiva. E quando surge este
grupo?
Em 1980. Paradoxalmente, né! Sou de Salvador e fui começar um trabalho de capoeira lá e muita
gente acredita que migrei do Rio pra cá, mas na verdade eu fui e voltei para Salvador. A historia de
capoeira, essa historia de quando eu começo a capoeira, ela é anterior a 80 e foi justamente com
os alunos que preparei de 70 a 80 que eu formei o Grupo.
Nessa época em que o senhor ensinou sem instituir o seu grupo era um
trabalho de Angola, mas sem um nome?
Não tinha nada disso, era o pessoal que treinava capoeira comigo e tinha o pessoal que inclusive
eu tive que bater na porta da casa deles de manhã, pra acordar pra treinar! Foi um trabalho árduo
pra formar esse grupo!
Em 80 o senhor funda o grupo com qual intuito especificadamente?
Eu vi naquele momento a oportunidade, porque quando você institucionaliza você tem a
consciência disso você não se deixa envolver pelas implicações da sociedade que reprime o que
acontece dentro da instituição. Essa coisa da possibilidade de você negociar em conflito, você tem
que negociar em conflito. Você sabe que a sua instituição não tem nada a ver com as normas
ditadas pela sociedade, mas você mesmo assim pra que ela seja aceita por essa sociedade que
reprime o que você faz, então você vai e apresenta sua instituição nos moldes sociais para que a
sociedade não tenha muito que cobrar de você. Foi unicamente esse o objetivo. Eu criei o grupo,
registrei, redigi o estatuto e tal, foi por isso, mas questiono muito isso hoje, quando vejo
capoeiristas se envolvendo com o poder e se deixando envolver pelo que é ditado pelo poder,
deixando a capoeira perder sua identidade e sua essência, se tornando só mais uma forma de
fazer ginástica.
Por que este nome?
Grupo de Capoeira Angola pelo estilo de capoeira e Pelourinho em homenagem onde mestre
Pastinha tinha a academia dele.
Como o senhor organiza seu trabalho dentro do grupo?
Olha só! Hoje a dinâmica cultural me obriga a não ensinar como eu vi os mestres ensinando. Eu
ensino diferente! Eu não quero entrar na ilusão de que eu preservo 100% do que se pode chamar
de tradição! A prova disso é que se modernizou em excesso, a capoeira tem muito mais a cara de
uma luta de karatê do que de capoeira. E por isso eu me preocupo em preservar o mínimo do que
ainda existe dentro do conceito da capoeira angola. Uma das coisas que eu sou radicalmente
contra é ginástica calistênica antes do treino de capoeira. Isso aí já é um dos elementos que
mostra a descaracterização e a perda da identidade da capoeira. Hoje eu dou aula, não sempre,
mas também dou aula com musica eletrônica, mas pelo menos ali o que ta sendo tocado é um
232
disco meu! Seria o mesmo, né! Que estar ali os alunos do grupo ta tocando berimbau e dançando.
Ora, se eu posso hoje dispor de uma tecnologia que facilita o meu trabalho, mas isso não implica
em perda de identidade, eu apenas utilizo. São essas coisinhas que eu tento equilibrar, o moderno
e o tradicional. Quando nós estamos usando o moderno dentro da capoeira angola, dentro do meu
trabalho, nós temos consciência de que o moderno só está aí contribuindo pra que eu possa num
tempo mais rápido, mostrar o tradicional, mas não me deixo envolver pelo modernismo.
Mestre, como era a forma de ensino na época em que era aluno?
De imediato tinha uma ligação com a oralidade, isso eu sentia e vivi profundamente. O mestre de
capoeira ele não tinha esse contato com o aluno de duas vezes por semana, não, o contato era
constante só que a metodologia contrariava o que diria hoje a metodologia que era assim, tipo, o
mestre de capoeira não diria o que você tinha que fazer, ele ia corrigir o que você tinha feito, se
estivesse errado. Era assim, vai fazendo e quando estiver fazendo alguma coisa errada eu chamo
atenção. Essa maneira de chamar atenção era de um forma que hoje você não vê, alias eu diria
que a maior queixa que eu tenho de muitos alunos de outros mestres é que eles não chamam
atenção para os detalhes e justamente os detalhes, são detalhes que são de suma importância.
Detalhes que fazem a diferença, porque se você bota a perna num ponto, bota o pé de uma forma
apoiado no chão e você não se preocupa, acha que o importante é que ele esteja com o pé no
chão é um problema. É bom que você chame a atenção na forma de como o pé deve estar no chão
tudo certinho no movimento, mas que tem 1 por cento de situação dentro do movimento que
justificaria o chamar atenção.
E hoje o senhor busca resgatar a tradição?
Tudo! Tudo possível. Existe um autor, eu não me lembro o nome, mas diz que tudo o que você
deve conservar de tradição é bom para continuidade capoeirista.
A quais tradições o senhor se refere?
Coisas de época né! Eu não to ensinando capoeira no século dezoito ou dezenove, são coisas de
época. Uma por exemplo, não vou dar o nome do mestre por ética, mas ele não inicia uma roda de
capoeira com uma mulher jogando. Eu não me deixo envolver por esses tradicionalismos, não
permitir que uma mulher abra uma roda de capoeira. Eu respeito à postura desse mestre, assim
como outros mestres cuja aluna ou alunas não pode pegar no Gunga pra tocar. Eu quero chamar
atenção pra forma exacerbada como muitos mestres de capoeira mesmo modernos atuam, estão
se envolvendo com essas coisas de forma muito radical, tipo, antigamente uma mulher não podia
tocar porque implicava na energia da roda. Isso tudo aí, tem muitos mestres que estão se
envolvendo de forma exacerbada, com esses mitos e representações falsas de religiosidade ou
religião.
Mestre, o que senhor acha imprescindível hoje na pratica da capoeira
Angola?
Em primeiro lugar é procurar frear essa proliferação de mestres de capoeira angola que ta aí!
Entendeu? Mestres que fazem mímica da capoeira angola. A capoeira angola ela tem uma
essência que é muito difícil de ser verbalizada, então essas proliferações de mestres de capoeira
Angola assumindo esse titulo, essa posição hierárquica unicamente por fazer alguma coisa
parecida com que ta seguindo porque o povo vê na capoeira Angola uma coisa boa, mas tem um
monte de gente que se autodenomina mestre sem ter ainda conseguido buscar meios para
transmitir esses elementos da capoeira Angola, não tem condição mesmo! Só sabem jogar e às
vezes muito mal! É uma coisa que transformaram a capoeira Angola somente em simbologia e os
elementos importantes dos séculos dezoito e dezenove, problemas ligados à sociedade e a
escravidão estes mestres se esqueceram.
233
O que o senhor considera como saber imprescindível para a prática do
ensino na capoeira Angola?
O que precisa é que o mestre de capoeira ele tem que ser muito mais que um jogador de capoeira,
eles sejam capoeiristas. As minhas criticas de como estão tratando a capoeira angola, elas têm
uma direção e eu tenho , consigo atingir uma maioria, foi aí que cheguei a uma conclusão de que a
maioria dos mestres não preenche os requisitos pra se apresentarem como tal, partindo do
principio dessa necessidade da capoeira enquanto essa manifestação que tem um fundo, uma
relação com as questões sócio-políticas do nosso país, mas perdeu essa identidade. Não posso
generalizar, mas a maioria não tem condição de contextualizar capoeira angola e sociedade
política, não tem!
Mestre, o Sr falou da essência da capoeira angola e da dificuldade de se
pontuar isso, por ser um pouco complexa. O Sr poderia falar um pouco mais
sobre o que considera como essa essência?
Olha só, na realidade quando eu falo de sociedade e política, essa essência ela perde a simbologia
do que a gente ta chamando de capoeira. Quer dizer, às vezes o cara não joga capoeira e é
capoeirista, mas do que aquele que joga, entendeu? A partir do momento em que você tem postura
rebelde aliada as questões que um dia classificaram o capoeirista pela postura que ele tinha como
rebelde. E se você não joga capoeira, mas você tem postura rebelde, a gente pode dizer que você
é um capoeirista, desprovido de símbolo, porém, com conteúdos que se identificam com as
características de um capoeirista.
Mestre, hoje nós vemos uma relação muito forte entre a Educação Física e a
capoeira. Como o senhor vê essa relação?
Eu acho que é justamente o que estávamos falando. A capoeira deixou de lado essas questões
subjacentes de que ela é pacífica, né? Na realidade a culpa não é da Educação Física, a culpa é
dos capoeiristas que estão limitando a capoeira ao corpo físico. Só isso! Eu acho que pra discutir
ou condenar a Educação Física enquanto instituição a gente tem que condenar mestres de
capoeira que estão calados permitindo que isso aconteça. Muitos gurus da capoeira estão
permitindo isso. Não é falar da Educação Física é começar a colocar na cabeça dos alunos,
orientar os alunos pra esses elementos subjacentes da capoeira pra eles refletirem a capoeira
como uma manifestação sócio política, uma manifestação com mais sentimento que movimento.
Se isso for feito a Educação Física não vai ter porque botar! Porque não coloca o Tai Chi na
Educação Física? Ela Tenta pegar, e com certeza só vai achar apoio nos falsos mestres de Tai
Chi, pois nos verdadeiros não, e aí vêm o questionamento do que é verdadeiro? São os que não
ficam limitados aos elementos externos, os símbolos. Ele extrapola isso pra buscar explicações pra
capoeira, como a forma dela ser entendida pelo químico, pelo físico, pelo biólogo, por todo mundo,
pois ele vai verbalizar a capoeira. Ele vai dizer bom, eu to conversando com um historiador então
vou falar de capoeira num contexto histórico, eu to falando com um físico vou falar com de capoeira
com ele no contexto da física, vou falar com um geógrafo, vou falar da capoeira dentro de um
espaço geográfico. Sempre em qualquer dessas vertentes você vai ter que abordá-la socialmente,
e não apenas a parte física pois assim qualquer pessoa pode ser mestre. Daí o pensamento:
Porra, ele é mestre! Eu faço o que ele faz então posso ser! Vai ficando só relacionada ao que se vê
e o que não se vê ninguém ta preocupado.
Mestre, como o senhor vê a entrada da capoeira na universidade?
Eu acho legal! Só acho interessante que nós cobremos da universidade que aceite a capoeira com
ela é, não como eles querem que ela seja. Não tenho nada contra. Se me chamarem pra dar aula
234
numa universidade eu irei, mas vou ensinar com eu sei, como eu vejo a capoeira, como eu sinto a
capoeira e poder falar como eu acho que deve ser falado.
O senhor acredita que ao entrar na universidade a capoeira pode adquirir
valores que não são pertinentes a ela?
Claro, alias quem disser que a academia não aliena, nunca passou pela academia, ou passou e é
um do grupo dos alienados. Claro que vai adquirir. Já imaginou você dentro de uma universidade
dessas e falando dos prejuízos e falsidade que foi esse registro da capoeira como patrimônio
imaterial, ir para universidade pra dizer que a escola pública é uma enganação? Ir pra universidade
pra dizer que existe uma escola pra rico e outra pra pobre? E aí você pode assumir uma postura
que existe uma inversão de valores? Essas pequenas coisinhas você não vai poder dizer numa
universidade, inclusive porque você tem que respeitar um plano de aula e os conteúdos
programáticos. E por aí vai, se eu for chamado vou perguntar se posso ficar à vontade e não iria
ficar. Não iriam deixar! Na verdade quem devia ensinar capoeira na universidade eram os mestres
de capoeira, falando de candomblé, falando de samba etc. e tal. Se não o camarada treina
capoeira comigo dois ou três meses, escreve uma dissertação de mestrado e daí pode dar aula na
universidade. E o mestre João Grande, o mestre João Pequeno e outros que levaram 50,60 anos
vivendo com capoeira não tem espaço porque a lei das diretrizes e bases não dá esse espaço.
Segregação total, a religiosidade, tradição, tudo isso vai por água abaixo. Não pense você como
professor de Educação Física, você pode até ter vontade de fazer, mas não pode fazer, pois lá
você tem que ser empregado dos alunos. Os alunos coitados, vão querendo o que foi divulgado
pra eles, não o que você viveu como capoeirista. O meu valor, o meu significado dentro da
capoeira pra eles na universidade é nulo tanto é que ninguém sentiu a minha falta! Não fui
convidado pra opinar sobre nada!
O que é capoeira Angola para o senhor?
Pra mim ela tem vários significados e um deles é a fusão de corpo e mente não é só corpo e nem
só mente. Outra coisa é que a capoeira tem a condição de ser um instrumento de questionamento
social, um dialogo entre o capoeirista e o poder. Outra coisa é que a capoeira ela é remédio pra
muitas doenças que temos hoje aí! E uma delas é a violência.
Doenças físicas e não físicas?
Isso! Muitas doenças físicas e não físicas. A violência como uma não física que sai do não físico
pra se transformar em físico, vai ser resolvida com a capoeira. Eu tenho o maior orgulho dos meus
alunos. Os que são meus alunos hoje, os que treinam e praticam comigo hoje em dia, que são
poucos, mas com qualidade e me sinto muito bem com eles. Nesse período que estou envolvido
com meus estudos, meus alunos estão com os contramestres e tenho certeza que pelo menos
50% me substituem. A minha preocupação com a capoeira angola é justamente ela estar perdendo
esses elementos subjacentes a ela, hoje existem crianças praticando, pegar 200 crianças pra
colocar num espaço pra treinar ser atleta é fácil, agora ensiná-los cidadania, não, esse discurso da
cidadania de dar bom dia, boa tarde, essas coisas são necessárias mas não são primordiais,
socialização primária! A capoeira pode fazer muito mais. Eu tenho alunos no que entravam calados
e saiam sem falar nada, hoje tem hora que dizem: mestre eu não concordo com isso! Eu busco
condição de que você está certo, mas eu também estou, entendeu? Não há o errado. Vamos rever
nossos conceitos pra continuar essa discussão e aí vem de novo, Oh mestre! o Sr ta certo!, o
fulano ta dizendo isso, isso e isso, ta faltando isso na capoeira angola. Antigamente não era assim,
antigamente o mestre dizia que o berimbau era de plástico e mesmo que o cara tivesse vendo que
não era ele tinha que aceitar, mas hoje não! Hoje precisamos preparar nossos alunos para o
embate fora das rodas, mas não significa brigar. Sou exigente, sou radical, mas radical é ter raízes.
Nossos alunos chamam o grupo de quartel, porque o aluno tem hora de chegar e hora de sair.
Quero tudo arrumado. Na sociedade, na roda da vida o cara tem que cumprir horários, tem que
chegar e sair na hora tem que produzir. E aí o mestre da capoeira que chamou isso, essa
235
libertinagem de liberdade, vai assumir essa responsabilidade com você? Não vai? Isso tem relação
com a criação que eu tive? Tem! Tem resquício desse militarismo que eu vivi? Tem! Tem! E daí?
Eu to aproveitando do militarismo só o positivo, só que eu gostei, o que não, eu não utilizo! Meu pai
também era rígido! Então minha relação com meus alunos têm relação com a minha formação,
meus pais meus avós e tal! Então meus alunos são ótimos, o que eu tenho com meus alunos e
eles comigo é respeito! Respeito tem que ter! E o que ta acontecendo hoje na capoeira é
permissividade e isso eu to fora! Não vai ouvir e nem ver isso de mim!
Obrigado Mestre!
236
ANEXO 7
Entrevista com Mestre P
Bom nós estamos aqui com o Mestre P que também está nos ajudando em
nossa pesquisa. Mestre o senhor está na capoeira desde quando?
Eu estou no mundo da capoeira desde 1945 praticando, eu nasci em 1934, em 1946 comecei a
aprender a capoeira com o finado Bugalho na rampa da mercado modelo, mas antes de praticar eu
já tinha convivência dentro da capoeira, em 1945 me botaram esse apelido porque eu era da sexta
região do quartel general, em 1959 eu já dava curso de capoeira, em 1960 eu pedi pra dar baixa e
abrir uma academia em Brotas no clube da Redenção e daí continuei como mestre e administrava
o clube Redenção de Futebol, eu dava aulas pra que eles fizessem os movimentos pra ter mais
agilidade no corpo, pra ter o corpo mais leve, o dia das minhas aulas lá em brota era de terça e
quinta feira e domingo de tarde fazia a roda, fazia não, praticava a roda, que eu não faço roda, na
capoeira a roda já é feita em qualquer lugar que eu chegar, ela traz e eu pratico a roda, isso foi em
1960 e antes eu comecei a praticar roda de capoeira em rua, na festa da conceição, de Santa
Luzia, Boa Viagem, Lapinha, Rio Vermelho, Mapuá, Arembépe, Bonfim e Ribeira. Na Ribeira eu
tinha duas posições, praticava a capoeira e também praticava o samba de roda no dia de segunda
feira da Ribeira que é a segunda-feira da voz da Ribeira.
Mestre quando veio o nome do seu grupo?
Esse grupo de capoeira Angola ta desde 90 pra cá. Por quê? Eu tenho um filho praticando
capoeira que está na Alemanha e nós temos uma academia na Alemanha, e estamos localizados
em Monique lá na Alemanha e agora nós temos em Saldanha que estão ajuntando com meu grupo
o Diego que ta ensinando lá em Saldanha.
Mestre, como foi o seu primeiro contato com a capoeira?
A capoeira entrou na minha vida porque eu só queria brigar quando eu vi o taiaçu lá no interior,
Taiaçu é aquele que mora lá no “Jap-Jap” lá no interior. Eu nasci no interior, fui criado aqui, então a
gente fazia guerra, e um dia vi alguém fazendo os movimentos e gostei do movimento, porque era
para me defender não para atacar, aí eu gostei e fiquei praticando a capoeira. Eu fiquei olhando e
foi aí que eu comecei a praticar a capoeira para se defender dos marginais porque não tinha quem
podia com a capoeira, quando eu via Maria Paribone arregaça a saia e briga com 10, 15 polícias,
briga na mão com os outros, eu fiquei admirado eu vi, daí eu comecei a treinar a capoeira porque
eu achei que tem uma agilidade, eu via três homens briga com 10, 15 homens pelos movimentos
da capoeira.
Mestre, o Sr, chegou a observar o mestre Bugalho?
Não, porque eu vivia ali na rampa do mercado modelo, quando eu vim eu trabalhava numa barraca
daquela finada Senhora, e ela é mãe de santo e aí eu vi o finado tocar o berimbau quando eu voltei
eu vi o som bonito que na época ele tocava era um berra boi, depois ele passou para um violinha e
aí eu vi tocando e como ele tocava aquele bem, Sr Bugalho ele tinha um olho, muito grande, e eu
via os movimento dos outros nas festa de largo, aí continuei jogando a capoeira.
Mestre quando o senhor chegou, aprendeu na rua ou tinha um espaço em
uma academia?
237
Não tinha academia, era na rua, eu aprendi na rampa do mercado modelo ali na rampa brincando
entendeu e aí comecei a ver os outros jogar em e eu comecei praticar capoeira.
O senhor aprendia olhando, e ele em algum momento orientava em alguma
coisa?
Não, ele orientou foi tocar o berimbau né, o que ele orientou, disse olha ta vendo ali como ta
aquele jogo, faça o mesmo movimento e aí você ficava sempre olhando! Olhando, sempre olhando,
porque a gente não aprende só com o mestre, a gente aprende com o tempo, cada vez que o
tempo vai passando, a gente vai aprendendo, hoje eu to dando curso, amanhã to aprendendo,
depois eu vou dar o curso, depois de amanhã to aprendendo, daí a convivência é assim, porque é
o mundo que está ensinando, porque se não fosse o mundo ensinar eu não tinha academia lá na
Alemanha, não tinha academia lá na Saldanha e aí por diante, porque eu aprendi um pouco aqui e
o mundo ta me ensinando pra eu distribuir a capoeira que foi valorizada mais cada vez mais.
Mestre, o senhor aprendeu a capoeira na rua sempre olhando, hoje existe a
necessidade de ter um espaço. Como o senhor organiza o seu trabalho
dentro do grupo?
Eu organizo meu trabalho, eu já tive academia em 1960.
Academia mesmo?
Academia mesmo, no clube da Redenção, tive uma academia no grupo da Redenção, tive uma
academia na Boca do Rio, levei uns cinco anos ensinando na Boca do Rio, tive academia dentro
do corpo de bombeiros da PM, ensinando no posto dois, ensinei 15 anos lá na PM, ensinei 10 anos
lá nos aflitos aonde é o QG da PM, e lá nos aflitos eu ensinei 15 anos, atualmente eu sou vicepresidente do conselho de mestre da Associação de Capoeira Angola, atualmente eu estou com
uma academia dentro do forte Santo Antonio e essa academia espero que corra o mundo todo
daqui pra frente.
Mestre hoje o que o senhor considera necessário pra quem busca aprender
capoeira Angola?
É necessário que queira aprender, uma grande coisa que temos é entrar em uma academia, ter
maior respeito aos mestres, contra mestres e professores, o necessário é que eles vêm pra
academia, quando aquela pessoa que entra na academia, quem vai ensinar e tudo que acontecer
a responsabilidade é dele, do mestre, então a pessoa necessita de fazer seus movimentos, praticar
seus movimentos, todos os movimentos que o mestre treinar então a obrigação é ter a atitude de
aprender, se não, pra que ele foi pra aquela academia é isso é o necessário que ele precisa ter
uma agilidade dentro do corpo humano dele.
E porque a vontade de aprender?
Então, o cabra vai pra academia, pra se defende, a necessidade de aprender movimentos que ele
vai precisar amanha ou depois, agora ele tem que aprender a não provocar e aceitar as coisas e se
defender na hora certa.
Mestre o que Sr acha necessário para quem está à frente de um traballho
com a Angola?
O mestre tem que saber que ele é um mestre, saber ensinar uma criança, até um adulto, ter a
responsabilidade com aquele pessoal que todos que vão chegando, com o material e com o santo
corpo humano, com o material que a gente diz é o berimbau, atabaque, agogô, reco-reco,
238
pandeiro, é o necessário para manter e ter ordem e respeito e saber ensinar em primeiro lugar,
então ter academia, ter espaço é ter capacidade de ensinar.
O que o senhor acha que é essa capacidade de ensinar?
É um homem de bem ter responsabilidade, é tudo, a capacidade de ensinar é que ele aprendeu e
vai ensinar pros demais, pro grupo, então é ele ensinando com a capacidade e a responsabilidade
dele.
Mestre, hoje vemos pessoas falando que a capoeira Angola está um pouco
descaracterizada em seus fundamentos. O que o senhor pensa sobre isso?
Eu penso que isso não é uma verdade, que a capoeira Angola ela nunca perdeu o valor dela,
porque ela é a mãe da capoeira, de toda capoeira ela é mãe, então ela não perdeu a possibilidade
dela, ninguém teve o poder de combater, porque ela é infinita, primeiro veio à base e a base não
tem fim e ela nunca perde a capacidade. Ela é mãe da acapoeira e continua sendo mãe da
capoeira, isso pode acontecer porque pessoal vê a regional, mas nunca vai combater a capoeira
Angola, por quê? Porque ela é mãe.
Mestre, nós estávamos falando sobre o fundamento, hoje assisti uma
palestra onde o senhor falou muito sobre a importância do fundamento. O
senhor pode falar um pouco sobre a importância de alguns fundamentos
dentro da capoeira Angola.
O fundamento da capoeira é o seguinte, nós temos o coral pro pessoal responder a ladainha, a
ladainha é a coisa mais importante dentro da capoeira angola e depois puxa o relativo. É como se
fosse, é o fundamento, como se fosse assim vou cantar.
Ieh!
Vinha pelo caminho
O caminho eu to passando
Encontrei uma mata virgem
Uma mata uma virgem eu encontrei
Eu tirei o meu facão
Comecei a roçar
O facão tava na cintura tirei o facão e comecei a roçar a mata pra abrir outro caminho
Cheguei no meio da mata
Encontrei um nicuri
O nicuri é aquele coco pequeno que se dá no meio da mata e eu já tava com sede porque eu tava
tirando no facão roçando aí encontrei o nicuri, quando eu olhei pra cima vi um pé de gravata
Gravata é aquelas flor que nem a nana do abacaxi chega em cima do pé de arvore abre a chuva
choveu e ficou água dentro da gravata e eu tava com sede e virei sem sentido.
Eu lovei Eparei
239
Vi um pé de gravata
Eu virei para meu Deus
Vô bebe água dela
Dentro da gravata, eu subi no nicuri e, pois a mão na gravata, quando eu botei a mão na gravatá,
tinha uma cobra e essa é a cainã, eu dei um pulo de costas e cai no mesmo lugar e aí cheguei
embaixo e perguntei ai meu Deus que cobra é essa e a cainã.
Aí eu contei essa ladainha e inverti dentro do corrido aonde foi que eu inverti dentro do ocorrido?
Foi quando eu dei um pulo de costas que pôs a mão na gravata e a cobra quis me matar eu dei um
pulo de costas e perguntei de cara que cobra é essa? Aí respondemos é a Cainana ela que estava
em cima do galho. E aí qual é o fundamento?
ia passando pelo caminho
encontrei uma mata virgem
tirei o meu facão e comecei a roçar
dali no meio da mata encontrei um nicuri
aí olhei pra cima vi um pé de gravata virei para meu Deus vou beber água de lá
Eu subi no nicuri, puis a mão na gravata a cobra quis me pegar deu um pulo de costa cai no
mesmo lugar
então perguntei que cobra é aquela?
é a cainana
E com esta música a gente pode aprender um pouco do fundamento?
É a pessoa tem que aprender o fundamento tanto de canto, como base da capoeira, como de
toques, os toques: são oito toques que tem no berimbau formado e bateria ele tem que aprender
aquilo tudo, no gunga, médio e viola, pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque. E desse fundamento
tem outra música mais importante que é:
Eu tava lá em casa, sem pensar, sem imaginar
Bateram na minha porta e me mandaram me chamar era eu, era meu mano, era meu mano, mais
eu
Era dois menino novo que queria andar com eu camarada
É ora, é ora
Ieh, é ora, é ora camarada
Vamos nós embora
Ieh, vamos nós embora camarada
240
Beira mar io io
Beira mar ia ia
Beira mar, beira mar é de io io
Beira mar, beira mar é de ia ia
Aprendemos através da música?
Exatamente
E o mestre tem que passar tudo isso aos alunos? Como deve ser essa
transmissão desse fundamento?
Essa transmissão desse fundamento, ele tem que passar para os alunos, porque morrendo ele vai
levar, e o aluno tem que praticar e passar pra outros, outros e outros, o fundamento é esse, que se
eles não souberem tocar nenhum desses materiais, ele não pode ser mestre. Se ele não souber
tocar o berimbau, não souber cantar ele não pode ser mestre. O mestre tem obrigação de saber
tudo isso, o canto, toque berimbau, se ta bom ou se ta ruim, afinar tudo ele tem que passar para os
alunos, como é que faz o berimbau, como é que raspa a cabaça, como é que faz agogô, por ou
não por, fazer o agogô de castanha, e eu já faço né, eu não faço agogô de ferro, mas o de
castanha, faço um pandeiro, já pratico ele mais ou menos eu toco pandeiro, e tem que saber tocar
o pandeiro e aí é o fundamento que veio.
Como veio seu título de mestre?
O meu título de mestre veio quando não tinha academia, não tinha nada, era de rua, meu título de
mestre veio porque eu ganhei fama e o pessoal viu eu jogando, e tive a palavra, aí está um mestre,
bom mestre, o povo foi quem me deu o nome de mestre.
O povo te reconheceu como mestre?
O povo que me reconheceu como mestre, principalmente em festa de largo, quando nós botava o
pessoal pra brincar, se divertir e eles dizia grupo de capoeira Angola do mestre P, mas botei assim,
porque eles que disse mestre P, porque eu jogando rápido com aquela cacetada que eu dava, e
quando eu parava o berimbau cantava também com o mestre Valdemar, Maré, Majé, Coqueiro,
Barrão, Avanir , mão de Onça, Toninho, Cleoni esse pessoal de Dejavá da Ponteira, esse pessoal
todo que via e aí me dava valor aí foi onde que eu me criei e hoje to avoando.
Mestre hoje eu acredito que o senhor deve saber que hoje a Educação Física
tem uma forte ligação como a Capoeira, e até alguns embates, sobre quem
pode ensinar capoeira. O que o Sr pensa sobre isso?
O que eu penso é que a capoeira não precisa de Educação Física. Antes da Educação Física a
capoeira já era capoeira e a capoeira se encaminha sem a Educação Física, a Educação Física
precisa da capoeira, porque tanto sim, que eles tão brigando, porque eles sabem que a capoeira
tem mais energia de que a Educação Física. Porque antes eu pra treinar não precisava de
Educação Física e hoje eu também não vô precisa. Aí tem o discute, discute briga, isso e aquilo
outro, mas vai dar tudo certo, cada qual é cada qual, Educação Física é Educação Física e
capoeira é capoeira. Agora a capoeira não precisa da Educação Física, pois já tem a física da
capoeira mesmo e não precisa. E antes da Educação física a capoeira já era desenvolvida dentro
da educação, porque todos os movimentos da Educação Física a capoeira traz, e acapoeira pratica
pra eles, na hora de praticar é por isso que ta essa guerra.
241
O Sr acha que pra ensinar capoeira gente não precisa estudar Educação
Física?
Não, não. Porque a energia que nós temos, a energia que não se põe dentro da educação Física,
o preparo é mais mágico no preparo nosso não quebra osso, o preparo nosso não quebra coluna,
o preparo nosso é uma caixa de peito aberto nós colhemos pra praticar isso de acordo com o
mestre e aí vamos praticando a praticando a educação física e aí que continua o preparo tanto,
que quando você ta treinando a água que sai de dentro do corpo pelos poros ela espirra fora, se
você estiver gripado e treinar ela desmancha e você for treinar educação física ela vai ficar
continuando. A capoeira energia e muita energia, pra dar a Educação Física. E é por isso que eles
estão brigando e querendo colher né.
Mestre e o senhor acredita que a Educação Física tentando incorporar a
capoeira, ela vai trazer algum benefício ou vai limitar a capoeira?
Não, ela pra mim, pelo meu conhecimento, ela tem interesse de prejudicar a capoeira.
De querer prejudicar em que sentido?
No sentido, que quer que todos os mestres sejam formados, mas pra ensinar a capoeira não
precisa ser formado, ele já é mestre, tem o conhecimento, ta entendendo, ele tem o conhecimento,
então não precisa dele se formar para ensinar. Porque pra Educação Física ele precisa ser
professor, um doutor, pra formar, mas nós não precisamos disso, os antigos mestres que formaram
mestres, mestres e mais mestres, precisou da educação física? Não, não precisamos, nós já temos
um jeito próprio de ensinar.
O senhor pode falar um pouco desse jeito próprio?
Esse jeito propriamente, é que o corpo gira e a mente gira dentro do corpo, giramos dentro dos
nossos movimentos, giramos aquele fundamento da capoeira, como a gente vem do chão, subindo
cada vez mais, nós subimos, nos levantamos os movimentos da capoeira, é isso que a coisa mais
importante que nós temos, então não temos relação para ficar Ensinando a Educação Física, sem
a educação física a gente já está preparado, fazendo praticando a Educação Física, porque a
gente vai ter relacionamento com a Educação Física.
Hoje a gente vê que a capoeira chegou na faculdade, na universidade. O que
senhor pensa dessa entrada da capoeira na universidade?
Olha o que eu penso, porque aí vai ta correndo dinheiro, como que antigamente eles não queriam
capoeira, que capoeira era coisa de vagabundo, era de marginais, capoeira era capitão de areia.
O que é capitão de areia?
O capitão de areia é esse pessoal que andava na rua, como mendigo, é esse tipo de pessoa que
chamam de capitão de areia.
O senhor acredita que isso enriquece a capoeira?
Enriquece a capoeira porque aí já vão aprendendo na faculdade, vamos dar curso na faculdade,
vamos dar curso em colégio, à capoeira aí enriquece mais, enriquece até o Brasil, porque fica
conhecido como mãe da capoeira.
242
O que senhor pensa sobre quem está ensinando a capoeira na
universidade? Pode ser que não seja um mestre de capoeira. O que o senhor
pensa sobre isso?
O que eu penso é que o conselho de mestres tome uma atitude severa, porque só pode se ensinar
quem tem condições a capoeira, e qualquer um não pode ensinar, isso é um erro que está
praticando, principalmente o presidente da faculdade, ele tem que procurar os mestres que tenha
conhecimento, o pessoal que não tem conhecimento não pode ensinar, e porque não pode
ensinar? Porque ele vai ser uma pedra pra jogar e pra ensinar, então quem ta ensinando não tem
conhecimento, tem esse conhecimento pra dar só através do livro, mas na prática não, e por isso
tem que procurar quem tem conhecimento no fundamento de capoeira que venha preparado para
ensinar.
O senhor acredita que os mestres de capoeira tem de ser levados para
dentro da universidade?
É exatamente isso, mesmo os mestres sendo burros, mas tem a capacidade do fundamento da
capoeira, e quem não tem esse fundamento vai ensinar? Pra gente começar, como é que eu vou
saber ler se eu não começar ler A,B,C, isso e aquilo outro? Como é que eu to no A e vô passar pra
H, J? Se eu não estudei do A até o B ou até C, e é por isso então nós temos que procurar o
fundamento.
O senhor acha que se a capoeira for ensinada na Universidade ela vai perder
algum valor ou vai se descaracterizar?
Ela vai ser descaracterizada pelas pessoas que está ensinando se não for mestre, mas se for
mestre ele terá a capacidade, pode também umas pessoas formadas ajudar aquelas pessoas que
não é formado, mas não precisa aquela pessoa ser formada pra ensinar porque quando a gente
ensina há tempo, já tem um conhecimento não precisa ser formado, que quando a gente vem
ensinando, se ta nesse mundo todo não precisa formatura.
Como é o ensino do Senhor dentro da capoeira Angola?
E eu tenho um encerramento pra você e você acaba de encerrar, como é que eu ensino, eu ensino
a capoeira, eu ensino as pessoas sem toque, sem canto, só com movimentos, aí eu venho pra
pessoa entender o que é um martelo, uma chibata, um esporão, um coice de burro, um camaleão,
uma tesoura, o que é uma cabeça da presa que é uma cabeçada solta, porque a rolo, porque uma
jogada do macaco, a zebra, a onça isso tudo tem um movimento, esses são alguns movimentos,
as pessoas pra ter esses nomes do golpe, aprender o que é o golpe, a pessoa tem que dar tempo,
que com toque ele não vai aprender isso, ele não sabe o nome dos golpes, não sabe o que é um
martelo, não sabe o que é uma tesoura, não sabe o que é uma cabeçada presa, não sabe o que é
um rolo, porque se eu tocar o berimbau e deixar jogando ele não sabe o que é isso, então tem que
ter primeiro o movimento da capoeira, depois é o toque e o canto.
E depois ele vai começar a criar dentro da capoeira?
A criar, a jogar tudo um por um, pra depois junta tudo para ter a base da capoeira. Pra eu tive que
olha, olhei, quem ta olhando aprende, eu não aprendi só olhando, quando ele fez o toque e eu fui
lá tocar junto também, eu fui no toque e nos movimentos, eu fui pra lá aprender com os
movimentos, não aprendi só olhando, olhar pra aprender,pra brincar e quando o mestre pedia eu
tinha que fazer os movimentos, pois sem movimentos eu não podia aprender.
O que é capoeira Angola para o senhor?
243
A capoeira Angola, É uma mãe, é a mãe e o pai, para quem não tem tudo na vida entendeu? Daí
que surge as coisas, melhorias pra nós todos com a capoeira, e aí mesmo vou deixar um abraço
pra toda direção, pra você que está fazendo a entrevista comigo mestre Pelé e quero é dar
parabéns pra todas as organizações suas e você está de parabéns fazendo essas perguntas que
eu lhe respondi e se achar alguém que queira responder melhor do que eu, porque não estudei né,
mas eu vou deixar um grande abraço para todas as direções.
Obrigado Mestre!
244
ANEXO 8
Entrevista com Mestre V
Mestre V, o senhor sempre foi conhecido na capoeira assim ou chegou a ter
um apelido?
Sempre fui conhecido por esse nome, porque inclusive da escola que eu venho, sempre teve uma
preocupação que muitos apelidos até dentro da capoeira, eles tem uma tendência pejorativa, então
tem a pessoa que chega num grupo e já tinha um apelido de infância e isso ficava, mas quando
você não tinha nenhum apelido normalmente as pessoas te chamavam pelo próprio nome. Na
escola onde eu comecei capoeira sempre as pessoas me chamavam de Walmir.
Originalmente você começou capoeira quando?
Eu comecei capoeira no Grupo de Capoeira Angola Pelourinho em Salvador, com o retorno do
Mestre M e a chegada do Mestre C do Rio de Janeiro pra Salvador, isso na década de 80, se não
me falha a memória!
Você ficou no grupo até quando?
Bom, eu fiquei no grupo até final de 94/95
E como foi seu contato inicial com a capoeira?
É uma coisa interessante que vale a pena ressaltar é que eu sempre gostei de capoeira, porque
sempre tive uma admiração, parava nas festas de largo para apreciar o jogo da capoeira, não tinha
esse conhecimento que existia mais de um tipo de capoeira. Eu gostava de capoeira! Eu acredito
que o que me fez demorar a entrar na capoeira era o meu biótipo na época. Eu era um homem
bem gordinho e achava que isso impedia de eu começar. Até eu conhecer o Mestre M e ele me
convidar para fazer aula. A partir desse momento eu comecei a freqüentar e vale ressaltar que eu
tinha uma posição de destaque dentro do grupo, que era ficar no meu canto fazendo meu
movimento e muito depois em um dos eventos da capoeira, em uma das formas de homenagear,
eu já recebi título de capoeirista e recebi título de contramestre da capoeira.
Dentro do grupo?
Dentro do grupo. De repente você começa a se destacar. É uma conquista que depende muito do
indivíduo, né?! E aí o mestre chega num dado momento a comunicar pras pessoas que ficava no
canto e o que ele esperava é que num dado momento eu desistisse e fosse embora dizendo que
aquilo ali não era para mim. A capoeira ela não exclui, normalmente somos nós que nos excluímos
da capoeira. Então o que se esperava é que pelo meu biótipo, de eu tentar fazer um movimento de
molejo, de ta caindo no chão, não ter coordenação motora facilitasse para minha não continuidade
dentro dessa arte.
Você saiu do grupo em que ano?
Eu saí do grupo de 94 para 95 e aí comecei a reunir um grupo de pessoas que já tinha saído que
queriam fazer capoeira e a gente se encontrava no parque da cidade em dia de sábado treinava no
parque ao ar livre e aí a gente fazia uma roda e depois ia à casa de alguém e se reunia pra fazer
uma comida, pra ta junto! A gente foi formando um grupo de pessoas e nesse momento teve uma
menina, a própria Maria, que foi ex-integrante, Maria Falcão, ex-integrante do grupo que eu
treinava, que tava dando aula numa escola! “Via Magia”, que faz parte da federação, aí
245
conversando lá com o Rui, dono da escola, que era a pessoa responsável, facilitou para que nós
utilizássemos a quadra e aí a gente começou a fazer nossas reuniões e em dado momento o grupo
já tinha uma estrutura, o cobrinha já tava nessa época nos Estados Unidos e necessitava de um
representante em Salvador e mandou um e-mail pra mim, e-mail não, né! Naquela época ele ligou
pra mim, não tinha essa coisa toda da internet. Aí falou da proposta dele, da formação da
Federação e ele aí tomou até um susto que quando ele veio pra fazer uma reunião comigo e com o
grupo, eu já tinha reunido o grupo, eu já tinha exposto pra algumas pessoas que já conheciam o
Mestre C, a confiança que eu tinha nele e que inclusive dentro do grupo que eu treinava a gente
tinha uma relação muito grande e quando ele chegou para reunião com o grupo, levou até um
susto porque as pessoas já estavam usando a camiseta do novo grupo, coisas que ás vezes até lá
nos Estados Unidos as pessoas não tavam usando. Eles já tinham idéia daquela logomarca que
tava ali na parede só que as pessoas ainda não tavam usando e quando ele chegou aqui levou até
um susto, mas eu disse a ele desde o inicio: Mestre C eu só vou entrar porque tenho confiança,
conheço você sei que é uma coisa legal e eu não sou de caminhar pra trás. E a partir daquele
momento uns seis meses depois a gente já tava formando o novo grupo, mas no inicio eu pensei
no Grupo de Capoeira Angola Salvador, esse Salvador pra mim ele tem duplo sentido.
Qual o sentido?
Sentido da própria cidade e da própria palavra na sua essência Salvador, salvar o nome do grupo,
resgatar. Apesar de eu ter vindo do GCAP, muita gente vinha de lá, mas eu acho que a capoeira
ajuda a cada um de nós desenvolvermos uma visão. Existe uma base, que é importante, mas eu
acho que cada um é cada um. Cada um tem a sua forma de jogar e cada um tem a sua forma de
se expressar e cada um busca alguma coisa dentro da capoeira.
Você começou a representar a federação partir de 96. Qual é a proposta de trabalho que ela
tem?
A proposta da é de estar refletindo a base de uma linha pastiniana, dentro dessa linha, inclusive
nas nossas cores amarelo e preto representando a escola que a gente vem, própria herança da
capoeira a partir de Vicente Ferreira Pastina e alguns mestres da capoeira Angola conservam sua
tradição. Então hoje na minha forma de pensar, na minha forma de gingar eu vejo muito as figuras
assim que deram uma contribuição muito grande. O mestre Bobo, o mestre Waldemar, mestre
Traíra, então a partir desse momento eu acredito que abriu um leque maior no que diz respeito à
aceitação, a importância dessas figuras. Num toque de mestre Traira, numa canção do mestre
Waldemar, numa forma do mestre A, do mestre B jogar, inclusive isso se vê muito hoje em alguns
eventos que a gente procura trazer representantes dessas linhagens pra ta fazendo a palestra,
ministrando cursos de capoeira e work shop de capoeira etc.
Mestre V, como você vê esse “Boom” da capoeira? Eu percebo que a
maioria são estrangeiros! De que maneira você vê essa grande procura
pelos estrangeiros?
Nós somos uma instituição pra você ter uma idéia nós temos no Brasil quatro instituições:
Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Goiás. No exterior a gente já tem nos Estados Unidos,
temos outra no Japão, temos outra na America central. Tem umas pessoas que a gente já tem um
trabalho acontecendo há um tempo, então agora a gente ta arrumando a casa então a gente já tem
representatividade na America central. Nós temos um trabalho que ta sendo desenvolvido na África
e aí você vai pra América central, você vai pra o México. Então eu acredito que isso são pontos
estratégicos nossos sem contar nas viagens que tanto eu como Mestre C a gente tem feito em
diversos lugares do mundo e nessas viagens a forma que a gente se relaciona com o aluno, a
forma aberta de jogar capoeira, a forma de tocar, a forma de relacionar capoeira pra mim é uma
relação como ser humano. Eu acho que vem de lá de fora um dia de trabalho, exausto e vem pra
um espaço de capoeira, você vem pra se sentir bem, por mais que seja massacrante você fazer
tantos molejos, tantos rabos de arraia, mas é o prazer de você ta ali, de você ter uma referência de
246
capoeira que você pode ta dialogando em todos os sentidos. Então ela enriquece e isso faz com
que hoje a gente tenha pessoas de vários lugares do mundo. Muita gente vem de fora no período
de janeiro, no período de novembro e dezembro que é período de férias, no período e verão. Então
a pessoa vem justamente porque essas pessoas mesmo tendo as suas referencias de seus países
de origem, mas elas sentiram algo diferente, fazendo com que essas pessoas se jogassem ao
mundo e viessem pra Salvador. Eu vejo que se você divulga o seu trabalho ao maior numero de
pessoas você é conhecido! Se você faz um trabalho respeitando a tradição, respeitando uma coisa
primordial que é a relação humana você consegue cativar o ser humano e essas pessoas porque
eles também tão vindo pela tradição e respeito pela forma que é trabalhada.
Hoje, o que você considera imprescindível pra quem quer procurar a
capoeira? O que você acha necessário para as pessoas que vão começar a
prática da capoeira?
Você aprende muito com o ser humano. O que o ser humano quer? Acho que o primeiro passo é
haver uma identificação com o mestre, pois é a pessoas que vai te levar até a graduação ou te
encaminhar para outro mestre ou te levar a caminhar com suas próprias pernas. E hoje o que eu
vejo muito, é o prazer e a satisfação, porque acontece muito que você começa num grupo e se
você quer ir para outro grupo depois você não pode. Você não pode porque parece que é aquele
casamento inseparável, mesmo com a relação não tando boa de alguma forma, você não pode
buscar uma outra possibilidade de um novo casamento. Então uma coisa que eu acho muito
engraçado dentro da capoeira é que você começa como todos nós começamos imaturos, e aí com
o tempo você se vê naquele grupo e num determinado momento você vê a possibilidade de ver
outro grupo e eu acho que se a pessoa tivesse a possibilidade de chegar em 10 minutos de
capoeira e conviver uma semana aqui e uma semana ali e dizer a partir de agora eu fazer capoeira
aqui. No primeiro ano eu vou descobrir o grupo de capoeira que eu quero seguir e ficar dentro da
proposta, né! Porque eu acho que capoeira é como casamento, a cada dia uma situação diferente.
Porque na mesmice, no cotidiano perde a graça. Então pra mim é ver que a pessoas busca o que é
que ele quer, ele precisa se sentir realizado e pra mim o que a capoeira pode oferecer é um fator
muito importante, que é uma consciência da vida, uma consciência de você, a sua relação com a
forma tranqüila, consciente no meio que você optou, no meio da capoeira e social. Prova disso foi a
gente receber essas pessoas agora.
O que o Sr considera necessário, importante pra quem quer conduzir esse
trabalho de capoeira angola? Pra quem está à frente de um trabalho?
Consciência daquilo que você se propõe a ensinar, se propões a divulgar, porque você é o
representante. Pelo menos aconteceu comigo quando comecei capoeira não esperava nada disso,
só queria jogar minha capoeira. E você começa a tomar consciência da responsabilidade que é, e
aí chega o momento em que você vai ser um mestre ou um eterno capoeirista, jogador de capoeira
vivenciador daquele grupo social ou integrante politicamente, que é uma pessoa que já tem o
conhecimento de falar daquilo, tocar, cantar, ter consciência e saber passar, muitas vezes você é
um bom capoeirista, mas você não sabe passar, então é desenvolver o dom.
O Sr falou em ter conhecimento, deter um saber! Você poderia pontuar quais
os conhecimentos aos quais você se refere?
Primeiro passo a relação humana. Eu acho que isso para qualquer que seja o conhecimento é
fundamental, a relação humana! Outro fato fundamental pra mim é você se permitir ser aluno. Não
adianta você ensinar uma coisa, vamos fazer uma relação que não tem muito a ver, é quando você
se propõe a ensinar algo acadêmico é porque você fez o primeiro grau, fez o segundo grau, fez a
universidade, fez o doutorado, o mestrado e aí a partir desse momento você tem a bagagem, no
caso de nós capoeiristas é trabalhar e você adquire dentro da sua experiência e vivência com sua
referência de capoeira. Se você vem da escola de capoeira do mestre Francisco, poxa você
247
chegou lá, você foi á luta com o mestre você cumpriu a exigência de ser representante e de fazer
parte desse grupo social onde tem as chamadas regras internas, você se deu a uma coisa que é
fundamental que a gente precisa respeitar que é o tempo, o senhor tempo e aí a partir desse
momento até pela sua própria vivência você tem esse reconhecimento. Tem esse reconhecimento
porque as pessoas vêem em você essa referência. Uma coisa que você conquista!
E hoje, como você organiza seu trabalho? Quando você vem pra uma aula,
como você faz? Você chega a estruturá-la antes? Como é o seu trabalho
aqui no grupo?
Eu não estruturo a aula, porque primeiramente eu vejo qual é a necessidade da demanda. Hoje
essa palavrinha, globalização da capoeira, às vezes é uma faca de dois gumes, pois você tem um
grupo de várias necessidades. Você não pode fazer uma aula e agradar a todos. Eu não posso
fazer uma aula e atender exclusivamente meus dois alunos, se tenho dez alunos na sala. Eu
preciso fazer uma aula onde todos se sintam bem. Então o primeiro passo, uma coisa que você
tem que ter é sensibilidade. Tem que perceber o que é necessário pra aquelas pessoas crescer. E
crescer como ser humano. Porque se for só movimento, você chega aqui e não tem necessidade
de viver capoeira, de você trabalhar a ginga. Eu acho que a pessoas vem pela fala do mestre pela
relação do mestre. Muitas vezes o mestre não faz um movimento. Eu posso dar uma aula aqui e
não fazer um movimento, mas existe uma coisa que é a coisa da oralidade, a coisa do falar se
fazer entender sem mover-se, porque muitas vezes você se faz entender em movimentos que é o
caso do jogo de capoeira, mas muitas vezes você compreende qual é a mensagem sem a ginga e
aprende muito. Então a capoeira, ela funciona como um autoconhecimento. Eu fui aluno, então a
gente precisa respeitar. Como eu falei do tempo, o tempo é o senhor de tudo. O tempo é que
determina. Eu exemplifiquei a faculdade, há um processo na faculdade pra amanhã você ta
fazendo alguma coisa. Então é preciso vivência e perceber qual a metodologia, qual a formula que
você vai fazer aquele aluno ser diferente do outro. Porque você tem pessoas com sentimentos
distintos, tem pessoas com idades distintas, com historias de vida distintas e precisa perceber o
que aquela pessoa busca. Com criança, por exemplo, você precisa tomar cuidado pra não
alimentar a violência, naquele momento a capoeira tem a intenção de educar. Se você pega
alguém que tem muita energia, você precisa saber direcionar essa energia, fazer essa pessoas ver
qual é o melhor caminho pra direcionar essa energia.
Você falou em metodologia, então partindo desse assunto você vê alguma
relação na forma em que você aprendeu e a forma que você ensina capoeira
hoje? Você trabalha na mesma perspectiva que você aprendeu?
Quando eu aprendi eu aprendi com Mestre M, com João Grande, com Cobrinha. Tinha momento
que como todos éramos contramestres, eu fazia aula com Pepe, fazia aula com Loca, fazia aula
com mestre J e você percebe um pouco de cada um. Você tem toda uma comunidade e fora essas
pessoas que você se relaciona, que você vê aquela pessoa dando aula, outras que você tira
pontos positivos. Tem coisa que não são interessantes pra você, então hoje eu me vejo uma
pessoa com um pouco de cada uma delas. Até o próprio aluno ensina o que você fazer e o que
você não fazer. Eu vejo muito que a cada dia eu faço uma reflexão, hoje eu vejo de uma turma que
vem de fora, que tem muita gente lá fora, que tão ministrando aula de capoeira que tem
questionamento que essas pessoas não precisavam fazer do mestre, se essas pessoas têm um
mestre de capoeira, só que na maioria das vezes ela não tem um mestre de capoeira, ela tem uma
pessoa que foi lá pra fora pra tentar se virar com aquilo que eles têm.
Como aquela pergunta do aluno sobre se determinado movimento funciona
ou não funciona?
Exatamente, tudo funciona, depende daquilo que você ta falando. Às vezes você chega aí fora,
chega num cara e pede um real e o cara te dá 10 e vai chegar pra outro e vai pedir um real e ele
248
não vai te dar nem um, nem 10 e ainda vai lhe dar uma porrada. Tudo depende do momento, tudo
depende da energia, depende de como um está e se o outro tiver bem e tiver centrado nada vou
atrapalhar aquele individuo.
Como foi seu aprendizado no grupo que o senhor treinava? Você tinha demonstração?
A didática? Tinha uma metodologia, Ginga negativa, rasteira chapa, tinha a terceira aula que você
fazia tais e tais e tais movimentos, não difere muito do que eu vejo hoje aqui e do que eu faço, só
que hoje também tem uma coisa que eu sempre ouvia, a liberdade de expressão, a consciência do
corpo, é preciso que se permita isso. Então você tem a forma de desenvolver o movimento. Se
você é uma pessoa que tem uma facilidade muito grande de desenvolver um movimento, eu não
posso proibir você. É por isso que tem capoeirista com determinado estilo de capoeira. Eu vivia na
minha espoca lá, onde cada um era cada um. Então a didática o mestre que ta lá na frente
mostrando o movimento, vindo corrigir os exercícios, depois trabalho dois a dois, depois treinar no
escuro depois o mestre com a berimba na mão, depois você jogando debaixo da mesa. Tudo isso
se vivencia no GCAP. Hoje eu digo que eu venho de uma boa escola, porque a intenção do mestre
na época era preparar você para roda da vida. Não é preparar você para jogar com seu amigo, se
você não sabe no movimento onde vai parar o pé. Pra você jogar com qualquer pessoa e saber se
virar, não parar para discutir se aquilo é ou não movimento de capoeira. Não é hora de parar e
dizer não, esse toque daí não. Poxa, é forma de o camarada tocar, você é capoeirista, eu canto em
qualquer toque. Eu ouço o som do berimbau e se pedir pra trabalhar eu trabalho qualquer toque.
Então, aquilo que você contou: se a menina fosse capoeirista ela chegaria lá e diria: Poxa se
valesse a pena! É aí que eu digo às vezes pagar 20,30 reais uma aula não vale à pena, mas ir no
Pelourinho e gastar os mesmo 30 reais em qualquer tipo de droga vale à pena! Então é preciso
saber o que te satisfaz. Treinar com um mestre de capoeira e achar a aula dele demais e se ele
cobrou 10 reais você não dá 10 reais e dá 50 reais.
Isso ninguém faz!
Ninguém faz, mas a gente aprendeu uma coisa que é: não dá pra dar um desconto, não? Não, não
dá pra dar um desconto! Porque essas pessoas não é a primeira vez que veio na Bahia e ficam
tentando desvalorizar o trabalho.
Hoje nós temos uma relação da capoeira com a Educação Física, hoje
assistimos a Educação Física incorporando a capoeira. Como você vê essa
relação capoeira/Educação Física?
Primeiro: eu acho que é uma situação muito delicada. Segundo: quando a gente fala de capoeira a
gente generaliza e precisa ser mais especifico com que linha de capoeira você ta falando! Se a
capoeira enquanto esporte ou a capoeira enquanto cultura. A capoeira enquanto cultura você
precisa de toda uma vivencia do saber popular, é você ter 30,40 ou mais anos de pratica naquilo
para você ter o mínimo de conhecimento. Não é você fazer um semestre e a partir daí está apto a
fazer um trabalho de iniciação sobre capoeira. Você não sabe um histórico, você não sabe para
onde vai o movimento, você entende do corpo porque estudou anatomia, mas você não sabe como
é
que confecciona um berimbau, você não sabe nem da onde vem nem pra onde vai. Se
alguém te der um toque você não sabe pra onde vai e muitas vezes se você não sabe essas
entrelinhas é que as pessoas vão pro lado da violência, né! Eu vou resolver a coisa na porrada que
aí vou ser respeitado! Então eu vejo que é preciso que seja revisto muitos pontos, avaliar o que
nós capoeiristas, nós jovens temos que aprender com esses mestres do saber, esses mestres de
capoeira. Tem pessoa que sai hoje da universidade com 20,25 anos de idade e essa pessoa com
cinco anos de faculdade e um semestre com desenvolvimento da capoeira, será que essa
bagagem suficiente pra fazer um trabalho como a capoeira Angola pede? Então é só uma reflexão!
Fica uma reflexão! Você é uma pessoa que hoje, depois de 10 anos de capoeiragem, hoje
entrando numa outra fase da sua vida, hoje você volta com toda sua bagagem que você escolheu
no curso, para falar de uma coisa específica justamente por esse conhecimento. Você ta no início
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do caminho e aí a gente vai pra um fulano da vida, vai para um curió, que diz que é ignorante e
não sabe nada de capoeira, mas tem mais de 50 anos de capoeira, essas pessoas são doutores.
Eu sou uma pessoa que to chegando agora, tenho 27 anos de capoeira.
Você falou na capoeira como cultura popular e como esporte. Você acredita
na relação da capoeira como esporte? Qual é a sua visão?
Eu não posso cobrir um santo e descobrir o outro! Primeiramente quando eu falo de capoeira eu
falo daquilo que eu tenho conhecimento que é a capoeira Angola. Eu não vejo a capoeira Angola
como um esporte, porque aí é dizer, poxa! Eu não vejo a capoeira Angola como esporte, mas a
regional e a contemporânea ela pode ser porque aí o problema é dela! Eu não vou dizer, porque
isso pra mim é desrespeitar uma área que eu não tenho total compreensão. Então eu acho que
essa consciência, as pessoas mais sensatas agarrem as pessoas que tem mais vivência. E é
importante saber o que essas pessoas querem. Quando se fala de capoeira Angola você fala de
heranças de povo, você fala de cultura afro. Então ta falando de raízes! Porque este olho grande,
este olho gordo na galinha dos ovos de ouro, agora? Porque a capoeira está sendo jogada em
muitos países, a capoeira hoje lá fora conquistou a educação, um resgate de valores. Então hoje é
um grande achado! È o maior divulgador da língua portuguesa.
Você acredita que a Educação Física contribuiu ou limitou em quê a
capoeira?
O que eu vejo é que hoje a Educação Física poderia ta caminhando lado a lado com a capoeira
não da seguinte forma. Hoje o curió e o João Pequeno não estariam aptos a dar aula de capoeira,
pois eles não têm o curso de Educação Física. Eu acho que isso é colocar o carro diante dos bois
e ta falando de uma cultura popular! Hoje eu vejo a Educação Física uma disciplina da capoeira e
que muitas vezes quem ta passando essa atividade lá!? Qual é o histórico dessa pessoa que ta
fazendo o trabalho? Hoje da mesma forma que temos nas escolas públicas um movimento que não
tem base pra se ensinar cultura popular, a gente tem nos cursos acadêmicos prova disso na
universidade de Salvador foi um professor que abriu a boca pra colocar que o berimbau não é um
instrumento tão complexo assim, por isso que o negro tinha facilidade de tocar. Um professor de
universidade! Ele não tinha consciência de que aquele era um dos arcos mais antigos do mundo.
De onde derivava aquilo! E a pergunta é: Será que ele sabe tocar? Ele pode tocar guitarra violão
piano, mas berimbau não! E mesmo que soubesse, eu acho que não é desvalorizando o saber do
outro que você vai crescer. Falando da Educação Física, acho a iniciativa boa, mas eu acho que
esse é um ponto de partida pra se você quer se aprofundar você vai pra sala de aula, vai pra
academia de capoeira aprender, porque outra coisa, que valores você vai ensinar pra aquelas
pessoas se muitas vezes o cara sai de um curso desse e não tem nem noção musical. O que ele
vai ensinar de musica? Isso é importante, é quem alimenta uma roda de capoeira, é quem dá ritmo
ao capoeirista. Hoje tem gente aí que se diz mestre de capoeira, mas é só animador de roda, é só
um jogador, só um tocador. Não é um capoeirista. Capoeirista é uma pessoa que detém o mínimo
de todos os conhecimentos relacionados à arte.
Você tem alguma sugestão de como essa relação poderia caminhar de forma
mais harmônica?
Acho que a forma mais harmônica é uma participação desses mestres antigos, desses detentores
do saber em ta trocando experiência, em ta trocando figurinha com esses jovens mestres. É a
relação de respeito com o mais velho! Hoje a pessoa mais nova lá e primeiramente ele vê a
capoeira como uma forma de ganho, porque ele fez 4,5 anos de faculdade e ele quer fazer ávida
dele. Precisa ter uma maior relação e uma relação mais ordenada e uma busca desses alunos,
numa relação mais estreita, até pra um aprender com outro. Isso seria um grande ganho! O cara
sai da faculdade sabendo que vai pra uma academia e não uma academia de capoeira, academia
mesmo. O cara vai lá faz musculação, faz capoeira, faz isso e faz aquilo e nessa academia não
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tem espaço sagrado, um especo religioso, nada disso! O que eu vejo mesmo assim, é uma
consciência, é ter uma consciência do que é preciso pra você hoje aprender sobre capoeira pra
poder ensinar. Você na universidade, eu nunca fiz faculdade, mas eu acompanho minha
companheira, mesmo ela não fazendo Educação Física vejo que o que você precisa e correr atrás.
Capoeira é tempo!
Mestre qual a sua formação?
Eu tenho o segundo grau completo, sou metalúrgico. Exerci um tempo mecânica industrial,
trabalhei em algumas empresas aqui na Bahia no pólo petroquímico. Fui líder sindical. E o que eu
gostei realmente de fazer e faço com prazer é ajudar, ajudar as pessoas porque eu acho que
acima de tudo ensinar fazer uma ginga, fazer uma negativa é tudo! E digo outra coisa super
importante. Eu tenho 43 anos de idade. Faço a capoeira há mais de 25 anos e nunca briguei em
minha vida. Nunca tive necessidade de dar uma cabeçada e partir o nariz de alguém! Porque a
capoeira me educou antes de qualquer coisa de procurar ver no outro uma possibilidade de dialogo
que não seja violência. E se perceber que o outro tem necessidade disso, isso não é prioridade pra
mim, pois eu não preciso provar nada pra ninguém! Essa é a grande mensagem, desenvolver nas
pessoas a capacidade que existe em cada um de nós e dar conta de que nós somos capazes! Ser
capoeirista é você sair e entrar em qualquer lugar, grupo social, qualquer situação! Pra você ser
respeitado, hoje eu vejo o seguinte, ta muita gente coitadinho, coitadinho! Só vê o lado negativo da
historia, só o coitadinho! Porque ninguém arregaça o braço e vamos montar o seu espaço de
capoeira. Porque quem não tem capacidade hoje não se estabelece. Hoje você ta vendo esse
espaço aqui? Eu tenho um gasto de quase oito mil reais. Eu tava aqui hoje conversando com você,
de uma hora da tarde até cinco da tarde. Poxa! Me ensinaram a pescar, o peixe ta aí. Alguém vai
comprar! Mas às vezes as pessoas ficam naquela do coitadinho e se você tiver meu amigo, 10
alunos, eles levantam o mestre. Uns progridem, outros não progridem, aí tem aquele sentimento:
poxa o que fulano ta fazendo? Tem o seguinte, eu não falo mal de ninguém! Chega aqui na turma
dezessete pessoas, a maioria mulheres, trato bem todas, gosto da fruta, mas ali está o meu
respeito. As pessoas chegam aqui e puxa! O mestre é diferente! O mestre é um profissional e não
esta ali tentando se aproveitar das alunas.
Qual a sua opinião sobre entrada da capoeira na universidade?
Eu acho positivo por um aspecto, mas precisa fazer uma reflexão. Quem são as pessoas que vão
ta ministrando ou passando as informações dentro da universidade? Eu vejo que vai ficar muito
uma capoeira com visão acadêmica e perder aquela coisa de instrumento cultural. E de cultura e
oralidade você não aprende na universidade, você aprende com pratica e convivência. Acredito
que a pessoa formada na universidade, depois ela buscasse um centro de referencia pra continuar
o seu conhecimento no universo da capoeira. É um eterno aprendizado! Acho que seria
interessante um mestre João Pequeno, um mestre Curió e tantos outros mestres lá chegando
nessas pessoas e tá trabalhando, ta conversando, trocando experiências, fazer palestras,
vivencias. A vivencia você só aprende na relação com o mestre de capoeira.
O Sr acredita então que deve haver uma relação entre o saber popular e o
saber acadêmico?
Com certeza! Ta trazendo esses mestres pra fazer outro lado que você não aprende na
universidade.
O que é a capoeira Angola para o senhor?
A capoeira Angola pra mim é tudo! A capoeira Angola pra mim ela é vida, ela é relação, é estar bem, é
instrumento de consciência, de resistência, de libertação. Capoeira pra mim é você estar bem consigo
mesmo.
Obrigado Mestre!
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THIAGO VIEIRA DE SOUZA - Repositório Institucional UNESP