| OPINIÃO | MARIA MAGALHÃES Repensando a Cultura de Segurança Gerente de Qualidade e Segurança do Paciente das Instituições Afiliadas SPDM. Médica intensivista e consultora de ensino do ONA Educare. Consultora de Conteúdo da Organização Nacional de Acreditação Como entender o dano, a culpa e o erro no contexto da saúde P ara refletir sobre cultura de segurança, temos que repensar a complexidade relacionada aos aspectos culturais. Sem o entendimento claro dos vários fatores que desenham uma realidade, estamos fadados a trabalhar com expectativas fantasiosas que vão resultar em estratégias pouco efetivas. Foram os grandes desastres que mais contribuíram para o entendimento sobre a importância de uma Cultura de Segurança. O desastre de Chernobyl (Rússia, 1986), considerado o pior acidente nuclear da história, travou uma batalha para conter o material radioativo e evitar a explosão do segundo reator, que devastaria toda a Europa. Foram envolvidos 500 mil trabalhadores, esses heróis foram todos contaminados. O custo estimado do acidente foi de 18 bilhões de rublos. Num artigo publicado no International Journal of Cancer em 2006, um estudo prevê que, em 2025, cerca de 16.000 casos de câncer de tireoide e 25.000 casos de outros tipos de câncer são esperados em consequência à radiação liberada pelo acidente de Chernobyl. Um dos aspectos do desastre foi que Anatoly Dyatlov, engenheiro-chefe e responsável pela realização dos testes nos reatores, 40 | Melh res Práticas mesmo contra os parâmetros de segurança dispostos no manual de operação, e com o alerta de seu assistente imediato, conduziu a realização do teste de redução de potência que resultou no desastre. Esse episódio lembra o desastre aéreo de Tenerife em 1977, quando o conceituado e experiente piloto Jacob van Zanten, mesmo com a preocupação expressada pelo seu engenheiro de voo acerca da não liberação da pista, insistiu em decolar, causando um acidente aéreo com 583 mortos. Para a aviação, as decisões dos pilotos no comando eram incontestáveis e soberanas. Depois desses acidentes, uma boa cultura de segurança pressupõe que qualquer decisão crítica deva ser tomada com concordância de toda a equipe técnica. Numa cabine de avião, numa usina nuclear ou num centro cirúrgico, mesmo pessoas muito bem-intencionadas, muito competentes e experientes, podem errar. A decisão compartilhada é uma das práticas de segurança aprendidas por meio de experiências trágicas. Outra lição de Chernobyl foi a necessidade da transparência. O governo soviético escondeu o ocorrido da comunidade mundial, até que a radiação em altos níveis foi detectada em outros países. Houve atraso ESPECIAL CUIDADO CENTRADO NO PACIENTE nas medidas de proteção e um aumento desnecessário do número de pessoas contaminadas. Numa cerimônia no Kremlin, o presidente da Rússia Dmitri Medvedev, ao entregar condecorações aos liquidadores do acidente de Chernobyl, fez a seguinte declaração: “A maior lição que a avaria na central atômica de Chernobyl nos deu foi que é preciso dizer a verdade a todos. Quaisquer tentativas de camuflar a verdadeira situação, para torná-la mais otimista, podem resultar em grandes tragédias humanas”. Completando o pensamento, o renomado especialista em segurança Trevor Kletz nos alerta: “Dizer que os acidentes são devido à falha humana é como dizer que as quedas são devido à gravidade. É verdade, mas isso não nos ajuda a impedi-los.” A origem do conceito cultura de segurança vem após o acidente de Chernobyl, quando a Agência Internacional para a Energia Atômica (AIEA) e a Agência Nuclear da OCDE identificaram “uma pobre cultura de segurança” como um fator de destaque no desastre nuclear. Logo em seguida, o tema também foi aplicado a outros grandes desastres em meios de transporte, produção de petróleo, entre outros. Para a International Atomic Energy Agency (IAEA) e para a Organização Mundial de Saúde (OMS): “A cultura de segurança de uma organização é o produto de valores individuais e de grupo, atitudes, percepções, competências e padrões de comportamento que determinam o compromisso com a gestão da segurança. Organizações com uma cultura de segurança positiva são caracterizadas por um padrão de comunicação fundada em confiança mútua, pela percepção comum da importância da segurança e pela confiança na eficácia de medidas preventivas.” Evidências sugerem que, quando a cultura de segurança não é compreendida, sua possível fraqueza pode levar ao fracasso de todas as práticas e da engenharia de segurança. O ERRO EXISTE Cometer erros faz parte da vida humana tanto como respirar e dormir James Reason O entendimento sobre o erro humano é condição fundamental para uma organização desenvolver uma cultura de segurança. Para James Reason, autor do livro Human Error (1990), o conhecimento sobre a gênese do erro humano e a expectativa de sua ocorrência é chamada de consciência do risco, ou risk awareness. Sem o entendimento científico e treinamento sobre onde podemos falhar, na primeira oportunidade, as regras e procedimentos de segurança vão ser quebrados. Segundo Reason, o erro não é uma questão moral e não é ruim em si. As consequên cias do erro podem variar de acordo com a situação em que acontece. O erro pode criar situações engraçadas, como colocar sal no café, ou constrangedoras, como trocar o nome do namorado, mas podem também ter boas consequências, como perder um voo por distração e por isso encontrar uma pessoa querida. Essa mesma distração, numa usina nuclear, num hospital ou numa cabine de avião, pode ser o motivo de um grande desastre. As consequências dos erros podem ser indesejadas e até destrutivas, mas cometer erros faz tanto parte da vida humana como respirar e dormir. E incluímos aqui as violações, que raramente são atos “maldosos” e que devem ser entendidas dentro de um contexto mais amplo. As violações fazem parte de uma cultura, existem povos mais complacentes e outros totalmente intolerantes a qualquer tipo de violação. As violações podem ser cometidas para facilitar a tarefa quando são vistas como “esforço desnecessário”. Elas podem também ser cometidas para o ajuste de necessidades conflitantes e garantia de que o mais críti- Melh res Práticas | 41 | OPINIÃO | co será cumprido. O excesso de práticas de segurança acaba tornando lento o fluxo das atividades, e muitas vezes as violações são necessárias para a entrega do serviço realizado. No desastre da plataforma de petróleo do Piper Alpha, em 1988, a maioria das pessoas morreram cumprindo os protocolos. O protocolo de segurança orientava a permanecer em acomodações em cima da plataforma em situações de emergência. Infelizmente, nessa posição as pessoas foram atingidas pelas labaredas. Morreram 167 pessoas, a maioria das mortes foram de trabalhadores que estavam em cima da plataforma. Alguns dos sobreviventes foram pessoas que violaram o protocolo e permaneceram embaixo da plataforma, mergulhados no mar. Depois desse acidente, as recomendações para as emergências foram drasticamente alteradas. A verdade é que, em sistemas complexos e críticos como a saúde, nunca vamos conseguir prever todas as situações, o imprevisível faz parte do esperado. O ser humano, que sempre foi visto como o componente mais sensível do sistema, hoje é visto também como o herói, pois a mesma flexibilidade que lhe dá a liberdade para violar é a flexibilidade que vai salvar o sistema em situações inesperadas. DANOS DE ONTEM E DE HOJE Na história dos cuidados de saúde, o risco de dano sempre esteve associado à esperança de cura. A cicuta e o acônito, os venenos favoritos entre os gregos e romanos, também eram receitados por médicos para curar ferimentos, convulsões e espasmos musculares. Ainda no século XX, os médicos receitavam essas plantas para tratar resfriados. Com o tempo, os efeitos venenosos foram mais conhecidos, e os venenos, abandonados. 42 | Melh res Práticas Muitas vezes, as violações são necessárias para a entrega do serviço realizado Aqui tenho que respeitosamente discordar de Sir Cyrril Chantler quando disse que, no passado, a “medicina era simples, inefetiva e relativamente segura”. Os riscos inerentes às tentativas de cura eram muito altos. A mortalidade por parto, por exemplo, era tão alta que as mães eram preparadas para mortalha. Imagens de trepanações, sangrias e lobotomias, apesar de heroicamente realizadas para cura, mais lembram imagens de uma história de terror. Esses exemplos embasam o entendimento de algumas dificuldades que historicamente possuímos diante da prática dos cuidados de saúde. O risco do dano associado aos cuidados está longe de ser um fato novo. Ele só está com roupa nova. HERÓIS DA CURA Quando o tratamento não dá certo, seja por erro ou evolução natural da doença, existe a dor não só do paciente, mas também de quem cuida. Desta última, entretanto, pouco falamos. Entrar em contato com a frustração de um tratamento que prejudica alguém nunca foi fácil, e nunca vai ser. Falar sobre isso é difícil, o que torna totalmente esperada a fuga em massa sobre esse assunto. Outro aspecto importante na cultura do profissional de saúde é a “imagem do santo curador”, que, diga-se de passagem, foi formada historicamente com a crença de que doença seria um castigo divino, e a cura, uma benção. Nessa mesma linha de fantasia, a sociedade espera a perfeição do profissional de saúde. É fácil de entender a necessidade social desse mecanismo, que age como um “conforto psicológico”. Imaginar que o cirurgião não é perfeito e pode errar vai diminuir muito a tranquilidade do paciente antes da cirurgia. Aqui está uma das questões importantes ESPECIAL CUIDADO CENTRADO NO PACIENTE sobre a cultura da segurança na saúde: o rótulo do profissional de saúde como um “ser perfeito” – que tanto dificulta a nossa conversa sobre os erros – está vinculado a necessidades psicológicas individuais e também sociais, que, por sua vez, não são atributos de um grupo ou uma organização. CULPA Também faz parte de um comportamento natural a “culpa” envolvida nos casos de tratamentos que não deram certo. Tenho lido em alguns textos o uso da expressão “cultura sem culpa”. Para os estudiosos de comportamento, uma pessoa que funciona “sem culpa” teoricamente é um psicopata. A culpa faz parte do funcionamento esperado de um ser humano, ela é fundamental para o respeito ao direito do outro e um importante componente de organização social. Crescemos numa sociedade em que aprendemos desde pequenos que “errar é feio”. O erro sempre esteve vinculado a incompetência, irresponsabilidade, a pessoas distraídas e com dificuldade de concentração. Esperar que os profissionais, com um curso de gestão do risco de dois dias ou uma semana, passem a pensar e sentir o erro como algo que faz parte do esperado é no mínimo inocente. Sentimentos e percepções que se estabeleceram durante uma vida não vão mudar como mágica, em pouco tempo. A cultura da notificação evidencia muito bem essa realidade. Na maioria das vezes, as pessoas notificam o erro do outro, e principalmente do outro setor, pois a ideia de “delatar” o colega de trabalho também não é muito atraente. Também são notificadas mais situações de risco e near miss (quase-erro), pois situações que atingem o paciente, principalmente as que causam dano, são muito mais comprometedoras. Por mais que a cultura da organização não seja punitiva, existe o constrangimento inerente Na maioria das vezes, as pessoas notificam o erro do outro, principalmente do outro setor à imagem social do erro e da culpa inerente ao comportamento natural frente ao dano causado no outro. Nesse cenário, temos então dificuldade também em aprender com o erro, uma outra dimensão da cultura de segurança. Punir alguém pelo erro em nada vai adiantar para a melhoria do sistema, outras pessoas provavelmente irão cair na mesma armadilha, e o erro acontecerá novamente. Existem situações em que parece existir um “palco preparado” para o erro, ambientes onde fica muito fácil qualquer um errar. Redesenhar os processos, ou seja, organizar as atividades de maneira que torne difícil alguém errar, é uma das principais metas da segurança do paciente, e o entendimento disso faz parte de uma cultura de segurança consistente. Como bem coloca Sidney Decker, autor de vários livros sobre falhas no sistema e erro humano, uma cultura justa vai compatibilizar a responsabilização com o aprendizado. Atribuir responsabilidades também faz parte do aprendizado. A culpa é um organizador social e delimita a linha entre o aceitável e o inaceitável em cada cultura. SEGURANÇA CONSOLIDADA Uma cultura de segurança está implantada quando os membros da organização conhecem e respeitam os fatores de risco, o perigo, e esperam que as pessoas e os equipamentos vão falhar em algum momento. Aceitam essas rupturas como norma e desenvolvem defesas e planos de contingência para lidar com elas. Ou seja, há cautela e consciência coletiva de coisas que podem dar errado. Gerenciar a segurança do paciente, como qualquer outro aspecto na saúde, é uma habilidade que requer conhecimento e prática. Conhecer a gênese do erro humano e como trabalhar com ele na saúde é um caminho árduo, mas necessário e fascinante. Melh res Práticas | 43