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Voto frágil: uma batalha de 130 anos
Desigualdade da participação feminina na vida econômica e social se reflete na política
CECÍLIA PRADA
Apesar das importantes mudanças ocorridas durante a década de 1970 na situação social
daquele que foi sempre considerado "o segundo sexo", da derrubada de muitos
preconceitos, da modificação de padrões de comportamento e de estruturação familiar –
em especial a partir de 1975, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu a
Década da Mulher –, três setores ainda resistem reconhecidamente à ascensão feminina:
o religioso, o militar e o político. Em época de eleições, nada mais oportuno do que rever
alguns dados relativos a este último setor – pois sabemos que no pleito realizado este ano
as mulheres candidatas não atingiram 30% das vagas, percentual estabelecido pela lei
9.504 de 1997 (Lei de Cotas), a qual, supostamente, teria vindo para contribuir para a
eqüidade política dos sexos.
Dizem as estatísticas que a população feminina do Brasil ultrapassa a linha dos 50% –
segundo a última contagem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de
2007, a proporção é de 99,6 homens para cada 100 mulheres. Confirmando esse quadro, um balanço do Tribunal Superior
Eleitoral (STE) apurou que, de um total de 127,4 milhões de eleitores, 65,9 milhões (51,7%) são mulheres. Examinados de
perto, porém, esses dados revelam seu verdadeiro significado político e social. Basta verificar que, em nível de escolaridade, as
mulheres estão em situação pior que os homens: há no Brasil 4,38 milhões de eleitoras analfabetas, contra 3,84 milhões de
eleitores analfabetos. Paradoxalmente, nas regiões mais avançadas do país – sul e sudeste –, essa proporção torna-se mais
alarmante: dos iletrados, 60,8% são mulheres.
Arte PB
Surgem daí algumas perguntas incômodas: o que exatamente representa, em termos de qualificação, de escolha consciente e
exercício pleno da democracia, o voto feminino no Brasil? Se, conforme as estatísticas, cresce a atuação da mulher na chefia
efetiva da família – e sua conseqüente influência sobre o quadro social –, e visto o grau de extrema pobreza de uma grande
parte dos núcleos familiares do país, não seria possível influenciar a eleitora por meio de programas de governo de caráter
assistencial?
Outro paradoxo é o da escassa representatividade das mulheres nos partidos políticos, no Legislativo e nas esferas
governamentais – um aspecto que prevalece em âmbito mundial. Voltemos às estatísticas: em um ranking sobre a participação
das mulheres nos parlamentos, realizado no início de 2008 em 192 países e divulgado pela organização União
Interparlamentar, sediada em Genebra, o Brasil figura em 146º lugar. O percentual é de meros 9%, bem inferior ao de quase
todos os países latino-americanos, pois supera apenas, e por pouco, o do Haiti e o da Colômbia. Até a média nos países
árabes (9,6%) é maior do que a nossa. Nas Américas, esse índice é de 20,7%, enquanto a proporção mundial está em 17,9%.
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O quadro geral não é, como se vê, de despertar entusiasmo – o que faz Anders B. Johnsson, secretário-geral da União
Interparlamentar, comentar: "Nesse ritmo, não conseguiremos atingir a paridade [entre os sexos] nos parlamentos antes de
2050".
Não é de estranhar, no entanto, a limitada participação da mulher na vida pública e política, já que a desigualdade prevalece
também nas áreas econômica, cultural e social. Segundo estatísticas recentes, é de 62,8% a disparidade entre salários de
homens e mulheres, no Brasil. Um estudo de 2007 feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) concluiu que, se for mantido o mesmo ritmo de evolução registrado nos últimos dez anos, só por volta de 2081 os
salários de homens e mulheres brasileiros serão equiparados.
O mais alarmante é que a presença feminina no campo da política tem representado historicamente, na maioria das vezes,
somente o reforço de posições retrógradas, ou seja, a continuação do caciquismo de seus pais e avós. Assim, no quadro
político mundial, a presença de mulheres alinhadas com forças conservadoras é ostensiva em figuras como Margaret Thatcher,
Condoleezza Rice, Evita Perón – e, no Brasil, em diversas patrícias nossas identificadas com os nomes e os interesses de
famílias latifundiárias.
A luta pela educação da mulher e pela consecução de seus direitos civis plenos continua árdua em todos os cantos do planeta.
Infelizmente, porém, ainda existem mulheres apedrejadas, mutiladas, enterradas vivas, quando não assassinadas por membros
de sua própria família, pagando com a vida o altíssimo preço de uma liberdade almejada.
Uma guerrilha urbana
A questão do voto empenhou as lideranças femininas de todo o mundo ocidental desde meados do século 19 em uma luta
contínua, que muitas vezes revestiu aspectos de uma verdadeira guerrilha urbana – com a conseqüente repressão violenta por
parte das instituições políticas. No quadro mundial, caberia à Nova Zelândia a primazia do voto feminino, instituído desde 1893,
seguida pela Austrália, em 1902. Alguns países europeus, conhecidos por suas constituições adiantadas e liberais, foram os
que mais demoraram a reconhecê-lo – França e Itália após o término da 2ª Guerra Mundial (1945 e 46 respectivamente) e a
Suíça somente em 1971.
Na Grã-Bretanha desenvolveu-se desde 1866 uma verdadeira campanha de repúdio ao voto feminino, assumindo às vezes a
luta das suffragettes (sufragistas) caráter de verdadeiras batalhas de rua. Passeatas e protestos públicos organizados por
essas pioneiras sofreram a mais feroz repressão policial, sendo muitas delas espancadas, algemadas e presas. Na prisão,
eram submetidas a insultos e humilhações. Corpulentos policiais tentavam alimentá-las à força, já que queriam fazer greve de
fome – ato que foi equiparado a "um verdadeiro estupro".
Na década de 1880, as inglesas valiam-se às vezes do expediente de ser "proprietárias" para votar, já que a lei não estabelecia
diferença de sexo para os eleitores proprietários. Só que, em relação aos próprios direitos de sucessão, elas sempre foram
prejudicadas, não podendo nem herdar a casa da família, por morte de pais e maridos. A literatura é abundante em tais
exemplos – a viúva e filhas expulsas da casa após a morte do proprietário, no romance Razão e Sensibilidade, de Jane Austen.
Em pleno século 20, ficou famoso o caso da aristocrática Vita Sackville-West, que em 1928 foi excluída da herança paterna por
ser mulher, em favor de um primo. Foi obrigada a sair do castelo de Knole, que sua família possuía desde o século 16, e onde
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ela nascera e morara a vida toda – tema tratado com genialidade por sua amiga Virginia Woolf, no livro Orlando.
Em 18 de novembro de 1910, ao reprimir com brutalidade desnecessária manifestações em favor do voto feminino feitas diante
do Parlamento, a polícia britânica fez com que a data fosse dali por diante conhecida como uma Sexta-Feira Negra. Em 1913, a
feminista Emmeline Pankhurst foi mandada para a prisão, onde ficaria por três anos. No mesmo ano uma das mais ardorosas
defensoras do voto, Emily Davison, suicidou-se – e de maneira singular, para chamar a atenção para a causa: nas corridas de
Epsom, atirou-se contra o cavalo do rei.
Somente em 1918 foi aprovada na Inglaterra a lei tanto desejada pelas mulheres, mas restringindo o voto às que tinham mais
de 30 anos. Em 1928 a idade seria reduzida para 21 anos.
Nos Estados Unidos, a luta pelo voto feminino, liderada por Susan Anthony e Elizabeth Stanton, foi iniciada em 1851,
juntamente com a campanha abolicionista. Houve vitórias parciais, em alguns estados, mas somente em 1920, com a 19ª
Emenda à Constituição, o privilégio de votar foi estendido a toda a população. No dizer de uma sufragista famosa, Carrie
Chapman Catt, "retirar a palavra ‘masculino’ da Constituição custou às mulheres do país 52 anos de campanha incessante".
(Na realidade, essa luta foi de 69 anos, se remontarmos à iniciativa das citadas pioneiras.)
Dos países latino-americanos, seria a Argentina o último a conceder o voto à mulher, e graças a uma circunstância particular –
a sagacidade política do casal Perón, empenhado em aumentar o contingente de seus eleitores. Após a fundação do Partido
Peronista Feminino, em 1949, a mulher argentina pôde votar pela primeira vez, em 1951, e Perón foi reeleito com uma
diferença de mais de 1,8 milhão de votos sobre o segundo colocado.
"Minha mulher não irá votar"
No Brasil, a luta não foi fácil, também. A defasagem da mulher brasileira em relação à européia era muito grande. Em meados
do século 19, quando nos principais países europeus já havia um avanço na educação feminina, uma presença que começava
a se fazer notar no campo das letras e das artes, nas brasílicas paragens os "viajantes" estrangeiros pasmavam diante do
atraso, da ignorância, da segregação familiar em que viviam nossas antepassadas, circunscritas ao lar e sujeitas à autoridade
do pai, do marido ou mesmo dos irmãos.
No entanto, apesar dessas circunstâncias, floresceram em vários pontos do país durante todo o século 19 mulheres talentosas
e cultas, que, como escritoras e jornalistas, mostravam-se já conscientes dos direitos femininos e dispostas a lutar por eles.
Como a singular figura de Josefina Álvares de Azevedo – ao que parece uma prima, ou mesmo irmã ilegítima, do poeta paulista
Manuel Antônio Álvares de Azevedo –, biografada por Valéria Andrade Souto-Maior em sua tese de mestrado O Florete e a
Máscara, publicada em 2001 pela Editora Mulheres, de Florianópolis.
Nascida em 1851, supostamente em Itaboraí (RJ), embora haja quem a tenha por natural do Recife, Josefina faleceu em local e
data desconhecidos. Iniciou a campanha pelo voto em 1878, quando morava em São Paulo. Em 1888, fundou na capital
paulista um dos mais ousados e combativos jornais feministas, "A Família" – transferido seis meses mais tarde para o Rio de
Janeiro, onde se manteria até 1897-98 como "uma espécie de caixa de ressonância do movimento feminista", na definição do
pesquisador Pedro Maia Soares. Além de artigos em defesa dos direitos das mulheres – assinados por escritoras e professoras
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de todos os estados –, o órgão registrava vários exemplos de mulheres brasileiras e estrangeiras que se distinguiam
profissionalmente, tanto na área das letras quanto na advocacia, na medicina e nas artes plásticas.
A biógrafa de Josefina nos relata, no livro citado, como a seleção de mulheres "exemplares" que a ousada escritora fazia
costumava gerar controvérsia e até escândalo. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1897, ao publicar uma coletânea,
Galleria Illustre (Mulheres Célebres), em que, em vez da habitual xaropada sobre damas caridosas, filhas e esposas-modelo,
focalizava outras senhoras muito menos bem-comportadas, como Cleópatra e George Sand...
Em grande campanha pela educação da mulher, Josefina percorreu em julho de 1889 vários estados do norte e do nordeste,
sendo acolhida no Recife e em Fortaleza pelas respectivas Assembléias Provinciais como personalidade de grande prestígio.
Aproveitou a Proclamação da República para entrar em campanha aberta pelo voto feminino – não só pelas páginas de seu
jornal mas por meio do teatro. Escreveu uma peça em um ato, O Voto Feminino, encenada com sucesso em uma das casas de
espetáculos mais populares do Rio de Janeiro, o Recreio Dramático, em 26 de maio de 1890. Soube construir uma obra leve,
de humor sutilmente satírico – e, coisa curiosa, como nos faz ver sua biógrafa, Josefina intuitivamente utilizou alguns dos
recursos formais estilísticos do teatro de agitprop (agitação e propaganda), antecipando em mais de meio século experiências
mais efetivas e radicais desse tipo de dramaturgia em nosso país por autores que haviam assimilado técnicas brechtianas.
Partiu entretanto de um homem a iniciativa de colocar na primeira Constituição da República o direito da mulher ao voto. Foi o
médico e intelectual baiano César Zama que o defendeu, na sessão de 30 de setembro de 1890 na Constituinte. No ano
seguinte outros deputados também se manifestaram a favor, como Almeida Nogueira e Lopes Trovão. Seus adversários eram
no entanto maioria, fortes e acirrados. Assim, quando, no primeiro dia do ano de 1891, 31 constituintes assinaram uma emenda
de autoria de Saldanha Marinho conferindo o voto à mulher, a oposição entrincheirou-se e lutou por sua anulação –
conseguida, em meio a declarações formais de repúdio, como a do parlamentar Coelho e Campos, que afirmava: "É assunto de
que não cogito; o que afirmo é que minha mulher não irá votar".
No período de 1890 a 1932 (quando finalmente uma lei assinada por Getúlio Vargas instituiria o voto em todo o país para as
mulheres), muitas batalhas verbais foram travadas no âmbito parlamentar, enquanto em certos municípios de tempos em
tempos surgia algum dispositivo legal que acabava por permitir o voto feminino. Vários projetos de lei e emendas
constitucionais foram apresentados e derrotados. Por exemplo, quando em 1917 Maurício de Lacerda propôs alterar a lei
eleitoral para que as mulheres maiores de 21 anos pudessem votar, outro parlamentar, Afrânio de Melo Franco, julgou-a
inconstitucional e afirmou: "As próprias mulheres brasileiras, em sua grande minoria, recusariam o exercício do direito de voto
político, se este lhes fosse concedido".
Em 1910 algumas líderes feministas, como Leolinda Daltro e a escritora Gilka Machado, fundaram no Rio de Janeiro o Partido
Republicano Feminino, cujo objetivo era "promover a cooperação entre as mulheres na defesa de causas que fomentassem o
progresso do país" – a começar pelo direito ao voto. Em 1920 surgiram vários grupos com o nome de Liga pelo Progresso
Feminino, que se tornaram embrião da poderosa Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, fundada no Rio de Janeiro em
1922 pela cientista Bertha Lutz.
O primeiro estado brasileiro a aprovar o voto feminino foi o Rio Grande do Norte, que registrou como primeira eleitora Celina
Guimarães Viana, no município de Mossoró, em 25 de novembro de 1927. Foi assim que em 1928 Alzira Soriano pôde tornar-
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se a primeira prefeita eleita do Brasil – no município de Lajes, no mesmo estado.
Com a Revolução de 1930 intensificaram-se os esforços, em âmbito nacional, pelo pleno reconhecimento dos direitos políticos
da mulher. Isso foi alcançado por meio do decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, de Getúlio Vargas – instituía-se o
Código Eleitoral Brasileiro, que, em seu artigo 2º, definia como eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo. Em
1933, a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz se tornaria a primeira deputada brasileira. Na mesma legislatura também se
elegeria – como suplente – a pioneira Bertha Lutz, a qual somente assumiria a cadeira na Câmara Federal em 1936.
Com a instituição do Estado Novo, em novembro de 1937, homens e mulheres sofreram súbita e compulsória desmobilização
política, mantendo-se assim até o término da ditadura de Vargas, em 1945. Na retomada democrática, a retração das mulheres
foi dramática – em 1945 nenhuma mulher seria eleita para o Congresso. Em 1947, havia uma única deputada estadual, em São
Paulo, Conceição da Costa Neves, que seria reeleita mais cinco vezes, até ter seus direitos políticos cassados pelo AI-5, em
1969. Nas eleições de outubro de 1950, uma única mulher se elegeria para a Câmara Federal – Ivete Vargas, do PTB de São
Paulo, que na época contava apenas 23 anos de idade. Reeleita mais quatro vezes, também foi cassada pelo regime militar,
em 1969.
Após a normalização democrática dos anos 1980, as mulheres voltaram a botar a cabeça para fora da toca, poucas, tenazes,
idealistas – e assim permanecem ao término deste primeiro decênio do século 21, conscientes de todos os empecilhos,
preconceitos e enredamentos que a política apresenta, mas tentando levar adiante a luta pela participação política plena, no
Brasil iniciada há 130 anos.
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