Área temática: territórios divididos, heteronomia e capital social CAPITAL SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: UM DESAFIO PARA ESTADO E SOCIEDADE Luiz Henrique Aparecido Silvestre* Eduardo Magalhães Ribeiro** Juliana Sena Calixto*** Resumo: A racionalização da máquina estatal, adotada como forma de gerenciamento de programas públicas tem como justificativa a facilidade de avaliação de resultados e de controle por instâncias superiores, principalmente por se tratar de um país de dimensões continentais como o Brasil. Mas este modelo pode entrar em conflito quando se cruza com a dinâmica social. Tal confronto se torna mais intenso na medida em que se convocam atores da sociedade civil para a participação nas discussões sobre os rumos das políticas públicas. Se a abertura democrática legitima e proporciona melhorias na operacionalização das políticas públicas, emerge outro elemento crítico que a estrutura burocrática do Estado ainda possui dificuldade em assimilar, que é a dinâmica social e os laços historicamente construídos. Este estudo tem por objetivo analisar, à luz das teorias sobre capital social e territórios, a implementação do Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (Consad), programa público vinculado ao governo federal, em duas regiões: Vale do Jequitinhonha (MG) e Vale do Itabapoana (ES, MG e RJ). Para atingir o objetivo proposto foram realizadas entrevistas com atores locais envolvidos e participação em reuniões e fóruns do consórcio. Verificou­se que a delimitação dos municípios incorporados ao consórcio foi autoritária, obedecendo apenas a critérios quantitativos. Formou­se assim fóruns para deliberação em arenas de confronto entre os representantes dos diversos municípios envolvidos, seja do poder público ou da sociedade civil. A quase total ausência de relações anteriores entre os atores envolvidos culminou em negociações agressivas, em defesa de propostas conflitantes, o que criava empecilhos às deliberações. A falta de uma identidade comum gerou atitudes avaliadas como egoístas uma vez que visavam apenas o interesse de determinados municípios, que não estavam comprometidos com o todo (sendo este todo uma construção externa, distante das relações construídas). A implementação, da forma como foi realizada, estimula a consolidação de um ambiente institucional agressivo, baseado na desconfiança com relação às outras entidades, potencializado pela disputa pela alocação de recursos públicos, consolidando um clima de competição entre municípios ou grupos de municípios. Colocar, num mesmo campo, indivíduos com características tão distintas e sem um histórico de relacionamento pode barrar propostas de desenvolvimento, uma vez que não se consolida o sentimento de confiança entre os agentes, criando barreiras à construção de interesses comuns ligados ao desenvolvimento regional justamente por aquele recorte regional não corresponder às relações e à identidade dos envolvidos, que procuram se defender ou proteger seus interesses. * Bacharel em Administração, mestrando em Administração: Gestão Social, Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal de Lavras ­ UFLA **Economista, professor doutor do Departamento de Administração e economia da Universidade Federal de Lavras­ UFLA *** Engenheira Florestal, mestre em Administração: Gestão Social, Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal de Lavras
1. Reforma e políticas públicas O fim do regime militar, a redemocratização da sociedade brasileira, a crise do capitalismo, sua reorganização e os movimentos reformistas nos países centrais impulsionaram a emergência de propostas de reforma do Estado brasileiro, encaminhadas pelos diferentes governos que se sucederam nas últimas duas décadas com o objetivo de se adequarem às novas exigências do capital, das demandas sociais e da própria burocracia estatal. Esta tendência não aflora originalmente no Brasil, tem­se como base a reforma norte­americana e inglesa de reestruturação do Estado capitalista, cujo papel passa a ser discutido inclusive na esfera social, passando de provedor direto de serviços à população para estimulador de entidades que prestam tais serviços. O que muda principalmente em relação à forma de gerir a máquina estatal anterior é a ideologia, é a forma de conceber o Estado e a Administração Pública 1 . Os pressupostos dessa reforma fundamentam­se no ajuste fiscal, enfocados na diminuição do quadro de funcionários e modernização da administração pública, mediante o privilegiamento do núcleo estratégico do Estado – legislação, formulação de políticas públicas, fiscalização, regulamentação e financiamento de recursos – bem como parcerias com os setores e serviços da sociedade civil (Bresser Pereira, 2001), repassando então para setores do mercado ou do paramercado funções antes desenvolvidas por ele, delegação essa firmada num contratualismo que se tornou paradigma dessa inovação de gestão. Em face às demandas da sociedade e ao apoio dos grupos sociais, a governabilidade não é, no novo modelo, avaliada em função apenas de resultados das políticas governamentais, passando a significar a forma pela qual o governo exerce seu poder. Assim, a questão dos procedimentos e práticas governamentais na consecução de suas metas adquire relevância, incluindo como objeto de análise questões como o formato institucional do processo decisório e abertura maior ou menor para a participação dos setores interessados ou de distintas esferas de poder (Diniz, 1997). Os pressupostos dessa reforma fundamentam­se no ajuste fiscal, enfocados na diminuição do quadro de funcionários e modernização da administração pública, mediante o privilegiamento do núcleo estratégico do Estado – legislação, formulação 1 Para saber mais sobre o assunto consultar Di Pietro (1997), Carneiro Junior (2002) e Bresser Pereira & Grau (1999).
de políticas públicas, fiscalização, regulamentação e financiamento de recursos – bem como parcerias com os setores e serviços da sociedade civil (Bresser Pereira, 2001). Ressalta­se elementos importantes deste processo, como a superação do paradigma de que o governo teria condições, unilateralmente, de resolver os problemas da nação, o que também justifica o distanciamento adotado há décadas em relação à população e que levou à planificação. Reconhece­se, frente à incapacidade e inoperância da máquina estatal em resolver problemas e atender às demandas da sociedade e do mercado (argumentos que basearam a crítica ao modelo de Estado anterior), o papel destas organizações não­públicas. Compondo uma esfera pública não­estatal, estas entidades possuem um papel fundamental na redefinição do papel e tamanho do Estado por possuírem características da administração moderna como maior flexibilidade, gestão com base em projetos, menor estrutura burocrática, especialização, aderência à sociedade civil (aspecto importante na redefinição da relação governo/sociedade, fundamental para reforma), suprindo assim o espaço entre o primeiro e o segundo setor. É através delas que é possível alcançar a almejada reforma: nova relação com a sociedade através da gestão participativa, já que são estimuladas a formação de órgãos colegiados, o que possibilita a descentralização da tomada de decisão e representação de interesses; a delegação da prestação de serviços sociais que antes eram de responsabilidade exclusiva do Estado para o setor não público (ou público não profissional, como preferem alguns acadêmicos) e a gestão via projetos. Neste ponto destaca­se a necessidade de parcerias, elemento que também é incorporado no planejamento de políticas públicas devido à sua essencialidade para que a reforma se concretize. Frente a demanda de participação vários formatos institucionais são implantados, destacando conselhos municipais e comissões regionais e territoriais. A formação dos Consads insere­se neste modelo mais participativo de ação estatal, fazendo parte das políticas consideradas estruturais e que são apoiadas pelo Programa Fome Zero (PFZ) como forma de buscar a segurança alimentar por meio da geração de oportunidades de trabalho e renda inicialmente em 40 áreas consideradas como bolsões de pobreza. É o contraponto às políticas emergenciais exigidas para o atendimento imediato das populações em risco alimentar. Sua estratégia de ação está voltada para a construção de bases que permitam às populações mais pobres obterem trabalho e renda, além de viabilizar a produção
familiar de alimentos, gerando com isso um ambiente sócio­econômico propício para a garantia da segurança alimentar, tornando sustentado o acesso aos alimentos necessários, em quantidades adequadas para o seu bem­estar, evitando a dependência de doações ou outras medidas excepcionais de garantia à sobrevivência. De uma forma geral, visa criar condições para a superação dos gargalos estruturais cujo resultado, esperado no longo prazo é a independência destas populações em situação de risco alimentar de políticas emergenciais (voltadas para o curto prazo). Para Abramovay (2003a) tendo como unidade isolada o município, a chance de se construir processos inovadores de geração de renda e de oportunidades é reduzida 2 , o que pode parcialmente justificar a situação de pobreza e estagnação dos mesmos. Assim a superação deste quadro só poderá vir mediante a criação de interações destes diversos atores com agentes externos ao município não envolvidos com o sistema, com as normas, com os valores, elementos que estabelecem uma institucionalidade na localidade. O destino dos territórios deixa de se concentrar numa autoridade ou numa agência central encarregada de distribuir recursos e passa a depender da capacidade de criação de riquezas que a própria interação entre atores locais é capaz de criar. Segundo Beduschi Filho e Abramovay (2003) é pelo fato de apoiar­se em formas variadas, dinâmicas e evolutivas de aprendizagem que a inscrição territorial das redes sociais é cada vez mais importante. A idéia de “aprendizagem por interação” traz uma nova agenda para a intervenção “pelo fato de nenhum conhecimento poder competir com o conhecimento local, por isso o nível regional deve ser o lócus primário de responsabilidade para o desenho e para a oferta de políticas. Apresentadas as vantagens de uma política territorial frente ao recorte municipal é necessário avaliar como o Estado está incorporando, em suas ações, este conceito, o que é o foco deste trabalho. Portanto, o objetivo desta pesquisa foi investigar, à luz das teorias de capital social, como o Estado incorpora o conceito de território e o operacionaliza e como isto se reflete na mobilização de capital social 2 Abramovay, no artigo “Conselhos além dos limites” (2003b) sistematiza as limitações das políticas que têm como unidades de planejamento o município. Sobre o conceito de território consultar Guia do Consad (2003)
existente e nas dinâmicas da rede de organizações, de diversos municípios, que participam de políticas públicas nas regiões. A pesquisa foi realizada em dois Consads (que representam dois territórios, segundo a definição do Ministério de Desenvolvimento Social): Consad Médio Jequitinhonha (na porção nordeste do Estado de Minas Gerais) e Consad Itabapoana (que abrange parte da zona da mata mineira, do sul capixaba e do norte fluminense), e foi realizada em duas etapas. Inicialmente realizou­se um estudo bibliográfico e documental para a caracterização da política pública em questão e das regiões no que tange aos seus aspectos socioeconômicos, para as quais foram utilizados indicadores quantitativos obtidos de fontes secundárias. A segunda etapa foi a realização de entrevistas com atores locais, que avaliaram o programa, a forma de implementação e perspectivas para o mesmo. Os entrevistados, para melhor entendimento, podem ser classificados em duas categorias:
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atores sociais locais com conhecimento genérico de projetos de desenvolvimento que estão sendo executados no âmbito de cada região, indicados pela sociedade civil e poder público. Com respaldo e propriedade sobre o assunto, avaliaram o Programa Consad e a forma como está sendo conduzido;
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atores sociais locais com conhecimentos específicos sobre cada projeto e que geralmente são seus principais responsáveis, indicados pelos entrevistados da categoria anterior; 2. A sobreposição de políticas públicas Embora a utilização de territórios seja apontada por estudiosos como a unidade administrativa com maior potencial de promoção do desenvolvimento, sua construção não é simples. Para tanto, vários métodos são utilizados, porém nenhum está isento de críticas, e é isto que será apresentado nesta seção. Nas diversas ações do governo o território possui basicamente a mesma concepção, como se observa nos exemplos:
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Para o Ministério da Integração Nacional (MIN), no seu Programa de Sustentabilidade de Espaços Sub­regionais (PROMESO), o território é formado por municípios com características econômicas, sociais e culturais comuns para o planejamento e a promoção conjunta do desenvolvimento;
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Para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, caracterizado por critérios
multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população, com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial;
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Na metodologia para construção de Consads o critério básico para o desenho do território é o grau de homogeneidade das características ambientais, sociais e econômicas, além do tamanho dos consórcios. Desta forma podemos destacar como aspectos básicos dos territórios: a existência de elementos comuns que dão identidade social, econômica, cultural e ambiental, e o estabelecimento de interações sociais. Essa combinação complexa de fatores não pode ser compreendida unicamente mediante a adoção de critérios objetivos que, embora tenham vantagens, nem sempre refletem a dinâmica local de trabalho, como será explanado a seguir. Há assim o desperdício de recursos tangíveis e intangíveis pela desconsideração das estruturais locais que refletem de forma mais próxima a dinâmica local ou que já foram criadas para outros programas governamentais. A constituição de uma nova instituição, caracterizada por um novo recorte de municípios não aproveita o potencial existente, que poderia ser adaptado e servir como referência para implementação deste programa. Isto implica em novos investimentos para a mobilização e consolidação, e desperdício de recursos por dois meios: seja por recomeçar a partir da base ou por desconsiderar o investimento feito por programas anteriores, sendo que ambos poderiam ser evitados. Muitos programas federais têm como objetivo básico desenvolver determinado território. É o caso do Mesovales (do Ministério da Integração Nacional), Pronaf Territorial (Ministério do Desenvolvimento Agrário), Prosan – Programa Mutirão de Segurança Alimentar e Nutricional e agora Consad (do Ministério do Desenvolvimento Social). O desenvolvimento, para os formuladores destes programas, é concebido de forma semelhante, em toda a sua complexidade. O que quer dizer que para se atingir o almejado desenvolvimento é preciso basicamente ter crescimento econômico através da geração de emprego e renda, com justiça social e respeito ao meio ambiente Qual a razão de se formar vários territórios se o objetivo é basicamente o mesmo, desenvolver localidades consideradas pobres, com base em premissas e
metodologias semelhantes? Por exemplo, os problemas encontrados pelo Consad e suas prioridades de ação vão ao encontro do Pronaf Territorial: como estão instalados em regiões de predomínio da agricultura familiar, ambos terão este foco para a superação de gargalos ao desenvolvimento. Analisando­se o discurso do Pronaf e do Consad, verifica­se que são basicamente os mesmos. Estão atuando em duas frentes diferentes, com metodologias semelhantes, sobre o mesmo problema, mas em territórios diferentes, com algumas interseções municipais. O mesmo ocorre com o Prosan, também voltado para o combate ao gargalo da geração de trabalho e renda como forma de garantir a segurança alimentar da população, que possui uma estrutura que envolve poder público e sociedade civil, e que tem outro recorte, que desagrega e aglutina os municípios do Consad em novos territórios. Deve ser enfatizado que o Prosan, como os Consads, também decide sobre alocação de recursos em projetos comunitários e tem a função de influenciar políticas públicas voltadas para a segurança alimentar. As funções de ambos são, mais do que para os outros programas aqui citados, muito próximas. As políticas citadas no quadro acima apresentam objetivos e metodologias semelhantes às do programa Consad, conforme pode ser verificado no QUADRO 1, abaixo: Quadro 1. Síntese de objetivos e metodologias utilizadas pelos programas implantados por outros ministérios na mesma região. ­ combate à pobreza e desigualdade; Objetivos ­ desenvolvimento integrado sustentável com base no potencial local; ­ redução dos custos de transferência de recursos. ­ ação territorial; ­ controle social; ­ interação entre poder público e sociedade civil; ­diagnósticos participativos dos gargalos estruturais ao desenvolvimento; Metodologia ­ planejamento integrado regional; ­estímulo à constituição de instâncias de representação, participação e decisão; ­ autonomia ao local e descentralização do processo decisório; ­ participação da sociedade civil;
­ aproveitamento de potencialidades endógenas; Fonte: pesquisa documental Portanto, criam­se novos territórios, que atendem mais a burocracia estatal do que a dinâmica social das regiões. Embora o conceito de território seja semelhante entre os programas, diferentes territórios são construídos para cada programa ministerial, o que aponta falta de comunicação entre estas instâncias estatais. A FIGURA 1, abaixo, mostra exatamente esta incoerência na determinação do que seria um território, colocando em evidências as dificuldades de se operacionalizar o conceito em políticas públicas. Há sobreposição de territórios (e conseqüentemente de políticas públicas), o que não contribui para o fortalecimento de uma identidade comum entre os municípios participantes, dificultando o estabelecimento de objetivos comuns uma vez que municípios que participam exclusivamente de um território vêem neste a possibilidade de obter vantagens que os outros já obtêm junto aos demais programas, o que certamente emperra processos de negociação de políticas e determinação de objetivos de longo prazo.
Figura 1. Alguns casos de sobreposição de territórios e de políticas públicas nas regiões pesquisadas Território do programa Mesovales (Vale do Jequitinhonha e Mucuri) e em destaque a área abrangida pelo Consad Médio Jequitinhonha. Consad Médio Jequitinhonha Território delineado para o Crsan/Prosan Alto e Médio Jequitinhonha e área abrangida pelo Consad Médio Jequitinhonha Prosan Alto/Médio Jequitinhonha Consad Médio Jequitinhonha Território do programa Crsan Leste Mata 4/Prosan e a área abrangida pelo Consad Itabapoana. Crsan/Prosan Leste Mata 4
Fonte: pesquisa documental Em função de tais problemas, os atores sociais envolvidos reagem de diversas formas. Percebe­se que grupos mais consolidados de municípios mobilizam, usam de seus acordos firmados baseados em objetivos comuns (a ligação do tipo cola) e relações pautadas na reciprocidade para proteger e defender seus interesses nos territórios que são sempre arenas de disputas políticas. Percebeu­se claramente a consolidação de blocos de municípios para a obtenção de recursos públicos, ainda que muitas vezes as propostas destes grupos fossem divergentes da proposta mais ampla de desenvolvimento conectado com o restante do território. Esta ausência de sentimento de caminhada conjunta e de consolidação de valores e de propostas de como se alcançar o desenvolvimento no seu sentido “territorial” ficou claramente expresso nas rodadas de negociações 3 . Embora a criação de uma nova institucionalidade territorial (o Consad) possa aproveitar o potencial desenvolvido por outros programas na região, como no caso de diagnósticos que servem como subsídios para diversos programas, tem efeitos indesejados:
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Pode não aproveitar a possibilidade de ganhos de escala e complementaridade;
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não há um reforço de identidade e consolidação de objetivos comuns entre os municípios, pois em cada programa a composição dos territórios é diferente;
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Este método também segmenta o problema, em que cada ação do Estado tem um orçamento sem muitas vezes, por questões burocráticas, haver a possibilidade de sinergias entre os diversos programas. Este tipo de ação faz o governo retroceder: a departamentalização dos problemas (embora o desenvolvimento seja algo indefinido, não tenha um limite, perpassa por diversas ações), o que pode ser reflexo da mudança em curso ou da falta de sinergia entre ministérios, sem o aproveitamento das estruturas criadas para a implantação de novos projetos governamentais. Considerando­se o caso específico do Programa Consad, verificou­se também algumas inconsistências internas. A delimitação dos municípios incorporados ao consórcio foi autoritária, obedecendo apenas a critérios quantitativos. Formou­se assim fóruns para deliberação em arenas de confronto entre os representantes dos diversos municípios envolvidos, sejam do poder público ou da sociedade civil. A quase total ausência de relações anteriores entre os atores envolvidos culminou em negociações agressivas, em defesa de propostas conflitantes, o que criava empecilhos às deliberações. A falta de uma identidade comum gerou atitudes avaliadas como egoístas, uma vez que visavam apenas o interesse de determinados municípios, que não estavam comprometidos com o todo (sendo este todo uma construção externa, distante das relações construídas). A implementação, da forma como foi realizada, estimula a consolidação de um ambiente institucional agressivo, baseado na desconfiança com relação às outras entidades, potencializado pela disputa pela alocação de recursos públicos, consolidando um clima de competição 3 Sobre os territórios como campo de poder consultar Abramovay et al. (2006). Sobre ligações tipo “cola” e “ponte” e também uma sistematização de outros conceitos caros à teoria sobre capital social consultar Vale (2006)
entre municípios ou grupos de municípios. Colocar, num mesmo campo, indivíduos com características tão distintas e sem um histórico de relacionamento pode barrar propostas de desenvolvimento uma vez que não se consolida o sentimento de confiança entre os agentes, criando barreiras à construção de interesses comuns ligados ao desenvolvimento regional, justamente por aquele recorte regional não corresponder às relações e à identidade dos envolvidos, que procuram se defender ou proteger seus interesses, sem a possibilidade de reflexões sobre as diretrizes de um programa conjunto. 3. Considerações finais Constata­se que não há um consenso entre os programas públicos do que vem a ser um recorte territorial. Ainda que adotem a mesma concepção do que é um território, tenham objetivos e metodologias semelhantes o processo de construção de políticas baseadas em unidades territoriais possui ainda incoerência nos contornos. Admitindo­se que não é uma atividade fácil estabelecê­lo devido ao fato de obedecer a dinâmicas sociais nem sempre de fácil identificação, tal indefinição provoca duplicidade de esforços por parte das organizações participantes e também de estrutura, o que poderia ser evitado caso fosse adotado, para as diversas políticas, o mesmo referencial. Apesar das vantagens apresentadas amplamente na literatura sobre o tema, estas muitas vezes não são obtidas em função da falta de consenso, em muitos casos por falta de comunicação entre as instâncias governamentais, do que seria uma política territorial e do que seria um território. Salienta­se que tal problema vai contra o propósito básico da constituição de territórios, que é a superação das políticas e programas setoriais por discussões e programas holísticos. Outro equívoco básico é o desconhecimento (ou desconsideração) dos esforços de consolidação de territórios já existentes e criados por outros ministérios, e que poderiam ser aproveitados. É importante evidenciar que não se propõe que estes programas tenham sempre a mesma composição pois o conceito de território ainda é muito fluido e está em construção. Propõe­se problematizar, levantar algumas questões para aprofundamento em estudos mais específicos, apresentar os arranjos existentes quando se trata de programas territoriais, que acabam por conter sobreposições diversas, o que reforça que o Consad não é homogêneo (isto será aprofundado mais
à frente). Existem heterogeneidades e especificidades, o que levou cada programa a um desenho diferente. Complementarmente, o estudo destas diversas políticas públicas implementadas com arranjos diferentes revela que existem metodologias e princípios semelhantes nestas, o que abre a possibilidade de usá­las como base em novos programas governamentais, podendo assim ser obtidos ganhos de escala. 4. Bibliografia ABRAMOVAY, R. “Capital social dos territórios: repensando o desenvolvimento rural” In: O Futuro das Regiões Rurais. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003 a ABRAMOVAY, R. “Conselhos além dos limites” In: O Futuro das Regiões Rurais. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003 b ABRAMOVAY, R., BENGOA, J., BERDEGUÉ, J. A., ESCOBAL, J., RANABOLDO, C., RAVNBORG, H. M., SCHEJTMAN, A. Movimentos sociais, governança ambiental e desenvolvimento territorial. Disponível em www.rimisp.gov e capturado em julho 2006. BEDUSCHI FILHO, L. C., ABRAMOVAY, R. Desafios para a gestão territorial do desenvolvimento sustentável do Brasil. In: Anais do XLI Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, Juiz de Fora, 2003 BRESSER PEREIRA, L. C. Do Estado patrimonial do gerencial. In: SACHS, I.; WILHEIM, J.; PINHEIRO, P. S. ed. Brasil: um século de transformações. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. BRESSER PEREIRA, L. C., GRAU, N. C. Entre o Estado e o mercado: o público não estatal. In: Pereira, L. C. B., Grau, N. C (orgs) O público não­estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999. 500p. CARNEIRO JÚNIOR, N. O setor público não­estatal: as organizações sociais como possibilidades e limites na gestão pública da saúde. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. DI PIETRO, M. S. Z. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 2. ed. São Paulo, Editora Atlas, 1997. DINIZ, E. Governabilidade, democracia e reforma do Estado: os desafios da construção de uma nova ordem no Brasil do anos 90. In: DINIZ, E.; AZEVEDO, S.
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Área temática: territórios divididos, heteronomia e capital