Universidade de Brasília Natália Caliman Vieira DANOS MORAIS DECORRENTES DO ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS. A Tutela Jurisdicional dos Danos à Pessoa Humana. Brasília 2009 2 Natália Caliman Vieira Matrícula: 05/22015 DANOS MORAIS DECORRENTES DO ABANDONO AFETIVO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS. A Tutela Jurisdicional dos Danos à Pessoa Humana. Dissertação apresentada ao Programa de Graduação em Direito da Universidade de Brasília, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de Concentração: Direito de Família, Responsabilidade Civil e Direito Constitucional. Orientadora: Suzana Borges Viegas de Lima. Brasília Universidade de Brasília 2009 3 Sumário Introdução .......................................................................................................................... 04 CAPÍTULO I 1. A Família ........................................................................................................................ 06 1.1 Conceito e Relevância Jurídica ........................................................................ 06 1.2 A Família inserida no ordenamento jurídico brasileiro.................................. 09 1.3 O afeto e o cuidado como valores jurídicos ..................................................... 12 1.4 A constitucionalização do direito civil no âmbito familiar ............................. 15 CAPÍTULO II 2. Os Princípios no Direito de Família ............................................................................. 16 2.1 Os princípios em espécie .................................................................................. 16 2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ..................................... 17 2.1.2 O Princípio da Paternidade e da Maternidade Responsável ................ 19 2.1.3 O Princípio da Afetividade .................................................................... 20 2.1.4 O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente ............ 21 2.2 A ponderação dos princípios jurídicos na perspectiva civil-constitucional .... 22 CAPÍTULO III 3. A Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo nas Relações Paterno-Filiais ...... 27 3.1 Noções de Responsabilidade Civil .................................................................... 27 3.1.1 Conceito e finalidade da Responsabilidade Civil.................................... 27 3.1.2 Pressupostos da Responsabilidade Civil ................................................. 29 3.2 Danos morais ou danos à pessoa? ................................................................... 31 3.3 A problemática da conceituação dos Danos Morais ....................................... 32 3.4 Os danos morais como danos à cláusula geral de tutela da pessoa humana . 35 3.5 Os danos morais compensáveis ........................................................................ 37 3.6 A Responsabilidade Civil no Direito de Família ............................................. 39 3.7 A omissão de afeto e cuidado como dano à pessoa humana compensável..... 44 3.8 Os requisitos da condenação a título de danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações paterno-filiais ....................................................... 48 3.8.1 O pressuposto da condenação: a existência de uma efetiva relação de filiação ..................................................................................................................... 48 3.8.2 Dos deveres da condição de pai: a conduta omissiva ............................ 49 3.8.3 O nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o evento danoso ..... 52 CAPÍTULO IV 4. A posição da jurisprudência pátria.............................................................................. 53 Conclusão ........................................................................................................................... 57 Referências Bibliográficas ................................................................................................ 60 INTRODUÇÃO O presente estudo é obra de reflexões que nos atormentaram na etapa final do curso de graduação, durante a qual entramos em contato com o dia-a-dia das Varas e Tribunais do Poder Judiciário. As relações de filiação nos chamaram a atenção ante o descaso com que genitores1 lidam com a paternidade/maternidade, muitas vezes negando-se a proporcionar aporte material, quem dirá afetivo à prole. Em face desse quadro, passamos a questionar como poderia o Poder Judiciário proteger menores e adolescentes que sofrem pelas negligências e omissões paternas e maternas. Assim, buscando mecanismos de amparo, tivemos ciência que a tutela da pessoa humana se daria por meio da Responsabilidade Civil, mais especificamente pela condenação a título de danos morais. Dessa maneira, passamos a examinar acaso seria cabível tal condenação por danos decorrentes de abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Após realizarmos uma retrospectiva histórica do Direito de Família Brasileiro, estabelecemos os contornos atuais desse ramo no ordenamento, tendo em vista a nova perspectiva civil-constitucional do sistema, pautada na dignidade humana; em cotejo com os novos valores jurídicos que permeiam os laços familiares, que são o afeto e o cuidado. Em seguida, traçamos os princípios constitucionais aplicados à questão, com destaque a dignidade da pessoa humana, a afetividade, a paternidade/maternidade responsável e o melhor interesse do menor e do adolescente, tecendo considerações sobre a colisão entre princípios no caso concreto. Uma vez findo o processo em que estabelecemos os conceitos, a legislação pertinente ao caso e os fundamentos do nosso estudo, passamos à temática da Responsabilidade Civil no Direito de Família. Nesse ponto, primeiramente traçamos algumas noções gerais do ramo da Responsabilidade para então dissertarmos sobre os danos morais propriamente. Acuramos que “danos à pessoa” é o termo que melhor qualifica as lesões de ordem extrapatrimonial, mas optamos por utilizar sem discrição tanto “danos morais” como “danos à pessoa”, como se sinônimos fossem. 1 Ressalte-se que por vezes fizemos referência apenas à figura paterna do genitor, mas tal opção se deu apenas por motivos de conveniência, pelo que não descartamos em momento algum que a figura materna possa ser agente causadora de danos morais decorrentes do abandono afetivo. 5 Em seguida, fizemos a abordagem das críticas de que o instituto dos danos morais foi alvo em face da ampliação desmesurada do rol das hipóteses ressarcitórias, haja vista o novo paradigma do ordenamento ser a tutela da pessoa humana. Em sentido oposto, verificamos também a propagação de julgados que impedem a criação de situações indenizáveis, sob a premissa de que os precedentes poderiam inspirar uma infinidade de novas demandas que abarrotariam o Poder Judiciário. Compartilhando da preocupação acerca da banalização do instituto e entendendo também que o aumento do número de ações a esse título é resultado direto de que os cidadãos estão mais cientes das possibilidades de luta e defesa de seus próprios direitos, procuramos delinear limites aos danos morais indenizáveis. Tais limitações foram traçadas partindo do desenvolvimento da problemática da conceituação dos danos morais, em que ao final optamos pelo conceito que os vincula à lesão da dignidade humana em algum de seus substratos materiais. Nessa esteira, verificamos as teses que lidam com a qualidade de interesses merecedores de tutela, concluindo que a mais cabível é a que considera indenizável dano que, segundo uma ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais, seja injusto a ponto de que não deva a vítima suportar sozinha os efeitos da lesão. Assim, partimos à hipótese de responsabilizar alguém civilmente nos vínculos familiares, concluindo pelo posicionamento favorável. Passada essa fase, buscamos demonstrar a possibilidade da inserção dos danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações de filiação no rol de danos passíveis de compensação, tendo em conta a ponderação dos interesses contrapostos, quais sejam a autonomia paterna, a integridade psicofísica do infante e a solidariedade familiar e social à luz dos princípios próprios do Direito de Família que conferem proteção integral prioritária aos menores e adolescentes. Seguidamente, enquadramos a conduta omissiva do genitor que mereça ser condenada, adaptando os deveres da paternidade à noção de culpa normativa da Responsabilidade Civil. Estabelecemos, além disso, a importância da averiguação do nexo de causalidade entre a negligência parental e o evento danoso, destacando a necessidade de a conduta ser adequada a gerar lesão para que incida o dever sucessivo de indenizar. Por fim, fizemos uma breve análise comentada da jurisprudência pátria, que hoje se encontra dividida, expondo alguns julgados, com seus fundamentos e dispositivos. 6 CAPÍTULO I 1. A Família 1.1 Conceito e Relevância Jurídica Dentre todos os ramos jurídicos, o Direito de Família é tido como o mais ligado à vida, haja vista que, normalmente, o ponto de origem das pessoas, assim como o lugar ao qual se mantêm vinculadas durante sua existência, é o seio familiar2. Nesse contexto, a família aparece como o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. A instituição é muitas vezes considerada como a base do Estado, motivo pelo qual, como não poderia deixar de ser, merece ampla proteção estatal. Com efeito, esse é o conceito de família dado pela lição de JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA: A família é o grupo social primário mais importante que integra a estrutura do Estado. Como sociedade natural, correspondente a uma profunda e transcendente exigência do ser humano, a família antecede nas suas origens o próprio Estado. Antes de se organizar politicamente através do Estado, os povos mais antigos viveram socialmente em famílias3. Na medida em que a família constitui a menor célula do corpo estatal, não poderia passar despercebida pelo o ordenamento jurídico. Em verdade, “ela é um veículo funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros4”. É que, sendo o ambiente familiar o lugar em que os indivíduos nascem e se desenvolvem, a dinâmica estabelecida entre seus membros é determinante quanto à construção da personalidade do indivíduo; e, também, quanto ao modo como este indivíduo se relaciona com os demais componentes da sociedade. Em que pesem as variadas formas assumidas, bem como as transformações sofridas pelo instituto durante a evolução histórica dos povos, a família segue como condição à humanização e à socialização das pessoas5. CANEZIN defende que o agrupamento por laços 2 GOLÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume VI: Direito de Família. 5ª ed, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1. 3 VARELA, João de Matos Antunes. Direito de Família. In.: Czajkowoski, Reiner. União Livre à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Curitiba: Juruá, 1997, p. 21. 4 TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimonio. In.: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 372-373. 5 Em relação à importância da convivência familiar nos primeiros anos de vida da pessoa, certifica CLAUDETE CARVALHO CANEZIN o seguinte: “É a família que possibilita a emergência de significado, de valores e critérios de conduta, sentimento de pertença, respeito e diálogo em contexto afetivo, o que irá refletir em seus futuros relacionamentos com o mundo que o rodeia, além de constituir-se como requisito indispensável ao desenvolvimento saudável das potencialidades do indivíduo”. (CANEZIN, Claudete Carvalho. Da Reparação do 7 de parentesco não seria somente uma estratégia de sobrevivência dos grupos; mas seria, ao mesmo tempo, uma condição ao desenvolvimento e realização pessoal do ser humano6. No que concerne às mudanças na organização familiar, notadas a partir do século XIX, RODRIGO DA CUNHA PEREIRA elucida que a entidade sofreu alterações após as Revoluções Burguesas, principalmente em função do declínio do patriarcalismo, assim como do individualismo, o que culminou no abalo das antigas estruturas do Direito de Família, marcando a Idade Contemporânea7. PEREIRA assevera que as alterações na família moderna ocorreram porque a razão de ser das relações familiares foi modificada para dar origem a um berço no qual importam valores tais como o afeto, a solidariedade e a mútua constituição de uma história em comum8, deixando de lado a concepção preexistente da família como um núcleo econômico e de reprodução. Nessa mesma orientação, a jurista GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA destaca que outras ciências humanas, como a antropologia e a psicologia, contribuíram decisivamente para que o novo enfoque jurídico, pautado nas relações familiares estabelecidas em função de um elo afetivo, tomasse os contornos atuais9. Atualmente, a normatização das relações familiares cuida de regular o modo como interagem os membros desse agrupamento e as conseqüências que resultam das relações por eles estabelecidas, quanto às pessoas e aos seus bens, respeitando princípios jurídicos próprios do Direito de Família, que prezam pelas relações baseadas no afeto. É possível dizer que as normas vigentes que regem o Direito de Família são multifacetárias, por regularem relações pessoais, patrimoniais e assistenciais, a depender da sua finalidade ou do seu objetivo. Significa dizer que este ramo disciplina relações pessoais entre cônjuges, ascendentes, descendentes e parentes fora de linha reta; relações patrimoniais que se desenvolvem no seio familiar e em decorrência dele; e, finalmente, relações dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial. In.: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 36, jun/jul, 2006, p.71) 6 Idem, ibidem, p. 72. 7 PEREIRA [1], Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais do Direito de Família. Belo Horizonte. Del Rey, 2005, p. 3. 8 Idem, ibidem, p. 4. 9 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressuposto, Elementos e Limites do Dever de Indenizar por Abandono Afetivo. In.: A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenação: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 418. 8 assistenciais, como entre cônjuges entre si, pais e filhos e também nos casos de tutoria e curatela10. Em poucas palavras, diz-se que “o objeto do direito familiar é, pois, o complexo de disposições, pessoais e patrimoniais, originado do entrelaçamento das várias relações estabelecidas entre os componentes da entidade familiar11”. É notório que cada uma dessas figuras possui um papel próprio a desempenhar no seio familiar. O papel dos genitores, por exemplo, é de dispor meios para o pleno desenvolvimento da sua prole. A razão disso é que, do ponto de vista da infância e da juventude, aos menores é conferida maior proteção, haja vista a sua vulnerabilidade face aos demais membros do corpo social. O escopo das normas que resguardam os direitos dos infantes é garantir as assistências material, moral e intelectual, de maneira que essas pessoas em desenvolvimento possam crescer e se tornarem adultos física e mentalmente saudáveis. Na medida em que a criança cresce em um ambiente proveitoso, permeado de afeto, se tornará um ser humano mais completo e psiquicamente melhor estruturado. É inegável, portanto, o reconhecimento de que os membros da família merecem plena proteção, tendo em vista que é interesse da sociedade que seus agentes sejam o mais bem incorporados no corpo coletivo possível. Nesse sentir, compreensível se torna a ingerência estatal nas relações familiares. De fato, “atualmente, os deveres dos pais são determinados pelo Estado, independente de sua escolha, a relação deve ser direcionada para o resguardo dos interesses dos filhos12”. Como aponta HIRONAKA, o Direito de Família contemporâneo tem voltado seu foco ao reconhecimento da família como o lugar privilegiado para a ampliação de relações interpessoais mais justas, através do desenvolvimento de seres humanos (sujeitos de direito) mais completos e psiquicamente melhor estruturados13. Tendo por arcabouço teórico o princípio da dignidade da pessoa humana, esse ramo passou a conferir valor jurídico ao afeto e ao cuidado, criando mecanismos de proteção aos direitos e interesses dos membros familiares, principalmente os de que são titulares crianças e adolescentes, marcados pela vulnerabilidade. 10 GOLÇALVES, op. cit. p. 3. Idem, ibidem, p. 2. 12 CANEZIN, op. cit, p. 72. 13 HIRONAKA, op. cit., p. 418. 11 9 Sendo assim, resta claro que a evolução dos estudos e do tratamento legislativo acerca dos direitos da pessoa humana afetou o Direito de Família, ampliando os mecanismos de tutela desse instituto, principalmente no que toca os direitos da prole. 1.2 A Família inserida no Ordenamento Jurídico Brasileiro Em se tratando da legislação e do tratamento jurídico brasileiro, a proteção estatal conferida à família está prevista, principalmente, nos textos da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ocorre que nem sempre o Direito de Família teve a amplitude dada hoje no ordenamento jurídico do nosso país, como se percebe pelo fato de que as questões pertinentes à família passaram praticamente despercebidas pelo poder constituinte das duas primeiras Constituições Federais Brasileiras14. CLÁUDIA MARIA DA SILVA afirma, em estudo sobre indenizações aos filhos, que essas duas Constituições não faziam nenhuma referência à família, na época marcadamente patriarcal15. A primeira alusão ao grupo familiar em sede constitucional ocorreu na Lei Maior de 1934. Naquela Carta, o constituinte ateve-se a questões formais e relativas ao casamento, não conferindo maior importância à substância da instituição16. No corpo da Lei Maior de 1937 vieram mudanças significativas relativas ao tratamento dos pais quanto aos seus filhos. Esse texto previa o tratamento igualitário entre filhos naturais e filhos legítimos e, ainda, a necessidade de se conferir cuidados e garantias especiais à infância e à adolescência, a fim de que os menores pudessem dispor de uma vida digna17. Apesar do grande avanço do texto de 1937, as Constituições de 1946, 1967 e 1969 não deram continuidade às inovações no campo da tutela infantil e do adolescente, 14 MARIA DA SILVA, Cláudia. Descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho. In.: Revista de Brasileira de Direito de Família, v. 6, n. 25. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, ago/set, 2004, p. 124. 15 Idem, ibidem, p. 124. 16 Idem, ibidem. p. 125. 17 O artigo 127 do referido texto tratou, pioneiramente, acerca da responsabilização dos pais pelo abandono dos filhos, dispondo que os abandonos moral, intelectual ou físico da infância e da juventude importaria em falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação O texto do artigo mencionado assim dispunha: “Art. 127. A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da juventude importará falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de provê-las de conforto e dos cuidados indispensáveis à sua preservação física ou moral.Aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência e educação de sua prole”. 10 sendo que a única mudança merecedora de destaque do período foi a promulgação da Lei do Divórcio, na vigência da Carta de 1969, permitindo a dissolução do vínculo matrimonial e a celebração de um novo casamento. Seguidamente, em 05 de outubro de 1988, foi promulgado o imperativo constitucional ora vigente, usualmente reconhecido por Constituição Cidadã. Esta Carta passou a lidar de maneira mais efetiva acerca da questão familiar. CANEZIN considera o texto aludido como “um marco histórico fundamental no que se relaciona à abordagem da família18”. A importância da família é reconhecida na Lei Maior vigente, como facilmente se depreende da leitura dos dispositivos que tratam sobre a temática, em especial do artigo 226, que prevê a família como a base da sociedade, merecendo especial proteção do Estado19. Adiante, no artigo 227, a Carta de 1988 determina como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, todos os direitos que lhes confiram uma vida digna. É o que estabelece a redação do dispositivo aludido: Art. 227. É dever da família, da sociedade, do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer, à profissionalização, à cultura e à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Note-se, da escrita desse artigo, que criança e o adolescente ganharam lugar de destaque no ordenamento jurídico brasileiro. Na mesma orientação da Carta Magna, quanto ao especial apreço conferido aos menores, foi editada a Lei no. 8.069 de 1990, denominada de Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. O artigo 3° do referido Estatuto prevê que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se-lhes, por meio da lei ou por outros meios, todas as formas de oportunidades e facilidades, a fim de lhes 18 19 CANEZIN, op. cit., p. 127 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 11 facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade20. O ECA, nos artigos 4º e 5º, determina que cumpre à família, à sociedade e ao Estado a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, a salvo de qualquer forma de negligência. Ademais, decide que qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais será punido na forma da lei21. Mais especificadamente, sobre o direito à convivência familiar, o Estatuto, pelo que dispõe seu artigo 19, estabelece que toda criança tem direito a ser criada e educada no seio da sua família e, apenas excepcionalmente, em família substituta. Assegura-se, por meio deste dispositivo, a convivência familiar, bem como a comunitária22. Em relação aos deveres dos pais, o ECA articula o seguinte: Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Finalmente, sobre os diplomas que tratam do Direito de Família, em 2002 o novo Código Civil veio a substituir o antigo de 1916, que há muito se encontrava ultrapassado. A nova Lei Civil prevê deveres dos pais em relação aos filhos nos dispositivos que tratam do exercício do poder familiar, em capítulo próprio, nos artigos 1.630 a 1.63823, e também em outros artigos esparsos, como é o caso do artigo 1.566, IV, que lida do dever 20 Art. 3° A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por meio de lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. 21 Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (...) Art.5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. 22 Art. 19 Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substancias entorpecentes. 23 Vale citar, dentre tais determinações, o artigo 1.634, CC, que prevê o seguinte: “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I- dirigir-lhes a criação e a educação; II- tê-los em sua companhia e guarda”. 12 recíproco dos cônjuges quanto ao sustento, à guarda e à educação dos filhos24, dentre outras várias disposições. Ademais, o Código Civil de 2002 alterou o antigo “pátrio poder” para dar lugar a um novo poder familiar livre da concepção romana, segundo a qual o pai tinha pleno direito de vida e de morte sobre seu filho. A evolução desse pensamento abandonou a noção de poder nas relações paterno-filiais e acatou a noção de que essas relações decorrem de uma autoridade natural dos pais com relação a sua prole, esta dotada de dignidade. Assim, o poder familiar passou a ser menos um poder e mais um dever25. Ressalte-se que a determinação da parentalidade responsável como um múnus é uma direção dos textos civis, bem como da Carta Magna, de modo que toda a sistemática orienta-se nesse sentido. É que, a partir do pós-modernismo e da constitucionalização do direito privado, o Código Civil de 2002 não é apenas uma nova codificação que trata do regramento das relações privadas, ele é, na realidade, um mecanismo para conferir efetividade às disposições constitucionais. Esse também é o caso dos princípios norteadores do Direito, em especial ao tema ora posto, os do Direito de Família, pautados na dignidade da pessoa humana, na ética da responsabilidade e da solidariedade e, além disso, na convivência familiar e no melhor interesse dos menores. 1.3 O Afeto e o Cuidado como Valores Jurídicos A mudança de paradigma no que toca os direitos vinculados às relações de filiação nos convida a identificar tanto o afeto quanto o cuidado como valores jurídicos, vez que em diversas passagens do ordenamento tais valores aparecem como deveres de provisão do Estado, dos pais e da sociedade26 aos menores, por quem aqueles são responsáveis. 24 Art. 1.566 São deveres dos cônjuges: (...) IV -sustento, guarda e educação dos filhos. 25 O exercício da paternidade, efetivamente “converteu-se em um múnus, concebido como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de certas circunstancias, a que se não pode fugir. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas necessário no interesse de outrem (ANGELUCI, Cleber Affonso [1]. Amor tem preço? In.: Revista CEJ, n. 35, out./dez. Brasília: 2006. p. 48). 26 Inclusive, TÂNIA DA SILVA PEREIRA destaca que o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, obrigando-se a estabelecer novos caminhos para que os direitos dos infantes fossem resguardados. A autora cita diversas passagens da Convenção que identificam o “cuidado” como valor jurídico, como é o caso do artigo 3º, para o qual “os Estados Partes se certificarão que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da direção das crianças cumpram com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes”. Por essas normas internacionais, depreende-se que o cuidado e o afeto são valores jurídicos não só na sistemática brasileira. PEREIRA, Tânia da Silva. O cuidado como valor jurídico. In.: A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenadores: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 231. 13 NICOLA ABBAGNANO indica que o uso do termo valor, segundo a filosofia, tem início quando seu significado é generalizado para indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha27. Inserir um determinado valor no ordenamento jurídico é uma escolha do legislador, que dá preferência a um valor em detrimento de outro. Neste caso, a previsão em lei, geral e abstrata, do afeto e do cuidado tem a sua razão de ser no fato de que é papel do Direito estabelecer proibições e permissões que viabilizem o convívio social, coibindo condutas reprováveis e estimulando comportamentos adequados. Assim, valores como o cuidado e o afeto são preferíveis aos valores individualistas e patrimonialistas nas relações familiares. A importância do cuidado e do afeto ao ordenamento jurídico, especialmente no que toca as relações parentais, parte da concepção de que a capacidade de desenvolver-se como sujeito e bem se relacionar socialmente depende diretamente de se ter recebido tais valores nos primeiros anos de vida, quando o menor, vulnerável, está a moldar sua personalidade. Por assim dizer, o papel paterno/materno tem função estruturante do filho como sujeito28. Em sentido oposto, a falta desses valores repercute negativamente não só no indivíduo, mas também na sociedade. Em relação ao indivíduo, a repercussão da falta de afeto e de cuidado dá-se na possibilidade da criança desenvolver uma personalidade agressiva, deprimida, rebelde e indisciplinada29; ao passo que, na esfera social, essa falta é apontada, inclusive, como possível causa do aumento da delinqüência juvenil30. De tal feita, a ausência de tais valores nas primeiras etapas da vida não é maléfica apenas à criança, mas a todo o ambiente em que ela irá conviver, pelo que se justifica o interesse público na questão. Tendo isso em mente, a Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 227, determina, dentre outros deveres dos pais, a convivência familiar e comunitária, a salvo de todas as formas de negligência, como um dever dos genitores. Por fazê-lo, resta claro que, para o nosso ordenamento, o exercício da paternidade não poderá limitar-se ao aporte material direcionado à prole, devendo ir além, no que toca a provisão aos menores do aporte afetivo, a 27 ABBAGNANO apud ANGELUCI, Cleber Afonso [2]. Abandono Afetivo: Considerações para a constituição da dignidade da pessoa humana. Revista CEJ, Brasília, n. 33, abr./jun. 2006, p. 51. 28 PEREIRA, Rodrigo da Cunha [2]. Pai, Por que me Abandonaste? In.:Temas Atuais de Direito e Processo de Família – Primeira Série. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 389. 29 PEREIRA, Tânia. op. cit., p. 234. 30 PEREIRA, Rodrigo [2]. op. cit., p. 389. 14 fim de que bem se desenvolvam. Em assim sendo, como já se disse, a paternidade/maternidade é encarada como um múnus31. Sobre a relevância do afeto nas relações familiares, TÂNIA DA SILVA PEREIRA afirma ser a relação afetiva o diferencial definidor da entidade familiar, sendo um sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio em virtude de uma origem ou de um destino comum32. Hoje, já não restam dúvidas de que os vínculos familiares deixaram de ter razão nas questões patrimoniais e que as relações dessa ordem passaram a se constituir pelo elo afetivo. Dessa maneira, reconhece-se o princípio da afetividade como princípio implícito do ordenamento constitucional33, o que demonstra sua importância valorativa ao sistema jurídico brasileiro. Quanto ao cuidado, TÂNIA DA SILVA PEREIRA demonstra que este também merece lugar como valor jurídico, sendo uma responsabilidade humana como pessoa e como cidadã. A referida autora alerta que considerá-lo como tal ocorre em nome do interesse público e da ética da co-responsabilidade, fundada na solidariedade e na cidadania, a fim de que o cuidado seja usado como informante das relações privadas e institucionais, conduzindo a efetivos compromissos34. Além dessa característica marcante nas relações parentais, que é a responsabilidade, tais elos caracterizam-se também pela permanência do vínculo. A responsabilidade decorre da assimetria da relação, ou seja, das posições diferentes que as partes ocupam no elo, sendo uma delas dotada de particular vulnerabilidade (o menor ou o adolescente). A permanência é, pelo menos, a tendência, pois o término dessa relação é custoso e excepcional, ocorrendo, por exemplo, nos casos de risco elevado ou de abuso, que 31 A propósito dessa matéria, MARIA CELINA BODIN DE MORAES conclui: “O poder familiar hoje é concebido como um poder-dever posto no interesse exclusivo do filho e com finalidade de satisfazer as suas necessidades existenciais, consideradas mais importantes, conforme prevê a cláusula geral de tutela da dignidade humana. Este também é, não por acaso, o teor do artigo 227 da Constituição Federal, ao determinar ser dever da família assegurar, com absoluta prioridade, às crianças e aos adolescentes os direitos à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina [1]. Danos Morais em Família? Conjugalidade, Parentalidade e Responsabilidade Civil. In.: A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenadores: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.194-195.) 32 PEREIRA, Tânia. Ibidem, p. 236 33 LÔBO, Paulo Luiz Netto. [3] Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In.: Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.) Família e cidadania. O Novo CCB e a vacatio legis. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. IBDFAM. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 97. 34 PEREIRA, Tânia. op. cit., p. 237. No mesmo sentido, LEONARDO BOFF considera o cuidado como uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro (BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis, Vozes: 2003, p. 34). 15 ensejam a perda do poder familiar35. Ademais disso, ainda existem as hipóteses em que há o rompimento do vínculo de filiação em conseqüência do fim do matrimônio entre os genitores, podendo ser esse corte voluntário ou até mesmo decorrente da pressão a favor do afastamento exercida pelo ex-cônjuge guardião do infante. Por essas características das relações parentais, a legislação vigente, em diversas passagens, determina que aos pais é dada a incumbência de guarda, sustento e educação dos infantes, bem como o dever de assegurar-lhes direitos como a vida, o lazer, a saúde, entre outros. Assim, pela idealização da parentalidade exercida em prol do melhor interesse do menor e da “defesa da ordem social a partir da criança36”, é trazida à esfera pública a discussão da condução dos deveres da parentalidade, restando claro que o ordenamento determina a dedicação paterna/materna na criação de seus filhos, dadas implicações individuais e sociais decorrentes de uma possível omissão. Conclui-se, destarte, que a atitude cuidadosa, sobretudo nas relações parentais, recebe estímulos vários pelo sistema jurídico, o que demonstra o valor que o Direito lhe resguarda. 1.4 A Constitucionalização do Direito Civil no âmbito familiar MARIA CELINA BODIN DE MORAES observa que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Direito Civil sofreu uma reviravolta para se adaptar à nova orientação que confere eficácia normativa ao texto constitucional. Esse novo rumo do constitucionalismo pós-moderno somente foi possível por dois motivos. Em primeiro lugar, em razão do afastamento da concepção de que a Constituição seria mera carta política e, em segundo lugar, através do desenvolvimento dos estudos da teoria geral do direito acerca da aplicação dos princípios constitucionais e da metodologia de sua ponderação37. Significa dizer que no pós-positivismo do Estado Democrático de Direito abandonou-se a legalidade em sentido estrito em direção a opções mais seguras, nas quais os princípios da democracia, da liberdade e da solidariedade são preponderantes. O regramento civil deve respeito à Lei Maior tanto do ponto de vista formal, quanto do ponto de vista material, devendo as normas infraconstitucionais refletir o valor sobre o qual se funda, qual seja o mais importante, o da dignidade da pessoa humana. 35 BODIN DE MORAES [1], op. cit., p. 195. POCAR e RONFANI apud BODIN DE MORAES [1]. Ibidem. p. 194. 37 BODIN DE MORAES, Maria Celina [2]. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In.: Direito, Estado e Sociedade – v.9, n. 29, p. 233 – jul/dez 2006. Disponível em: http://publique.rdc.puc-rio.br/direito/media/Bodin_n29.pdf Acesso: 11/11/2009. 36 16 A consagração da dignidade da pessoa humana como princípio elevado ao topo do ordenamento jurídico, além de provocar uma releitura das relações jurídicas, modificou a estrutura tradicional civilística na medida em que determinou o predomínio das relações jurídicas existenciais em detrimento das relações patrimoniais38. Verdadeiramente, o paradigma civil-constitucional hodierno reza pela conservação da humanidade. Trata-se de um cenário em que surge um humanismo renovado, cuja prioridade é a tutela das pessoas, principalmente das crianças e dos adolescentes, sendo abandonadas as interpretações normativas meramente individualistas. Como a tutela da pessoa é a prioridade da sistemática civil-constitucional, conclui-se que pretensões patrimonialistas ou individualistas sucumbem se em conflito com pretensões referentes à dignidade humana. Por esse novo contexto, verifique-se a imperiosidade de que seja explorada a dimensão atribuída pelo ordenamento jurídico vigente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, dada sua peculiar capacidade de conferir unidade valorativa à sistemática civil, bem como as implicações que o desrespeito a este princípio dão ensejo. CAPÍTULO II 2. Os Princípios no Direito de Família O positivismo jurídico não é capaz de acompanhar a realidade e a evolução social da família, pelo que esta, além de ter grande amplitude de possíveis relações, sofre mutações com facilidade tamanha que o regramento é incapaz de contemplar todas as hipóteses de situações possíveis, tão pouco de se adaptar a tempo. É por esse pretexto que, em muitos casos, as leis não trazem os elementos necessários e suficientes para que o mais próximo ao justo seja alcançado. Desse modo, os operadores do direito partem em busca de fontes outras, como os princípios gerais, a fim de encontrar aquilo que mais se aproxime do ideal de retidão. Nesse sentido, PEREIRA entende 38 Sobre esse assunto, BODIN DE MORAES disserta: “A transposição de normas diretivas do sistema de Direito Civil do texto do Código Civil para o da Constituição acarretou relevantíssimas conseqüências jurídicas que se delineiam a partir da alteração da tutela, que era oferecida pelo Código ao “indivíduo”, para a proteção, garantida pela Constituição, à dignidade da pessoa humana, elevada à condição de fundamento da República Federativa do Brasil. O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não-degradante, e não conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contém valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do Direito Civil, de um Direito que não mais encontra nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina [3]. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 74). 17 que são os princípios gerais do direito, dentre todas as demais fontes, o lugar em que se encontra a melhor viabilização para a adequação da justiça, especialmente no que corresponde ao ramo familiar39. O autor aduz ainda que os princípios exercem dupla função, sendo a primeira delas a função de otimização do direito. Em outras palavras, a sua força deve alcançar toda organização jurídica, inclusive preenchendo lacunas legislativas, independente de serem expressos ou não expressos. Já a segunda função dos princípios jurídicos é a de possuírem papel sistematizador do ordenamento, dando-lhe suscetibilidade de valoração, bem como dinamicidade, na proporção em que conferem axiologia à interpretação das regras positivas40. Com efeito, a utilização dos princípios como norte em casos concretos é o que afasta o engessamento e a sobreposição do direito sobre os fatos, conduzindo-nos à essência do direito, na direção de resguardar o sujeito, em detrimento de seu formalismo. Portanto, a partir da nova hermenêutica civil-constitucional, os princípios ganharam força normativa para apaziguar as relações familiares, sempre tendo em vista a pessoa humana. 2.1 Os Princípios em espécie 2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O princípio que mais importa ao presente estudo é o da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988, como fundamento da República Federativa do Brasil. Na atualidade é impossível pensar em direito sem considerar o conceito de dignidade da pessoa humana, pois hoje a dignidade é vista como um macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos os demais41. A palavra “dignidade” tem a raiz etimológica proveniente do latim dignus – aquele que merece estima e honra, aquele que é importante. É o que distingue os seres humanos dos demais, sendo a dignidade inerente à espécie humana como um todo42. A dignidade da pessoa humana é um conceito que tomou os contornos presentes em 1788 através do pensamento de IMMANUEL KANT, em Fundamentação da 39 PEREIRA, Rodrigo [1] op. cit. p. 36. Idem, ibidem, mesma página. 41 PEREIRA, Rodrigo [1]. op. cit. p. 94 42 BODIN DE MORAES [3], op. cit.. p. 77. 40 18 Metafísica dos Costumes e Outros Escritos43. Nessa obra, o filósofo estabeleceu a moralidade em bases novas através do que chamou de “imperativo prático”, que determina aos sujeitos que ajam de maneira tal que possam usar a humanidade, própria e alheia, sempre e simultaneamente, como um fim e nunca simplesmente como um meio44. É que, a partir do raciocínio kantiano, o homem passou a ser considerado como um ser dotado de valor intrínseco, de dignidade, pois “o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade45”. Sobre a temática, a Ministra CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA considera a dignidade como o pressuposto da idéia de justiça humana. Explica que assim o faz por entender a dignidade como ditadora da condição superior do homem como ser de razão e de sentimento e que, por sê-lo assim, independe de merecimento pessoal ou social. Sintetiza elucidando que a dignidade é inerente à vida e um direito pré-estatal46. Para KANT, no mundo social existem duas categorias de valores, o preço e a dignidade. Na proporção em que as coisas têm um preço, um valor exterior (de mercado), as pessoas tem dignidade, cujo valor é interior (moral) e de interesse geral47. Sendo o valor moral infinitamente superior ao valor de mercadoria, então impõe-se o “imperativo prático” segundo o qual as pessoas devem agir de tal sorte que seja considerada a humanidade, própria e alheia, sempre e simultaneamente como um fim e jamais como um meio48. Conclui-se, por tal noção filosófica do que seja dignidade, que se trata de tudo que não tenha preço e que não possa ser objeto de troca, porquanto inestimável e indisponível49. É a dignidade que posiciona o homem em uma condição superior, como ser de 43 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2005. 44 Idem, ibidem, p. 59. 45 Idem, ibidem, p. 65. 46 ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. O princípio da dignidade humana e a exclusão social. In.: Anais do XVII Conferência nacional dos Advogados – Justiça: realidade e utopia. Brasília: OAB, Conselho Federal, v. I, 2000. p. 72. 47 Efetivamente, é o raciocínio do filósofo alemão na célebre passagem: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem dignidade”. (KANT, op. cit., p. 65) 48 PEREIRA DA COSTA, Maria Isabel. Família: Do Autoritarismo ao Afeto – Como e a Quem Indenizar a Omissão do Afeto? In.: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 7, n. 32, out/nov., Porto Alegre: Síntese, IBDFAM 2005, p. 55. 49 CANEZIN, Ibidem, mesma página. 19 razão e de sentimento50, motivo pelo qual é papel do julgador e do legislador ter em vista o valor humano no exercício de suas atribuições. Tendo em conta que o princípio da dignidade da pessoa humana assenta o sujeito de direito e a sua dignidade como o núcleo de uma teoria de justiça, em que o Direito é considerado o instrumento de ordenação racional indissociável da realização do justo, não é razoável que instituições humanas sejam constituídas sem que a pessoa humana tenha a sua dignidade resguardada. Com efeito, PEREIRA assegura que como a dignidade do homem é intangível, é papel do Poder Público respeitá-la e protegê-la51. O autor expõe ainda que a dignidade é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar a funcionalização de todos os institutos jurídicos condicionada à pessoa humana. E é nesse mote que o Estado assume o papel de protetor do respeito à dignidade da pessoa humana, tanto do ponto de vista de conceder direitos, quanto de garantir que estes não sejam violados. Conforme já dito, uma vez que a família é a base da sociedade, e também elemento indispensável ao desenvolvimento do ser humano, a organização estatal deve ser orientada para livrar seus membros de quaisquer medidas que venham a supri-los da convivência em ambiente familiar permeado de valores tais como o afeto e o cuidado. Dizemos isso por entendermos que a supressão desses valores, principalmente nos primeiros estágios de vida da pessoa, reduz as possibilidades de que essa pessoa desenvolva todas as suas capacidades psicofísicas. Como crianças e adolescentes são vulneráveis e dependem de outros ao seu redor a fim de que possam crescer física e mentalmente, daí a importância desses valores e a relevância dos genitores no papel estruturante da personalidade da prole. Portanto, o interesse público na conservação dos papéis paterno e materno reside na repercussão do exercício das atividades de cuidado e afeto precípuas do encargo dos genitores, em favor da dignidade dos menores. 2.1.2 O Princípio da Paternidade e da Maternidade Responsável O princípio da paternidade ou da maternidade responsável decorre do imperativo constitucional, no que toca o dever de se fazer um planejamento familiar, preexistente ao próprio nascimento da criança52. 50 PEREIRA, Rodrigo [1], op. cit., p. 95. Idem, ibidem, p. 99 52 PEREIRA DA COSTA, op. cit., p. 52. 51 20 A responsabilidade paterna ou materna não se esgota neste planejamento e na conscientização da importância do instituto. Ademais disso, a paternidade/maternidade responsável pressupõe o cumprimento das obrigações materiais e morais para com os filhos, a fim de propiciar o seu desenvolvimento regular. Com efeito, o normal desenvolvimento da pessoa somente é possível se ela tiver condições dignas de sobrevivência, motivo pelo qual não basta que sejam destinados recursos materiais a fim de criar e educar a prole, há que respeitá-la em sua dignidade. Isso porque pais e a mães responsáveis têm consciência de que o inadequado exercício de suas funções interfere de maneira prejudicial ao crescimento dos infantes. De fato, o desprezo, a indiferença e a falta de afeto interferem na formação da personalidade e, conforme apontado por MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA, resultam como conseqüência em uma pessoa agressiva, insegura, infeliz, o que é danoso não só para o indivíduo, como também para toda a sociedade, dada a maior criminalidade de indivíduos nessas condições53. A paternidade/maternidade responsável, portanto, se manifesta na consciência dos pais acerca dos encargos decorrentes da decisão de se ter um filho e na efetiva disposição do suporte material, moral, espiritual e afetivo para o pleno desenvolvimento da personalidade da prole, formando indivíduos aptos ao convívio social. 2.1.3 O Princípio da Afetividade O princípio da afetividade é um dos desdobramentos do princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, na medida em que toda a orientação jurídica desenvolve-se no sentido de garantir ao indivíduo uma vida digna, atribuindo valor jurídico ao afeto, sobretudo nas relações entre pais e filhos. Conforme destacado por PEREIRA, a família até o século XIX era claramente patriarcal e estruturava-se em torno do patrimônio, sendo um agrupamento de indivíduos cuja razão de ser era precipuamente de cunho econômico54. Com a nova ordem civilconstitucional, a estrutura familiar deixou de lado as motivações econômicas, que anteriormente tinham importância primária nessas relações, dando lugar a elos afetivos, justificados pela solidariedade mútua55. 53 Idem, ibidem, p. 53. PEREIRA, Rodrigo [1], op. cit., p. 179. 55 Realmente, sobre o novo escopo das relações familiares PAULO LUIZ NETTO LÔBO sintetiza desse modo: “A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função 54 21 É o princípio da afetividade que confere substrato material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do artigo 227 da Carta Magna. É dito isso, pois, a convivência familiar é um direito da criança e do adolescente, no melhor interesse desses menores, bem como dever dos pais para com sua prole, tendo em vista a paternidade/maternidade responsável. A ratio desse dispositivo está no reconhecimento da família como o locus de realização do indivíduo, onde ele inicia seu desenvolvimento pessoal, seu processo de socialização, tomando suas primeiras lições de cidadania56. A convivência em ambiente familiar, permeado de afeto, é de especial essencialidade na vida dos menores; uma vez que, dada a sua peculiar condição de seres em desenvolvimento, merecem dispor do apoio e do afeto de seus pais a fim de que tenham uma formação adequada. No que toca os deveres paternos quanto aos filhos, este princípio é corolário do princípio da paternidade/maternidade responsável, pelo que determina que aos pais cumpre realizar o planejamento familiar. Já em relação aos filhos, o respeito ao princípio da afetividade, quanto à convivência familiar, é o que concretiza o melhor interesse dos menores, porquanto o afeto seja imprescindível em sua formação. Dessa maneira, a partir dos fenômenos da despatrimonialização, decorrente da repersonalização das relações privadas, o foco das relações jurídicas passou a ser a pessoa humana, a realização dos membros da família e o relacionamento baseado no afeto, na importância da convivência familiar e na solidariedade mútua. 2.1.4 O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é um resultado da nova família cuja relação está pautada na afetividade e no companheirismo. Nesse contexto, o menor ganhou destaque especial pelo fato de ser imaturo e vulnerável, precisando que os pais o conduzam em direção à autonomia57. Este princípio tem suas raízes na doutrina da proteção integral, que segue as orientações do já mencionado artigo 227 da Lei Maior, segundo o qual é assegurado como básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política religiosa e procracional feneceram, desapareceram, ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua”. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. [1] A repersonalização das relações de família. Revista brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 6, n. 24, p. 155, jun/jul 2004). 56 PEREIRA, Rodrigo [1], op. cit. p. 182 57 PEREIRA, Rodrigo [1], op. cit. p. 127 22 dever dos pais, do Estado e da sociedade, e também como direito fundamental dos infantes, o convívio familiar, na mesma medida em que assegura os direitos à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito e à dignidade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. De acordo com MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA, a proteção integral é um conceito pós-moderno, por tratar a criança e o adolescente em sua integridade, deliberando a convivência familiar, bem como a comunitária, como um direito fundamental dessas pessoas em desenvolvimento58. O especial apreço conferido aos infantes funda-se no reconhecimento de que a família tem por objetivo a promoção do menor, enquanto pessoa frágil e vulnerável, para que bem desenvolva suas potencialidades no tocante a sua educação, formação moral e profissional. Seguindo a orientação constitucional, foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 1º do ECA elucida que suas disposições tratam da efetivação da doutrina da proteção integral. Dentre os direitos garantidos àqueles que se submetem ao ECA, está o direito à saúde. Conforme as normas do Estatuto, a saúde garantida aos menores abrange não só a física, alcançando a saúde emocional e espiritual. A preservação da saúde mental das pessoas em desenvolvimento – isto é, de sua integridade psicofísica - tem por escopo garantir a formação de uma personalidade sadia de um indivíduo realizado e integrado à sociedade. Nesse diapasão, note-se que cabe aos pais, no cumprimento dos seus deveres legais, proteger a criança e o adolescente de forma integral, não omitindo afeto e cuidado no exercício da paternidade, porquanto sejam tais valores elementos indispensáveis à formação plena da personalidade das pessoas em desenvolvimento. 2.2 A ponderação dos princípios jurídicos na perspectiva civil-constitucional É certo, como defende RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, que vivemos em uma sociedade pluralista e multicultural e que, por isso, a Carta Magna muitas vezes contempla interesses contrapostos59. Em várias situações jurídicas subjetivas lados em conflito parecem ter alguma orientação que venha a assegurar o ponto de vista de cada qual, sugerindo um conflito 58 59 COSTA, op. cit. p. 58 PEREIRA, Rodrigo [1], op. cit., p. 33. 23 intransponível. Todavia, a solução dessa circunstância subjetiva encontra o interesse que merece proteção jurídica através da ponderação dos princípios que circundam o caso. Sendo inevitável o choque de interesses, representados pelos princípios em jogo, cuidou-se de buscar vias que solucionem a suposta encruzilhada. De tal maneira, estudos jurídico-filosóficos elaborados por ROBERT ALEXY, em Teoria dos Direitos Fundamentais60, trouxeram à baila a corrente de pensamento que resolve a colisão de princípios jurídicos através da ponderação, feita pelo intérprete, dos bens jurídicos em jogo. Para ALEXY: Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido-, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições, a precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso tem precedência61. Assim, havendo uma situação jurídica subjetiva, na qual dois ou mais princípios entram em conflito, é por meio do sopesamento entre os interesses conflitantes que será resolvida a controvérsia e decidido o princípio e interesse prevalecente no caso concreto62. Nesse viés, percebemos que o “fiel da balança” tende a apontar em direção ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista a pessoa como centro do ordenamento jurídico, ainda que não exista uma hierarquia entre os princípios jurídicos constitucionais. A respeito desse tema, PEREIRA comenta que não se proclama a hierarquia absoluta entre princípios, devendo-se observar a ascensão da dignidade humana na ordem jurídica, tendo em conta a prevalência do sujeito em detrimento do objeto nas relações jurídicas63. Dito isso, no caso de ocorrer uma colisão entre princípios, é papel do intérprete buscar a melhor forma de alcançar a dignidade da pessoa humana. Desse modo, no caso concreto, em havendo choque, a tendência é que o princípio a ceder em face de outro 60 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução da 5ª ed. alemã por Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008. 61 Idem, ibidem, p. 93. 62 Idem, ibidem, p. 95. 63 PEREIRA [1], op. cit., p. 35 24 será aquele que se relacionar com a dignidade humana em menor amplitude. Logicamente, aquele que estiver mais ligado à dignidade tenderá a prevalecer. Considerando que diversos são os setores da ordem jurídica que são alcançados pelo valor da dignidade, é imprescindível que sejam traçados os corolários desse princípio constitucional, sob pena de atribuir-lhe um grau de abstração tamanho que impossibilite sua aplicação64. Para tanto, desdobra-se o substrato material da dignidade em quatro postulados. São eles: a) o reconhecimento, por parte do sujeito moral (ético), de que existem outros sujeitos, iguais a ele; b) a consideração de que esses sujeitos iguais são merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; c) a ciência de que ele, como sujeito, é dotado de vontade livre, de autodeterminação; d) e, por fim, estar convencido de que ele é parte do grupo social, o que o garante de não vir a ser marginalizado. Esta elaboração tem por corolários os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica, da liberdade e da solidariedade65. Importa tal decomposição a fim de se mostrar que, em havendo conflitos entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, em que cada uma delas tem por amparo um desses princípios de igual importância hierárquica, então “o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, a favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade humana66”. Em outras palavras, cumpre demonstrar que, embora possa haver um conflito entre duas situações subjetivas amparadas pelos princípios que conferem substrato material ao da dignidade humana, tal conflito é apenas aparente. Em verdade, se corretamente for feita a ponderação entre esses subprincípios no caso concreto, então é possível determinar aquele que prevalecerá. Primeiramente, sobre o princípio da igualdade, este deve ser analisado sob seus dois aspectos, formal e material. Do ponto de vista formal, primeiro a ser concebido, o princípio reza pela garantia de que o sujeito não venha a receber qualquer tratamento discriminatório, tendo direitos iguais aos de todos os demais. Quanto à feição material, as diferenças entre os sujeitos de direito são reconhecidas, de modo a lhes conferir tratamento desigual na medida de suas desigualdades. 64 BODIN DE MORAES, [3], op. cit., p. 84. Idem, ibidem, p. 85. 66 Idem, ibidem, mesma página. 65 25 Acerca do princípio de proteção à integridade psicofísica da pessoa humana, contemplavam-se, tradicionalmente, apenas os direitos de não ser torturado e de ser titular de garantias penais. Todavia, na esfera cível moderna, trata-se também da garantia de diversos direitos da personalidade, compreendendo o “direito à saúde” em sentido amplo, que abrange o bem-estar psicofísico e social67. O termo “integridade” vem do latim integritas, que significa inteireza, completude, totalidade. É um estado de característica daquilo que está inteiro, que não sofreu qualquer diminuição. Transportada essa noção ao ordenamento jurídico, como princípio, a integridade psicofísica diz respeito ao direito de não ter a harmonia das capacidades físicas e psíquicas lesionadas ou diminuídas. A respeito do princípio da liberdade e da autonomia privada, este passou por uma grande mudança desde as primeiras décadas do século XX. Isso porque, na época liberal, este princípio tinha como valor fundamental o indivíduo livre e igual, submetido à sua própria vontade. Naquele cenário, o direito cuidava de regular situações precipuamente patrimoniais e as restrições à liberdade ampla do indivíduo apenas existiam para proteger as liberdades dos demais particulares68. Na medida em que o Direito passou a cuidar de relações extrapatrimoniais, essa conjuntura deu lugar a uma nova, segundo a qual a autonomia privada encontra limites na ordem pública. É que, antes as limitações às situações subjetivos individuais constituíam exceção, passando, no quadro contemporâneo, a receber a tutela do ordenamento se e enquanto estiverem não apenas em conformidade com a vontade do titular, mas também se estiverem em sintonia com o interesse social69. Por fim, quanto ao direito-dever de solidariedade social, a concepção humanista, decorrente do pós-guerra no século XX, veio a combater todas as formas de agressão contra a coletividade. Por solidariedade, deve-se entender, em última análise, como “o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados70”. 67 Idem, ibidem, p. 93 e 94. Acerca da matéria, BODIN DE MORAES elucida: “A autonomia dos privados se contrapunha à ordem pública e/ou aos interesses da coletividade, os quais somente em pouquíssimos setores, considerados estratégicos, podiam prevalecer sobre os interesses privados. Tal concepção, denominada liberalismo jurídico, apresentava o Direito privado como “o coração de toda vida jurídica” e o Direito Público uma “leve moldura que devia servir de proteção ao primeiro”. (Idem, ibidem, p. 104). 69 Idem, ibidem, p. 106. 70 Idem, ibidem, p. 114 68 26 Destaque-se o caráter inovador do princípio da solidariedade esculpido no imperativo constitucional, a ser levada em conta na elaboração legislativa, na execução de políticas públicas e, também, na interpretação e aplicação do direito por seus operadores e demais destinatários71. Na realidade, o princípio da solidariedade social tem força normativa capaz de tutelar o respeito a cada um do grupo, sendo, inclusive, “fundamento daquelas lesões que tenham no grupo sua ocasião de realização72”. Nesse ponto, levantamos a temática da contraposição entre dois dos princípios corolários da dignidade, quais sejam o direito de liberdade da pessoa e o direito de solidariedade social. A primeira vista, são incompatíveis, de modo que em situações subjetivas possam facilmente entrar em colisão. A solução do suposto conflito entre princípios se dá através da ponderação entre eles, tendo em mente o fim último do ordenamento, que é a realização da dignidade humana. Feito isso, ora um princípio prepondera, ora outro, a depender do caso concreto73. Na temática proposta no presente estudo, verificaremos que esses princípios entram em conflito nas ações que versam sobre a condenação a título de danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Uma situação subjetiva passível de reparação deve estar amparada em, ao menos, um dos quatro princípios corolários da dignidade humana, quais sejam igualdade, liberdade, integridade psicofísica e direito-dever de solidariedade social, para que seja possível conferir tutela jurisdicional dos danos à pessoa humana. Caso nessa situação subjetiva mais de um desses em princípios estejam em conflito, há que ser feita a ponderação entre eles no caso concreto para que seja encontrada a solução mais justa, mais próxima da proteção à dignidade74. Em relação às crianças e aos adolescentes e à garantia constitucional ao convívio familiar em ambiente permeada de afeto, vislumbramos na esfera dos menores a afronta ao seu bem-estar psicofísico e social, pautado no princípio da integridade psicofísica, além do desrespeito, tocante ao princípio da solidariedade familiar, garantia de que o sujeito 71 Idem, ibidem, p. 110 e 111. Idem, ibidem, p. 116. 73 Se assim não fosse, a excessividade de imposição da solidariedade anularia a liberdade; enquanto a liberdade sem arbítrios seria incompatível com a solidariedade. Em verdade, a ponderação, se bem feita, permite que os conteúdos desses princípios tornem-se complementares, pois, quando regulamentada a liberdade em prol da solidariedade social, restam reduzidas as desigualdades, possibilitando o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da comunidade. (Idem, ibidem, p. 108). 74 Idem, ibidem, p. 117 72 27 não seja marginalizado. Já na esfera dos pais omissos em prover afeto à prole, verifica-se o princípio da liberdade/autonomia. Com tal atitude omissiva, o pai ou a mãe que abandona afetivamente o menor desrespeita, além da dignidade da pessoa do filho, princípios específicos do Direito de Família, como o da paternidade/maternidade responsável e o da afetividade, em que o agrupamento familiar se dá com base planejamento familiar, no afeto e na solidariedade entre seus membros. Nesse contexto, há que se verificar a possibilidade dos danos sofridos por tais “grandes traumatizados”, decorrentes da inatividade dos pais em prover afeto à sua prole, de serem enquadrados dentre os danos que geram a obrigação de compensar a vítima a título de danos morais. Isto é, cumpre examinar se estão os danos por abandono afetivo nas relações paterno-filiais entre os danos morais indenizáveis, levando em conta as construções doutrinárias e jurisprudenciais hodiernas sobre o tema posto. CAPÍTULO III 3. A Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo nas Relações PaternoFiliais 3.1 Noções Gerais de Responsabilidade Civil 3.1.1 Conceito e Finalidade da Responsabilidade Civil RUI STOCCO traz o significado etimológico da palavra responsabilidade, afirmando que a noção do que ela exprime pode ser haurida de sua própria origem, do latim respondere, responder a alguma coisa. Ou seja, é a necessidade de que alguém dê uma resposta, por ser responsável pelo advento de atos danosos, próprios ou alheios75. De acordo com os ensinamentos de SERGIO CAVALIERI FILHO, o objetivo principal da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito através do estabelecimento de deveres jurídicos. Tais deveres dependerão da natureza do direito a que correspondem, bem como das pessoas a quem atingem. A imposição desses deveres se dá em virtude da necessária convivência social e importam na criação de obrigações76. 75 STOCCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 5ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 89. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Atlas S.A, 2009, p. 1-2. 76 28 Os deveres impostos pelo ordenamento jurídico dividem-se em deveres originários e deveres sucessivos. Os deveres jurídicos originários dizem respeito à conduta positivada no ordenamento, a qual o sujeito deve seguir. Caso não o faça, em acarretando danos a outrem, os deveres originários impõem o dever sucessivo de reparação do dano77. É neste mote que surge a noção de responsabilidade civil, segundo CAVALIERI FILHO, que a conceitua sinteticamente como o “dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário78”. A relação jurídica da qual decorre o dever originário a que se alude pode tanto advir de um contrato (que enseja a responsabilidade contratual), quanto de uma lei ou do ordenamento (que dá origem à responsabilidade extracontratual). Falaremos no presente estudo da responsabilidade civil extracontratual, mais especificadamente da subjetiva. Os fundamentos legais da responsabilidade civil subjetiva estão previstos nos artigos 186 e 927, do Código Civil de 2002. O primeiro dispõe que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O segundo determina o seguinte: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Em outras palavras, o civilmente responsável tem a obrigação, imposta legalmente, de indenizar a vítima do dano a que ele deu causa. É esta indenização, pois, a finalidade precípua da noção de responsabilidade. À primeira vista, o fim da obrigação de indenizar é colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do fato danoso79. Esta pretensão de obrigar o agente causador do dano a repará-lo tem por inspiração sentimento de justiça tal que restabeleça o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre vítima e agente80. Importante destacar que o dano pode ser extrapatrimonial ou patrimonial. Nos casos em que o dano é extrapatrimonial, esse equilíbrio não diz tanto respeito à natureza econômica, vez que a condenação por responsabilidade civil não é de cunho indenizatório, mas sim compensatório. Assim, propõe-se retribuir à vítima do dano moral em pecúnia de alguma maneira que possa a dor sentida ser compensada. 77 Idem, ibidem, mesma página. Idem, ibidem, mesma página. 79 Idem, ibidem, p. 4. 80 Idem, ibidem, p. 13. 78 29 3.1.2 Pressupostos da Responsabilidade Civil Subjetiva O conjunto de pressupostos apontados comumente pela doutrina, que caracterizam o dever de indenizar por responsabilidade civil subjetiva, são: a conduta culposa ou dolosa do agente, o dano e o nexo causal entre este dano e o ato81. Primeiramente, acerca da noção de ato, pela redação do artigo 927, CC, o ato, para que ensejasse o dever sucessivo de indenizar, deveria ser ilícito. No entanto, a noção de ato ilícito foi abandonada em favor do que entendemos hoje por dano injusto82, de modo que a redação deste artigo não pode ser considerada em sua literalidade. Esse dano, a princípio, era conceituado como sendo a efetiva diminuição do patrimônio da vítima. Contudo, com o advento da noção de danos morais, esse conceito foi modificado para considerar também os danos de ordem extrapatrimonial. Hoje, dano é visto como “a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima83”. Logo, para o ordenamento atual, o dano é a efetiva lesão a um bem jurídico, podendo ser este bem de ordem tanto patrimonial como moral. Sobre a conduta, cujo conceito é “comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo conseqüências jurídicas84”. Note-se que a conduta pode ser tanto uma ação, sendo esta um comportamento comissivo e positivo, quanto uma omissão, que é a inatividade ou abstenção de uma conduta devida. 81 Idem, ibidem, p. 18 ORLANDO GOMES, há cerca de vinte anos, já anunciava que uma das grandes novidades no campo teórico da responsabilidade civil foi o giro conceitual de ato ilícito para a noção de dano injusto. Antes, o ato ilícito desdobrava-se em dois elementos, objetivo e subjetivo. O elemento objetivo consistia na violação de um direito legal que atribuísse direito subjetivo a particular, enquanto o subjetivo dizia respeito à culpabilidade na atuação. Os dois elementos conjuntamente considerados eram vistos como o fato gerador da responsabilidade. Essa construção lógica não mais prospera na perspectiva atual e foi TUCCI quem primeiro visualizou essa alteração. A perspectiva da responsabilidade civil mudou, deixando de ter o foco no agente causador do dano para a pessoa que sofre o dano. Logo, o comportamento reprimido na lei civil não é mais somente a atuação antijurídica, reprime-se também a injustiça do dano (GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In.: Estudos em homenagem ao Professor Sílvio Rodrigues. Prefácio e organização José Roberto Pacheco di Francesco. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 292 e ss.). A expressão “dano injusto” tem origem na doutrina da Itália e está prevista no artigo 2.043 do Código Civil de 1942 daquele país, cuja redação é “Qualinque fatto doloso o colposo, che cogiona ad altri um danno ingiusto, obbliga colui che há commesso il fatto a risarcire il danno” (BODIN DE MORAES [3], op. cit., p. 177. A autora traduz o artigo assim: “Qualquer fato doloso ou culposo que cause a outros um dano injusto obriga quem cometeu o fato a ressarcir o dano.”). Nesse diapasão, GOMES define dano injusto como “a alteração in concreto de qualquer bem jurídico do qual o sujeito é titular”(GOMES, op. cit. p. 192), prescindindo de que tal alteração seja resultado de uma conduta ilícita. Entre tais bens jurídicos, o autor elenca direitos da personalidade, certos direitos de família e os interesses legítimos. Sendo assim, na busca de critérios mais amplos de proteção, que englobassem interesses dignos de tutela, e não somente direitos subjetivos, modernamente desvinculou-se da idéia da atuação antijurídica para a idéia da injustiça do dano (BODIN DE MORAES [3], Ibidem, p. 178) . 83 Idem, ibidem. p. 71. 84 CAVALIERI FILHO, op. cit.,p. 24. 82 30 A omissão torna-se juridicamente relevante quando o omitente responsável tinha dever jurídico de agir. Neste caso, não impedir o resultado tem a mesma conseqüência prática de permitir que a causa opere, aceitando que o resultado se concretize85. A conduta humana pode se dar por dolo ou por culpa. SÍLVIO RODRIGUES vê o dolo como a ação ou omissão do agente que antevê o dano e deliberadamente prossegue com o propósito mesmo de alcançar o resultado danoso86. Relativamente à culpa em sentido estrito, pela concepção normativa, caracteriza-se esta como sendo uma omissão de diligência exigível, que nem sempre coincide com uma violação da lei87. O Desembargador CAVALIERI FILHO destaca que a vida em sociedade obriga o homem a viver de modo a não causar dano a ninguém, sendo esta a premissa do dever de cuidado objetivo88. Este dever compreende dois momentos. O primeiro desses momentos é a compreensão de qual seja o comportamento adequado para atingir o fim que lhe é proposto, fazendo juízo de ponderação entre as vantagens e os inconvenientes das diversas atuações possíveis. O segundo momento, após o primeiro de compreensão e ponderação, abrange a efetiva atuação nos moldes do comportamento adequado89. A inobservância do dever de cuidado, quando o agente devia e podia agir de outro modo, causando dano, é que caracteriza a conduta culposa. Diferentemente do que ocorre no dolo, não se procede com intuito de causar o ato ilícito. Em verdade, atua-se de maneira lícita; mas, por adotar uma conduta inadequada aos padrões sociais, que poderia evitar, acaba causando um dano. Tal dano poderá ser fato gerador de responsabilidade. A conduta adequada pode estar prevista na lei ou não, haja vista a incapacidade do ordenamento de prever todas as hipóteses de violação de cuidado das atividades humanas. É por isso que, em alguns casos, há culpa mesmo que não haja um dever previsto em texto expresso de lei ou regulamento. Nesse sentido, o ordenamento impõe ao homem comum o dever jurídico genérico para que ele aja de modo a não violar o direito de ninguém, em prol da harmonia social. 85 Por esta razão, CAVALIERI FILHO assegura que o dever de cuidado enseja a Idem, ibidem. p. 24 Idem, ibidem. p. 31 87 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 31. 88 -se que o dever de cuidado objetivo tem por padrão o homem médio, levando em consideração os conhecimentos e a capacidade ou aptidão exigíveis das pessoas (Idem, ibidem, p. 33). 89 Idem, ibidem, mesma página. 86 31 responsabilidade civil subjetiva, tendo em vista que há responsabilização na infringência ao dever jurídico genérico preexistente90. O último pressuposto da responsabilidade civil a ser tratado antes de adentrar no dano em si, partindo para o dano moral, é o nexo causal. Antes mesmo da discussão acerca da conduta do agente ter sido com dolo ou culpa, cumpre analisar se com sua conduta ele deu causa do resultado dano. Na preleção de SERPA LOPES, “nexo causal diz respeito às condições mediante as quais o dano deve ser imputado objetivamente à ação ou omissão de uma pessoa91”. Por nexo causal, requer-se que haja uma relação necessária entre a conduta do agente e o dano sofrido pela vítima, ou seja, que exista entre ambos uma relação de causa e efeito. AGUIAR DIAS determina categoricamente que é preciso demonstrar sempre no intento de uma ação indenizatória que, sem o fato alegado, o dano não se teria produzido92. Diferentemente do Direito Penal, que adotou a teoria da equivalência dos antecedentes causais, para a qual “causa é toda ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, sem distinção da maior ou menor relevância que cada uma teve93”; CAVALIERI FILHO sustenta que o Direito Civil adotou a teoria da causalidade adequada, em que “nem todas as condições que concorrem para o resultado são equivalentes, mas somente aquela que foi mais adequada a produzir concretamente o resultado94”. Ou seja, na seara da Responsabilidade Civil, será verificado se a causa é ou não idônea a produzir o dano, somente sendo causa aquilo que for adequado a produzi-lo. Existem causas que excluem o nexo causal e que, por conseguinte, são aptas a excluir a responsabilidade. A ratio da concepção dessas excludentes é que ninguém pode responder por um resultado a que não tenha dado causa. Em resumo, “causas de exclusão do nexo causal são, pois, casos de impossibilidade superveniente do cumprimento da obrigação não imputáveis ao devedor ou agente95”. 3.2 Danos Morais ou Danos à pessoa? Óbice considerável à aceitação dos danos morais como danos ressarcíveis em pecúnia diz respeito à sua própria nomenclatura. Tal designação dá ensejo à discussão 90 Idem, ibidem. p. 34 SERPA LOPES, Miguel Mário de. Curso de Direito Civil. 8° ed, VI. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, p. 197. 92 AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. 11ª ed., revista, atualizada e ampliada de acordo com o Código Civil de 2002 por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 24. 93 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 47 94 Idem, ibidem. p. 48. 95 Idem, ibidem. p. 64 91 32 acerca do vínculo entre Moral e Direito96, considerada hoje aquela fora do domínio deste. Normalmente, o termo “moral” é vinculado a conceitos éticos e a costumes, sendo dificultoso ao cérebro não realizar essa analogia apriorística97. No Brasil, dano moral e dano extrapatrimonial são tratados como sinônimos, sendo gênero de que surge a espécie “danos à pessoa”. Os danos relativos à pessoa são os que reduzem-na à condição de objeto, não respeitando seu valor intrínseco, sua dignidade. JUDITH MARTINS-COSTA afirma que “danos à pessoa constituem fattispecie em construção”, termo este oriundo da doutrina italiana, mais especificamente de GUIDO GENTILE. Seriam os danos incidentes em qualquer aspecto do ser humano considerado em sua integridade psicossomática e existencial98. Embora para o conceito que adotamos de danos morais, como lesão à dignidade humana99, seja o termo “danos à pessoa” mais adequado, por apresentar maior rigor técnico e co-relação com o dano versado, entendemos que não há justificativa para modificação do termo no ordenamento, se superadas as dificuldades semânticas. Logo, concordamos com ANTÔNIO JEOVÁ SANTOS no que se posiciona para manter a expressão “danos morais100” no ordenamento jurídico brasileiro, muito embora não tenhamos escolhido este termo para designar o trabalho aqui realizado. Isso porque a terminologia já foi disseminada e aceita pela grande maioria da doutrina, restando apenas à pequena parte da jurisprudência o cometimento de equívocos ao relacionar os danos morais à ética e aos costumes. Sendo assim, no presente estudo usaremos indiscriminadamente tanto o termo danos morais, como o termo danos à pessoa, como sinônimos que indicam lesões extrapatrimoniais. 3.3 A Problemática da Conceituação dos Danos Morais Certamente, na ocasião de se adentrar no estudo de qualquer instituto, o ideal é que, a priori, seja apresentado o conceito do objeto de análise. A importância disso é 96 O acórdão de apelação cível no. 2004.001.13664 do TJRJ negou intentada indenizatória por danos morais decorrentes de abandono afetivo parental tendo em conta que há distinção entre as normas jurídicas e a moral, advertindo que essa seria uma das primeiras lições ministradas na faculdade de Direito. TJRJ, AC 2004.001.13664, 4ª C. Cível, Rel. Dês. Mário dos Santos Paulo, J. 08.09.2004. 97 SANTOS, Antônio Jeová. Danos Morais Indenizáveis. 2ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Lejus, 1999, p. 86. 98 MARTINS-COSTA, JUDITH. Os danos à pessoa e a natureza de sua reparação. In.: A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitas fundamentais constitucionais no direito privado. Judith Martins-Costa (org.) São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002, p. 417. 99 Adiante, esclareceremos que hoje existem quatro conceitos aceitos na doutrina de danos morais. São eles: a) danos não patrimoniais; b) os efeitos extrapatrimoniais da lesão; c) danos aos direitos da personalidade e d) danos à dignidade humana. Sobre isso, v. item 3.3 infra. 100 SANTOS, op. cit., p. 92 33 dar uma noção ao leitor desavisado acerca do que será abordado, bem como estabelecer uma linha de raciocínio do enfoque a ser utilizado. Ocorre que, atualmente, o problema dos danos morais reside exatamente neste ponto, vez que não há uma conceituação única e pacífica dessas lesões. A falta de um conceito assentado na doutrina e jurisprudência para as lesões morais é um dos maiores desafios enfrentados pelos operadores do Direito no campo da Responsabilidade Civil; pois, em verdade, não havendo uma conceituação uníssona, é de todo problemática a determinação de quais entre os danos sejam os indenizáveis. Inclusive, CAVALIERI FILHO ironiza ao afirmar que “nesse particular, há conceitos para todos os gostos101”. O referido autor elenca algumas tentativas de definição, que são por ele negadas, para depois dissertar sobre os conceitos que lhe parecem mais aceitáveis. A primeira delas é criação da doutrina que parte de um conceito negativo de danos morais, considerando todos os que não tiverem caráter patrimonial ou, na concepção de RENÉ SAVATIER, “dano moral é qualquer sofrimento que não é causado por uma perda pecuniária102”. A segunda delas aborda um conceito subjetivo para o qual dano moral é dor, vexame, sofrimento, desconforto, humilhação ou, em última palavra, dor da alma. Ou seja, para essa doutrina, o dano moral é o “efeito não-patrimonial da lesão”, não se restringindo aos danos a direitos da personalidade, que é o que parte da doutrina defende, como falaremos adiante. A noção subjetiva sustenta que “a distinção entre dano patrimonial e dano moral não decorre da natureza do direito, bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter de sua repercussão sobre o lesado103”. Nesse sentido, orientam-se a doutrina e a jurisprudência majoritárias, valendo citar MARIA HELENA DINIZ, SÍLVIO RODRIGUES, J. DE AGUIAR DIAS104 . A fim de minorar tal subjetivismo, a abrangência desta definição costuma ser mitigada para considerar apenas danos graves, de acordo com o voto proferido pelo MINISTRO FRANCISCO REZEK, em que o Eminente magistrado, tentando conceituar dano moral, assim ponderou: Penso que o que o constituinte brasileiro qualifica como dano moral é aquele dano que se pode depois neutralizar com uma indenização de índole civil, traduzida em dinheiro, embora a sua própria configuração não 101 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 79 SAVATIER apud PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 54. 103 BODIN DE MORAES [3], op. cit., p. 156. 104 Idem, ibidem, mesma página. 102 34 seja material. Não é como incendiar-se um objeto ou tomar-se um bem da pessoa. É causar a ela um mal evidente105. Tecendo críticas sobre essas duas vertentes, em relação ao conceito negativo, CAVALIERI FILHO afirma que o critério conceitual por exclusão, na realidade, nada diz106. Realmente, não há como estabelecer quais seriam os danos indenizáveis a partir da idéia de que são danos extrapatrimoniais tão somente. Já em relação ao conceito subjetivo107, esse mesmo autor diz que os sentimentos descritos (quais sejam, dor, vexame e sofrimento), que definiriam os danos morais, podem ser conseqüências do dano, mas não causas, afirmando existir uma ofensa à dignidade da pessoa humana sem tais resultados, bem como a existência de tais sentimentos sem violação ou ofensa à dignidade. Para exemplificar esse entendimento, compara: “assim como a febre é o efeito de uma agressão orgânica, a reação psíquica da vítima só pode ser considerada dano moral quando tiver por causa uma agressão à sua dignidade108”. BODIN DE MORAES também nega a conceituação subjetiva de danos morais, pelo que conclui: O conceito de dano moral não deve se vincular, pois, a sentimentos ou sofrimentos, isto é, a disposições emocionais complexas, sejam quais forem o seu teor, nem tampouco a sensações íntimas ou, menos ainda, a percepção psicológica que são, necessariamente, aspectos subjetivos, intangíveis e inverificáveis, e que variam, por definição e de modo significativo, de pessoa para pessoa109. Assim, ressalte-se a necessidade de que os conceitos tradicionais sejam abandonados para dar lugar a um novo e pacífico, fundado na nova diretriz civilconstitucional que consagra a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito, inserido como tal pela letra do artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988. 105 STF, RE 172.720/RJ, 2a Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. Em 06.02.1996 e publ. no DJ em 21.02.1997. CAVALIERI FILHO, op. cit. p. 79 107 Impende salientar que SÉRGIO CAVALIERI FILHO não faz alusão a uma distinção entre conceito objetivo e subjetivo tão explicitamente, é MARIA CELINA BODIN DE MORAES quem distingue o conceito objetivo e o subjetivo de danos extrapatrimoniais. No conceito subjetivo, os danos morais são definidos como “os efeitos morais da lesão a um interesse juridicamente protegido”. No conceito objetivo, definem-se danos morais como lesão a um direito da personalidade, cujo expoente de renome é o jurista PAULO LUIZ NETTO LÔBO. A autora critica esse primeiro conceito tendo em conta a subjetividade e a arbitrariedade a que dão ensejo. Realmente, por essa definição fica a cargo do magistrado, a seu bem entender, conceder ou não a indenização a título de danos morais. Por esse motivo, o conceito objetivo surgiu para conferir maior rigor técnico no exame dos casos “evitando a praxe recorrente de avaliar a ofensa com base no senso comum”. BODIN DE MORAES [2], op. cit., p. 246. 108 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 80. 109 BODIN DE MORAES, Maria Celina. [4] Deveres Parentais e Responsabilidade. In.: Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de fevereiro de 2009, n° 03/2009, v. III, p. 105. 106 35 Desse modo, à luz da Lei Maior vigente, CAVALIERI FILHO expõe as duas vertentes mais aceitas atualmente sobre a definição dos danos morais, a saber: o conceito em sentido estrito e o conceito em sentido amplo110. Na visão do Desembargador, por sentido estrito, dano moral é violação do direito à dignidade. Já por sentido amplo, o dano moral abrange todas as ofensas contra os direitos da personalidade da pessoa, considerada esta em seu âmbito individual e social, o que significa dizer que no conceito amplo a lesão vai além de sua dignidade111. Tendo em vista esses apontamentos, consideramos que hoje na doutrina o melhor método definidor dos interesses que, sob a perspectiva civil-constitucional, merecem a tutela ressarcitória é o que considera os danos morais como danos à claúsula geral de tutela da pessoa humana, conforme passamos a demonstrar. 3.4 Danos morais como danos à cláusula geral da tutela da pessoa humana Considerando que existam situações jurídicas subjetivas, relativas à pessoa humana, que demandam proteção, mas não correspondem a um direito subjetivo específico, acreditamos que a melhor corrente a ser adotada na conceituação dos danos morais, para identificá-los, é a que garante especial atenção à pessoa humana, vista a partir de sua natureza frágil e vulnerável112. Nesse sentir, o dano moral trata-se da violação à cláusula geral de tutela da pessoa humana, prevista no art. 1°, III, do imperativo constitucional, ofendendo-lhe a dignidade, mesmo que essa ação não seja reconhecida em alguma categoria jurídica específica. Essa corrente confere especial proteção à pessoa humana de forma ampla, geral e irrestrita, partindo da idéia de que o Direito existe para proteger as pessoas. Em última análise, por essa teoria, “socorre-se da opção fundamental do constituinte para destacar que a ofensa a qualquer aspecto extrapatrimonial da personalidade, mesmo que não se subsuma a 110 CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 80-81. Nesse diapasão, o referido autor prevê a existência de um rol de direitos passíveis de lesão moral e que nele estão incluídos os novos direitos da personalidade, dentre os quais as relações afetivas, rematando o seguinte: “Como se vê, hoje o dano moral não mais se restringe à dor, à tristeza e sofrimento, estendendo a sua tutela a todos os bens personalíssimos – os complexos de ordem ética -, razão pela qual revela-se mais apropriado chamá-lo de dano imaterial ou não patrimonial, como ocorre no Direito Português. Em razão dessa natureza imaterial, o dano moral é insusceptível de avaliação pecuniária, podendo apenas ser compensado com a obrigação pecuniária imposta pelo causador do dano, sendo esta mais uma satisfação do que uma indenização”. (Idem, ibidem. p. 81.) 112 Junto conosco estão R. SAVATIER, L. JOSSERAND, J. C. MONIER e MARIA CELINA BODIN DE MORAES. Idem, ibidem, mesma página. 111 36 um direito subjetivo específico, pode produzir dano moral, contanto que grave o suficiente para ser considerada lesiva à dignidade humana113”. BODIN DE MORAES aponta algumas vantagens dessa linha que concebe um núcleo irredutível, qual seja a dignidade, como anteparo “à tutela que se deseja proceder e mediante a qual o sem-número de situações em que a pessoa humana pode se envolver114”, passando, assim, a ter garantias imediatas através da cláusula geral de tutela. A primeira vantagem importa ser mencionada no presente estudo. Para a autora, a conseqüência de se ter o dano moral como lesão à dignidade humana, é que toda e qualquer lesão que reduza o sujeito de direitos a uma condição de objeto, negando sua qualidade de pessoa, será considerada automaticamente como causadora de dano moral a ser reparado. Afastam-se assim situações que geram sofrimento às pessoas, mas que não afetem sua dignidade em seu substrato material115. O substrato material da dignidade divide-se em quatro postulados: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não ser marginalizado116”. Transportando esse substrato à esfera jurídica, determinam-se os corolários do princípio da dignidade. São eles: o princípio da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade/autonomia e da solidariedade social ou familiar. Ora, se dano moral é lesão à dignidade, e se a dignidade humana subdividese nesses quatro corolários, então a lesão a algum desses substratos é o que enseja a reparação. Realmente, “dano moral será, em conseqüência, a lesão a algum desses aspectos ou substratos que compõem, ou conformam, a dignidade humana, isto é, a violação à liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica de uma pessoa humana117”. Dessa maneira, pretendemos demarcar a área de atuação dos danos morais para determinar, a partir desse conceito, quais são os danos morais passíveis de compensação. 113 BODIN DE MORAES [2], op. cit., p. 247. BODIN DE MORAES [3], op. cit., 188. 115 Idem, ibidem. p. 189. 116 BODIN DE MORAES [2], op. cit., p. 247. 117 Idem, ibidem, mesma página. 114 37 3.5 Os Danos Morais Compensáveis Conforme já dito, o dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil. Para RODOTÀ, ele é a própria razão de ser do dever de indenizar118. A partir da imputação de um evento danoso indenizável a um agente, nasce a responsabilidade, ou seja, o dever sucessivo de indenizar. Em sede de Direito Civil, as hipóteses comportamentais que fazem nascer a obrigação de indenizar não são tipificadas; ao contrário, tal obrigação está prevista na legislação civil em cláusulas gerais, nos artigos 186 c/c o art. 927, CC119. BODIN DE MORAES adverte que é cabível identificar quais eventos fazem nascer a obrigação de indenizar, “circunscrevendo a área dos danos ressarcíveis, de modo a evitar a propagação irracional dos mecanismos de tutela indenizatória120”. Primeiro para afastar pedidos contra atividades lícitas que, embora causem desconforto e prejuízos a terceiros, são meras atividades cotidianas, autorizadas pelo ordenamento. Segundo para acatar pedidos que, embora sejam também lícitas as atividades ou ações realizadas, a vítima não merece suportar os danos sozinha, devendo ser ressarcida. O debate acerca de danos indenizáveis gira em torno de duas teorias, a saber: uma primeira teoria, que identifica os danos pela sua antijuridicidade, ou seja, pela violação culposa de um direito ou de uma norma expressa no sentido de não lesar bem ou direito tutelados; e uma segunda teoria, hoje majoritária, que identifica os danos como lesão a um interesse ou a um bem juridicamente protegidos121. A teoria que identifica o dano com a antijuridicidade do ato interpreta a sistemática da responsabilidade civil como se típica fosse, pois apenas diante da violação de normas que reconhecem direitos subjetivos absolutos surgiria a obrigação de indenizar. Ocorre que essa teoria é incompatível com as cláusulas gerais da responsabilidade civil, previstas nos artigos 186 e 927, CC, e também com a orientação constitucional para conferir plena tutela à pessoa humana, esta no papel de foco do ordenamento jurídico. De fato, conforme já mencionado, o ordenamento é incapaz de prever 118 RODOTÀ apud BODIN DE MORAES [2], Ibidem, p. 239. Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927 Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 120 LUIZ DÍEZ-PICAZO apud BODIN DE MORAES [2], ibidem. p. 239. 121 C. MASSIMO BIANCA apud BODIN DE MORAES [2]. Ibidem, p. 240 119 38 todas as hipóteses lesivas à pessoa humana, de modo que restringir a tutela indenizatória aos casos previstos em norma diminuiria, certamente, a eficiência do mecanismo tutelar. Diante disso, modernamente vem sendo mais aceita a segunda teoria do interesse para a qual o dano está vinculado à lesão de um interesse ou bem juridicamente protegido. Por essa teoria, não apenas direitos, absolutos ou relativos, são objeto de proteção, mas também interesses, “porque considerados dignos de tutela jurídica e, quando lesionados, obrigam a sua reparação122”. Partindo dessa idéia de que não só direitos, mas também interesses merecem tutela, a ampliação da noção de danos ressarcíveis restou inevitável, o que justifica a preocupação exposta por RODOTÀ de que “a multiplicação de novas figuras de dano venha a ter como únicos limites a fantasia do intérprete e a flexibilidade da jurisprudência123”. Dessa feita, surge o problema da identificação da qualidade dos interesses que merecem tutela jurídica. Verdadeiramente, com a falta de critérios para identificá-los, podem ocorrer duas situações indesejadas. Por um lado, a multiplicação de ações indenizatórias pode dar lugar a situações extravagantes, em que tudo é condenável; e por outro, o temor pela banalização dos danos morais acarretaria na ojeriza dos aplicadores quanto ao instituto, julgando pelo indeferimento dos pleitos indenizatórios indiscriminadamente, argumentando-se para tanto que a situação seria um mero acontecimento, a que todos estão suscetíveis, e que a pretensão do autor seria meramente mercantilista124. É por essa razão que se urge por um conceito pacífico de danos morais, bem como pela demarcação dos danos morais compensáveis para coibir a “indústria do dano moral”, sob pena desse poderoso utensílio de proteção à pessoa humana vir a se tornar de fato uma espécie de “loteria dos espertos125” ou, em direção diversa, um instrumento de proteção marcadamente inócuo. 122 BODIN DE MORAES [2], ibidem. p. 240. RODOTÀ apud BODIN DE MORAES [2], ibidem. p. 241 124 Acerca disso, alerta BODIN DE MORAES: “O fato é que a reparação dos danos morais não pode mais operar como vem ocorrendo, no nível do senso comum. Sua importância no mundo atual exige que se busque alcançar um determinado grau de tecnicidade, do ponto de vista da ciência do direito, contribuindo-se para edificar uma categoria teórica que seja elaborada o suficiente para demarcar as numerosas especificidades do instituto. A ausência de rigor científico e de objetividade na conceituação do dano moral tem gerado obstáculos ao adequado desenvolvimento da responsabilidade civil além de perpetrar, cotidianamente, graves injustiças e incertezas aos jurisdicionados” (idem, ibidem, p. 244) 125 A expressão “A loteria dos espertos” surgiu no artigo de revista da jornalista MARTA MEDEIROS intitulado pelo mesmo termo aludido, em que a escritora criticava uma condenação milionária a título de danos morais decorrentes do disparo de alarme em estabelecimento comercial. No artigo, a autora assim pontuava: “Para não 123 39 Nesse contexto, a doutrina apontou algumas alternativas para solucionar esse impasse. São elas: para PIERO SCHLESINGER, um ato não autorizado por uma norma ensejaria a reparação por danos; já para STEFANO RODOTÀ, a indenização seria cabível quando o interesse atingido fosse suscetível de tutela partindo do princípio da solidariedade social; finalmente, para GUIDO ALPA, a depender da relevância do dano, este seria indenizável, segundo uma ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais126. Entendemos, assim como BODIN DE MORAES, que o critério mais consistente reside na consideração de ALPA. De acordo com o escólio da jurista, “o dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressarcida127”. Ante uma situação subjetiva contemplada por mais de um dos substratos da dignidade humana (que são a igualdade, a liberdade/autonomia, a integridade psicofísica e a solidariedade familiar ou social), em contraposição, é que a lição de GUIDO ALPA128 reluz toda a sua valia. Pela sua lição, na colisão de princípios jurídicos cuja hierarquia é a mesma, há que ser feita a ponderação, através do exame dos interesses em conflito, verificando qual o preponderante na situação concreta, tendo em conta que o fim último do ordenamento é a tutela do sujeito de direito. Ou seja, a ponderação deve ser feita entre os princípios e o seu fundamento, que é a dignidade humana. E é exatamente nesse mote que a indenização por danos morais nas relações afetivas entre pais e filhos encontra seu amparo jurídico-filosófico, pois nesse caso estamos diante de interesses contrapostos, pautados nesses princípios corolários. 3.6 Responsabilidade Civil no Direito de Família Sob a ótica privada, o civilmente responsável por um ato danoso deve repará-lo. Por muito tempo, a reparação só era aceita nos danos de cunho patrimonial, negadas as pretensões por danos morais. O pretium doloris (preço da dor) era, pois, inadmissível. ter a sua dignidade colocada em dúvida, é preciso parar com esse truque de dormir ofendido e acordar milionário”. MEDEIROS apud BODIN DE MORAES [4], op. cit., p. 107. 126 C. M. BIANCA apud MORAES [3], op. cit., p. 178-179. 127 BODIN DE MORAES [3], ibidem. p. 179 128 ALPA apud BODIN DE MORAES [3], ibidem, p. 179. 40 A dificuldade em aceitar a incidência da responsabilidade civil no ramo do Direito de Família residia no fato de que os temas de família são questões existenciais, de valores inestimáveis, e que a reparação civil é de cunho pecuniário. BODIN DE MORAES aclara que até relativamente pouco tempo atrás todo e qualquer pagamento indenizatório em caso de lesão de natureza unicamente extrapatrimonial era tido por imoral e, por conseguinte, contrário ao Direito nos ordenamentos de tradição romano-germânica, excetuados os casos expressamente previstos em lei129. Além desses argumentos, a negativa em aceitar os danos morais residia na dificuldade de se verificar a existência e a extensão do dano sofrido. Por esse pensamento, aquilo que não se podia medir, não se podia indenizar, vez que a indenização deveria ser exatamente a medida do dano. Na época, “tanto do ponto de vista moral quanto do ponto de vista dos instrumentos jurídicos disponíveis, a reparação do dano moral parecia impraticável130”. Entretanto, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, não há mais lugar para essa discussão, tendo em vista a mutação da consciência coletiva acerca do conceito de justiça. É que, na medida em que o ordenamento focou-se no sujeito de direito, sob o ponto de vista da vítima, passou a ser considerado intolerável que essa remanescesse irressarcida; ao passo que, sob o ponto de vista do causador do dano, passou a ser vista como injusta a sua impunidade diante dessa lesão. Dessa feita, finalizando qualquer dúvida acerca da possibilidade de compensação por danos morais, a Lei Maior passou a admitir entre os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos a reparação por danos morais, nos termos dos incisos V e X, do artigo 5º131. Conforme bem elucida BODIN DE MORAES, esse pensamento foi superado no sentido de que seja aceita socialmente a compensação por dano moral132. 129 BODIN DE MORAES [3], op. cit., p. 145 Idem, ibidem, p. 146 131 Art. 5º São todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. 132 A autora nos ilumina na passagem: “O princípio decorre diretamente da idéia de justiça que tem a sociedade na qual incide. E o que mudou neste caso foi exatamente a consciência coletiva acerca do conceito de justiça: o que antes era tido como inconcebível passou a ser aceitável, e, de aceitável, passou a evidente. Se era difícil dimensionar o dano, em questão de poucos anos tornou-se impossível ignorá-lo. Se era imoral receber alguma 130 41 Nesse mesmo diapasão, A. VON TULER clarifica que o ressarcimento tem por escopo propiciar uma satisfação (ou vantagem) ao ofendido, acalmando seu sentimento de vingança, que lhe é inato133. Assim também é o escólio de GOMES, ensinando que a compesatio doloris é hoje considerada um benefício de ordem, uma atribuição patrimonial que se reconhece satisfatória, e não como pretium doloris, nem como indenização propriamente dita, mas como um contrapeso da sensação dolorosa causada ao ofendido proporcionando-lhe uma sensação agradável134. Por essa esteira, acaso ocorra lesão a direito da personalidade ou afronta à dignidade da pessoa humana, não é aceitável que a vítima não obtenha uma compensação, motivo pelo qual o ordenamento jurídico criou mecanismos de tutela da pessoa humana, a fim de restabelecer o equilíbrio da situação jurídico-financeira, considerando a dignidade como o “valor precípuo do ordenamento, configurando-se como a própria finalidade-função do Direito135”. De fato, pela nova perspectiva civil-constitucional, em que o princípio da dignidade da pessoa humana é o vetor das relações privadas, houve uma variação de ponto de vista no campo da Responsabilidade Civil. É que, neste ramo a sistemática orienta-se hoje no sentido de estender as hipóteses de tutela da pessoa da vítima, deixando de lado o foco anterior que residia na pessoa do ofensor. Além disso, pela nova sistemática, não há mais um número taxativo de direitos absolutos da pessoa humana que merecem tutela. “A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de proteção da dignidade136.” Aplicando essas noções no âmbito familiar, e levando em consideração o que foi anteriormente dito, sobre a família ser o locus de afeto e de formação e desenvolvimento da personalidade de seus membros, não parece razoável deixar as relações de família de fora desse poderoso mecanismo de tutela da pessoa humana, qual seja a remuneração pela dor sofrida, não era a dor que estava sendo paga, mas sim a vítima, lesada em sua esfera extrapatrimonial, quem merecia ser (re)compensada pecuniariamente, para assim desfrutar de alegrias e outros estados de bem-estar psicofisico, contrabalançando (rectius, abrandando) os efeitos que o dano causara em seu espírito”. (Idem, ibidem, p. 147). 133 A. VON TULER apud GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In.: Estudos em homenagem ao Professor Sílvio Rodrigues. Prefácio e organização José Roberto Pacheco Di Francesco. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 298 134 GOMES, op. cit, p. 298. 135 BODIN DE MORAES [2], op. cit, p. 238. 136 TEPEDINO, Gustavo.[1] A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In.: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 53. 42 compensação por danos morais, sob o argumento de que não haveria uma previsão legal de dano moral decorrente das relações familiares. As relações familiares estão diretamente ligadas ao aspecto da dignidade de seus membros, principalmente quanto ao crescimento dos infantes em condições dignas, motivo pelo qual os papéis exercidos nesse elo devem estar pautados na solidariedade e na responsabilidade, esta assumida pelos genitores ao optarem por dar origem a uma vida. ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA conclui que “se a família é solidarista e se a dignidade e a personalidade são construídas a partir de um outro, é inegável a grande responsabilidade que medeia tais relacionamentos137”. Mais especificamente, sobre as relações parentais, vislumbram-se deveres dos pais quanto aos seus filhos que, se descumpridos, acarretam danos de ordem extrapatrimonial. Sobre isso, “as opiniões hoje divergem entre duas posições opostas: aqueles que continuam a sustentar uma postura de isenção, imunidade ou privilégio dos pais na relação intrafamiliar, e os que começam a se manifestar favoravelmente às reparações138”. BODIN DE MORAES ensina que a imunidade parental nas ações judiciais movidas pela prole é uma tradição da Common Law, sistema que sequer questiona o injustificado privilégio dos pais nessas intentadas. Sustenta-se que, nesses casos, os custos do dano que sofreria presumivelmente o ofensor já seriam muito altos, de modo que não seria produtivo incrementá-los. Dessa feita, pelo exemplo anglo-saxão, a Responsabilidade Civil encontra no Direito de Família uma seara de imunidade139. Em sentido oposto ao modelo do Common Law, países de origem romanogermânica, como a França e Portugal, já inseriram em seus textos legislativos a aceitação do Direito de Família no âmbito da Responsabilidade Civil, tendo sido o papel da jurisprudência de suma importância a esse intróito140. 137 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Responsabilidade Civil e Ofensa à Dignidade Humana.In.: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 7, n. 32, out./nov, 2005. p. 144. 138 BODIN DE MORAES, Maria Celina [4]. Deveres Parentais e Responsabilidade Civil. In.: Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de fevereiro de 2009, n. 3, v. III, p. 109. 139 Idem, ibidem. p. 108. 140 Nesse sentido, a Ministra ELIANA CALMON ALVES proferiu o seguinte: “Relevante foi o papel da jurisprudência de outros países, como a França, que consagrou o direito de indenização no campo do Direito de Família ainda na década de 30, antes do Código Civil de 1941. O mesmo ocorreu em Portugal no final da década de 80, por uma lei de 1989. Na América do Sul, a Argentina e o Uruguai apresentam-se como países de vanguarda no específico tema, vindo do primeiro grande número de precedentes, consagrando a tese jurídica em apreciação”. ALVES, Eliana Calmon. Responsabilidade Civil no Direito de Família. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/353/4/Responsabilidade_Civil_Direito.pdf. Acesso em 16/10/2009. 43 A tendência brasileira é seguir os países europeus, pois com a mudança na forma como as famílias hoje se relacionam, para um plano de igualdade e liberdade, sendo facilmente desintegradas, já não há mais como negar a reparabilidade de danos morais sob o argumento da proteção da integridade familiar. Por vezes, sustenta-se que uma ação de danos morais desfaria de vez os elos afetivos entre os membros do agrupamento, não atingindo o eventual escopo de restabelecer o liame de afeto141. Ocorre que esse argumento não prospera por dois motivos. O primeiro deles é que essa linha de raciocínio só faria sentido na maneira como as famílias se relacionavam no passado, sem possibilidade de romperem os laços. Hoje, com as facilidades de se promover separações e divórcios, tais elos rompem com facilidade. Nesses rompimentos, normalmente quem sofre mais são as crianças, pois com o fim do matrimônio é possível que sejam desfeitos também os laços de filiação142. O segundo motivo é que o simples fato do autor recorrer ao Poder Judiciário pleiteando condenação de membro familiar em pecúnia já demonstra que, há muito, a relação estava por acabada. Assim, o objetivo da intentada não é o restabelecimento da relação, mas sim a compensação pela dor sentida em face da injustiça do dano. Ademais, no caso específico das relações de filiação, não é razoável que genitores restem impunes ante o descumprimento de suas responsabilidades para com sua prole, esta em posição de vulnerabilidade e desamparo por não ter seu desenvolvimento físico e mental completo. Dessa feita, justifica-se o intento na medida em que se proporciona à prole alguma forma de ressarcimento pelos danos sofridos. Outrossim, a doutrina aponta ainda outros fundamentos que tornem legítima a condenação por danos morais decorrentes de abandono afetivo, são elas: a função dissuasória da condenação, assim como a punitiva143. FACCHINI lembra que a função precípua da Responsabilidade Civil é a compensação pelos danos causados, mas vislumbra outras funções a serem desempenhadas pelo instituto, chamadas de funções punitiva e dissuasória. Relativamente à função dissuasória, por meio da condenação busca-se indicar a todos os cidadãos o fato de que a 141 A Juíza de Direito MARIA ARACY MENEZES DA COSTA nega a possibilidade de condenação por danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações parentais, fundamentando para tanto que eventual condenação no pleito não teria condão de restabelecer os vínculos de filiação. COSTA, Maria Aracy Menezes. Responsabilidade Civil no Direito de Família. In.: ADV, Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas, n. 2, p. 30, fev. 2005. 142 BODIN DE MORAES [4], op. cit., p. 109. 143 SANTOS, op. cit., p. 26. 44 conduta versada é reprovável do ponto de vista ético-jurídico144, estimulando os demais integrantes da comunidade a cumprirem os deveres determinados pelo ordenamento145. Quanto à função punitiva, busca-se punir o agente que venha a lesionar o conteúdo imaterial de outrem. No abandono afetivo, a função disuassória é compatível com o fim almejado, pois, de fato, condenações dessa índole inibiriam genitores negligentes a continuarem com a conduta lesiva. Já a função punitiva não guarda razão sob a ótica da Responsabilidade Civil focada na vítima. Em verdade, não é desígnio da condenação punir o pai faltoso, mas sim indenizar a vítima pelo dano injusto. Entendemos, portanto, que embora a função punitiva não seja acolhida nos moldes em que é construída hoje a estrutura do nosso ordenamento jurídico, a condenação atende funções outras, quais sejam a compensatória e a disuassória, tornando legítima a possibilidade no caso concreto de condenação civil por danos morais nas relações familiares, a depender da presença dos requisitos gerais da responsabilidade. 3.7 A omissão de afeto e cuidado como dano à pessoa humana compensável A melhor doutrina brasileira que cuida do tema dos danos morais nas relações parentais já aceita a tese de possibilidade de reparação nesse âmbito146. Em nossa compreensão, a condenação à indenização a título de danos morais por abandono afetivo nas relações paterno-filiais decorre das peculiaridades da forma como se relacionam os pólos do enlace e dos interesses jurídicos em jogo. As relações entre pais e filhos possuem certas distinções, quais sejam a assimetria entre os pólos, a permanência da relação e a ingerência estatal, e todas elas ensejam o dever de indenizar. Tanto é verdade a especialidade das relações familiares parentais, que, além de se aplicarem os princípios gerais do direito nessa seara, existem princípios próprios do ramo familiar, como é o caso dos princípios da paternidade responsável, da afetividade e do 144 FACCHINI apud SANTOS, ibidem, p. 26. MADALENO, Rolf. Dano Moral na investigação de Paternidade. Disponível em: http://www.rolfmadaleno.com.br/site/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=29. Acesso em: 10/10/2009, p. 6. 146 Cite-se nesse sentido: GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA, CLÁUDIA STEIN VIEIRA, INÁCIO DE CARVALHO NETO, RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, TÂNIA DA SILVA PEREIRA, MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA, CLÁUDIA MARIA DA SILVA, CLAUDETE CARVALHO CANEZIN, ANA CAROLINA TEIXEIRA BROCHADO, ANDERSON SCHREIBER E MARIA CELINA BODIN DE MORAES. (BODIN DE MORAES [4], op. cit. p. 102, além de BROCHADO, op. cit.; CANEZIN, op. cit.; COSTA, op. cit.; SCHREIBER, op. cit. e SILVA, op. cit.) 145 45 melhor interesse do menor e do adolescente, este último com base na doutrina da proteção integral. Hodiernamente o “poder familiar” é um múnus conferido aos pais, em caráter teoricamente permanente, quanto à sua prole, o que decorre de um dos substratos anteriormente mencionados do princípio da dignidade da pessoa humana, qual seja o princípio da solidariedade familiar, e também do princípio da paternidade responsável. O exercício desse encargo deve ser pautado fundamentalmente na responsabilidade e na solidariedade familiar. Com efeito, os pais são responsáveis pelos seus filhos menores e, na medida em que estes são marcados pela vulnerabilidade, cumpre àqueles realizar esforços para conferir aos infantes a máxima proteção, haja vista o princípio do melhor interesse do menor e do adolescente. Quanto à permanência da relação, os elos de filiação são mais estreitos que os matrimoniais, por exemplo, tendo em conta que o desfazimento do vínculo parental é excepcional e indesejável. Aliás, relativamente à ingerência estatal nas questões de Direito de Família nesse ponto, é a assimetria existente entre as partes da relação de filiação que justifica as intervenções jurídicas com vistas à proteção dos menores indefesos. “Como os filhos menores não estão em condições de se protegerem por si sós, o legislador e o juiz tomam a si o encargo de tutelá-los em face de todos, inclusive dos próprios pais147”. É por essa razão, inclusive, que a Constituição prevê proteção à criança e ao adolescente “com absoluta prioridade”, nos moldes da redação do artigo 227 desse texto. De fato, com base no cuidado como valor jurídico, a defesa da prole é uma matéria prioritária ao interesse público, dada a importância da defesa social através do menor e, também, dele como pessoa em fase de desenvolvimento da personalidade, merecedora de dignidade. Em virtude da exigibilidade de tutela por parte dos pais e da situação de dependência e vulnerabilidade em que os filhos se encontram, é nessa relação que a responsabilidade e a solidariedade familiares encontram sua máxima projeção. Na falta de tal solidariedade, em que os pais furtam-se de prover as necessidades materiais, morais e afetivas à sua prole, agindo irresponsavelmente, são lesados direitos do estado de filiação, além de desrespeitados deveres expressos nos textos da Carta Maior, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente. 147 BODIN DE MORAES [1] op. cit., p. 195. 46 Esse quadro de negligência acarreta prejuízos ao desenvolvimento dos menores, tendo em conta que as assistências material, moral e afetiva são pressupostos para o crescimento sadio e equilibrado do indivíduo, bem como de inserção dele no meio social. Conclui-se, destarte, que na ausência de meios que possibilitem o pleno desenvolvimento dos infantes, restará afetada a sua dignidade, pelo que esta também não se consolida na falta de condições dignas de vida. É inegável que a omissão paterna em prover afeto ao infante é uma conduta passível de gerar lesão à dignidade daqueles em desenvolvimento da personalidade. Diante disso, há que se verificar acaso esse dano teria condão de ensejar a condenação compensatória a título de danos morais. Para tanto, utilizaremos os mandamentos de ALPA, reforçados por BODIN DE MORAES, relativamente à ponderação dos interesses contrapostos, sempre com a finalidade última de assegurar a dignidade humana, a partir dos princípios que lhe são corolários. Já ficou estabelecido que o dano moral é a lesão à dignidade em um de seus substratos materiais, e que o sujeito moral tem sua dignidade desdobrada no reconhecimento: i) de que existem demais, iguais a ele; ii) merecedores da mesma integridade psicofísica a que faz jus; iii) e que, embora dotado de liberdade e autonomia; iv) é parte de um grupo social, ao qual tem a garantia de não ser marginalizado e o dever de não marginalizar. Ao se trazer esses substratos à órbita jurídica, encontramos quatro princípios gerais do Direito que servem de corolários do ordenamento, são eles: i) igualdade; ii) integridade psicofísica; iii) liberdade/autonomia e iv) solidariedade social e familiar. Haja vista que resolvemos adotar o conceito para o qual dano moral será a lesão à dignidade, formada por esses substratos que a compõem; então, acaso alguém atente contra a igualdade, a liberdade, a integridade psicofísica ou a solidariedade social e familiar de outrem, estaremos diante de uma lesão de cunho extrapatrimonial. Ocorre que, por vezes, no caso concreto, esses princípios podem entrar em colisão. É o que acontece no caso do abandono afetivo nas relações de filiação. De um lado, estão os genitores, que se fundam no princípio da liberdade/autonomia para justificar a atitude omissiva perante os filhos. Do outro, os filhos que, além de sofrerem lesão quanto à sua integridade psicofísica, no que toca o óbice ao desenvolvimento de suas capacidades físicas e psíquicas em toda a sua completude na falta de uma figura paterna, este no papel de elemento 47 estruturante do indivíduo; também têm o direito à solidariedade familiar afetada, quanto à garantia de não serem marginalizados ante os meios familiar e social. No caso, os três princípios contrapostos deverão ser ponderados, a partir dos interesses em conflito, em relação a seu fundamento, ou seja, relativamente à própria dignidade humana148. Os interesses conflitantes dizem respeito às vontades dos genitores em oposição às necessidades dos infantes. A fim de realizar a ponderação entre tais empenhos, há que se levar em consideração as peculiaridades das relações estabelecidas entre pais e filhos: a vulnerabilidade dos menores; a responsabilidade dos pais na criação, sustento e educação (em sentido amplo149) dos pequenos; a permanência da relação e a ingerência estatal justificada na repercussão social que decorre desse vínculo. Nesse contexto, é incabível considerar que o princípio de liberdade/autonomia, fundamento da ação omissiva em prover afeto das figuras paternas, prevaleceria em face dos princípios da solidariedade familiar e da integridade psicofísica dos menores, tendo em mente que a figura paterna é imprescindível ao pleno desenvolvimento das aptidões psíquicas e sociais do menor. Afora disso, ressalte-se que a autonomia privada, na concepção pós-guerra, encontra limites na ordem pública e, sendo a paternidade um múnus público, esse princípio não merece ser invocado para justificar a falta de cuidado e afeto nas relações de filiação. Assim, ponderando os interesses dos pais em oposição ao dos menores, prevalece o interesse da prole, o que pode vir a justificar uma posterior condenação por danos morais decorrentes de abandono afetivo. De fato, não seria justo que o menor vulnerável viesse a suportar os danos decorrentes da ausência afetiva paterna e que o pai omisso restasse impune. Essa também é a linha de raciocínio de BODIN DE MORAES: Ponderados, pois, os interesses contrapostos, a solidariedade familiar e a integridade psíquica são princípios que se superpõem, com a força que lhes dá a tutela constitucional, à autonomia dos genitores que, neste caso, dela não são titulares. Nesta hipótese, a realização do princípio da dignidade da pessoa humana se dá a partir da integralização do princípio da solidariedade familiar que contém, em si, como característica essencial e definidora a assistência moral dos pais em relação aos filhos menores. Em ausência deste cuidado, com prejuízos necessários à integridade de pessoas 148 149 BODIN DE MORAES [1], op. cit., p. 196. V. item 3.5.2 infra sobre a conduta. 48 a quem o legislador atribui prioridade absoluta, pode haver dano moral a ser reparado150. Diz-se que a reparação é uma possibilidade, pois a ausência paterna pode não gerar qualquer lesão aos menores, existindo ainda outras variáveis, além dessa ponderação, às quais o julgador deve se atentar antes de prover ou negar o pedido indenizatório por abandono afetivo. A doutrina aponta diversas hipóteses em que a compensação é cabível e outras em que é descartada, tendo em mente os demais elementos da responsabilidade civil, que são a conduta, o nexo de causalidade e o dano injusto. Passamos, portanto à análise desses requisitos. 3.8 Os Requisitos da Condenação a título de Danos Morais Decorrentes de Abandono Afetivo nas Relações Paterno-Filiais 3.8.1 O Pressuposto da Condenação: A existência de uma efetiva relação paterno-filial Finda a fase de averiguação, em tese, da ressarcibilidade por abandono afetivo, GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA estabelece o pressuposto necessário ao provimento da ação compensatória, qual seja a efetiva relação paterno-filial151. HIRONAKA afirma que pouco importa a relação que deu origem à prole, pois, efetivamente, o que deve ser perquirido, a fim de se verificar se cabe ou não indenização a título de dano moral por abandono afetivo, é se há ou não a efetiva existência de uma relação paterno-filial152. Entendemos, assim como a autora, que a responsabilização do genitor por abandono afetivo depende de sua consciência da condição de pai, de modo que resta descartada de pronto a hipótese de um filho que venha a pleitear a ação de um pai que não tenha conhecimento do fato de ter se tornado pai ou do acúmulo do pedido de indenização por danos morais em ações investigatórias de paternidade153. 150 Idem, Ibidem, mesma página. HIRONAKA, op. cit., p. 417. 152 Idem, ibidem, mesma página. 153 Em posição diversa, encontramos BODIN DE MORAES, que sustenta ser cabível a reparação nos casos da investigatória de paternidade, independente da idade do filho autor. Para tanto, a jurista afirma que essa ação tem natureza declaratória, operando efeitos retroativos, negando assim o argumento de que a condição era inexistente, considerando-o insuficiente para excluir a compensação (BODIN DE MORAES [4], op. cit. p. 101). Em que pese a lógica desse argumento do ponto de vista processual, entendemos que a reparação nos casos em que o pai não sabia de sua condição de paternidade exclui a possibilidade de reparação na medida em que a culpa na omissão em prover afeto e cuidado é requisito da responsabilidade civil subjetiva nesse ponto, pelo fato de que a culpa na omissão depende da inação consciente relativa a um dever legal prévio, conforme passamos a demonstrar. 151 49 3.8.2 Dos Deveres da Condição de Pai: A Conduta Omissiva O exercício da paternidade tem função estruturante no desenvolvimento da prole. A função do pai pode ser vista por três aspectos: de reprodução (função biológica); de educação (função psicopedagógica) e de transmissão de um nome e um patrimônio (função social)154. Ao presente estudo, importa a função psicopedagógica a fim de caracterizar o que seja abandono afetivo ou moral. GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA disserta acerca do que seja a condição de pai, verificando a amplitude legal desse encargo. Para tanto, afirma que são três os deveres de que os genitores não podem furtar-se: sustento, guarda e educação, nos moldes do art. 22, ECA155. Além desses deveres, ANDERSON SCHEREIBER, antevê como deveres paternos a direção da criação e da educação da prole, pelo que determina o art. 1.634, I, CC e, ainda, o encargo de tê-los em sua companhia e guarda, nos termos do inciso II do mesmo artigo da lei civil156. Finalmente, reza o artigo 227 da Constituição Federal que é dever dos pais, do Estado e da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a convivência familiar, além de colocá-la a salvo de qualquer tipo de negligência. Quanto ao dever de sustento, trata-se da questão patrimonial na relação pai e filho. A maneira de que se reveste o cumprimento desse dever é com a colocação de meios condizentes às necessidades da prole, tendo em vista as possibilidades de que dispõe os genitores157. Há quem defenda que encerrariam no dever de sustento os deveres paternos sujeitos à tutela do Poder Judiciário. Ou seja, somente o descumprimento relativo à pensão alimentícia poderia sugerir alguma penalidade ao genitor faltoso158. Conceber a tutela jurídica apenas do ponto de vista material aos menores é uma visão reducionista159 da relação de filiação, além de retrógrada, dado que já enfatizamos a mudança de paradigma no que toca o elo familiar, antes de cunho patrimonialista e atualmente baseado no afeto. É por essa razão 154 PEREIRA, Rodrigo da Cunha [3]. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 131. 155 HIRONAKA, op. cit., p. 417. 156 SCHREIBER, op. cit., p. 178. 157 HIRONAKA, op. cit., mesma página. 158 Inclusive, nesse ponto, vale destacar um exemplo que decorre da absoluta prioridade conferida aos menores no ordenamento jurídico. Atualmente, a única hipótese de prisão civil é por inadimplemento de obrigações alimentícias, como dispõe o inciso LXVII, artigo 5º, Constituição Federal. Note-se que o descumprimento de obrigações dessa ordem implicam na maior sanção prevista hoje no ordenamento, tendo em vista que na sua maioria tais obrigações são impostas nas relações de filiação ou, ao menos, em relações que se dão pelo binômio responsabilidade-vulnerabilidade. 159 Nesse sentido, SCHREIBER e HIRONAKA em SCHREIBER, op. cit., 178. 50 que o ordenamento prevê deveres outros, de ordem imaterial, que merecem a tutela jurisdicional assim como os deveres materiais supramencionados. Em relação ao dever de guarda, é o que diz respeito à manutenção dos filhos em companhia de ambos os pais, salvo nas hipóteses em que, pelo melhor interesse da criança, seja melhor que ela esteja sob a guarda de apenas um ou de outrem, respeitado o direito de visitas. Enfim, devem os pais prover a criação, bem como a educação, de sua prole, como forma de se garantir a ela uma perfeita conformação moral e intelectual. É através da educação e da autoridade familiar que os pais criam um ambiente propício para o desenvolvimento da personalidade dos menores, assegurando-lhes a convivência familiar do imperativo constitucional. Realmente, HIRONAKA ressalta a importância de que as crianças recebam uma educação condigna e uma noção de autoridade no seio familiar, sob pena de não se ajustarem em outros ambientes sociais. São diversas as atividades diárias que competem aos pais realizar, quanto ao planejamento de refeições, vestes, higiene e transporte dos menores, bem como o auxílio nas questões de saúde e também no ensino de boas maneiras, de educação religiosa, moral, social e cultural160. É na conduta omissiva deste dever de afeto, em sentido amplo, tangido de educação, cuidado e atenção, que se configura o abandono afetivo161. Entendemos por conduta “o comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo conseqüências jurídicas162”. A omissão é uma atividade negativa, ou seja, é um não-fazer que, em tese, não poderia produzir resultado algum. No entanto, a omissão adquire relevância jurídica quando o omitente tem o dever legal de agir. Tal dever consiste na prática de atos que impediriam o resultado. Caso a pessoa esteja em uma situação jurídica que a obrigue a impedir a ocorrência do dano, e não o faça, ela será responsabilizada pelo evento. É o caso dos pais omissos em prover afeto e cuidados aos menores. Dada a situação jurídica em que se encontram – de responsáveis pela criação da prole nos moldes do ordenamento -, os encargos da paternidade são deveres legais assumidos pelos genitores, devendo eles impedir a ocorrência de eventos danosos. Salientamos que reconhecemos a impossibilidade de obrigar um pai a amar seu filho, motivo pelo qual muitos negam a possibilidade da indenização a título de danos 160 Idem, ibidem. p. 416 Idem, ibidem, mesma página. 162 CAVALIERI FILHO, op. cit. p. 24. 161 51 morais decorrentes de abandono afetivo. Por essa razão, estabelecemos aqui critérios mais objetivos de cuidado e afeto nas relações parentais. De fato, é impossível que se obrigue alguém a amar outrem. Porém, defendemos que o genitor, consciente de seus deveres legais e de sua responsabilidade no desenvolvimento da integridade psicofísica de sua prole, deve conferir a ela ao menos amparo nas questões relativas à educação e aos cuidados de criação, possibilitando meios para o pleno desenvolver da dignidade dos infantes. Nesse diapasão, é possível que o Poder Judiciário responsabilize o pai que mal desempenha suas funções, não merecendo prosperar o argumento de que a “falta de prazer163” na paternidade o eximiria do seu encargo. Efetivamente, “o interesse por trás da demanda de abandono afetivo, portanto, não é, como muitas vezes se diz equivocadamente, um interesse construído sobre a violação de um dever de amar164”. Há, de fato, o descumprimento de um dever de prover educação, criação e convivência familiar, que faz do abandonado merecedor de tutela. A conduta omissiva do abandono afetivo, desvinculada da noção de amor, o qual não se pode obrigar, é considerada, na nossa visão, um ato lícito, porém compensável. Para tanto, adotamos a concepção normativa da culpa, em que há um erro de conduta por parte do agente. A “culpa seria um desvio do modelo de conduta representado pela boa-fé e pela diligência média165” que lesa direito alheio. É na medida em que o comportamento do agente se afasta de um padrão (standard) de diligência, ganhando a reprovação social, que se verifica a culpa na atuação. Pelo disposto no art. 186, do Código Civil, aquele que por culpa166 viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, está a cometer ato ilícito. Embora não possamos dizer que exista direito subjetivo ao afeto, que seria requisito para 163 Esse termo foi utilizado no acórdão da 4ª Câmara Cível do TJRJ em apelação que versava sobre abandono afetivo parental. Na referida oportunidade, o Tribunal negou provimento ao pleito indenizatório aludindo expressamente à “falta de prazer” e “satisfação” com que o genitor encarou a paternidade, tendo em vista que seu relacionamento com a mãe do infante não passava de uma “aventura amorosa passageira”. BRASIL, TJRJ, AC 2004.0001.13664, 4ª C. Cível, Rel. Des. Mário dos Santos Paulo, julgado em 08.09.2004. 164 SCHREIBER, op. cit., p. 179. 165 A discussão em torno da culpa dá-se entre duas correntes, quais sejam a psicológica e a normativa. Pela corrente psicológica, é imprescindível a existência de uma norma anterior específica que anteveja o comportamento como ilícito. Ou seja, haveria culpa quando houvesse a violação de um “dever preexistente”. Na corrente normativa, em contrapartida, é suficiente a previsão genérica do neminem laedere (expressão de origem romana segundo o qual não se deve causar prejuízos a outrem) para a determinação do comportamento ilícito. Isto é, a culpa reside na violação de um dever jurídico geral de não lesar os demais, baseado no erro de conduta. Defendem a concepção normativa no Brasil, entre outros, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, SÍLVIO RODRIGUES e S. CAVALIERI. BODIN DE MORAES [3], op. cit., p. 209-211. 166 Usamos aqui o conceito de culpa em sentido amplo, na qual estão contidos o dolo e a culpa em sentido estrito. 52 caracterizar a ilicitude do ato paterno, e, por conseguinte, indispensável à responsabilização do genitor, em sede de danos morais é cabível indenização ainda que por ato lícito. O pai omisso em prover afeto ao seu filho atua, a um primeiro ver, licitamente. Todavia, na medida em que essa atuação se afasta dos padrões de comportamento do homem médio, há um desrespeito ao dever jurídico genérico de não causar prejuízo a outrem, o que deflagra a contrariedade do ato com os standards almejados socialmente. Nesse sentido, é a violação do padrão que enseja a culpa, não havendo necessariamente um direito preexistente ao afeto, mas apenas a caracterização do prejuízo suportado pelo infante, incidindo a noção de dano injusto (que veio a substituir o requisito do ato ilícito). Além disso, o pai omisso desrespeita deveres expressos de conduta que lhe são atribuídos em decorrência do seu estado parental. Tais deveres o impedem de exercer a paternidade livremente, o que significa dizer que seu múnus público encontra limites de atuação no próprio ordenamento. Já estabelecemos, pela teoria do interesse, adotada por nós, que a ressarcibilidade dos danos morais é cabível quando há lesão a interesses ou bens jurídicos dignos de tutela, ponderados os interesses contrapostos, independente da antijuridicidade na atuação. Como os menores e os adolescentes merecem proteção com absoluta prioridade e o abandono afetivo é uma afronta à dignidade dessas pessoas, marcadamente vulneráveis porquanto ainda em estágio de formação das suas capacidades psicofísicas, é certo que seus interesses preponderam diante dos interesses paternos. Sendo assim, o pai, que se abstém de prover afeto e cuidado à sua prole, deixando de seguir os padrões de diligência do homem médio, estabelecidos no ordenamento, agindo com culpa, ainda que a sua conduta não seja propriamente ilícita, deverá ser responsabilizado, quando tal conduta for idônea a produzir o dano injusto. A idoneidade da conduta à produção do evento danoso é condição do nexo de causalidade, como veremos a seguir. 3.8.3 Nexo de Causalidade entre a Conduta Omissiva e o Evento Danoso Já se expôs que o Direito Civil brasileiro adotou a teoria da causalidade adequada em sede de Responsabilidade Civil. Para esta teoria, será causa do evento danoso somente aquela que for mais adequada a produzi-lo. Logo, deverá ser verificado se a conduta omissiva é idônea a produzir danos à pessoa do filho. Nesse mote, importa a perícia técnica avaliar se, a partir dos fatos 53 apresentados e provados, a omissão foi causa adequada à produção da lesão à dignidade do menor, nos seus aspectos psicofísicos e de inserção social e familiar. A importância do nexo causal dá-se em decorrência da sua habilidade em impedir o regresso das causas ao infinito. É ele quem limita as hipóteses de relação causaconseqüência, inviabilizando o provimento de pleitos indenizatórios de danos gerados por outras causas além dos fatos alegados na causa de pedir, ressaltando-se que excluem o dever de indenizar, por quebrarem o nexo de causalidade, o caso fortuito, a força maior167 e os fatos exclusivos da vítima ou de terceiro168. CAPÍTULO IV 4. A posição da jurisprudência pátria A primeira sentença favorável ao ressarcimento de prole por abandono afetivo parental que temos notícia foi emanada pela jurisprudência italiana em 2000, entendendo que a conduta paterna gera sofrimento ao filho em face da ausência de aporte constitucionalmente garantido, relativo ao sustento material, moral e assistencial, o que justificaria naquele país a reparação pecuniária de danos morais por abandono169. Na jurisprudência pátria, o primeiro caso noticiado em jornais em que se deu provimento a pleito semelhante ocorreu em 2003, na comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul. No caso, o pai foi condenado a pagar a título de danos morais a importância de R$ 48 mil reais (200 salários mínimos da época) porque descumpriu os deveres de visitas acordados judicialmente em ação de alimentos anterior, tendo a decisão transitado em julgado nesses termos170. 167 É exemplo de força maior a impossibilidade física do pai em conviver com a prole, por motivo de residir em país diverso em função de seu trabalho. 168 Como fato exclusivo de terceiro, HIRONAKA alude à hipótese do guardião impedir a convivência entre o genitor ausente e o filho (HIRONAKA, op. cit., p. 413). Além disso, também excluída será a causalidade quando terceiro ou apenas um dos genitores venham a desempenhar suficientemente deveres de criação e educação, exemplificando o papel do educador/autoridade, provendo afeto ao infante nos moldes em que traçamos na conduta, pois nesse caso a ausência paterna não seria adequada à configuração do dano. 169 BODIN DE MORAES [1], op. cit., p. 197. 170 O fundamento da sentença assim dispunha: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, ECA). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme. Desnecessário discorrer acerca da importância da presença do pai no desenvolvimento da criança. A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido ou em desenvolvimento violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhe dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos. Por óbvio que o Poder Judiciário não pode obrigar ninguém a ser pai. No entanto, aquele que optou por ser pai - e é o caso do autor - deve desimcumbir-se de sua função, sob pena de reparar os danos causados aos filhos. Nunca é demais salientar os inúmeros recursos para se evitar a paternidade (vasectomia, preservativos, 54 Na referida sentença o Juiz faz alusão expressa à obrigação dos pais a amarem seus filhos. Já nos posicionamos a refutar essa idéia, pelo simples fato de que é impossível despertar sentimentos, como o amor parental. Entretanto, concluímos que isso não exime o genitor do cumprimento de deveres como dirigir a criação e a educação de sua prole, de modo que é aí que reside a razão do provimento da pretensão dos menores abandonados, e não na falta de sentimentos como o amor. No sentido oposto, ação de mesma natureza foi movida no Rio de Janeiro em que se decidiu pela impossibilidade de indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo. No acórdão da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, negou-se provimento ao pleito sob os seguintes fundamentos: o pai não tinha prazer e satisfação no exercício da paternidade, pois o relacionamento com a mãe da autora teria sido apenas uma “aventura amorosa passageira”; não haveria fundamento legal que obrigasse o pai a amar sua filha, tendo em conta o art. 5º, II171, da Constituição Federal; admitir a reparação nesta conjectura seria abrir uma “larga porta de incentivo às aventuras mercantilistas do gênero172”. Em primeiro lugar, sobre a “falta de prazer” do pai no exercício da paternidade, não há de modo algum como sustentar esse argumento, pois a vida em sociedade nos inibe a agir somente com vistas nos “quereres” e “prazeres” próprios. Realmente, a liberdade e a autonomia privadas esbarram nos limites da solidariedade, sendo esta condição à vida coletiva. Quanto à alegação acerca da relação passageira com a genitora da autora, esse argumento também não tem condão de eximir o genitor de suas responsabilidades. Melhor seria se a prole tivesse sido fruto de um planejamento familiar, mas nem todas as crianças nascem dessa maneira, e nem por isso deixam de ser merecedoras de convivência familiar, educação e cuidados de criação. etc.) Ou seja, aquele que não quer ser pai deve precaver-se. Não se pode atribuir a terceiros a paternidade. Aquele, desprecavido, que deu origem ao filho deve assumir a função paterna não apenas no plano ideal, mas legalmente. Assim, não estamos diante de amores platônicos, mas sim de amor indispensável ao desenvolvimento da criança. A função paterna abrange amar os filhos. Portanto, não basta ser pai biológico ou prestar alimentos ao filho. O sustento é apenas uma das parcelas da paternidade. É preciso ser pai na amplitude legal (sustento, guarda e educação). Quando o legislador atribui aos pais a funcao de educar os filhos, resta evidente que aos pais incumbe amar os filhos. Pai que não ama filho está não apenas desrespeitando funcao de ordem moral, mas principalmente de ordem legal, pois não está bem educando seus filhos”. (BRASIL, Comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul. Processo n°. 141/1030012032-0, julgado em 16.09.2003.) 171 O texto do inciso mencionado dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 172 BODIN DE MORAES [4], op. cit., p. 109. 55 Em relação à falta de fundamento legal que obrigue o pai a amar seu filho, pensamos que não é tanto uma questão de haver ou não fundamento legal. Em verdade, chega a ser lógico que o Poder Judiciário não possa despertar sentimentos nas pessoas. Por sua vez, existem deveres outros que podem ser exigidos dos pais (previstos nos artigos 19 e 22, ECA; 227, CF e 1.634, incisos I e II, CC, já mencionados no presente trabalho). Sobre a preocupação pelo incremento de ações mercantilistas dessa ordem, de fato esse é o problema real do tema proposto. Por essa razão que cada caso concreto merecerá análise minuciosa dos fatos (principalmente no que toca o nexo causal, se a conduta omissiva é adequada a produzir o dano) antes que se dê provimento à intentada. Em outro pleito, o Tribunal de Alçada de Minas Gerais também condenou o pai ao pagamento de indenização ao filho por negligência no cumprimento de seus deveres. No caso mineiro, havia uma relação afetiva de filiação na constância do casamento entre os genitores, que foi quebrada a partir do momento em que findo o matrimônio. O filho buscou manter o elo afetivo com o pai, pelo que foi rejeitado, ajuizando em razão disso ação indenizatória, que obteve provimento173. Esse julgado não se baseia na ausência de amor na conduta do pai, mas na falta de convívio e na negligência no que toca a educação e criação do infante, conduta esta passível de compensação, conforme sustentamos no presente estudo. Note-se que o Relator considerou a conduta paterna ilícita, teoria que desconsideramos. Todavia, embora consideremos a conduta paterna lícita, ainda assim há o dever sucessivo de indenizar, tendo em vista o giro conceitual do ato ilícito para a noção de injustiça da lesão em sede de responsabilidade civil. Nesse sentir, já não cabe mais à vítima arcar com danos decorrentes de condutas lícitas enquanto o dano seja injusto. Inconformado, o genitor interpôs Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça. Tendo sido inadmitido na origem, tentou-se por meio de Agravo de Instrumento que o recurso fosse analisado na Corte Superior. Na ocasião, o Ministro Relator FERNANDO GONÇALVES manteve a decisão, com base na Súmula 126 do STJ174. Contudo, por meio do 173 Os argumentos do acórdão são os seguintes: “A família não deve mais ser entendida como relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Assim, ao meu entendimento, encontra-se configurado nos autos o dano sofrido pelo autor, em relação à sua dignidade, a conduta ilícita praticada pelo réu, ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e educação, a fim de, através da afetividade, formar laço parental com seu filho, e o nexo causal entre ambos” (BRASIL, TJMG, 7ª C.C., AP 408.550, Rel. Juiz Unias Silva, julg. em 1/04/2004) 174 A súmula 126 do Superior Tribunal de Justiça tem a seguinte redação: “É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles 56 provimento de Agravo Regimental contra essa decisão, o mérito do Recurso Especial foi finalmente analisado pelo Tribunal. 175 757.411/MG No mérito, por maioria, o Recurso Especial n° foi provido, seguindo os Ministros o voto do Relator176. O julgado não se posicionou acerca da possibilidade em abstrato da reparação pecuniária dos danos morais decorrentes do abandono afetivo. Conteve-se, portanto, aos limites do caso concreto, sendo transcrito no Relatório parte da sentença de primeira instância, em que, analisando o laudo psicológico do caso, dizia não haver uma exata co-relação entre o afastamento paterno e o desenvolvimento de sintomas psicopatológicos no infante. Ademais, na sentença de primeiro grau afirmava-se que a partir do conjunto probatório não ficou demonstrado descaso intencional do réu177 e que os elementos colhidos indicavam que os problemas traumáticos do autor se deram em decorrência do processo de separação dos pais. Concluiu que a procedência do pleito não atingiria qualquer finalidade positiva, como a punitiva ou a dissuasória, afastando a indenização por abandono moral178. O Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou sobre o tema, o que é um infortúnio, dada a relevância de seus julgados na orientação dos demais juízes e Tribunais brasileiros. Todavia, esperamos que em breve os Ministros dessa Corte tenham a oportunidade de apreciar a questão. Com essa breve análise da jurisprudência pátria, pretendeu-se demonstrar que os magistrados ainda não possuem uma posição pacífica a propósito da matéria, sendo ela tratada com certa falta de rigor técnico. suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”. ( BRASIL, STJ, AG n°. 633.801, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. em 14/02/2005.) 175 BRASIL, STJ, REsp n°. 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. em 29/11/2005. 176 Segue a ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. 177 No suporte probatório fático da ação mencionada, o genitor alegou que o convívio familiar era dificultoso, tendo em conta suas diversas viagens pelo Brasil e pelo exterior. Inclusive, à época em que as provas foram colhidas, o Requerido residia na África do Sul, o que comprometia a regularidade dos encontros. Além disso, o Requerido alegou, a fim de eximir sua responsabilidade pelo dano, que a genitora dificultava o convívio entre pai e filho, o que excluiria o nexo causal entre a conduta e o evento danoso.( STJ, REsp n°. 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. em 29/11/2005, página 1 do Relatório.) 178 Esse acórdão foi objeto de Recurso Extraordinário n°. 567.164 ao Supremo Tribunal Federal. Em 14 de maio de 2009, a Ministra Relatora ELLEN GRACIE proferiu decisão negando seguimento ao recurso tendo em conta a Súmula 279 do Pretório Excelso, segundo a qual não cabe Recurso Extraordinário para simples reexame de prova fática178. Essa ação mineira ainda não teve trânsito em julgado, mas tudo indica que não será nessa ocasião que a Corte Suprema se pronunciará sobre o tema. 57 CONCLUSÃO No presente estudo buscamos demonstrar que, diante dos novos paradigmas do ordenamento civil-constitucional, principalmente em relação à proteção da dignidade da pessoa humana, tanto o Direito de Família quanto a Responsabilidade Civil adquiriram novas feições, permitindo a compensação pecuniária por danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações parentais. A entidade familiar evoluiu de uma relação eminentemente patrimonialista, de cunho econômico, a uma relação baseada no afeto, na solidariedade e na vontade de mútua constituição de uma história em comum. Nesse novo contexto, ganhou maior apreço a figura da prole, marcadamente vulnerável, por serem sujeitos ainda em fase de crescimento, desenvolvendo suas capacidades psicofísicas e sociais no seio familiar. Diante disso, o Direito de Família teve que se adaptar, o que resultou na ampliação de normas dessa matéria no ordenamento jurídico brasileiro, e também na criação de princípios próprios que norteiam a sistemática do ramo. De fato, a Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA -, Lei n°. 8.069 de 1990, passaram a tratar incisivamente das questões familiares, sobretudo acerca da relação de responsabilidade que se dá entre pais e filhos, pautados nos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade, da paternidade/maternidade responsável e do melhor interesse do menor e do adolescente. A Lei Maior de 1988 foi um marco na história jurídica brasileira, pois representou a mudança de paradigma na interpretação das leis de todo o sistema. Afirma-se isso, pois na atual sistemática a dignidade da pessoa humana ganhou o papel de fundamento do nosso Estado Democrático de Direito, sendo o novo parâmetro interpretativo do sistema de normas brasileiras. Por esse novo enfoque, entende-se que as relações patrimoniais sucumbiram em prol das relações existenciais, passando a ser a tutela das pessoas a prioridade das nossas leis. Assim, o paradigma atual do ordenamento, que atinge inclusive a Lei Civil, é a dignidade da pessoa humana e a sua proteção, sendo essa orientação que confere unidade valorativa a todas as regras estatais. Nesse quadro, as crianças e os adolescentes ganham destaque, por serem indivíduos que ainda estão em desenvolvimento de suas personalidades. Isso porque o ordenamento confere proteção prioritária à dignidade dos menores, porquanto frágeis e vulneráveis. E, sob a nova ótica civil-constitucional, todo o regramento orienta-se no sentido 58 de prover aos infantes a tutela prioritária, tendo a figura paterna/materna ganho função estruturante ao desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, o que repercute na esfera individual da prole, assim como na esfera social em que ela convive179. Com efeito, crianças que crescem em ambiente permeado de afeto e cuidado têm possibilidades maiores de bem desenvolverem sua psique, o que implica em indivíduos mais aptos a conviverem em sociedade. Dessa feita, o ordenamento passou a encarar a paternidade/maternidade como um múnus público dos genitores, tendo em conta a defesa da ordem social a partir da criança. Relativamente à Responsabilidade Civil, esta também sofreu mutações a partir do novo paradigma civil-constitucional, pautado nas relações existenciais. Desse modo, a Constituição Federal de 1988 deu fim às discussões acerca da reparabilidade de danos que não fossem patrimoniais, prevendo no artigo 5°, incisos V e X, que é assegurada a indenização por danos morais. Embora já não restem mais dúvidas de que os danos morais, melhor denominados como danos à pessoa, são compensáveis, ainda hoje subsistem controvérsias sobre o conceito desses danos e de quais sejam os passíveis de indenização. O problema da identificação da qualidade dos interesses que merecem tutela jurídica acarreta na falta de técnica na aplicação do instituto tutelar. Em função da falta de demarcação científica dos danos indenizáveis, estes vêm sendo criados pelo senso comum, o que gera duas situações indesejáveis. De um lado, pode haver a multiplicação de ações indenizatórias desmesurada; e por outro, pode ocorrer do mecanismo de tutela tornar-se inócuo em função do temor pela banalização dos danos morais. Assim, a Responsabilidade Civil precisa ser mais bem elaborada, sob pena de cometer incertezas e injustiças aos jurisdicionados. A partir da análise das construções doutrinárias que tratam do conceito de danos morais, verificamos que existem quatro. São eles: a) danos morais como danos nãopatrimoniais; b) danos morais como os efeitos da lesão, ou seja, o mal evidente e o 179 O artigo 227 da Carta Magna dispõe que é dever dos pais, do Estado e da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, dentre outros direitos, colocando-os a salvo de qualquer negligência. Essa mesma orientação da Lei Maior é dada pelo ECA, que dispõe em seu artigo 3° que as crianças e os adolescentes gozam de todos os direitos inerentes à pessoa humana, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, além de prever, no artigo 5°, punição àquele que negligenciar-lhes os seus direitos fundamentais. Ademais, o Estatuto determina no artigo 22 que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores. Além disso, o Código Civil lida do exercício do “Poder Familiar”, determinando que aos pais cabe dirigir a criação e a educação da prole, bem como tê-los em sua companhia e guarda (art. 1.634, I e II, CC). 59 sofrimento; c) danos morais como lesão a direitos da personalidade e d) danos morais como lesão à dignidade humana em ao menos um de seus substratos materiais. Após analisarmos cada um deles, acuramos que o último conceito, que liga a lesão à dignidade humana em ao menos um de seus substratos materiais, é o mais pertinente, tendo em vista as vantagens dessa concepção, além de ser mais coerente com o escopo do ordenamento brasileiro, cuja prioridade é a pessoa humana. Por substrato material da dignidade, entendemos como o desdobramento que segue: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não ser marginalizado180” Transportando à esfera jurídica essa noção de dignidade, determinam-se os corolários do princípio da dignidade. São eles: o princípio da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade/autonomia e da solidariedade social ou familiar. Assim, sendo o dano moral considerado como lesão à dignidade em algum de seus substratos materiais, averiguamos que medidas que atentem contra a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade social ou familiar acarretam na possibilidade de reparação a título de danos. Ocorre que, em alguns eventos, tais princípios podem entrar em colisão, tendo ambas as partes interesses contemplados no ordenamento. Nesses casos, resta realizar a ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais a fim de verificar aquele que seja preponderante, indicando se passível de reparação os danos à pessoa, uma vez que considerado o dano injusto, ou se incabível a compensação, por não ser injusto o dano, a depender do caso concreto. Nesse sentido, “o dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressarcida181”. Diante disso, trazendo à baila o caso do abandono afetivo nas relações de filiação, entendemos ser cabível a indenização por danos morais a esse título. 180 181 BODIN DE MORAES [2], op. cit. p. 247. BODIN DE MORAES [3], ibidem. p. 179 60 Em primeiro lugar, identifica-se que a Responsabilidade Civil incide no Direito de Família, tendo em conta que ao primeiro ramo não escapam as relações existenciais e o segundo ramo é marcado pela solidariedade e pela responsabilidade entre seus membros. Em segundo lugar, analisamos as peculiaridades da relação que se estabelece entre pais e filhos, marcada pela assimetria entre os pólos do enlace, pela permanência do vínculo e pela ingerência estatal legítima nesse elo. Sendo o poder familiar um múnus público e o exercício da paternidade/maternidade determinante ao desenvolvimento das capacidades da prole, marcada pela dependência e vulnerabilidade, não poderia o genitor alegar que a ele não seja dado o dever de prover afeto e cuidado aos filhos, fundado no princípio da liberdade/autonomia, vez que este encontra limites na solidariedade familiar e na integridade psicofísica dos menores, princípios mais caros ao interesse social no caso. Realmente, o interesse da prole nessa colisão prepondera, haja vista as peculiaridades da relação e a importância da defesa da ordem social a partir das crianças. Assim, conclui-se pela possibilidade de reparação a título de danos morais por abandono afetivo nas relações parentais. É uma possibilidade, pois no caso concreto existem outras variáveis a serem analisadas, sob a ótica das noções gerais da Responsabilidade Civil, de que depende a condenação. São elas: o pressuposto, a conduta e o nexo de causalidade. O pressuposto da condenação é de que haja, de fato, uma efetiva relação de filiação. Ou seja, o genitor somente poderá ser condenado se, sabendo da sua condição de pai, agiu negligentemente no que toca à provisão de afeto e cuidados ao infante. Em relação à conduta que consideramos adequada a causar lesão (caracterizando o nexo causal), vislumbramos que seja o mau desempenho das funções psicopedagógicas, além da negligência em proporcionar cuidados de criação, educação e convivência familiar em ambiente propício ao menor, de acordo com as possibilidades do genitor e das necessidades do menor. Estando presentes tais requisitos, concluímos finalmente que a sistemática normativa hodierna permite a compensação em pecúnia a título de danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações parentais. 61 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. XI ed., revista, atualizada e ampliada de acordo com o Código Civil de 2002 por Rui Berford Dias. 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