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O Gênio Kantiano ou o
Refém da Natureza
THE KANTIAN GENIUS OR THE
HOSTAGE OF NATURE 1 1
Resumo Este trabalho visa a enfocar a teoria do gênio kantiano segundo duas perspectivas. Em primeiro lugar, interna e fiel ao princípio sistemático-transcendental, tentará demonstrar a existência de uma certa complementaridade entre o gênio, definido,
na Crítica da Faculdade do Juízo, como dom da natureza, e o princípio transcendental
da faculdade de julgar, chamado conceito de finalidade da natureza, apresentado nas
duas “Introduções” à mesma Crítica. Por fim, externa e voltada à preocupação com
uma reflexão sobre a arte contemporânea, poderá “reabilitar” a teoria do gênio, com
base numa outra complementaridade subjacente à Crítica, entre arte e natureza, inserindo-a, assim, num programa mais vasto de reelaboração do conceito de mimesis.
Palavras-chave KANT – GÊNIO – ARTE – NATUREZA – MIMESIS – FINALIDADE DA
NATUREZA.
Abstract Kant’s concept of genius will be analyzed both from an internal and an
external point of view. From an internal point of view, and taking into account Kant’s
view in the third Critique about purposiveness of nature as a transcendental principle
assuring systematic unity in philosophy, I will try to demonstrate that Kant’s concept
of genius in the same Critique, as a “gift of nature”, is in a certain way complementary
to the transcendental principle. From an external point of view, and considering
aspects of contemporary art production, I will argue for a “rehabilitation” of Kant’s
Theory of Genius, grounded on another complementarity, between art and nature,
on the supposition that these concepts can play a role in the re-elaboration of the
concept of mimesis.
Keywords KANT – GENIUS – ART – NATURE – MIMESIS – PURPOSIVENESS OF
NATURE.
1 A presente reelaboração deste artigo (cuja versão menor, em francês, foi publicada nas Atas do IX Con-
gresso Kant und die Berliner Aufklärung, v. III, por GERHARDT, 2001, p.528-536) é um dos resultados
da pesquisa apoiada, entre 2002 e 2003, por uma bolsa de pós-doutorado da CAPES e, atualmente, por
uma bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq.
Impulso, Piracicaba, 15(38): 47-58, 2004
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VIRGINIA DE ARAUJO
FIGUEIREDO
Universidade Federal de
Minas Gerais/UFMG
[email protected]
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PRÓLOGO
A
ntes de abordar o tema do gênio com o qual me comprometi, começarei com, o que poderá parecer a muitos,
uma espécie de digressão aleatória e injustificada. Portanto, antecipando a objeção, precipito-me numa resposta,
tentando explicar por que um texto sobre o gênio inicia
com temas como o da imaginação e com o conceito de
finalidade da natureza. Sem a graça dos romances policiais, que guardam o segredo do mistério até o fim da história, começo por revelar a hipótese subjacente a este texto e que tentarei
não só examinar, como também submeter ao juízo de vocês: a de que
acredito haver não apenas uma profunda afinidade, como, igualmente,
uma possível complementaridade entre a noção de gênio, contida na Crítica da Faculdade de Julgar,2 e um certo conceito de finalidade da natureza,
presente nas duas “Introduções” à mesma Crítica, como um verdadeiro
princípio transcendental.
Ainda no âmbito deste prólogo, cabe indicar brevemente o método
que me servirá de fio condutor à leitura da CFJ. Que essa última Crítica
de Kant tenha nos confrontado com uma polifonia ou multiplicidade de
perspectivas não é novidade alguma – a maioria, senão mesmo a unanimidade dos comentadores a ela dedicados pôde constatá-lo. Entre vários
exemplos, cito, um pouco ao acaso, um texto de Deleuze que aponta
explicitamente tal diversidade:
[Na] primeira parte da Crítica do Juízo, [há] uma diversidade de pontos de
vista. Ora Kant nos propõe uma estética do espectador, como na teoria do
gosto; ora uma estética, ou antes uma meta-estética do criador, como na teoria
do gênio. Ora uma estética do belo na natureza, ora uma estética do belo na
arte. Ora uma estética da forma, de inspiração “clássica”; ora uma meta-estética da matéria e da Idéia, próxima do Romantismo.3
Se há convergência na constatação do problema, o mesmo não
ocorre nas propostas de solução desse problema. De um lado, vê-se uma
tentativa de leitura continuísta, definida por autores como Danielle
Lories4 e Jacob Rogozinski;5 de outro, percebe-se a adoção de um princípio descontinuísta, como é o caso da interpretação de um Jean-François
Lyotard, em seu famoso livro Leçons sur l’Analytique du Sublime. A esses
dois modos de encarar a CFJ, acrescentaria um terceiro, que, embora próximo dela, não pode identificar-se totalmente com a perspectiva continuísta. Trata-se do princípio sistemático-transcendental. É nessa perspectiva que se pretende inscrever o presente trabalho, ao lado de outras interpretações tão ilustres – as do próprio Deleuze e as de muitos autores
2 A partir daqui, referida por meio da abreviação CFJ.
3 DELEUZE, 1963, p. 113.
4 LORIES, 1998, p. 564-593. Entre as duas teses da “cumplicidade ou [do] conflito”, a autora parece-me
tender para a da cumplicidade entre gênio e gosto.
5 ROGOZINSKI, 1998, p. 646.
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brasileiros, como Guido de Almeida e Zeljko
Loparic, entre tantos outros. Portanto, é no domínio do transcendental que este texto ambiciona encontrar sua tonalidade fundamental e, com
isso, torná-la evidente, trazê-la à tona.
A IMAGINAÇÃO OU FACULDADE DE JULGAR?
Como lembra Enid Abreu Dobránszky, em
seu belo livro No Tear de Palas: imaginação e
gênio no século XVIII – uma introdução, no final
do século XVII, início do século XVIII, sobretudo
na Europa continental, houve uma violenta campanha contra a imaginação,6 faculdade essa nascida dupla, gêmea de si mesma: sensível e inteligível, razoável e patética, passiva e reprodutiva, de
um lado, ativa e produtora, de outro... Se a tese de
Dobránszky estiver correta e for possível examinar a história segundo uma certa distribuição periódica das faculdades humanas, dela poderemos
extrair algumas importantes conseqüências não
só para a própria arte feita em cada época, como
também, e estou quase certa disso, para a teoria e
a filosofia da arte. Por exemplo, daquela campanha da razão contra a imaginação que caracterizou o racionalismo cartesiano na França do século XVII, ao transpor os limites da filosofia, avançando e influenciando a crítica da arte a ele
contemporânea, resultou a máxima, provavelmente inspiradora do classicismo francês, de que
as regras e preceitos – e não a vã inspiração – produzem a arte. Em revanche, o empirismo, que já
havia provocado importante mudança no conceito de razão, no século XVIII, ao fazer deslizar a
ênfase do geral para o particular, exigindo, assim,
que a razão se tornasse menos arrogante e aprendesse a compartilhar seus poderes com as outras
faculdades, ao passar ao domínio da arte,
significou uma limitação considerável dos julgamentos racionalistas das obras, embora não se
abandonassem suas pretensões à universalidade.
Tratava-se agora de examinar o modo de contemplação estética. Nesse sentido, o empirismo carreou
para a teoria/crítica de arte elementos basicamente
anticlássicos, que tendiam para uma reavaliação do
6 DOBRÁNSZKY, 1992, p. 47.
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apelo emotivo e do papel exercido pela imaginação.7
Nem racionalista nem empirista, a estética
universalista de Kant reserva à imaginação um papel totalmente inédito na história da filosofia. Na
Crítica da Razão Pura, submetida ao entendimento e às categorias, sua função principal era a
produção dos esquemas. Numa classificação fornecida somente na CFJ, essa tarefa, que consiste
em subsumir representações da sensibilidade a
conceitos do entendimento, é chamada de determinante. A especificação do conceito universal
até o caso concreto produz um juízo típico de conhecimento sempre objetivo ou, como Kant também o designa, lógico. E lógico aí, em sua rígida
terminologia, significa que o predicado do juízo é
um conceito capaz de determinar o objeto.
Não mais comandada pelo entendimento, e
sim fundada num princípio transcendental próprio – a idéia de finalidade da natureza –, a faculdade de julgar livre e heautônoma8 percorre o caminho da reflexão que, oposto ao da determinação, parte da representação intuitiva do objeto
em direção a um conceito do entendimento.
Nesse segundo caso, Kant, o filósofo que não
deixa nada sem nome, chama de reflexionante a
função da faculdade de julgar. O juízo daí resultante, ao contrário do chamado lógico, objetivo ou
determinante, será caracterizado respectivamente
como estético, subjetivo ou reflexionante.
Mera alternância entre duas direções possíveis do ajuizamento – dedutiva ou indutiva – é o
que certamente poderia parecer a qualquer outro
filósofo, mas não a Kant, para quem cada um dos
caminhos ou direções exige um princípio distinto.
O movimento que “desce”, no sentido da especificação, de um conceito universal até um objeto, como qualquer conhecimento científico, deve
fundar-se em conceitos a priori do entendimento.
Já o movimento que “sobe”, no sentido da clas7 Ibid., p. 72.
8 Termo definido por Kant na “Introdução” à CFJ (XXXVII) como “um
princípio a priori para a possibilidade da natureza, mas só do ponto de
vista de uma consideração subjetiva de si própria, pela qual ela prescreve uma lei, não à natureza (como autonomia), mas sim a si própria
(como heautonomia)”.
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sificação ou generalização, de uma intuição empírica buscando conceitos cada vez mais gerais (das
subespécies às espécies e, logo, destas aos gêneros) ou gêneros superiores, deve apoiar-se na
possibilidade de um conceito de finalidade da natureza. Se, no caso dos juízos determinantes, a faculdade de julgar agia comandada pelos conceitos, tendo, portanto, como princípio ou fundamento um conceito do entendimento, já no juízo
reflexionante, Kant deve encontrar um princípio
transcendental próprio à faculdade de julgar, a fim
de candidatar-se ao modo de agir autônomo e,
mais do que isso, possibilitar os acordos que estão em jogo na CFJ. É exatamente o conceito de
finalidade da natureza que, a meu ver, cumprindo
o papel de um princípio ou pressuposto transcendental, nos permite construir um sistema, isto é,
dar sentido ao mundo e à nossa experiência.
Haverá então, para Kant, pelo menos dois
modos distintos de procedimento da imaginação
– o determinante e o reflexionante –, correspondentes a duas maneiras de também focalizar a natureza, segundo, respectivamente, uma lei mecânica e uma técnica. A esse último foco, a CFJ também chama artístico, ou pensar a natureza como
arte. O que caracteriza a lei técnica em oposição
à mecânica é uma representação do todo preceder, necessariamente, a possibilidade das partes.9
Ao contrário, a perspectiva da lei mecânica só
permite conceber o todo como resultado ou efeito de causas previamente dadas. Toda técnica,
pensada quanto ao agir humano (toda arte em
sentido amplo), costuma ser entendida como
meio, instrumento... É o famoso “agir visando a
fins”, fins dados como possibilidade mesma de
suas causas. Mas não conseguiríamos aplicar tal
noção de finalidade da natureza, sem provocar
um transtorno na razão. A pergunta à qual esse
princípio está tentando responder jamais pretenderia alcançar um método, até porque se reconhece a impossibilidade de qualquer ciência do belo.
Finalidade da natureza diz respeito, no máximo,
ao modo de proceder da natureza. No entanto,
ainda assim, a natureza fechada em copas não se
9 Cf. KANT, 1995, p. 43.
50
dispõe a revelar seus modos tão heterogêneos
quanto (até certo limite, pelo menos, para nós)
contingentes, reorientando para a subjetividade a
aplicação daquele princípio. Em outras palavras, a
heautonomia da faculdade de julgar consiste precisamente no fato de limitar-se à subjetividade o
domínio ou a jurisdição daquele princípio transcendental que visa a conceder uma “legalidade ao
contingente como tal”10 para a nossa experiência
(ou conceito de totalidade) da natureza.
AS TRÊS GÊNESES TRANSCENDENTAIS
Segundo a leitura sistemática proposta por
Deleuze, três gêneses transcendentais se desenrolariam na CFJ: “a partir do sublime, gênese do
acordo entre razão-imaginação; a partir do interesse ligado ao belo, gênese do acordo imaginação-entendimento em função do belo na natureza; a partir do gênio, gênese do acordo imaginação-entendimento em função do belo na arte”.11
Como afirmei anteriormente, este trabalho não
pretende, de modo algum, discutir com a (e
muito menos opor-se à) interpretação deleuziana
quanto à questão de, tratando-se da filosofia kantiana, privilegiar justamente a perspectiva da gênese transcendental,12 e sim no que diz respeito à
inclusão do interesse racional pelo belo como segunda gênese.13 O conceito de finalidade da natureza, ocupando, sem sombra de dúvida, a posição de um princípio transcendental, surpreendentemente ignorado por Deleuze, deveria substituir aquele interesse racional pelo belo. A meu
ver, é tal a importância desse conceito que deveria
ser a ele atribuída a tarefa quiçá a mais nobre e a
mais difícil (na verdade, a da CFJ como um todo,
segundo os termos das duas “Introduções”) e
que consiste na unificação dos domínios tradicionalmente antagônicos da natureza e da liberdade. Porém, se não for possível demonstrar essa
última ambição, pelo menos a tarefa arquitetônica o conceito de finalidade da natureza não terá
10 Ibid., p. 53.
11 DELEUZE, 1963, p. 132.
12 Julgo
poder traduzir a expressão gênese transcendental por ponto de
vista sistemático-transcendental, fazendo convergir, assim, análises que
pareciam opor-se.
13 Com a direção de uma gênese transcendental fundada no interesse
racional pelo belo parece concordar também LORIES, 1998, p. 571.
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muita dificuldade em cumprir. Bifurcando-se em
duas finalidades, uma subjetiva (da qual se deduz
o acordo estético) e outra objetiva (da qual se
conclui o juízo teleológico), ele resolve, por assim dizer, a problemática divisão maior da CFJ,
em “Crítica da Faculdade de Julgar Estética” e
“Crítica da Faculdade de Julgar Teleológica”.
Adotando, então, a perspectiva deleuziana
das gêneses transcendentais, mas redistribuindo-as,
teríamos, primeiramente, o sublime, gênese do
acordo entre imaginação e razão, sobre a qual não
falarei aqui; segundo, o conceito de finalidade da
natureza no fundamento da possibilidade do
acordo entre imaginação e entendimento, tanto
por conta do belo na natureza quanto na sua função teleológica; e, finalmente, o gênio, que, na
contrapartida do conceito de finalidade da natureza, trata a gênese do belo na arte por intermédio
das idéias estéticas ou da criação de uma segunda
natureza. É sempre bom lembrar que um dos
problemas (talvez o mais importante) com o qual
a teoria do gênio kantiano lida refere-se à sempre
atual e vigente questão da possibilidade da arte.
Não é, aliás, outro senão esse o caminho pelo
qual a teoria estética de Adorno começa: perguntando-se sobre o direito à existência da arte. Isso,
traduzido na terminologia kantiana, leva ao seguinte: quais são as condições de possibilidade da
arte? Ao que parece, nenhuma época da história
lhe escapa, muito menos a nossa...
Assim, como se articularia essa complementaridade entre o conceito de finalidade da natureza e o gênio? Tentemos descrevê-la: do lado
de tal conceito, a descoberta de um fundamento
supra-sensível que, se não desempenha para o espectador (sempre da natureza) o papel de uma
noção a priori capaz de determinar um objeto de
conhecimento, cumpre ao menos como uma regra a função regulativa de estabelecer um limite
além do qual a experiência (e talvez aqui caiba
“ampliar”-lhe o sentido para experiência do pensamento, que, já em Kant, tem um domínio maior
do que o do mero “conhecimento”) não seria
mais possível; do lado do gênio, um substrato
igualmente supra-sensível regularia a relação entre as faculdades, fazendo-as, cada uma, imagina-
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ção, razão e entendimento, alcançar seus extremos, isto é, o limite próprio a cada uma. Esse
jogo entre as faculdades, se de um lado é universal, uma vez que se apresenta em todos os sujeitos, de outro é o mais singular, na medida em que
se manifesta particularmente em cada sujeito.
Talvez Márcio Suzuki também esteja de
acordo com nossa proposta de correspondência
entre o conceito de finalidade da natureza e o
gênio. Embora em seu livro O Gênio Romântico,
Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel,
ele tenha em vista menos a filosofia crítica de
Kant que o romantismo alemão, mais precisamente o chamado primeiro romantismo de Iena,
a referência à concepção kantiana de gênio é mais
do que freqüente, recorrente. Formulações como
“a genialidade [como] a unidade supra-sensível
das faculdades”14 ou como o gênio é a “expressão
mais radical da atividade reflexionante”15 convergem totalmente com o nosso interesse sistemático. Se tivesse de estabelecer uma topografia dos
conceitos kantianos, não hesitaria em localizar
num ponto extremo, ápice coincidente com a
fronteira, a habitação tanto do gênio quanto do
conceito de finalidade da natureza.16 O lugar da
estreita passagem entre a subjetividade (atividade
reflexionante) e a objetividade (da natureza).
Talvez tenha sido esse o topos que a CFJ inventou
e legou à sua imediata posteridade.17
OS TRÊS CRITÉRIOS DO GÊNIO
O primeiro critério com base no qual Kant
define o gênio é ele “tratar de um talento para a
arte e não para a ciência”.18 Essa primeira definição visa a incluir o gênio na problemática da
CFJ, ou seja, fazendo parte do uso reflexionante
da faculdade de julgar. Como já se repetiu aqui, o
olhar científico é mecânico e deve obedecer ao
encadeamento lógico e interno dos conceitos
14 SUZUKI, 1998, p. 160.
15 Ibid., p. 224.
16 Deslocando para o lado da objetividade, mesmos termos empregados por Suzuki para caracterizar o gênio, não poderíamos dizer que o
conceito de finalidade da natureza também constitui o ápice sistemático e, portanto, supra-sensível como uma expressão mais radical da
matéria do mundo?
17 Sobre esse lugar, ocupado por Kant, entre esclarecimento [ou classicismo?] e romantismo, cf. DESMOND, 1998, p. 595.
18 KANT, 1990, § 49, p. 159.
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puros do entendimento, uma vez que almeja o
conhecimento, ou mais, o progresso do conhecimento; ora, o modo artístico ou técnico deve
tentar liberar o olhar de toda restrição conceitual,
tornando-o mesmo superficial, exterior, detido
nas formas, como quem olha uma paisagem. No
entanto, tal como no juízo do gosto, a questão do
gênio kantiano só se deixa descobrir se levarmos
em conta a trama subjacente constituída pelas relações entre arte e natureza, presentes também na
base da operação de atualização da teoria do
gênio, pelo menos segundo a nossa hipótese.19
A originalidade, primeira propriedade do
produto genial, decorre, portanto, não de uma
decisão ou ato voluntário de uma subjetividade
inspirada, como se vulgarizou na teoria do gênio,
e sim da própria natureza, pensada não mecânica,
mas organicamente, quiçá regida por um princípio genético vivo, indeterminado (e, para nós,
contingente), cujo principal ato talvez consista
em querer superar-se.20 Não poderia ser esse o
sentido da prodigiosa reflexão goetheana sobre as
intrincadas relações entre arte e natureza, que ele
fazia junto com seu amigo Schiller? Ao propor,
por exemplo, que todo organismo, por suas pulsões artísticas (Kunsttriebe), já seria uma espécie
de força aniquiladora da própria natureza? Isso
mesmo, a força organizadora da arte (Kunst), que
está em jogo na formação de todo ser vivo, já seria
uma espécie de instinto (Trieb) anti-natural agindo no seio da própria natureza. Goethe, parece-me,
vale-se da distinção kantiana entre uma natureza
mecânica, podendo muito bem ser entendida na
19 É preciso lembrar como a teoria do gênio foi duramente criticada,
sobretudo pelas estéticas ditas marxistas, que nela viram um dos principais sustentáculos da mistificação burguesa da arte. Até mesmo Benjamin não escapou desse preconceito, que acarretou, entre outros
efeitos, o abandono provisório da teoria do gênio. Insistindo: a meu
ver, se não fossem as relações entre arte e natureza, que funcionam
como um baixo contínuo ao texto da CFJ, não seria possível a reabilitação da teoria do gênio “fora” do, digamos assim, vulgarizado
modelo romântico de uma subjetividade especial. Esse modelo, em seu
extremo (e... caricato) limite, reduziria Shakespeare a uma espécie de
precursor de Madona... A operação de resgate do gênio dá-se, portanto, entre dois extremos: de um lado, aproximação com a estética
(ou poética) da mimesis, de outro, distanciamento crítico da vulgarização romântica do herói.
20 Novalis avalia assim o processo de reflexão: “Superar-se a si mesmo é
por toda parte o mais elevado, o ponto originário, a gênese da vida”
(NOVALIS apud BENJAMIN, 1993, p. 75).
52
sua produção genérica, elementar (e não singular,
portanto), e uma natureza técnica, cuja produção
típica é o organismo, cuja marca é a singularidade.
Entende-se por que Kant continua a definição do
talento do gênio, dizendo que “ele próprio não
pode descrever ou indicar cientificamente como
realiza a sua produção (...) não sabe como as idéias
para tanto encontram-se nele e tampouco tem
em seu poder imaginá-las arbitrária ou planejadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as ponham em condição de produzir
produtos homogêneos”.21
A prova de que a questão do gênio só deve
interessar na medida em que Kant conseguir
relacioná-la ao conceito de natureza, e mesmo
ampliá-lo, nos é dada pela própria definição do
gênio da qual a natureza participa: “Gênio é o
talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que
o próprio talento enquanto faculdade produtiva
inata do artista pertence à natureza, também se
poderia expressar assim: gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá
a regra à arte”.22
É como se a natureza, capturando o gênio,
pusesse-o a seu serviço, a fim de concluir o que
ela, por si só, não é capaz de levar a termo. Por
isso, o papel do gênio é sempre o de inaugurar
uma nova regra, como diz o próprio filósofo,
“que não pode ser inferida de quaisquer princípios
ou exemplos anteriores”.23 Em última instância,
o próprio homem, quero dizer, a humanidade
como um todo, pode ser encarada da perspectiva
do gênio. Ora, a nova regra poderia ser entendida
como a marca da subjetividade intransferível que
cada homem/mulher traz em si e tem como responsabilidade levar a cabo. O que a natureza
mesma, por si só, não é capaz de fazer. A tarefa de
acabamento ou finalização da sua própria humanidade, como bem sabia o amigo de Goethe,
Schiller, é tarefa de cada um. Do ponto de vista da
natureza, a humanidade é um produto, digamos
assim, inacabado... Ou talvez, quem sabe, um
produto da rebelião ou de revolta da própria
21 KANT, 1990, § 48, p. 158.
22 Ibid., p. 153.
23 Ibid., p. 154.
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natureza contra si mesma, contra os seus inexcedíveis limites genéricos...
Essa regra – insisto: talvez não seja outra
senão a da singularidade – que a natureza põe no
gênio (mas, segundo essa leitura mais ampliada
que acabamos de fazer, colocaria em todos nós/e
em cada um) é tão insondável e secreta para nós
quanto para o próprio gênio. Sabe-se que, em não
poucos casos, mesmo o tempo de uma vida inteira não é suficiente para descobrir-se a que se
está destinado. E embora “descoberto”, nunca se
trata de um saber seguro, muito menos de uma
ciência. É esse o sentido do título deste trabalho,
do gênio pensado como refém de uma natureza,
com propósitos fora de seu alcance, os quais,
como já disse, ela é incapaz de levar a cabo, impondo, assim, quase um mecanismo com base no
qual o gênio cria, segundo uma necessidade que,
na maior parte das vezes, lhe escapa. Sua criação,
talvez, nada mais seja do que a tentativa de resposta a uma interrogação permanente sobre esses
fins a ela impostos pela natureza. Cria o que Kant
chamou de segunda natureza, ou outra natureza,
tal como ela ainda não é ou como, pelo menos, jamais foi. Ergue a arte a um patamar em que
Aristóteles já a tinha colocado: ao lado da filosofia, junto do reino da possibilidade, sempre mais
amplo e extenso do que a história,24 por sua vez,
a ser colocada ao lado da ciência, como definida,
modernamente, por Kant: aquela que pode ser
adquirida mediante imitação.25
O segundo critério que define o gênio em
Kant é o de “uma relação entre a imaginação e o
entendimento”.26 Se as faculdades são as mesmas,
isso poderia precipitar-nos numa equivocada
conclusão sobre reduzir o gênio ao gosto. Se o
acordo entre imaginação e entendimento caracteriza efetivamente tanto o gosto quanto o gênio,
isso não significa que eles sejam idênticos, e a primeira distinção é aquela entre o estético, que está
em jogo no caso do gosto, e o artístico, presente
no gênio. Enquanto o gosto refere-se mais imediatamente ao sentimento do belo que invade o es-
pectador, numa perspectiva inegável da recepção,
o gênio liga-se mais à criação na qual se inscreve o
artista. Aqui poderia invocar uma verdadeira polêmica alardeada por um filósofo como Nietzsche,
que não só opôs uma a outra – arte e estética –,
mas assim o fez a fim de condenar a estética feminina do século XVIII (diga-se de passagem,
Kant), tentando promover a estética viril do século XIX (?), ligada ao artista criador. Porém, não
está nos propósitos deste ensaio destrinçar mais
essa espinhosa questão, muito menos tentar desfazer os equívocos que certamente a sustentam.
A única conclusão que pretendo extrair disso é
que, se não estou de acordo com um ponto de
vista que reduz o gênio ao gosto, também não
vou aderir ao princípio que neles enxerga apenas
combate e oposição. De novo, invoco aqui o
princípio da complementaridade ou da sistematicidade, a meu ver, o único que frutifica, tratandose da filosofia kantiana.
Dada a necessidade de hierarquizar e estabelecer privilégios na relação entre gênio e gosto,
Kant não hesita, concede privilégio ao gosto: “Se,
no conflito de ambas as espécies de propriedades
algo deve ser sacrificado em um produto, então
isto terá de ocorrer antes do lado do gênio”.27 E
alerta que o gênio, abandonado a si mesmo, só
produz disparates. É preciso que a imaginação do
gênio seja cultivada e disciplinada pela faculdade
de julgar do gosto. A liberdade dessa última faculdade limita-se sempre pela legalidade do contingente, ou, em outras palavras, pelas leis empíricas da associação, ao passo que o gênio tende à
ilimitação.28 Além do perigo assumidamente
metafísico, no qual se arrisca a imaginação do
gênio, ao tentar promover a apresentação de idéias
tornada impossível pelo exame crítico, a meu ver
um outro motivo torna essa faculdade suspeita
aos olhos de Kant: o seu elemento irremediavelmente material, empírico e sensível (dos sentidos). Esse elemento que liga o gênio de modo irredutível à produção do belo na arte e a dificuldade de incluí-lo em sua estética de cunho irre-
24 Cf. ARISTÓTELES, 1979.
25 KANT, 1990, p. 154.
27 Ibid., § 50, p. 203.
26 Ibid., p. 163.
28 Cf. DESMOND, 1998.
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vogável universalista levaram o filósofo transcendental a privilegiar o gosto em detrimento do
gênio. Mais adiante, na apresentação das idéias estéticas, que constitui o último critério a definir o
gênio, examinaremos a possibilidade de reconciliação desse conflito, a meu ver, mais aparente
que efetivo.
A mesma complementaridade entre gênio e
gosto nos fornece, também, elementos para elucidar a relação da arte com a sua posteridade,
pois, como Kant afirma, ainda que os produtos
do gênio sejam originais, isto é, não tenham sido
engendrados de qualquer modelo ou imitação,
nem por isso podem deixar de cumprir a função
de exemplo, medida ou regra de julgamento29
para os que virão a seguir. Não há dúvida de que
a questão da posteridade da arte é muito mais
complexa que a evolução do pensamento científico. Kant apela mais uma vez, na CFJ, à comparação entre o artista e o cientista, a fim de elucidar
essa posteridade que, na arte, não tem nada a ver
com progresso ou continuidade.30 A história da
arte será inevitavelmente uma história ou tradição
de rupturas. O que isso quer dizer? Que o produto genuinamente artístico, o do gênio, não
sendo imitação de nada, deve morrer, pelo menos
em sua possibilidade, junto com o artista. Morre,
então, a possibilidade daquela obra, mas não a da
arte (ainda não chegamos a Hegel!)... E o próprio
Kant reconhece: “É difícil explicar como isto seja
possível. As idéias do artista provocam idéias
semelhantes em seu aprendiz, se a natureza o
proveu com uma proporção semelhante de faculdades do ânimo”.31
Algo, então, é transmitido, estabelecendo o
que Kant chama de uma sucessão ou herança
exemplar, como traduz A. Philonenko o termo
Nachfolge, que se diferencia de imitação servil
(Nachahmung), mas, na verdade, a comunicação
de um princípio, cuja função é vivificar e animar
as faculdades entre si, e que se dá, de modo especial, entre os gênios, depende, em última instância,
de uma determinação natural. A história da arte
incluiria a natureza? Como interpreta Deleuze, o
gênio não é uma subjetividade universal, mas,
antes, uma intersubjetividade excepcional... Com
efeito, “o gênio é sempre um apelo lançado para
o nascimento de outros gênios. Mas quantos desertos será preciso atravessar antes de um gênio
responder a outro”.32 E, um pouco mais adiante,
Deleuze povoa esse deserto com “homens de
gosto, alunos e admiradores”.33
Daqui poderíamos concluir que a estética
kantiana ou, pelo menos, sua teoria do gênio se
opõe à mimesis? Bem, se entendermos a mimesis
como tradicionalmente foi traduzida, por imitação pura e simples, então, não há dúvida de que
Kant recusa qualquer afinidade entre o gênio e a
mimesis. Nesse caso, a teoria do gênio ocuparia
mesmo o momento de ruptura na história da
produção da arte, quando supostamente teríamos
passado do plano da mimesis para o da criação.
Mas essa é a maneira tradicional de pensar a
mimesis, e espero, ainda no âmbito deste trabalho, sem estender-me demais sobre tal problema,
tentar ao menos indicar os termos de uma
reformulação da teoria da mimesis tomando por
base Aristóteles, de forma a acolher, numa estética que chamaria provisoriamente de mimética, a
teoria do gênio kantiano.
O terceiro critério que define o gênio para
Kant é o que o designa como “a faculdade de
apresentação das idéias estéticas”,34 o que significa dizer que a definição do gênio está totalmente
imbricada com outro tema fundamental em Kant,
o da apresentação das idéias.
Essa faculdade de apresentação das idéias
estéticas, também chamada por Kant de Geist, espírito, é o princípio que, vivificando as faculdades, as predispõe ao acordo – em outras palavras,
o espírito funciona como um substrato suprasensível de todas as faculdades, incitando-as ao
acordo, mas não segundo um modelo tirânico ou
repressivo. A incitação ao acordo e ao jogo deve
aqui ser pensada, como talvez só Schiller tenha
profundamente compreendido, em suas Cartas,
29 Cf. KANT, 1990, p. 153.
32 DELEUZE, 1963, p. 131-132.
30 Ibid., p. 155.
33 Ibid., p. 131-132.
31 Ibid., p. 155.
34 KANT, 1990, p. 162.
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no sentido de uma acentuação, intensificação da
potência de cada faculdade. A verdadeira harmonia entre as faculdades só poderá ocorrer quando
a imaginação tornar-se mais imaginante, a razão
mais raciocinante, o entendimento mais conceituante, e assim por diante... Se me permitem os
neologismos de gosto duvidoso...
As idéias estéticas são apresentadas por
Kant como “uma representação da faculdade da
imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é,
conceito, possa ser-lhe adequado, que conseqüentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível”.35 Ou,
como as designa Jean-Luc Marion, são fenômenos saturados,36 intuições insaciáveis de conceito,
ao contrário das idéias racionais, conceitos insaciáveis de intuição, ou, ainda, como as descreve
Deleuze: “fenômenos (que) são imediatamente
acontecimentos do espírito, e acontecimentos do
espírito (que são) fenômenos da natureza”.37 E,
finalmente, retornando a Kant, é nas idéias estéticas que “os seres invisíveis, o reino dos bemaventurados, o inferno tomam corpo; e o amor, a
morte assumem uma dimensão que os torna adequados a seu sentido espiritual”.38
Retomando o que antes havíamos mencionado – o fato de ser o gênio encarado como uma
das gêneses transcendentais da CFJ, precisamente
a gênese do belo na arte, já que o belo na natureza
encontrara sua gênese no conceito de finalidade
da natureza –, e tentando reuni-lo agora com esse
terceiro critério da definição do gênio, ou seja,
sua faculdade de apresentar as idéias estéticas, vejamos os resultados, os quais passo aqui apenas a
anunciar, pois não terei mais tempo nem espaço
para aprofundá-los.
1. O princípio transcendental – o conceito
de finalidade da natureza – sustentava, na medida
em que descobria um princípio supra-sensível na
origem da natureza sensível, a regularidade e a re35 Ibid., p. 159.
36 Cf. conferência “Como introduzir na fenomenologia o conceito de
fenômeno saturado”, pronunciada na Université des Sciences Humaines de Strasbourg, França, 1992.
37 DELEUZE, 1963, p. 130.
38 Cf. KANT, 1990, p. 160.
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petição da lei natural máxima – a lei dos gêneros
–, fornecendo, assim, os limites nos quais passeia
livremente a faculdade de julgar do espectador,
capaz de destacar, das cinzas da monótona experiência cotidiana, a intensidade de uma bela produção natural. Do mesmo modo, a natureza concede ao gênio o seu próprio princípio subjetivo –
nunca se deve esquecer que, em Kant, o transcendental funda tanto o objetivo como o subjetivo39 – ou “esta idéia indeterminada do suprasensível”,40 que subjaz a todas as faculdades, cujo
único fim é, vivificando-as, colocá-las em acordo.
Daí podemos concluir que os dois são o mesmo:
o substrato supra-sensível de todos os fenômenos, que a nossa faculdade de julgar precisa para
observar a natureza, e o substrato supra-sensível
de todas as faculdades, que a natureza inspira ao
gênio, a fim de que ele possa realizar sua obra? E
nesse caso, o gênio deixaria de ser uma subjetividade excepcional – ou, como entende Deleuze,
uma intersubjetividade excepcional – para tornarse uma espécie de protótipo da subjetividade transcendental?
2. Na seqüência desse raciocínio, como faculdade de apresentação das idéias estéticas, o
gênio seria a tentativa de alçá-las à ambiciosa função de um acontecimento originário de toda apresentação? Dependeria do gênio resgatar a imaginação de uma posição empírica, reprodutiva,
inventiva, ou criativa, em que a tradição se acostumou a localizá-la para lançá-la de volta a seu
lugar apropriado no transcendental? E as idéias
estéticas: se tornariam, como ato primeiro da
imaginação, uma espécie de protótipo do esquematismo ou, ainda, esquemas da razão? Esticando a
corda desse mesmo raciocínio às suas últimas
conseqüências, descobriremos um caminho possível para resgatar também o sentido pleno do
termo estética, em Kant, quero dizer, menos o
sentido tradicional de uma ciência do belo, e mais
o intuído pelo próprio filósofo, quando, com
determinação e ineditismo, chamou a primeira
parte da sua Crítica da Razão Pura de “Estética
39 Ibid., p. 185.
40 Ibid., p. 186.
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Transcendental”? O que estou tentando insinuar
é que o gênio (apesar de todos os riscos metafísicos, de um lado, e materiais e sensíveis, de outro) e a perspectiva da reflexão da CFJ não representam um enfraquecimento ou recuo da filosofia crítica em direção a qualquer empirismo ou
dogmatismo, mas, ao contrário, um adensamento
ou radicalização da perspectiva transcendental.
3. Efetivamente, as idéias estéticas reintroduzem um aspecto material e sensível excluído da
reflexão, quando ela se voltava à observação do
belo na natureza e podia deter-se apenas às formas. Tal relação de exterioridade, que mantém o
espectador no acordo contingente do belo natural, não pode conservar-se na relação interna sustentada pelo gênio com a mesma natureza. Se
continua firme o propósito de relacionar o gênio
com a imaginação transcendental, teremos de, remanejando o texto crítico como um todo, tomar
a primeira parte da Crítica da Faculdade do Juízo
como a segunda parte da “Estética Transcendental”, na “Teoria Transcendental dos Elementos”
da Crítica da Razão Pura, concordando com a
opinião unânime, a respeito da estética transcendental, de que ela assume um ponto de vista totalmente negativo no que se refere à sensação e à
matéria.
4. Por último, gostaria de me reportar àquilo que chamei de programa de resgate da mimesis,
não mais pensada como mera imitação, mas, aristotelicamente, como relação de complementaridade entre arte e natureza, e examinar como a
teoria do gênio kantiano talvez só encontre seu
sentido mais profundo se for iluminada por esse
pensamento de reformulação ou remanejamento
do conceito de mimesis.
Entre tantas complementaridades – gênio e
gosto, gênio e conceito de finalidade da natureza,
belo e sublime, estética e arte – convoco essa última, cuja importância já tive a oportunidade de
ressaltar e que, a meu ver, subjaz de modo constante ao texto inteiro da CFJ e se trata da complementaridade entre a natureza e a arte. São
muitas as passagens a, aqui, nos servir de exemplo, mas tomo essa ao acaso: “A natureza era bela
se ela ao mesmo tempo parecia ser arte; e a arte
56
somente pode ser denominada bela se temos
consciência de que ela é arte e de que apesar disso
nos parece ser natureza”.41 Ela parece justamente
ecoar a idéia aristotélica de unidade entre a arte e
a natureza, quando, na Física II, fica estabelecido
que a technè (ou arte, e não técnica) conduz a seu
termo (telos) aquilo que a natureza (phusis) é incapaz de realizar,42 ou, um pouco mais adiante,43
a idéia de que o gênio produz sua obra da mesma
maneira que a macieira gera suas maçãs. No entanto, esse princípio da reciprocidade ou complementaridade entre arte e natureza, que pode ser
flexionado, na CFJ, como alternância entre arte e
ciência, perspectiva técnica ou mecânica, não repercute apenas a voz do filósofo (Aristóteles).
Ele também pode ser ouvido na reivindicação de
poetas tão distintos como o “clássico” Goethe e
o “romântico” Hölderlin, em passagens como as
que citarei para finalizar este trabalho.
Tentando dar algumas indicações do contexto histórico em que ocorrem essas duas citações, diria que a Alemanha vivia certamente um
momento de crise, de passagem do modelo clássico ao romântico. Era ainda a velha querela entre
os antigos e os modernos, à qual Schiller deu
novos nomes: ingênuo e sentimental. Momento
de provável ruptura com a leitura normativa da
Poética de Aristóteles, característica do teatro
francês do século XVII, que consistia em buscar os
preceitos e as regras para escrever a boa peça, a ser
avaliada também segundo o cumprimento (ou
não) das mesmas regras. O que estou insinuando
é que, possivelmente, o ambiente clássico – tanto
do ponto de vista do artista quanto do público espectador – encontrasse seu fundamento na regra
aristotélica. A minha hipótese é que essa época
testemunhava um revolucionário deslocamento:
em direção à natureza, à qual se passou a dirigir a
pergunta sobre a possibilidade da arte... O típico
artista moderno, o fenômeno Shakespeare vem
questionar a validade de todas as regras da tragédia antiga. É preciso, com urgência, encontrar
41 Ibid., § 45, p. 179.
42 ARISTÓTELES (Física II, p. 198b, 17) apud BEAUFRET, J., “Phusis et Technè in Aléthèia”, Revista Aléthèia, Paris, n. 1-2, p. 16.
43 Ibid., p. 199b.
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novos paradigmas, novos preceitos. A modernidade inaugura-se nas artes como uma espécie de
revanche da imaginação contra a razão. E essa talvez seja a sua principal marca... Senão, como explicar a sede pela hybris das vanguardas? Contra a
artificiosa corte francesa (quem seria o público do
teatro francês do século XVII?), surge o vulto
fantasmagórico, sublime da natureza desregrada... De quem mais senão do gênio? Figura emblemática da arte sublime!
É, portanto, nesse contexto, grosseira e rapidamente descrito, que podemos ouvir as exclamações dos dois grandes poetas alemães. A primeira trata o problema do gosto, da recepção; é
um elogio entusiasmado de Goethe diante dos
personagens de Shakespeare: “Natureza! Natureza! Nada é tão natureza quanto o são os homens
criados por Shakespeare!”.44 Ora o que essa frase
significa senão a consagração do novo paradigma,
do paradigma do gênio, do artista moderno? O
que ela significa senão que deverá ser encontrado,
a partir de agora, na natureza (e não mais nas antigas regras clássicas) o modelo da arte moderna?
Poderemos retomar Kant, dizendo que só na medida em que a arte se parecer natureza, dela poderemos dizer que é bela? Não estaríamos diante
de um novo, moderno critério capaz de discernir a
arte do que não é arte? Kant já não tinha anteci-
pado que o fundamento do juízo de gosto encontrava-se no conceito de finalidade da natureza?
Passemos à citação de Hölderlin, que já nos
leva ao problema imediatamente suscitado pelo
paradigma, digamos assim, natural da arte. Trata-se
da queixa do artista moderno. Era do Olimpo, do
cume da arte clássica ou ingênua, para onde Goethe
ascendeu em vida, segundo a aguda análise de
Walter Benjamin sobre a novela As Afinidades
Eletivas,45 que Goethe consagrara Shakespeare
como o artista, o gênio romântico. Mas Hölderlin
ainda estava às voltas com sua produção, à procura desesperada de um princípio técnico, artístico, capaz de orientá-lo na construção de sua obra,
deparando apenas uma natureza insondável. Há
um verdadeiro tom de súplica nas suas palavras.
Uma explícita reivindicação de cidadania para a
arte. O que é isso senão uma pergunta sobre a
possibilidade da arte moderna? O que é isso senão o reconhecimento imediato da dificuldade da
arte moderna? Daquela pergunta adorniana, traduzida nos termos de Kant, sobre as (conturbadas) condições de possibilidade da arte, nos dias
de hoje? “Seria bom, a fim de assegurar aos
poetas, também entre nós, uma existência de cidadão, elevar a poesia, também entre nós, levando em conta a diferença das épocas e das
instituições, à altura da mèkhanè dos Antigos.”46
45 BENJAMIN, 2000, p. 274-395.
44 GOETHE, 1983, p. 214.
46 HÖLDERLIN, 1994, p. 93 (tradução modificada).
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Dados da autora
Professora doutora do Departamento de
Filosofia da FAFICH/UFMG.
Fez doutorado em filosofia na Université des
Sciences Humaines de Strasbourg, França, e pósdoutorado em filosofia no Boston College, USA.
Recebimento artigo: 16/jul./04
Consultoria: 14/set./04 a 4/nov./04
Aprovado: 2/dez./04
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O Gênio Kantiano ou o Refém da Natureza THE KANTIAN