Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 O TEMPO E A CULTURA DA NATUREZA:
uma análise das sensibilidades dos escritores regionais em relação ao semiárido
do nordeste brasileiro
Catarina de Oliveira Buriti∗
José Otávio Aguiar∗∗
Resumo: A literatura se apresenta como uma expressiva fonte de investigação para
os(as) historiadores(as) do ambiente quando o que se almeja é atingir o reduto das
significações instituídas historicamente pelas sociedades em relação ao meio ambiente
que as circunda. Objetiva-se neste trabalho analisar de que forma os referenciais
naturais/climáticos e sociais/históricos influenciaram as narrativas de Raquel de Queiroz
na obra O quinze (1930) e de Graciliano Ramos em Vidas secas (1938), escritores ligados
à literatura regional do Semiárido.
Palavras-chave: Literatura. Semiárido. História ambiental.
Abstract: The literature is presented as a source significant of research to historians of
the environment when the aim is to reach the stronghold of the meanings historically
imposed by societies on the environment that surrounds. The aim of this work is to
analyse how the referential nature/climate and social/historical influence the narratives of
Raquel de Queiroz in O quinze (1930) and of Graciliano Ramos in Vidas secas (1938),
writers linked to regional literature of Semiárido.
Keywords: Literature. Semiárido. Environmental history.
Objetiva-se
neste
trabalho
analisar
de
que
forma
os
referenciais
naturais/climáticos e sociais/históricos influenciaram as narrativas de Raquel de Queiroz
na obra O quinze (1930) e de Graciliano Ramos em Vidas secas (1938), escritores
ligados à literatura regional do Semiárido. O enfoque será dado, particularmente, às
sensibilidades desses literatos em relação aos fatores naturais e climáticos configurados
artística e esteticamente nessas fontes sob a forma de um tempo cíclico da natureza
forçosamente vivenciado pelas populações da região.
Para realizar a leitura dessas obras, considerar-se-á a proposta de Paul Ricouer
de que há o cruzamento entre a ficção e a história através do uso de traços do imaginário
no ato de composição desses enredos. Essa relação ocorre por intermédio da operação
de humanização do tempo na narrativa, o que o filósofo denomina refiguração. Nessa
∗
Mestranda vinculada ao Programa de Pós-graduação em História da UFCG e bolsista pela
CAPES.
** Pós-doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História da UFPE, Professor do
Programa de Pós-graduação em História e do Programa de Pós-graduação em Recursos Naturais
pela UFCG.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 perspectiva, a história reclama, de algum modo, a ficção quando se utiliza da imaginação
para preencher as lacunas deixadas pelos rastros ou para interpretar os vestígios que
toma como fonte, mesmo que esse uso seja feito a serviço de seu intento de
representância do passado, ocorrendo a ficcionalização da história; enquanto, por outro
lado, de forma similar, a ficção se vale da história com o objetivo de construir a sua trama
e de humanizar o tempo narrado, historicizando a ficção1 (RICOUER, 1997).
A escolha da literatura justifica-se porque esta vem se constituindo como uma
fonte cada vez mais recorrente por parte de historiadores(as) preocupados(as) em
investigar o reduto das sensibilidades historicamente situadas em um contexto
sociocultural específico. Contudo, é importante advertir, de antemão, que se o historiador
recorrer à literatura com o intuito de identificar se os personagens daquela trama
realmente existiram ou se algo teria ocorrido de fato, não é a esse tipo de fonte que deve
recorrer. Já para o historiador que busca atingir as sensibilidades e as significações
instituídas pelas sociedades em uma determinada época ou repensar as representações
do mundo no passado, a literatura se presta como uma fonte especial que pode permitir
inclusive que o historiador encontre vestígios que outras fontes não lhe fornecerão
(PESAVENTO, 2005).
No caso deste trabalho, pretende-se repensar as sensibilidades historicamente
constituídas pelas sociedades do Semiárido brasileiro em relação ao ambiente que as
circunda, considerando que não obstante a natureza impor restrições à permanência da
vida do sertanejo naquele espaço, ele luta para permanecer naquele lugar mesmo diante
das adversidades como escassez relativa de água, falta de alimentos, mandonismo
político, corrupção, desvios de recursos voltados para permitir o convívio com a seca, etc.
Assim, pode-se afirmar que essa continuidade da vida social no Semiárido torna-se
possível através de certo grau de topofilia, ou seja, de um elo afetivo que vincula o
homem do Semiárido àquele lugar e que o leva a buscar novas alternativas de
sobrevivência quando a agricultura e a pecuária não são possíveis em decorrência das
estiagens, e quando os governos não implementam políticas públicas que propiciem a
convivência com as características naturais/climáticas da região2 (MARIANO NETO,
2001).
O Semiárido brasileiro, como toda região geográfica, caracteriza-se pela influência
de uma série de fatores naturais, entre os quais se sobressaem os domínios físicos –
1
Para aprofundar a inter-relação entre história e ficção, ver também os tomos I e II da obra Tempo
e narrativa, de Paul Ricoeur, nos quais ele inteorduz as operações de prefiguração (mímesis I),
configuração (mímesis II) e refiguração do tempo narrado (mímesis III).
2
Cf. sobre o conceito de topofilia TUAN, Yu-fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e
valores do meio ambiente. São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1980.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 estrutura geológica, relevo, clima e hidrografia – o meio biológico – vegetação e fauna – e
a organização dada ao espaço pelo homem. Sabe-se, contudo, que não obstante as
paisagens naturais e culturais resultarem do entrelaçamento e da influência mútua entre
esses fatores, de modo que não há exclusividade da ação de nenhum deles na
configuração das paisagens geográficas, a tendência é que uma dessas características
ambientais se destaque no mosaico paisagístico regional. No caso do Nordeste, o
elemento que marca mais sensivelmente a paisagem e a vida do homem é o clima,
através do regime pluvial quente-seco exteriorizado pela vegetação natural (ANDRADE,
1973).
A história do Semiárido é marcada por períodos chuvosos alternados com a
ocorrência de secas que, em geral, tendiam a se prolongar por uma sequência de anos.
Nos anos 1930, embrenhados no domínio da caatinga, nos períodos de estiagens, os
personagens que povoavam esse espaço tinham que garantir a sua sobrevivência
convivendo com uma característica peculiar a todas as regiões semiáridas do mundo: a
variabilidade climática. Em alguns anos, as chuvas chegavam no tempo esperado e até
com intensidade pluviométrica superior à média esperada. No entanto, na sequência dos
anos, essas precipitações chegavam com atrasos ou simplesmente não atingiam aquelas
plagas, modificando a vida na região. Tais irregularidades naturais periódicas interferiam
significativamente nessa sociedade, deixando vir à tona uma realidade, que até então se
tentava escamotear, de falta de investimentos em projetos de desenvolvimento efetivo e
de convivência com a realidade natural do Semiárido (GOMES, 2001).
Nos períodos de estiagens prolongadas, era comum a fuga de famílias em busca
de “um lugar menos seco”. Conforme a trama de Graciliano, depois de vivenciar um
período de inverno com relativa estabilidade, Fabiano sentia de longe que a seca se
aproximava e apesar de saber perfeitamente que era necessário mudar-se com a família,
“[...] agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse.”
Todavia, um conjunto de imagens muito bem delineadas em sua memória fazia com que
ele experimentasse “[...] adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das
retiradas.” E sentisse pela vulnerabilidade da vida nos sertões, pois há poucos dias, nos
alegres tempos de inverno, “[...] estava sossegado, preparando látegos, consertando
cercas.” De repente, “[...] olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a
vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas.” (RAMOS, 1979, p.
62).
Através dessa obra, observa-se que os problemas sociais e econômicos da região
são naturalizados, atribuídos pelos literatos exclusivamente ao clima e à natureza,
enquanto as querelas políticas, os esforços de manutenção no poder por parte dos
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 grupos oligárquicos e os resquícios de coronelato ainda vigentes que impediam o
desenvolvimento da região não são mencionados nessa obra como sendo os
responsáveis pelo “sofrimento”, o “cansaço”, a “sede” e a “fome” do sertanejo. Sabe-se
que essa é uma região seca, que possui especificidades, mas que também apresenta
potencialidades de desenvolvimento sustentável, desde que haja políticas de valorização
de toda uma cultura que desenvolveu em interação com esse espaço (CHACON, 2007).
Os enredos tomados como fonte para esta pesquisa lançam luz, singularmente,
sobre a instabilidade da vida das populações do Semiárido, justamente porque além de,
desde o início do Império e, sobretudo, na década de 1930, as atenções e os
investimentos do governo estivessem voltados para a cultura cafeeira, durante toda a
história do Sertão nordestino, os projetos de desenvolvimento – em geral, emergenciais –
foram implementados verticalmente, sem valorizar o potencial que essas populações
construíram historicamente para conviver com a condição natural de seca. Em virtude das
condições socioeconômicas da região, passíveis de planejamento político, governamental
ou não, que atentasse para as peculiaridades climáticas desse espaço, o cotidiano dos
sertanejos oscilava ora entre os momentos de entusiasmo com o inverno, quando a
natureza rapidamente florescia e os sertanejos tentavam afastar as “amargas” lembranças
da seca no passado, ora diante do temor de que ela voltasse em um futuro próximo.
Quando isso ocorria, a “fuga” aparecia no horizonte desses(as) moradores(as) como a
alternativa mais viável. Diante da ausência de alternativas que propiciassem uma
convivência mais harmoniosa com essa singularidade natural, o cotidiano das populações
da região acompanhava, forçosamente, o tempo cíclico da natureza.
Essa é também a característica do cotidiano da família de Chico Bento, o vaqueiro
da Dona Maroca que povoa as páginas de Raquel de Queiroz. Desiludida com o inverno
que em pleno mês de março ainda não tinha chegado, já tendo migrado para a cidade, a
fazendeira das Aroeiras “[...] deu ordens prá, se não chover até o dia de São José, abrir
as porteiras do curral. E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra
ninguém.” Chico Bento relutava em deixar a sua terra. Juntando os fiapos de esperança
que lhe restava, “esperou ainda uma semana” para cumprir a “sentença” e partir em
retirada com a família: “— Me esperancei que inda chovesse depois do São José... Mas
qual!” (QUEIROZ, 1979, p. 13).
Em ambas as narrativas, tratam-se de famílias que deixavam a região do
Semiárido embriagadas pelo sonho de encontrar essa “terra desconhecida e civilizada”
(RAMOS, 1979, p. 71). Sabe-se que embora remonte a fins do século XIX, a migração de
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 sertanejos(as) para outras regiões do país intensificou-se a partir da década de 1930,
notadamente, em direção aos grandes centros urbanos do Sul3.
Feitas essas considerações, começo a minha análise com base no que considero
desencadeador da problemática tomada para efeito desse estudo: de que cotidiano os
atores e as atrizes sociais do Semiárido fugiam? Por que a causa dessas fugas, em geral,
é atribuída às secas? Qual era realmente a causa da migração dos personagens do
Semiárido para outras regiões do País?
Não obstante o clima peculiar ao Semiárido ter sido em geral responsabilizado
pelos principais problemas sociais vivenciados nessa região, sendo a migração interregional um deles, a Natureza atuou como o argumento mais convincente que as elites
políticas e os grupos intelectuais que as representavam encontraram para escamotear a
falta de gestão e de políticas de desenvolvimento humano nesse espaço. Por isso, o
estudo das inter-relações históricas da sociedade com o ambiente semiárido do Nordeste
requer uma leitura crítica que proporcione ao leitor os subsídios necessários à
identificação do cenário histórico brasileiro e do imaginário social que perpassou a
interação dessa sociedade com o meio que a circunda, desnaturalizando as causas de
problemas comumente atribuídas ao clima semiárido.
Nos
últimos
decênios
do
século
XIX,
com
a
decadência
da
cultura
agroexportadora de açúcar e algodão da região Norte do país, atual Nordeste, e com a
importância crescente da economia cafeeira do Sul, os letrados e/ou representantes
políticos das províncias, como forma de sensibilizar as bancadas parlamentares a
conceder recursos para aquela região, sedimentaram no imaginário social a ideia de uma
região identificada com o “sofrimento” e com a “miséria” por ocasião de suas
características naturais, notadamente climáticas. Nesse cenário, a seca atuou como a
principal protagonista na trama desses discursos instituintes (ARANHA, 2006, p. 91).
Nas primeiras décadas da República, as reivindicações dos governadores dos
estados para solucionar o “problema” da seca eram ignoradas pelos presidentes do Brasil
que se alternavam no poder e não faziam parte das discussões e dos projetos
parlamentares, que priorizavam manter em funcionamento as fazendas destinadas à
3
Nos anos de 1940, com o Estado Novo, passou-se a incentivar a migração de nordestinos para
trabalharem nos seringais da Amazônia, produzindo borracha, a fim de que o Brasil atendesse
satisfatoriamente aos interesses militares dos Estados Unidos, quando da participação na
Segunda Grande Guerra. Elaborou-se uma forte propaganda política centrando foco na
desconstrução da imagem de Inferno Verde, presente na literatura que tem como tema o seringal,
afirmando que a Amazônia, com o concurso de trabalhadores nordestinos, tornar-se-ia o Vale da
Promissão através da intervenção estatal que promoveria a colonização da região, bem como seu
saneamento. Em pouco os migrantes iriam sentir os descompassos entre a propaganda política e
a vida cotidiana nas hospedarias e trataram de reivindicar os direitos apregoados. Para mais
informações, ver: GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Errantes da selva: história da migração
nordestina para a Amazônia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2006. 304 p.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 cultura do café, o que fez com que os argumentos se tornassem cada vez mais insistentes
e persuasivos, teatralizando a realidade do Semiárido com a utilização de apelos incisivos
que comovessem e que sensibilizassem as bancadas (VILLA, 2000, p. 39). Ora, quem
seria o parlamentar, representante do “povo”, que não se comoveria com o “sofrimento” e
a “miséria” dos seus “irmãos” do Nordeste e ousaria recusar-se a prestar-lhe o necessário
“socorro”? Sabe-se, no entanto, que, na prática, não era bem para o povo que “os
socorros” viriam, mas diretamente para os bolsos daquelas reminiscências de coronéis
decadentes!
Essas elites política, econômica e cultural do Nordeste e/ou seus representantes
no parlamento e na imprensa, com vistas em se manter no poder, instituíram
estrategicamente a ideia de uma natureza “adversa”, “hostil”, “inóspita”, “imutável”, que
provocaria secas “pavorosas”, onde só havia “destruição”, “fome”, “atraso”, “lamúria”, etc.
Afirmando-se preocupadas com a “miséria” da população, o que esses grupos do poder
buscavam, na realidade, era reivindicar a aquisição de equipamentos modernos para a
região, solução para o “problema” da seca, com a finalidade de auferir recursos e garantir
a sua manutenção no poder (ARANHA, 2006).
Embora essa característica ambiental acompanhasse a história da região do
Semiárido desde os períodos coloniais4, foi somente nesse momento de crise,
notadamente, a partir da grande seca de 1977-1979, que os grupos dominantes nesse
espaço descobriram nesse fenômeno natural um valioso argumento para obter verbas em
nome da população “flagelada” da região. Iniciava-se um longo processo de vitimização
dessa sociedade, de homogeneização do seu ambiente natural e de fabricação de
estereótipos até hoje persistem no imaginário do país. Estavam sendo gestados os
arranjos sociais e políticos do que mais tarde ficaria conhecida como a “indústria das
secas”.
Tanto na narrativa da fuga da família de Fabiano em Vidas secas quanto de Chico
Bento em O quinze desenreda-se a naturalização das causas que impulsionavam a
migração dos habitantes do Semiárido em busca de outras cartografias da região ou do
país. Conforme abordamos, era prática comum, desde o século XIX, atribuir a causa dos
principais problemas sociais e econômicos desse espaço às suas peculiaridades
climáticas. A noção de que a natureza da região era a principal responsável pelo atraso
4
A primeira referência a essa característica climática de que se tem conhecimento era a
registrada pelo jesuíta Cardim, que informava ter presenciado, no ano de 1583, grande seca,
esterilidade e fome pelos sertões, motivo pelo qual desceram cerca de 4 ou 5 mil índios apertados
para pedir socorro aos luso-brasileiros. Ver CARDIM, Padre Fernão. Tratados da terra e da gente
do Brasil. 3. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. p. 199. Porém, VILLA, 2000, p. 17, assinala que
documentos portugueses registram a ocorrência da seca no Sertão, notadamente, em
Pernambuco, em 1552, três anos após a chegada do primeiro governador-geral, Tomé de Souza.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 do Nordeste marcou profundamente o imaginário regional e nacional, revelando-se uma
forma de percepção na qual o determinismo geográfico estava implícito. Nessa
perspectiva, a seca deixava de ser vista como um fenômeno natural representado pela
estiagem prolongada e tornava-se o símbolo identificador do Nordeste e de todos os
problemas que são peculiares a uma natureza “hostil”, entre os quais: miséria aguda,
surtos epidêmicos, fome, analfabetismo, enorme migração, choro, desespero, etc.
(NEVES, 1994).
Para além de naturalizar as condições de sobrevivência no interior dos sertões, é
necessário lembrar que esses(as) sertanejos(as) eram ainda submetidos aos tradicionais
esquemas de mandos político e econômico locais, em que os mananciais hídricos e as
terras cultiváveis eram monopolizados pelos grandes latifundiários de pecuária extensiva
ou de lavouras de produtos com alta demanda no mercado (NEVES, 1994).
Não obstante o conjunto de “mitos” e “lugares comuns” que tem sido elaborado e
cristalizado para designar as características naturais da caatinga5, que, em geral, tende a
homogeneizar e subordinar o potencial da sua biodiversidade, especialistas em Botânica
têm demonstrado que essa é uma das 37 grandes regiões geográficas do planeta, sendo
a vegetação mais heterogênea dentre os biomas brasileiros. Apesar de serem
reconhecidas hoje 12 tipologias diferentes de Caatinga, esse bioma é considerado um dos
menos conhecidos do Brasil, razão porque sua diversidade biológica tem sido
subestimada (ANDRADE, 2007).
Nesse cenário, os literatos do Semiárido, utilizando-se de um conjunto de
metáforas e de códigos culturais típicos da região, atuaram como mediadores entre essas
irregularidades climáticas e outras características naturais presentes no cotidiano dos
sertanejos, (re)significando no domínio ficcional as experiências instituídas social e
historicamente pelos habitantes dessa região.
Apesar das tentativas de homogeneização do ambiente do Nordeste através de
certos discursos instituintes desse espaço, seja no campo das artes, seja no dos
discursos políticos, sabe-se que a característica ambiental marcante do Semiárido é a
ocorrência de períodos chuvosos alternados com secas, que em determinadas épocas
tendem a se prolongar por uma sequência de anos. Tal particularidade da vida na região
nos leva a contrapor-nos a essas imagens estereotipadas e consagradas que dramatizam
a realidade como se nesse espaço só existisse seca. Tais imagens estão presentes
5
Vegetação predominante do Nordeste, a Caatinga é conhecida cientificamente sob a
denominação de caducifólia espinhosa ou savana estépica. Utilizarei, no entanto, a expressão
como ela é popularmente conhecida, que deriva do Tupi-guarani: caa (mata) + tininga (seca,
branca) = mata branca ou mata seca.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 inclusive na historiografia que lê esses discursos de forma homogênea e não atenta às
peculiaridades das obras literárias em relação à percepção do Semiárido.
É o caso do texto de Durval. Quando esse autor afirma que as imagens e os
estereótipos cristalizados nas outras regiões do Brasil e no próprio Nordeste a respeito
desse espaço através da literatura, da música, da pintura, do cinema, da imprensa e do
discurso de suas elites políticas instauraram uma dada forma de ver os nordestinos
(retirante, cangaceiro, flagelado, jagunço, coronel, etc.) e a natureza do Nordeste (seca,
cacto, caveira, etc.), (DURVAL, 2007), ele não considera as peculiaridades artísticas
comuns a cada uma dessas obras. Trata-as de forma generalizada, notadamente em se
tratando da literatura regional, como se essa pudesse ser considerada em um bloco único
com características semelhantes.
Sabe-se que a estereotipação regional é notória e marcou profundamente a
história do Semiárido e que o autor em análise é um dos que visam combater o
preconceito elaborado e reforçado sobre essa região. Contudo, em se tratando do papel
da literatura nessa “invenção”, faz-se necessário uma autocrítica por parte do pesquisador
para que não homogeneizemos o olhar que cada escritor lança em relação ao ambiente
semiárido, que em determinados momentos não consistiu necessariamente em
estereotipar/homogeneizar.
A literatura enfatiza a seca e a miséria do sertanejo como consequência do clima
“adverso”, naturalizando os problemas das sociedades que se desenvolveram em
interação com esse espaço. No entanto, é necessário compreender que a natureza do
Semiárido, marcada por estações climáticas pouco definidas e irregulares, apresenta
momentos de seca, que pode se estender ao longo de anos, mas também de inverno, o
que leva a vida do sertanejo a acompanhar esse ciclo natural, não dispondo de
alternativas econômicas que não sejam predominantemente a pecuária e a agricultura,
dependentes do regime anual de chuvas.
Apesar de a Caatinga ser considerada o único bioma exclusivamente brasileiro, o
que significa que grande parte do seu patrimônio biológico não pode ser encontrado em
outros ecossistemas do planeta, ela recebe uma importância secundária no cenário
ecológico nacional. Assim como o Cerrado, a Caatinga também foi considerada como um
bioma de segunda categoria, apesar de sua importância para o contexto ecológico
brasileiro e da América do Sul. Essa percepção a respeito de ambos os ecossistemas
pode ser constatada através da leitura da Constituição de 1988, em que essas duas
regiões não foram incluídas como parte do patrimônio nacional, tal como foram a Floresta
Amazônica, a Mata Atlântica, o Pantanal Mato-Grossense, a Mata das Araucárias e
outros, ignorando-se, assim, um amplo patrimônio cultural de convivência e uso desses
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 biomas acumulado historicamente pelos grupos sociais que se desenvolveram em seu
entorno. Camponeses, assim como grupos indígenas, construíram, em torno do ambiente
natural, práticas, experiências, saberes, representações simbólicas, sentimentos
topofílicos que os unem ao lugar, diferentemente de outras populações que se apropriam
desses ecossistemas. Da mesma forma como o Cerrado é tido como uma mata
“raquítica”, que não se desenvolveu, durante muito tempo se acreditou que a Caatinga
seria o resultado da degradação de formações vegetais mais exuberantes como a Mata
Atlântica ou a Floresta Amazônica (RIBEIRO, 2005, p. 53).
Tais concepções levaram a representações equivocadas no pensamento social e
no imaginário brasileiro, que passaram a considerar esse bioma como homogêneo, com
biota pobre em espécies e em endemismos, com um ambiente estático, imutável, tendo
sido pouco alterado ou ameaçado desde o início da ocupação desse espaço. Entretanto,
compilações e interpretações botânicas e paleoclimatológicas recentes apontam a
Caatinga como rica em sociobiodiversidade e endemismos e bastante heterogênea, de
modo que esse espaço, compreendido como resultado da interação do homem sertanejo
com o seu ambiente, possui outras conotações diferentes das que a literatura artística e
até mesmo a histórica reduziram o potencial da cultura sertaneja que se desenvolveu ao
longo do tempo em um peculiar processo de interação com o meio.
Depreende-se, com base no exposto, que é necessário problematizar as
representações que têm sido elaboradas a respeito do semiárido do Nordeste,
especialmente quando se trata da literatura que foi alvo de uma elite interessada que
buscava solidificar certas imagens desfiguradas do Nordeste. Mais que isso,
constatamos, com base nesta pesquisa, que as fontes literárias se constituem em uma
importante fonte para o historiador do meio ambiente, no entanto, deve-se atentar para as
especificidades artísticas de cada uma dessas obras, não generalizando um conjunto de
escritores, mas buscando perceber a singularidade do ambiente construído por cada um
deles e em cada uma de suas obras.
Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 38, 2009 Referências bibliográficas
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