[liberdade] Uma via de mão dupla 44 | novembro/2008 | primeira impressão| | novembro/2008 | primeira impressão| 45 [liberdade] Existem fronteiras que devem ser respeitadas tanto pelo cidadão comum quanto por quem detém o poder [texto: Rogério do Espírito Santo] [fotos: Pauline Costa] D escartes, que foi considerado o primeiro filósofo moderno, com importantes contribuições à espistemologia e às ciências naturais, definiu liberdade como espontaneidade, um ato da própria vontade, simplesmente, o livre arbítrio. É dessa forma que a maioria das pessoas está habituada a vivenciar e sentir o conceito de liberdade. Mas o ser humano acaba por tencionar a liberdade de tal forma que parte para a inversão de valores, ao ponto de romper seus limites, suas fronteiras, mudando os sentidos socialmente aceitáveis e configurando acontecimentos graves. Na história do Brasil, os universitários representam um grupo que tem relação direta com a liberdade. A liberdade de idéias, de comportamento, de inovação são marcas de quem está saindo da posição de estudante para passar a ser o futuro do país. Essa postura libertária, no entanto, nem sempre é bem vista por quem detém o poder. Na história brasileira, um período marcou claramente o rompimento dos limites da liberdade dos cidadãos, entre eles os universitários. Em 1964, o regime militar instaurou a política de linha dura. Políticos e jornalistas foram presos. Mesmo com o apoio do empresariado, de parte da imprensa, dos proprietários rurais, da igreja católica e de alguns governantes, muitas pessoas sofreram. “A liberdade era vedada através da censura brutal em filmes, peças de teatro, letras de música, jornais e outros”, diz João Alberto Figueiró, diretor do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, um dos mais reconhecidos por ter um movimento estudantil atuante na época. “Quem decidia o que devia ser dito era o censor”, acrescenta ele, se referindo a uma pessoa, que, a mando dos militares, restringia o conteúdo de 46 | novembro/2008 | primeira impressão| tudo aquilo que atingia o grande público. O professor conta que, como estudante do ensino médio até a universidade, sofreu o peso das restrições do período da ditadura. Segundo ele, o medo, a paranóia de viver em uma época como aquela foi uma violência para o jovem universitário. “Nós amávamos o Brasil tanto quanto eles, que se diziam donos do país”, acrescenta. O professor Nelson Eduardo Rivero, da área de psicologia social da Unisinos, comenta que os regimes totalitários foram aclamados pelas populações e ainda hoje são sustentados em grupos menores de manifestação política. “Lembro deste fato para dizer que a liberdade não é um estado ou uma condição inerente à pessoa como uma característica da sua humanidade. Liberdade é uma ação, um exercício que deve ser tomado como responsabilidade daqueles que se implicam neste movimento”, explica o professor, que é doutorando em psicologia na PUC-RS na linha de pesquisa de estudos culturais e modos de subjetivação. Segundo Rivero, antes de uma tomada de poder por facções políticas ou institucionais, há uma construção subjetiva e uma certa condescendência com a usurpação da possibilidade do exercício da liberdade. Ou seja, quando, mesmo pela força, um governo totalitário se impõe, provavelmente ele tem sustentação da população. “A extrapolação e usurpação da liberdade de um povo é também um reflexo de uma abdicação do poder ou de uma servidão voluntária de um povo”, comenta. Ainda, segundo o professor, esses fatos não são construídos pela disciplina moral somente, mas principalmente pela produção de subjetividades conformadas ou resignadas com a falta da liberda- de. Neste momento, por exemplo, vivemos uma relação deste tipo em várias ocasiões, onde suspendemos os direitos civis ou mesmo humanos face a determinadas condições. “Veja, por exemplo, a reação junto ao filme Tropa de Elite. Para muitos, foi a denúncia da existência de um estado de exceção onde vale a lei do mais forte. Para outros, foi um deleite, por realizar muito do que gostariam que acontecesse com seus semelhantes fora-da-lei. Ou seja, em nome de um estado de segurança, se interpõe um estado de exceção cotidianamente, apoiado por boa parte da população brasileira. É o tratado do estado de soberania”, explica. O professor acrescenta que esse é um tema importantíssimo, discutido por autores como Giorgio Agamben, Zygmunt Bauman e Michel Foucault. Ele esclarece que esses autores, embora não sejam psicólogos, consideram a subjetividade um aspecto fundamental para avaliar essas situações. O trote universitário Longe da época do regime militar, os universitários brasileiros hoje têm liberdade de agir e pensar. Mas é nas universidades que acontece um dos maiores exemplos de cerceamento da liberdade: os trotes. Já foram registradas ocorrências com morte em várias universidades brasileiras por causa de práticas consideradas graves, como agressões, ingestão forçada de bebidas alcoólicas, ingestão de misturas de alimentos com paladar desagradável, entre outras. O primeiro caso de trote universitário ocorreu em 1831, em Recife. Na ocasião, um estudante morreu a facadas e bengaladas. De lá para cá, o trote se espalhou, e a lista de acontecimentos fatais aumentou. Nenhuma medida eficaz foi tomada pelo Ministério da Educação ou por parte da maioria das universidades. Sem uma política anti-trote e a prévia investigação sobre o que vem associando a violência ao ingresso nas universidades, a cultura do trote permanece no país. “O fenômeno da violência, da usurpação da liberdade ou mesmo do desrespeito aos direitos humanos são considerados complexos e multicausados. O trote universitário é mais uma das tantas tradições que temos na universidade moderna. Tanto o agressivo como o politicamente correto são modos apresentados como possíveis, como repertórios, para nossos estudantes viverem este momento”, explica o professor Rivero. Segundo ele, as pessoas podem pensar na forma como vivem a relação com seus semelhantes. Muitas vezes, os indivíduos percebem o próximo como uma ameaça ao bem estar próprio e não como uma possibilidade de convivência. De acordo com o professor, existe uma valoração das pessoas. É possível, por exemplo, entender as classes populares como perigosas para uma minoria mais afortunada, de uma classe rica. “Subjetivamente, o efeito que tem este discurso é de que existem pessoas melhores, aquelas que valem a pena, e outras que não valem”, analisa Rivero. “Seria importante alguma destruição, como abandonar a idéia de que a liberdade é uma propriedade individual. Ela, na verdade, é um direito”, acrescenta o professor. Ele diz que é preciso perceber a liberdade como uma ação, um exercício entre sujeitos livres. Aproximar-se da idéia de que liberdade é uma realidade política e coletiva, uma conquista e não um presente. Essa deveria ser uma das lições mais ensinadas aos universitários. | novembro/2008 | primeira impressão| 47