ÉTICA E EDUCAÇÃO: POSSILIDADES TEÓRICO
METODOLÓGICAS DE ANÁLISE PARA A CONTRIBUIÇÃO DE
TOMÁS DE AQUINO (SÉC. XIII) AO DEBATE
CAVALCANTE, Tatyana Murer (UEM)
OLIVEIRA, Terezinha (UEM/CNPq)
Introdução
Essa comunicação se constitui como parte dos esforços de nossa pesquisa de
Doutorado em andamento. Na referida pesquisa, nosso interesse principal consiste
em investigar, no âmbito da educação, as relações entre o conhecimento e as
transformações sociais no Ocidente medievo, especialmente em escritos de Tomás
de Aquino, que nos propiciem verificar conexões entre ética e educação, no século
XIII. Queremos com isso entender a elaboração desse autor no seio da sociedade
na qual viveu, buscando compreender que respostas propôs aos anseios que seu
tempo o colocou.
Entendemos que o conhecimento histórico nos auxilia a compreender o
presente. Quando nosso interesse é a educação, voltarmo-nos ao passado nos
possibilita constatar que essa preocupação persiste no caminhar dos homens, no
desenvolvimento de diferentes sociedades. A educação suscita questionamentos
acerca de valores e atitudes considerados essenciais para a manutenção ou a
transformação das sociedades. Ela é objeto de reflexão dos homens que
reconhecemos como grandes pensadores desde a Antiguidade Clássica, com
Platão e Aristóteles.
1
Se verificamos que formar o homem é uma preocupação consensual, formar
que homem requer um tratamento mais cuidadoso. As diferentes propostas
educacionais não se desassociam das condições históricas nas quais são
produzidas. Os limites entre as condições concretas e os ideais educativos
propostos definem-se em razão do período em que são concebidos.
Dessa forma, ao buscarmos compreender a elaboração ético/educacional de
Tomás de Aquino (1224-5? – 1274), consideramos esse autor como um homem de
seu tempo, que viveu as tensões e preocupações colocadas para sua sociedade e
sobre elas refletiu. Parece-nos essencial questionarmos: em que medida a
preocupação com o bem-comum se fez relevante à sociedade medieva no século
XIII?
Nosso interesse pelo tema, entretanto, ultrapassa o domínio do século XIII.
Para além de compreendermos as transformações sociais que, naquele período da
história, suscitaram novas concepções de sociedade e de educação, dedicamos
especial atenção a encontrar similaridades entre os temas que possam continuar
atuais: que status o bem-comum possui em nossa sociedade? Como nos
entendemos enquanto sujeitos éticos na contemporaneidade?
No entanto, para que possamos realizar nosso empreendimento com certa
segurança, consideramos essencial revistar alguns aspectos de caráter teóricometodológico inerentes à nossa pesquisa, de modo a assegurarmos a compreensão
de nosso objeto, sendo esse o objetivo central desta comunicação. Por esse motivo,
nosso percurso no trabalho consiste no debate da compreensão de alguns aspectos
como
inteligibilidade
histórica,
olhar
historiográfico
e,
finalmente,
de
possibilidades específicas do estudo da ética na obra Suma de Teologia, de Tomás
de Aquino.
Inteligibilidade histórica
Ao nos colocarmos a tarefa de empreendermos uma análise histórica da
educação, entendemos a necessidade de definir, com certa clareza, o lugar do qual
2
olhamos nosso objeto. Compreendemos que as elaborações teóricas são frutos de
um tempo e, concomitantemente, produtoras de novas formas de viver.
Sob essa perspectiva, os diferentes aspectos da vida social – técnico,
econômico, filosófico, religioso, educacional etc – estão inter-relacionados e
interferem-se mutuamente. Entendemos que a produção filosófica/científica e a
educação não apenas são resultado de um processo histórico, mas também
colaboradoras em sua produção.
Dessa forma, ao olharmos para um outro período histórico, temos
necessariamente que considerar dois aspectos fundamentais: de um lado, as
condições de realização daqueles homens em seu tempo; de outro, as nossas
próprias condições históricas.
Tomamos como ponto de partida as observações de Marc Bloch na obra
Introdução à História. Ao discutir a História, o autor afirma que a idéia de encará-la
como “ciência do passado” é absurda, uma vez que ela corresponde ao esforço de
análise. Afirma: “O passado é, por definição, um dado que coisa alguma pode
modificar. Mas o conhecimento do passado é coisa em progresso, que
ininterruptamente se transforma e se aperfeiçoa” (BLOCH, 1965, p. 55). Com isso,
o autor sustenta a mutabilidade do conhecimento histórico. A ciência História não
se restringe a narrativa dos acontecimentos, ela pressupõe esforço de compreensão
dos fenômenos e está sempre em mutação por que as questões que os homens se
colocam também mudam. Nossas preocupações conduzem os caminhos de nossa
investigação. Nesse sentido, ao olharmos para o passado tentamos responder às
nossas indagações.
Para vencermos o risco do anacronismo, é fundamental estarmos atentos as
transformações
dos
fenômenos
estudados
e
identificar
também
suas
permanências. Segundo Bloch, o tempo é o fator de inteligibilidade dos
fenômenos. Nas palavras do autor: “Ora, esse tempo verdadeiro é, por natureza,
contínuo. É também perpétua mudança. Da antítese destes dois atributos
procedem os grandes problemas da investigação histórica” (1965, p. 30).
Consideramos relevante trazermos aqui o exemplo que o próprio autor discute na
3
obra Introdução à História: a questão da fé cristã. Embora este fenômeno
compreenda 20 séculos, é necessário questionar se ele se manteve imutável. Para o
autor, os homens não têm por hábito mudar de vocabulário sempre que mudam
seus costumes. E necessário compreender o significado que os termos assumem
num determinado contexto.
Acreditamos que com essa investigação, podemos cercear as relações entre
ética e educação na obra tomasiana do século XIII e, ao contrastá-las com nosso
tempo,
poderemos
compreender
suas
diferenças
e
suas
proximidades,
contribuindo na discussão sobre o mesmo tema, em nossa época. Nossa
preocupação inicial é, de fato, nossos anseios com a educação que construímos
hoje. Que homem pretendemos formar? Como educamos para atingir nossos
objetivos?
O século XIX nos deixou como legado educar para o exercício na cidadania
e para o mercado de trabalho, aspectos que no Brasil foram reafirmados pela mais
recente carta constitucional, em vigência desde 1988. Segundo o Artigo 205 da
carta: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988. Grifos nossos). É evidente, em nível
constitucional, a preocupação com a formação para o exercício da cidadania. No
entanto, ao visualizarmos nossas relações sociais, acompanhando noticiários
veiculados pela imprensa e índices divulgados por meios oficiais, compreendemos
que a cidadania, praticada por atos que pressupõem o conhecimento de direitos e
deveres e visa a boa convivência social, pouco se efetiva na atualidade brasileira.
Dessa forma, não podemos, enquanto profissionais da educação, nos isentarmos
da preocupação com a formação ética da sociedade.
Revisitamos o passado com o intuito de conhecermos saídas que os homens
colocaram para resolver seus problemas, porque compreendemos a urgência em
propor soluções para os nossos. Neste sentido, compreendemos que nas cidades
do Ocidente medievo no século XIII, os homens ansiavam por propor caminhos
4
que objetivassem uma boa convivência social. Essa discussão, travada no interior
das universidades nascentes e principalmente pelos mestres das Faculdades de
Teologia, situava-se na discussão sobre o bem-comum.
Olhar historiográfico
Ao voltarmos nosso olhar para a Idade Média, é fundamental verificarmos
que a historiografia atual não a toma como um bloco único, definido por
características gerais, mas como um intervalo de tempo criado posteriormente.
Assim Amalvi inicia o verbete sobre Idade Média, no Dicionário temático do
Ocidente Medieval:
A Idade Média não existe. Este período de quase mil anos, que se
estende da conquista da Gália por Clóvis até o fim da Guerra dos
Cem Anos, é uma fabricação, uma construção, um mito, quer
dizer, um conjunto de representações e de imagens em perpétuo
movimento, amplamente difundidas na sociedade, de geração em
geração, em particular pelos professores do primário, os
“hussardos negros” da República, para dar a comunidade nacional
uma forte identidade cultural, social e política1 (AMALVI, 2006, p.
537. Grifos do autor).2
Dessa forma, mesmo que continuemos a chamar esse período de mil anos
(Séc. V – Séc. XV) de Idade Média, temos acesso a uma diversidade de trabalhos
que atentam para diferentes fases em seu interior. A historiografia consagra
profundas transformações naquela sociedade, iniciadas por volta do Ano Mil 3 e
acentuada nos séculos posteriores.
A obra que fundamenta nosso olhar, de Marc Bloch (1965), Introdução à História, redigida em 1941
e publicada pela primeira vez em 1949, também manifesta a crítica um fazer histórico que
privilegia o mito das origens. Entretanto, nessa comunicação não temos intenção de discutir esse
tema.
2 O autor também esclarece que em seu estudo privilegia o caso francês, embora forneça
informações mais amplas., sobre o Ocidente medievo.
3 Não pretendemos, no presente trabalho, abarcar o conjunto dessas transformações. Nosso
interesse consiste em apresentar alguns elementos que consideramos essenciais em nossa
discussão.
1
5
Três elementos que consideramos essenciais para nosso tema já se
esboçavam ao final do século XI: o renascimento do comércio, das cidades e a
ampliação do universo intelectual cristão, em decorrência do contato com outras
culturas. Contudo, duas mudanças que tomamos como significativas em nosso
estudo surgiram no interior das cidades, no século XII: a organização do trabalho
em corporações de ofício e a proliferação das escolas. Compreendemos que o
aumento da complexidade na vida dos homens no ambiente citadino gerou a
necessidade da criação de novas instituições sociais, bem como de novas
elaborações do conhecimento, que permitissem àqueles homens organizar sua
nova forma de viver, estabelecendo normas, atitudes e valores correspondentes.
Desse modo, entendemos que o nascimento das universidades nos moldes das
corporações de ofício, ao raiar do século XIII, constituiu um esforço deliberado dos
pensadores para a compreensão do real e para a difusão dos saberes em todas as
áreas conhecimento, bem como para a elaboração de propostas de vida coletiva.
É neste sentido que buscamos compreender a elaboração de Tomás de
Aquino, reconhecido como um dos mais expressivos autores do período por
elaborar uma teoria conciliatória que, sem menosprezar o conhecimento instituído
(fé), assegurou como fundamental o conhecimento humano (razão) (VERGER,
1990; ULLMANN, 2006; OLIVEIRA, 2005a).
Embora tenhamos acompanhado, nos últimos anos, um crescente interesse
por estudos medievais pela academia brasileira, a educação se configura como
uma área de pesquisa ainda pequena. Ao analisarmos o documento Quem é quem
na Associação Brasileira de Estudos Medievais?4 (MALEVAL, 2007), encontramos
apenas 11 pesquisadores com projetos que oferecem referências explícitas à
educação.
Por outro lado, verificamos que muito embora a bibliografia disponível
sobre autores e obras clássicas da Antiguidade em língua portuguesa seja ampla e
acessível para pesquisadores, estudantes, profissionais e demais interessados na
A Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) aglutina pesquisadores de diferentes
áreas. Segundo o documento citado, a associação conta com 330 sócios, sendo 78 graduados, 8
especialistas, 82 mestres, 127 doutores, 7 livre-docentes e 28 graduandos ou associados com
titulação indeterminada (MALEVAL, 2007).
4
6
educação, não podemos dizer o mesmo sobre os estudos dedicados ao tema
referentes à Idade Média. Em nossa dissertação de mestrado, dedicamos um
capítulo a análise das interpretações sobre a educação medieva trazida por
manuais de história da educação,5 em que verificamos poucas e mesmo
complicadas referências ao período, uma que diversas obras não consideram os
avanços da historiografia sobre o período, contribuindo na manutenção de
preconceitos. Dessa forma, os estudantes de licenciaturas e os professores não
contam com um conhecimento histórico que possa auxiliá-los a compreender o
fenômeno educativo.
Visto a existência de uma disparidade entre a produção historiográfica
acerca do medievo e a bibliografia especificamente educacional disponível em
língua portuguesa, compreendemos a urgência em dedicar estudos sistemáticos ao
tema. Por esse motivo, nosso trabalho consiste em analisar os escritos de Tomás de
Aquino, contextualizando-os à luz da historiografia atual, principalmente com
apoio das obras de Jacques Le Goff, Luiz Jean Lauand e Terezinha Oliveira.6
Os intelectuais que estudam Tomás de Aquino afirmam que ele viveu para
a evangelização e para o ensino (TORRELL, 1999; OLIVEIRA, 2005). As referências
à biografia do Mestre de Aquino, como também ficou conhecido, o apresentam
como um homem que viveu intensamente a agitação citadina do século XIII e nela
compôs sua obra (TORRELL, 1999; LAUAND, 1999). O Aquinate estudou em
Nápoles, Colônia, Paris, atuou como professor universitário em Paris, Nápoles,
Roma, além de ter se dedicado ao ensino como mestre dominicano em outras
cidades, como Nápoles, Orvieto e Viterbo. Lauand afirma que a vida de Tomás de
Aquino não esteve plenamente centrada no século XIII apenas no sentido
cronológico, mas principalmente, em relação a sua vida e lutas. Nas palavras do
autor:
Manuais de ampla utilização nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas. Consultar CAVALCANTE,
T. Aspectos educacionais da obra de Santo Tomás de Aquino no contexto escolástico-universitário do século
XIII. Campinas [s.n.], 2006. (Dissertação de Mestrado).
6 Le Goff é uma reconhecida autoridade internacional em medievalidade; já Lauand e Oliveira,
autores brasileiros, desenvolvem pesquisas que relacionam diretamente ética e educação no
medievo e contribuem significativamente com nossos estudos.
5
7
Os cinqüenta anos da vida de Tomás de Aquino (1225-1274) estão
plenamente centrados no século XIII, e não só do ponto de vista
cronológico: todas as significativas novidades culturais desse
tempo mantêm estreita relação com sua vida e lutas. Ao contrário
do clichê que o apresenta como uma época de paz e equilíbrio
harmônico, esse século é um tempo de agudas contradições, tanto
no plano econômico e social como no do pensamento (LAUAND,
1999, p. 4-5).
Desta forma, por viver as contradições de seu tempo, compreendemos que
o Mestre de Aquino esteve em condições de integrar-se aos debates mais
significativos. Como resultado de sua dedicação, compôs uma vasta obra, da qual
a Suma de Teologia,7 escrita ao longo de oito anos (1265-1273), em diferentes
cidades e sob diversas situações, é a principal (TORRELL, 1999).
Possibilidades do estudo da ética na Suma de Teologia de Tomás de Aquino
Focamos nosso olhar na Suma de Teologia do Mestre de Aquino. Esse enorme
tratado sobre a Ciência Divina nos permite considerar o olhar do Aquinate sobre o
homem. No prólogo da obra, o autor esclarece que ela se divide em três partes,
que tratam: de Deus; do movimento do homem na direção de Deus; e de Cristo,
enquanto caminho para a realização desse intento. (TOMÁS DE AQUINO, ST, Ia,
q. 2, prólogo).
Todo o percurso da obra é uma construção da noção de homem, que
manifesta, segundo seu autor, uma relação direta com a divindade. Essa relação é
expressa pelo conceito de participação. Segundo Lauand:
[o sentido profundo e decisivo da participação]... é expresso pela
palavra grega metékhein, que indica um ‘ter com’, um ‘co-ter’, ou
simplesmente um ‘ter’ em oposição a ‘ser’, um ‘ter’ pela
dependência (participação) com o outro que ‘é’. (...) Tomás, ao
tratar da Criação, utiliza este conceito: a criatura tem o ser, por
participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nada mais é do que
O nome mais antigo e atestado da obra é Summa Theologiae (Suma de Teologia). Hoje ela é mais
conhecida por Summa Theologica (Suma Teológica). Essa segunda forma apareceu mais recentemente
e com menor freqüência na literatura Medieval, motivo pelo qual preferimos utilizar o nome Suma
de Teologia, apesar da tradução mais recente da obra em português utilizar o nome é Suma Teológica.
7
8
ter – por participação na filiação divina que é em Cristo – a vida
divina que é na Santíssima Trindade (LAUAND, 1999, p. 56-57.
Grifos do autor).
Ao associar o homem a Deus pela pessoa de Cristo, Tomás de Aquino
assegura a coerência de sua obra. O homem participa do ser divino, da verdade
divina, por seu intelecto, entretanto, por ser também criatura material, é distinto
de seu criador. Essa reaproximação se torna possível por intermédio de Cristo,
“Deus encarnado”, que apresenta o modelo de conduta para o homem.
Ainda no prólogo da Suma de Teologia, o autor esclarece que a finalidade da
obra é pedagógica: ensinar aos irmãos da ordem. Por esse motivo, se propõe a
apresentar o conteúdo de maneira ordenada, clara e sucinta.
Se considerarmos a associação desses dois elementos: de um lado, o
movimento humano na direção de Deus e, de outro, sua finalidade pedagógica,
compreendemos que a Suma de Teologia pode nos fornecer um vasto material de
para o estudo das relações entre ética e educação na concepção do autor. Isso
porque ele se propõe a ensinar uma determinada forma de conduta humana.
Segundo Grabmann, a segunda parte da Suma de Teologia “considera o
homem enquanto ser livre moral e, como tal, podendo tender para Deus como
para seu fim último, mas também afastar-se desse fim supremo” (1944, p. 137).
Segundo o mesmo autor, essa parte da obra discute o fim último do homem e os
meios que ele tem para acessá-lo. A rigor, essa parte da obra é a que mais interessa
a esse estudo, uma vez que nos interessamos pelos homens. Entretanto, um estudo
sobre a ética em Tomás de Aquino não pode desconsiderar o caráter teológico
desse pensador, porque o bem-viver, o bem-comum, o bom convívio social, são
determinações que não se separam do objetivo cristão colocado ao homem que é
alcançar a vida eterna, expressão real do bem nessa concepção.
Consideramos então, como foco principal, o caminhar humano que leva a
Deus, o homem considerado moralmente livre e dirigimos o olhar a segunda seção
da segunda parte da obra, dedicada ao estudo das virtudes.
Tomás de Aquino discute as seguintes virtudes: fé, esperança, caridade
(conhecidas como virtudes teologais); prudência, justiça, força, temperança
9
(chamadas virtudes cardeais); bem como a virtude da religião e um grupo de
outras virtudes, as quais ele nomeia virtudes sociais.8 Nosso projeto inicial, previa a
análise de duas dessas virtudes: a caridade e a amizade. Ao decidirmo-nos por
trabalhar com uma virtude teologal e outra social, consideramos a estreita relação
entre o aspecto teológico e o filosófico do autor: como o homem natural e o
homem ideal são construídos em consonância com a divindade, a caridade nos
pareceu contribuir significativamente na elaboração do ideal de homem.
Mais uma vez, sentimos necessidade de retomar as análises de Marc Bloch,
acerca do vocabulário dos homens: “Porque, para grande desespero dos
historiadores, os homens não têm o hábito de mudar o vocabulário cada vez que
mudam os costumes”(1965, p.35). Dessa vez, especificamente para discutirmos a
respeito da caridade.
A palavra caridade (caritas, caritatis em Latim) permanece em nosso
vocabulário. Reconhecemos que a fé cristã é um fenômeno que se manteve,
entretanto, se considerarmos o longo tempo que separa o século XXI do XIII,
precisamos analisar como ela permanece. Nos dias atuais, a caridade aparece
bastante associada à doação de recursos materiais (principalmente dinheiro) para
pessoas “menos favorecidas”, da mesma religião ou de outras. Dessa forma, o
comum é que as pessoas sensibilizadas com a situação de outrem, abram mão de
algo que precisem pouco. Essas são as palavras de Henry, no estudo introdutório à
virtude da caridade na Suma de Teologia de Tomás de Aquino:
A palavra caridade, em nossa língua, foi consideravelmente
desvalorizada. Com muita freqüência, não significa mais do que
uma medíocre esmola, e às vezes de tal modo ofensiva para o
beneficiário que este recorre à justiça contra a caridade. Não quero
sua caridade, dirá ele. Um tal significado não tem mais nada a ver
com caridade à qual se refere Sto. Tomás. Por isso, é preciso voltar
à origem do termo (HENRY, 2004, p. 287. Grifos do autor).
Na mais recente tradução brasileira da obra, o grupo das virtudes sociais, bem como os vícios que a
elas se contrapõe (piedade, respeito, dulia, obediência, desobediência, gratidão, vingança, verdade,
mentira, hipocrisia, jactância, ironia, amizade, adulação, contestação, liberalidade, avareza,
prodigalidade, epiquéia e piedade) encontram-se no sexto volume da obra. Consultar referências
bibliográficas.
8
10
A seguir, Henri tece uma longa discussão sobre a historicidade do termo
caridade. Nosso objetivo não é discutir sua origem, ou seu histórico mais antigo,
mas seu significado na obra de nosso autor. De toda forma, compreendemos que
algumas diferenças temporais podem saltar aos olhos, enquanto outras requerem
certa investigação e este segundo caso é o caso da caridade.
A Suma de Teologia dedica várias questões à virtude da caridade,
entretanto, a questão nomeada Os preceitos da caridade nos parece trazer elementos
suficientes para iniciarmos nossa discussão. Logo no primeiro artigo, Tomás de
Aquino sustenta a importância da caridade como o maior mandamento.
RESPONDO: [...] Ora, o fim da vida espiritual é que o homem
esteja unido a Deus, o que se faz pela caridade. [...] Todas as
virtudes, cujos atos são objeto de preceitos, ordenam-se ou a
purificar o coração do turbilhão das paixões, como as virtudes que
concernem às paixões; ou, pelo menos, a ter uma boa consciência,
como as virtudes que concernem à ação; ou ter a retidão da fé,
como as virtudes que concernem ao culto divino. Estas três
condições são requeridas para amar a Deus, pois o coração impuro
desvia-se do amor de Deus pela paixão que o inclina aos bens
terrestres; uma consciência má faz com que se tenha horror da
justiça divina por medo da pena; e uma fé imaginária leva o
sentimento àquilo que se imagina de Deus, afastando da verdade
divina. Ora, em todo gênero, o que é por si é mais do que o que é
por outra coisa; segue-se que o maior mandamento é sobre a
caridade, como está dito no Evangelho de Mateus (TOMÁS DE
AQUINO, ST, IIa IIae, q. 44, a. 1, c.).
Dentre as virtudes teologais, a caridade assume um lugar primordial. Isso
significa que cada homem, para amar a Deus, necessita amar os outros homens.
Essa virtude imprime uma opção ética, uma vez o caminho para a salvação da
alma implica na preocupação com o próximo, trazendo a teologia para o campo
das relações humanas. Se consideramos também a questão educacional, essa opção
consiste não apenas em fazer algo pelo próximo, mas, principalmente, ensinar o
outro e também uma condição para conhecer-se, enquanto homem. O terceiro
artigo da mesma questão assinala a intrínseca relação entre a caridade e a
amizade, para a realização da justiça, virtude primordial para a conquista do bem
comum. Afirma:
11
RESPONDO: A caridade, como foi dito acima, é uma amizade.
Ora, a amizade dirige-se ao outro. Por isso, Gregório diz que em
uma de suas homilias: “A caridade não pode existir sem ao menos
dois” (TOMÁS DE AQUINO, ST, IIa IIae, q. 44. a. 3, c.).
Ou seja, é pela caridade que o homem deve relacionar-se com outro. Essa
relação implica necessariamente num movimento voluntário e consciente, num ato
deliberado de vontade. A conduta ética necessária ao cristão.
Ao tomarmos o conjunto da questão sobre os preceitos da caridade
reconhecemos a importância que as decisões e as ações voluntárias e conscientes
assumem na ética tomasiana. No entanto, para compreendermos a possibilidade
da realização efetiva da atividade ética, precisamos analisar mais de perto a
condição desse preceito, que é a relação homem a homem, expressa na questão A
amizade ou afabilidade. Afirma o Mestre de Aquino:
RESPONDO: Uma vez que, como foi dito acima, a virtude se
ordena para o bem, toda vez que ocorre uma razão especial de
bem, aí também haverá uma razão especial de virtude. Mas, o bem
consiste na ordem, como demonstrado. Ora, é preciso que as relações
entre os homens se ordenem harmoniosamente num convívio comum,
tanto em ações quanto em palavras, ou seja, é necessário que cada um se
comporte com relação aos outros de maneira conveniente. Por isso, é
necessária uma virtude especial que mantenha a harmonia desta
ordem. E esta virtude se chama amizade ou afabilidade (TOMÁS
DE AQUINO, ST, IIa IIae, q. 114. a. 1, c. Grifos nossos).
Deste modo, consideramos que a ação ética é necessária ao cristão do século
XIII, na elaboração do autor. No segundo artigo da mesma questão, o autor
relaciona a amizade à natureza humana:
(...) deve-se dizer que o homem é, por sua natureza, um animal
social e deve com honestidade manifestar a verdade aos outros
homens, sem o que a sociedade humana não poderia durar. Ora,
assim como o homem não pode viver numa sociedade sem
verdade, assim também não poderia viver numa sociedade sem
prazer. Aristóteles diz: “ninguém consegue passar um dia inteiro
com uma pessoa triste e sem atrativos.” Por isso o homem é
obrigado, por uma espécie de dívida natural de honestidade, a
12
tornar agradáveis as relações com os outros, a menos que, por um
motivo particular, seja necessário contristar outros para o próprio
bem deles (TOMÁS DE AQUINO, ST, IIa IIae, q. 114, a. 2, ad 1m).
Dessa forma, compreendemos a necessidade de compreender a concepção
teórica do Aquinate considerando seus aspectos teológico-filosóficos. A
perspectiva da divindade está na base da construção do seu pensamento.
Por outro lado, compreendemos também que o vocabulário em uso relativo
aos termos caridade e amizade, compreendem um léxico bastante distinto daquele
sob o qual nosso autor teceu suas formulações.
Conclusões
Ao considerarmos nossa forma de abordar nosso objeto, compreendemos a
necessidade imediata de olharmos historicamente para a educação, de forma a
conseguirmos compreendê-la enquanto fenômeno humano e, ao mesmo tempo,
podermos compreender a nós mesmos como seres humanos. Ainda que a
preocupação com a cidadania, bem como a preocupação com a educação, que tem
também por objetivo tornar os homens cidadãos, estejam expressas em nossa carta
de intenções (a constituição), é necessário que nos entendamos enquanto agentes
no processo de sua construção.
Mais uma vez, sentimos necessidade de nos reportarmos aos ensinamentos
de Marc Bloch. Para esse autor: “A incompreensão do presente nasce fatalmente
da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por
compreender o passado, se nada sabemos do presente” (BLOCH, 1965, p. 42).
A história é feita de homens, por homens e para homens. Homens que
contemplam, que pensam e que agem. Acostumamo-nos a projetar a
responsabilidade em instituições que cada vez nos parecem mais e mais abstratas
e sobre-humanas: o “Estado”, o “mercado”... separamos nossas criações de nós
mesmos, os “criadores”. Tomás de Aquino, por outro lado, considerando-se
criatura livre do ponto de vista moral, buscou humanizar as relações humanas,
torná-las da competência da vontade dos homens. Compreendemos esse autor nos
13
auxilia a pensar as intrínsecas relações entre educação e ética na atualidade não
porque as soluções por eles propostas para o seu tempo possam resolver as nossas,
mas, sobretudo, porque ele nos auxilia a identificar o que há de humano em nós,
para que possamos encontrar nossas próprias respostas e agir na direção de
realizá-las.
REFERÊNCIAS
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