Complexidade, ética e educação Hugo Assmann & Jung Mo Sung Se há uma palavra que resume os nossos pontos é a complexidade. A nossa educação, se queremos fomentar a sensibilidade solidária, deve trabalhar com um conhecimento pertinente capaz de enfrentá-la. Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os desafios da complexidade. (MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo. Cortez; Brasília. UNESCO, 2000. p. 38). A compreensão desta complexidade é fundamental não somente para articularmos de uma maneira mais correta a relação entre o nível de princípios dinâmicos básicos (a sensibilidade solidária e o desejo de solidariedade) e o nível de princípios organizativos da sociedade (determinações institucionais), mas também para articularmos o nível de princípios éticos. Edgar Morin diz, com toda propriedade, que as mentes formadas pelas ciências disciplinares “perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos (Idem. Op. Cit. P.40-41) Em um mundo cada vez mais complexo e globalizado é cada vez mais difícil perceber as conexões, as causas e os efeitos de urna ação ou omissão. O aumento da complexidade da divisão do trabalho social em uma economia em escala global e a manutenção da concepção disciplinar, compartimentada, da nossa educação, das ciências e da nossa maneira de ver o mundo nos leva a uma situação que Morin chamou de “enfraquecimento da responsabilidade”. Para evitar mal-entendidos, diferenciamos o conceito de responsabilidade da culpa. O sentimento de culpa deriva da idéia de que erramos totalmente por ignorância, fraqueza ou intenção de fazer o mal. A moral que coloca no seu centro este sentimento de culpa é urna moral da paralisia, da omissão, da indiferença ou da submissão a urna palavra alheia que nos diz dogmaticamente como agir, sem que tenhamos que pagar o preço de nossas decisões. Outra coisa é a noção de responsabilidade. A responsabilidade pode não estar ligada à culpa. Está ligada à culpa quando somos agentes de infração ou omissão e de nós depende a seqüência dos efeitos reprovados Mas podemos ser responsáveis por conseqüências de atos que não foram de nossa autoria e sobre os quais também não podemos ser acusados de omissão. Esta responsabilidade nasce do reconhecimento da interdependência que há no nosso mundo, na nossa sociedade e nas nossas vidas. Responsabilidade é uma conduta, atitude ou disposição para agir maior e mais vasta do que a mera culpabilidade. A culpabilidade põe em jogo o erro moral pessoal, mas não compromete com acontecimentos que não lhe digam respeito. Zygmunt Bauman, no seu livro Modernidade e holocausto, nos mostra como o enfraquecimento da noção de responsabilidade ética foi importante para que muitas pessoas “mentalmente sãs/normais”, e não somente os nazistas convictos, tivessem participação no holocausto. A divisão crescente do trabalho faz as pessoas perderem a noção de conexão entre os seus atos e omissões e os resultados finais. Cada um se prende ao seu trabalho, burocrática ou tecnicamente determinado por outras pessoas distantes, e assim a sua responsabilidade ética se transforma em uma mera responsabilidade técnica. Cada um é responsável somente pelos resultados visíveis e imediatos das suas ações. Quando, por exemplo, um economista burocrata do FMI, ou um economista do nosso governo, passa adiante o receituário de cortes nos programas sociais por conta de programa de ajustes econômicos, ele não vê pessoas concretas sofrendo no seu corpo e dos seus familiares as conseqüências dessas medidas, mas somente números, gráficos e índices. A desumanização começa no ponto em que, graças ao distanciamento, os objetos visados pela operação burocrática podem e são reduzidos a um conjunto de medidas quantitativas. (..) Reduzidos, como todos os outros objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade. (..) Só os humanos podem ser objetos de proposições éticas. (..) Os seres humanos perdem essa capacidade assim que reduzidos a cifras. (BAUMAN. Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998). Uma educação baseada no pensamento complexo nos ajuda a entender melhor a relação complexa e contraditória entre os desejos que nascem da sensibilidade solidária e os princípios organizativos da sociedade. Além disso, nos permite entender um pouco melhor as razões do enfraquecimento da noção da responsabilidade na nossa sociedade e também nos mostra caminhos para o fortalecimento do sentimento de responsabilidade ética e da solidariedade. Para Morin, O emprego do princípio de complexidade esclarece as virtudes da solidariedade. Quanto mais uma sociedade é complexa, menos rígida ou duras são as obrigações que pesam sobre os indivíduos e os grupos, de modo que o conjunto social pode se beneficiar das estratégias, iniciativas, invenções ou criações individuais. Mas, numa situação extrema, como a que vivemos hoje, o excesso de complexidade destrói qualquer obrigação, distendendo o laço social até o ponto em que a complexidade, em seu extremo, se dissolve na desordem. Nessas condições, a única salvaguarda de uma complexidade muito alta, que não pode ser apenas a obrigação, encontra-se unicamente na solidariedade vivida, interiorizada em cada um dos membros da sociedade. (MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1997. p. 99). Estas sensibilidades solidárias vividas, que fazem emergir novos desejos, precisam se tornar atratores de novos princípios éticos solidários. Estes princípios éticos não podem ficar somente em formulações abstratas e gerais, mas precisam também se concretizar em normas de comportamentos éticos. E estes princípios éticos precisam ser “corporificados” em princípios organizativos da sociedade norteando o funcionamento das instituições da sociedade. Estes três níveis não formam esta seqüência linear apresentada acima por razões didáticas. Na verdade, eles “dançam” como atratores estranhos interagindo entre si, sem perder as suas diferenças específicas(...) O ser humano é um ser complexo, como também é a sociedade e o meio ambiente no qual vivemos. Educar para sensibilidade solidária pressupõe e implica em ajudar as pessoas a perceberem a complexidade da realidade e da nossa vida social, a tomarem consciência da nossa condição humana a relativizarern as suas certezas, a aprenderem a tolerar aos outros e a si próprios nas suas limitações e falhas, a aceitar e conviver com a “resistência” da realidade social em se adaptar aos nossos mais sinceros e honestos desejos de uma vida baseada na justiça e solidariedade. Ao mesmo tempo em que perseveram em suas ações solidárias, materializações da sensibilidade solidária, como caminho de serem fiéis aos seus desejos mais profundos de um mundo mais solidário e humano. In: ASSMANN, Hugo & SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária: educar para a esperança. Petrópolis: Vozes, 2000. p.332. pgs. 162-165.