UM Faltava uma semana para eu fazer 16 anos quando o garoto caiu para fora da porta e tudo mudou. Será um bom começo? A Srta. Keyland, minha professora na escola do povoado, costumava dizer que é preciso agarrar o leitor na primeira frase. Se você perder tempo com descrições do céu, do tempo, do cheiro da grama recém-cortada ou sei lá o quê, as pessoas podem não querer continuar lendo, e eu tenho uma história grande para contar. Na verdade, é a maior história do mundo. O fim do mundo... e não existe história maior. Talvez eu devesse ter começado por aí. Um monte de coisas diferentes estava acontecendo na Inglaterra, na América, no Oriente Médio — e, claro, na Antártica. Era para lá que os exércitos estavam indo. Haveria uma batalha enorme em que o futuro de tudo e de todos seria decidido. E eu não sabia de nada disso. Nem percebia como tudo havia ficado horrível. Bom, agora é tarde demais. Já comecei, então é melhor continuar. Eu. O garoto. A porta. Vamos ver uma coisa de cada vez. Meu nome é Holly — pelo menos é como todo mundo me chamava. Fui batizada como Hermione, mas isso era considerado metido demais para o tipo de garota que eu virei. E, de qualquer modo, Holly era mais fácil de soletrar. Ninguém nunca usava meu sobrenome. Como havia acontecido com um monte de crianças do povoado, meus pais estavam mortos e todo mundo achava mais fácil falar apenas o primeiro nome. Imagino que você queira saber como sou. Não sei bem como me descrever, mas posso dizer que, naquela época, eu não era bonita. Meu cabelo tinha cor de palha e infelizmente, aparência também, comprido e emaranhado. Tinha bochechas redondas, sardas e olhos azuis brilhantes. Trabalhava na fazenda desde que tinha idade para empurrar um carrinho de mão (o que, na verdade, foi bem cedo), por isso, era bastante forte. Minhas unhas eram lascadas e cheias de terra. Se eu tivesse roupas melhores, 9 R1196-01(Galera) CS5.indd 9 11/10/2013 10:01:17 poderia ter uma aparência legal, mas a camisa e o macacão que eu sempre vestia tinham sido usados por várias pessoas antes de mim, e não me caíam nem um pouco bem. Eu morava com meus avós. Na verdade, eles não eram meus parentes. Não tínhamos o mesmo sangue. Mas era assim que eu pensava neles. Eles se chamavam Rita e John e deviam ter 70 e muitos anos... o tipo da idade em que se é tão velho que a gente não se incomoda mais tentando adivinhar. Para ser justa, os dois estavam em ótima forma; eram lentos, mas podiam se virar e tinham muito compos mentis (compos significa “controle” e mentis significa “da mente”, é do latim. A Srta. Keyland me ensinou isso). Se eu tinha algum problema com eles, era que os dois não falavam muito. Gostavam de ficar na deles — o que não era tão fácil, considerando que tinham me adotado e me levado para casa. Eram casados desde que todo mundo podia lembrar, e ficariam perdidos se um não tivesse o outro. Havia uma igreja no meio do povoado, a igreja de St. Botolph, que datava do tempo dos normandos. Ficava na encruzilhada perto da praça principal e era um lugar antigo e sério, surrado pelos séculos e reconstruído tantas vezes que parecia uma tremenda colcha de retalhos, como se uma máquina de terraplenagem tivesse se chocado contra ela em algum momento e eles precisassem montar tudo de volta rapidinho antes que alguém notasse. Ficava cheia todos os domingos, ninguém no povoado pensaria em não ir ao serviço dominical, e até Rita e John vestiam as melhores roupas e iam até lá, de braços dados. Pessoalmente, eu odiava aquele lugar. Para começo de conversa, eu não acreditava em Deus e costumava pensar que, se houvesse um Deus, até Ele ficaria entediado com os mesmos hinos e orações uma semana depois da outra. Contudo, isso não impedia o vigário de continuar. Seus sermões duravam horas e nunca variavam. Rezem por misericórdia. Estamos sendo castigados pelos nossos pecados. Estamos todos condenados. Ele podia ter alguma razão, mas jamais acreditei que a resposta seria encontrada de joelhos, naquele chão duro de pedra. A igreja também era usada para as reuniões do povoado toda quarta-feira, mas não tínhamos permissão de participar antes dos 16 anos. Antes disso você não era considerado suficientemente crescido para entrar na discussão, mesmo que fosse suficientemente crescido 10 R1196-01(Galera) CS5.indd 10 11/10/2013 10:01:17 para arrebentar as costas dando duro do amanhecer ao pôr do sol. Era engraçado como isso funcionava. A porta não ficava de fato na igreja. Era nos fundos. A igreja era cercada por um cemitério cheio de lápides tortas com um caminho de cascalho no meio, e eu costumava usá-lo como atalho para casa. Do outro lado existia uma igreja mais velha ainda, ou os destroços de uma, que havia ocupado o lugar originalmente. Não restava muita coisa; só alguns arcos meio desmoronados e uma parede com dois buracos que podiam ter sido janelas magníficas, com vitrais e coisa e tal, e embaixo delas, uma porta de madeira. Sempre houve alguma coisa estranha sobre a porta porque, em primeiro lugar, ela não dava em lugar nenhum. Na frente ficavam duas lápides, e atrás, um pequeno pátio de cascalho, mas não dava numa sacristia, num claustro ou em qualquer outra parte da construção. E havia uma espécie de ponto de interrogação com relação àquilo. Quer dizer, quem fez aquela porta, e quando? As ruínas tinham literalmente centenas de anos (eram “pré-medievais”, dizia a Srta. Keyland), no entanto, a porta não parecia antiga. Quero dizer, se ela estava lá durante séculos, por que a madeira não tinha apodrecido? Obviamente alguém a havia trocado, mas Rita, que tinha nascido no povoado, disse que durante toda a sua vida isso não foi feito, o que significa quase um século. Era tudo muito esquisito. E, numa tarde do fim de agosto, ela se abriu de repente e um garoto caiu para fora dela. Eu estava a caminho de casa pelos pomares, onde tinha colhido maçãs, um dos trabalhos que eu menos preferia, se bem que, para ser honesta, qualquer coisa que tenha a ver com plantar e armazenar comida é um serviço duro, chato e repetitivo. As piores coisas de colher maçãs? Perceber que a Delícia Dourada madura demais que você passou meia hora tentando arrancar sacudindo o galho não vai ser dourada nem deliciosa. Descobrir que uma vespa se enterrou no miolo podre e, assim, levar uma picada feia na palma da mão. Espetar-se pela quinquagésima vez numa moita que ficou esperando um ano inteiro para se cravar na sua carne. Carregar o cesto de volta ao ponto de coleta no auge do calor da tarde, com bolhas nos ombros e outras piores ainda nos dedos. E a coisa não termina jamais. O Sr. Bantoft — administrador da fazenda, divisão de frutas — tinha 11 R1196-01(Galera) CS5.indd 11 11/10/2013 10:01:17 dito que havia menos maçãs naquele ano. Disse que o pomar inteiro estava começando a ficar ruim. Para mim, não parecia. De qualquer modo, eu estava cansada, suja, e não pensava em muita coisa quando a porta na parede antiga se abriu e o garoto cambaleou para a frente e despencou na grama. Era bem magro, com cabelo comprido e muito preto, com uma franja reta, e eu fiquei perplexa porque não o reconheci na mesma hora. Mas, afinal de contas, um lado do rosto dele estava sujo de sangue. Na verdade, havia litros de sangue escorrendo pela bochecha. Pingava no ombro, e a camisa estava ensopada. Corri até ele e parei com o coração batendo forte, mordendo as juntas dos dedos — o que eu sempre faço quando estou chocada com alguma coisa. O negócio era o seguinte: eu nunca tinha visto aquele garoto. Por mais impossível que fosse, eu soube imediatamente. Ele não era do povoado. Ele me viu e seus olhos se arregalaram, fazendo com que eu me lembrasse de um coelho momentos antes de a gente cravar uma flecha na garganta dele. O garoto não estava tão ferido quanto pensei a princípio. Alguma coisa havia acertado a cabeça dele logo acima da têmpora e feito um corte feio, mas não achei que estivesse com o crânio fraturado. Estava usando camisa, jeans e tênis, e eles pareciam novos. Não poderia ser mais estranho. Ele nem parecia inglês. Seus olhos eram tão escuros quanto o cabelo. E havia algo no nariz e nos malares... era como se tivessem sido esculpidos em madeira. — Onde estou? — perguntou ele. — Na igreja — respondi. Era uma pergunta muito estranha. Eu não sabia direito como responder. — Que igreja? Onde fica? — É a igreja de St. Botolph. Fica no povoado. O garoto me olhou como se eu não soubesse do que estava falando. Então desistiu de mim. — Não está certo — contestou ele. — Preciso voltar. — Para onde? Mas ele não estava prestando atenção. Já havia se levantado e retornado para a porta. Fechou-a, depois abriu de novo. Não sei o que ele estava esperando achar do outro lado, mas, como já expliquei, ela levava para aquele pequeno pátio, só com uns tufos de grama brotando do cascalho. O garoto passou pela porta, fechando-a. Eu 12 R1196-01(Galera) CS5.indd 12 11/10/2013 10:01:17 dei a volta para vê-lo do outro lado. Ele estava ali parado, respirando ofegante. Parecia ter se esquecido do ferimento na cabeça. Depois me viu olhando-o. — Está quebrada — disse ele. — O que está quebrada? — A porta. Ela deveria ter me mandado de volta. — Epa! Calma aí! — Dei um passo e quase o agarrei, mas pensei melhor. — É só uma porta. Ela abre e fecha. O que mais deveria fazer? — Eu já disse. Quero que ela me leve para o lugar de onde vim. Preciso achar meu irmão. Preciso voltar. — Para onde? — Hong Kong. Eu estava preocupada pensando que o garoto talvez fosse precisar de um médico por causa do ferimento na cabeça, e isso causaria todo tipo de problema porque ele teria de explicar como tinha vindo para o povoado e eles provavelmente iriam espancá-lo e interrogá-lo antes mesmo de pensarem em tratar dele. Mas isso era só uma parte. Parecia que ele estava delirando. Disse que tinha vindo de Hong Kong, que fica do outro lado do mundo, e mesmo que houvesse aviões comerciais voando, o que não havia, isso teria sido impossível. E outra coisa que só notei agora. O sotaque. Ele certamente não era do povoado nem de nenhum lugar perto. Nem parecia inglês. Nesse ponto eu tinha mais ou menos me decidido. Era hora de ir para casa. O garoto estava machucado, era estrangeiro, meio maluco e não tinha sido convidado — tudo significava encrenca séria. Mas a encrenca não precisava ser minha. Eu continuaria indo para casa e deixaria que outra pessoa cuidasse dele. Mas quando ia me mexer, ele me olhou como se tivesse lido meu pensamento e, de repente, pareceu tão perdido e com medo que eu soube que não podia deixá-lo. — Hermione? — perguntou ele. Eu não conseguia me lembrar de ter dito isso a ele. — É o meu nome — falei. — Mas meus amigos me chamam de Holly. — Holly... — Ele parecia atordoado. — Como você se machucou? Ele pôs a mão na cabeça, depois examinou o sangue nas pontas dos dedos, como se tivesse visto aquilo pela primeira vez. 13 R1196-01(Galera) CS5.indd 13 11/10/2013 10:01:17 — Não sei. Acho que alguma coisa deve ter me acertado. O lugar inteiro estava sendo destruído... um templo em Hong Kong. Havia um tufão. Você deve ter visto na TV. — Não existe TV. Não mais. — E havia outra coisa não se encaixava bem. — Quando você esteve em Hong Kong? — perguntei. — Agora mesmo. Há um minuto. Foi então que eu soube que ele era maluco e decidi ir embora, só que, nesse momento, escutei vozes: dois homens atravessando o cemitério, vindos do norte. Soube imediatamente quem eles eram: Mike Dolan e Simon Reade. Trabalhavam juntos no perímetro externo e deviam estar indo para lá, pois os dois carregavam armas. Se vissem o garoto, tudo estaria acabado. Ele era um estranho. Não tinha lugar aqui. Iriam enchê-lo de buracos sem ao menos perguntar seu nome — coisa que, por acaso, eu também ainda não tinha feito. — Você precisa se esconder — sussurrei. — O quê? — Só faça isso! — Empurrei o garoto e ele se agachou no canto, onde a parede antiga se projetava longe da igreja. Estava escuro ali, fora do sol, e uma sombra caía em cima dele como parte de uma lona. Um segundo depois, os dois homens me viram. — O que está fazendo aqui, Holly? — perguntou Dolan. — Não deveria estar em casa? Isso era típico. Só porque carregava uma arma ele achava que tinha o direito de mandar em todo mundo. Era um homem grande, atarracado, barbudo e com roupa suja. Bom, todos nós tínhamos roupa suja, mas a dele era pior do que a da maioria. Nunca gostei muito dele. — Eu estava indo — respondi. — O que você tem nas mãos? Se machucou? Olhei e vi o sangue do garoto. Devia ter me sujado um pouco quando o empurrei. — Não é nada. Eu me cortei. — Numa macieira? — Os dois gargalharam. Então Reade se virou para mim com olhos de raio laser. Era o menor dos dois, magro e pálido. Gostava de andar com Dolan porque isso o fazia sentir-se importante. Suspeitava de tudo, como um cão sempre farejando os pés da gente. — Eu ouvi você falando com alguém? — perguntou ele. 14 R1196-01(Galera) CS5.indd 14 11/10/2013 10:01:18 — Não. — Acho que ouvi. Eu não sabia o que dizer. Com o canto do olho, eu podia ver o garoto espremido, e me perguntei por que estava mentindo por ele. O que eu poderia fazer para esses dois sujeitos me deixarem em paz? Minha mente procurou uma resposta e a igreja me deu. — Eu estava rezando — disse. Os dois assentiram. Ambos tinham mulheres que poderiam ser freiras se não tivessem se casado... do tipo que fazia o sinal da cruz dez vezes por dia e chorava de verdade ao ler a Bíblia. Havia muita gente assim no povoado. Faziam até encontros de orações nas tardes de folga. Eu sorri e tentei parecer santa. De algum modo, funcionou. — É bom rezar — disse Dolan. — Precisamos de toda ajuda possível. Mas vai escurecer logo. É melhor você ir para casa. — Sem dúvida, Sr. Dolan. Eles foram embora, batendo papo com as armas atravessadas nos ombros. Esperei até os dois sumirem, depois corri para o garoto. Para minha perplexidade, ele havia caído no sono — se bem que era mais provável que o choque e a exaustão o tivessem apagado. Acordei-o com uma sacudida. — Scott...? — murmurou ele. — Quem é Scott? — Meu irmão... — Bom, infelizmente não sou o Scott. Sou Holly. Como você está? — Não sei. Confuso. — Você não me disse o seu nome. — Você não perguntou. — Estou perguntando agora. — É Jamie. Jamie Tyler... — Ele tentou se levantar, mas estava fraco e tonto demais. — Você precisa me ajudar. — Já ajudei. Acabei de impedir que você levasse um tiro. E talvez ajude mais um pouco. Mas você precisa dizer de onde veio (de onde veio de verdade) e quem é. Você não sabe o tamanho da encrenca em que eu posso me meter, só por falar com você. — Certo. — Ele engoliu em seco e eu vi uma onda de dor passar diante de seus olhos. — Você tem um pouco d’água? Peguei minha mochila e abri. Eu tinha uma garrafa cheia d’água quando havia começado a trabalhar, mas agora não restava muita. 15 R1196-01(Galera) CS5.indd 15 11/10/2013 10:01:18 Entreguei-a, e ele a esvaziou de uma vez, como se não tivesse ideia de como aquilo era valioso. A água pareceu reanimá-lo um pouco. Ele esticou as costas. O sangue estava secando sob o sol da tarde que findava. — Que país é esse? — perguntou ele. Dei de ombros. Que tipo de pergunta era aquela? — Que país você acha que é? — exclamei. — É a Inglaterra. Onde mais seria? — Estamos perto de Londres? — Nunca fui a Londres. Não tenho ideia. — Eu estava perdendo a paciência rapidamente. — Diga o que eu quero saber ou vou embora e deixo você aqui. — Não. Não faça isso. — Ele estendeu uma das mãos, me fazendo parar. — Vou contar o que puder. Mas isso não vai te ajudar. Você não vai acreditar. — Experimente. — E é melhor andar logo, quis acrescentar. O sol estava baixando por trás do pináculo. As lápides lançavam sombras que iam cada vez mais longe. Já deviam estar me esperando em casa. — Tem outro local onde a gente possa conversar? Podemos entrar em algum lugar? — Conte agora. Mas ele não contou... pelo menos, não naquela hora. Eu não tinha ouvido os passos atrás de mim. Não havia percebido que Mike Dolan e Simon Reade tinham voltado, até que me virei e vi os dois, imóveis, apontando as armas para Jamie. — Aí está — falou Reade. — Eu disse que tinha alguma coisa acontecendo. — Quem é ele? — perguntou Dolan e, depois, fez a mesma pergunta para Jamie: — Quem é você? — Sou Jamie. — Como chegou aqui? Jamie hesitou. Dava para vê-lo pensando no que dizer. — Peguei um ônibus — respondeu por fim. Era a resposta errada. Quase preguiçosamente, Dolan girou o fuzil, fazendo a coronha bater na lateral da cabeça de Jamie e ele cair esparramado. O golpe foi do lado que não tinha sido machucado. Pelo menos até aquele momento. Eu gritei, mas Reade ficou 16 R1196-01(Galera) CS5.indd 16 11/10/2013 10:01:18 na minha frente, bloqueando o caminho. Jamie ficou caído, imóvel. Dolan parou junto dele. Virou-se para mim. — Você precisa se explicar, Holly — disse ele. — Mas isso pode ficar para depois. Agora é melhor ir para casa. — Ele assentiu para Simon. — Vamos amarrar esse garoto e trancá-lo em algum lugar seguro. E achar o reverendo Johnstone. Vamos ter de convocar uma assembleia. E foi assim. Eu só pude ficar parada, olhando, enquanto os dois pegavam o garoto e levavam embora. 17 R1196-01(Galera) CS5.indd 17 11/10/2013 10:01:18