Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 SAÚDE Ambiente e Desenvolvimento : Efeitos do Álcool Etílico e da Desnutrição Vilma Aparecida da Silva Núcleo de Ciências Comportamentais e do Desenvolvimento Instituto Biomédico, Pós-Graduação em Ciência Ambiental, Universidade Federal Fluminense Resumo - Nesta revisão procura-se diferenciar os efeitos do álcool etílico e da desnutrição sobre o desenvolvimento fetal. Sumarizando estudos experimentais sobre os efeitos da interação do etanol e da desnutrição sobre o desenvolvimento conclui-se que a desnutrição representa fator de risco para os efeitos do álcool mas em doses baixas o consumo de álcool é importante fonte calórica para o desnutrido, atenuando os efeitos da desnutrição. Palavras-chave : álcool etílico; desnutrição; desenvolvimento fetal Environment and Development : Effects of Ethyl Alcohol and Desnutrition Abstract - This review compares the effects of ethanol to the effects of malnutrition on fetal development. Experimental studies on the interaction between ethanol exposure and malnutrition indicate that malnutrition is a risk factor for the effects of ethanol. However, in low doses ethanol is an important source of calories to malnourished animals and attenuates the effects of malnutrition. Key-Words : ethyl alcohol ; desnutrition ; fetal development Environnement et Développement : Effets de l’Alcool Ethylique et de la Dénutrition Résumé - Cette revision cherche à charactériser les différences entre les actions de l’alcool étylique et de la dénutrition sur le développement fétal. Les études expérimentales sur les effets de l’interaction de l’étanol et de la dénutrition sur le développement permettent de conclure que la dénutrition constitute un facteur de risque qui vient s’additionner aux les effets de l’alcool. Cependant, en petites doses la consommation de l’étanol représente une importante source calorique pour le dénutré. Mots-Clés : alcool éthylique ; dénutrition ; développement fétal 1. INTRODUÇÃO A toxicologia do desenvolvimento é o campo do conhecimento que lida, entre outros objetivos, com a avaliação do risco da exposição do embrião, feto e da criança a agentes agressivos presentes no meio ambiente. No que se refere à avaliação do risco da exposição a substâncias químicas, a Toxicologia do Desenvolvimento avançou muito após a tragédia da taliomida. Neste histórico episódio, a má avaliação e a incorreta interpretação de resultados experimentais levaram à liberação e recomendação para uso na gravidez de uma droga que causava um tipo raro de malformação congênita: a focomelia, que é um encurtamento dos membros muitas vezes preservando extremidades. Por ser extremamente rara, e principalmente por isto, foi possível associar essa malformação à ingestão materna da droga. A partir daí surgiram nos diversos países diretrizes mais rigorosas para a testagem de novas drogas antes que possam entrar no mercado. Os problemas e soluções metodológicas deste interessante campo de investigação, assim como orientações para a possibilidade de extrapolação dos resultados para populações humanas te sido objeto de publicações em jornais específicos, como por exemplo o Neurotoxicology and Teratology. A avaliação toxicológica faz parte da análise de risco para a saúde humana e como tal subsidia a área de gestão ambiental, que deve se valer destes resultados para sua decisões. Neste trabalho discutimos dois agentes agressivos para o desenvolvimento do cérebro humano: a desnutrição e o etanol. A consciência dos efeitos da desnutrição deve nortear programas especiais de alimentação para gestantes, lactantes e crianças e levar à reflexão sobre a perversidade da má distribuição da renda, nunca perdendo de vista que a desnutrição é apenas um dos fatores agressivos para o desenvolvimento associado à pobreza e que este problema e político e não científico na medida em que não precisamos de pesquisas para justificar que seres humanos, em especial crianças, não devem sentir fome, desamor e desamparo. O conhecimento dos danos causados pelo etanol ao cérebro em desenvolvimento é apenas mais um subsídio para que as pessoas responsáveis pelo planejamento em saúde e políticos de um modo geral reflitam sobre a importância de programas de prevenção, controle da propaganda e sobre os enor- 1 Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 mês lucros obtidos pela indústria produtora de bebidas alcoólicas. Tentando pensar o alcoolismo numa população desnutrida, como o é grande parte da nossa, podemos refletir ainda sobre a dificuldade de conscientizar a população a respeito de problemas politicos e ambientais mais gerais, quando estas condições – alcoolismo e desnutrição – são em si produtoras de déficits cognitivos alienantes, prejudicando a compreensão e avaliação da realidade. 2. AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO: EFEITOS DO ÁLCOOL ETÍLICO E DA DESNUTRIÇÃO O álcool (etanol) é a principal droga psicoativa utilizada no mundo. Nos Estados Unidos, estima-se que existem cerca de 13 milhões de pessoas classificadas como alcoolistas (Kaplan e Sadock, 1993). O termo “alcoolismo” é usado para um transtorno marcado pelo uso crônico e excessivo de álcool, resultando em problemas psicológicos, interpessoais e médicos. Alguns pesquisadores dividiram o alcoolismo em diferentes padrões de ingestão, aos quais chamam de “espécies”. A espécie chamada “alcoolismo gama”, refere-se a problemas de controle, ou seja, refere-se a pessoas que são incapazes de parar de beber, uma vez que comecem, mas são capazes de manter uma abstinência em variados períodos de tempo. Em outra espécie de alcoolismo, mais comum na Europa, o alcoolista precisa ingerir certa quantidade diária de álcool, mas não tem consciência de uma falta de controle. O alcoolismo nesse caso pode não ser desçoberto até que a pessoa necessite parar de beber (Kaplan e Sadock, 1993). Alguns estudos realizados no Brasil sugeriram que o alcoolismo é um problema de grande relevância social. Por exemplo, Masur (1979) avaliou o consumo de álcool em pacientes de um hospital geral, mostrando que existe uma alta prevalência de pacientes nos quais o consumo de álcool pode ser uma variável importante para o quadro clínico. A ingestão de álcool entre as mulheres é menos freqüente que entre os homens, mesmo quando levamos em conta que as mulheres tendem a esconder o problema por razões culturais. Nos Estados Unidos, a taxa de expectativa de alcoolismo para a vida toda, entre os homens, é de 3 a 5% enquanto para mulheres é de cerca de 1% (Kaplan e Sadock, 1993). Em estudo realizado há alguns anos em maternidade da cidade de São Paulo que atende a população de baixa renda constatamos que 14% das gestantes apresentaram consumo intenso de bebidas alcoólicas durante a gravidez (Silva et al., 1981). A implicação deste achado é que a exposição ao álcool etílico é uma das principais causas conhecidas de retardo mental no mundo ocidental (West et al., 1990). 22 3. A IDENTIFICAÇÃO DO ÁLCOOL COMO AGRESSOR DO DESENVOLVIMENTO FETAL O álcool foi consumido pelo homem desde os tempos primitivos devido à facilidade de sua obtenção a partir da fermentação de frutas. Este uso milenar sugere que o álcool (etanol) tenha sido a primeira droga relacionada a distúrbios do desenvolvimento fetal. Os filósofos gregos já discutiam os possíveis efeitos deletérios do uso de bebidas alcoólicas pela mãe sobre os filhos. Em Cartago e Esparta havia leis proibindo o uso de bebidas alcoólicas por recém casados, no sentido de se evitar a concepção durante a embriaguez. Durante o século XVIII e XIX foram relatados abortamentos e distúrbios do crescimento em filhos de mulheres alcoólatras. Já em 1899, William Sullivan, médico de uma prisão de Liverpool, publicou um estudo sobre 600 crianças, filhas de 120 mulheres alcoólatras, usando algumas mulheres não alcoólatras como controles, onde relatou ter encontrado maior número de natimortos e mortalidade nos primeiros 2 anos de vida no grupo de filhos de alcoólatras. No período de proibição de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos (1919-1933), a famosa “Lei Seca”, a pesquisa sobre os efeitos do álcool diminuiu muito. Terminada a proibição, muitos cientistas retomaram o estudo dos efeitos do álcool sobre a prole, passando, porém a negar qualquer influência negativa, criticando a literatura anterior, como sendo moralista e não científica. De fato, no século XIX e começo do século XX, período que precedeu a “Lei Seca”, a literatura médica tinha uma forte conotação moralista e religiosa. Frases tais como: “As the result of parental intemperance, children often lack physical strenght and mental and moral power... to a great degree parents are responsible not only for the violent passions and perverted appetites of their children, but for the infirmities of the thousands born deaf, blind, diseased or idiotic”, eram encontradas em defesa da abstinência. Revogada a “Lei Seca”, a literatura científica, reagindo à visão moralista assumiu uma postura totalmente oposta. Por exemplo, em 1942, o “Journal of the American Medical Association”, ao ser questionado por um leitor sobre a possibilidade de que a dose de 36 oz (1065 ml) de cerveja ingeridas por uma mulher grávida causasse alterações no feto, respondeu que mesmo doses maiores de álcool não eram comprovadamente prejudiciais (Silva, 1981). O ressurgimento do interesse no etanol como agente teratogênico ocorre num contexto mais amplo de alerta sobre a vulnerabilidade do concepto a fatores presentes no ambiente de sua mãe. Foi a tragédia da talidomida que despertou o interesse do mundo científico para os riscos que os agentes químicos representavam para o desenvolvimento pré-natal. A talidomida, vendida livremente e Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 indicada para o controle de vômitos e como sedativo, produz um tipo muito raro de malformação que é chamada de focomelia (encurtamento de membros superiores e inferiores com preservação de mãos e pés) (Taussig, 1962). A focomelia, extremamente rara, quando ocorria, geralmente afetava apenas um membro. Subitamente, em 1961, a incidência de focomelia aumentou rapidamente, sendo descritas malformações que embora variassem quanto à severidade, mantinham o mesmo padrão específico. Até então, a talidomida, que havia sido sintetizada inicialmente pela Ciba, e pelo laboratório Grunenthal, havia sido testada (pelos próprios laboratórios) em coelhos e, embora fosse constatado que a droga passava com facilidade através da placenta, não foram encontradas alterações naqueles animais. A droga foi então comercializada como sedativo e antiemético, e como era vendida sem prescrição médica, tornou-se muito popular. As manifestações clínicas dos neonatos eram tão estreitamente relacionadas à ingestão de tranqüilizantes pelas mães, que o mundo científico se alarmou, nascendo, como resultado, um grande interesse pelos efeitos potencialmente teratogênicos dos agentes químicos ingeridos durante a gestação. Foi a partir deste fato que o FDA estabeleceu protocolos rígidos para a testagem pré-clínica de novas drogas quanto a efeitos sobre o desenvolvimento fetal (para detalhes consulte Silva, 1991). Inicialmente foi dada maior importância aos efeitos estruturais, morfológicos, causados pelas drogas. Mas logo começaram a surgir evidências de que a função do Sistema Nervoso Central poderia ser alterada mesmo na ausência de más formações grosseiras. Após o incidente de Minamata, no Japão, com a intoxicação por mercúrio de centenas de pessoas, surgiram evidências de distúrbios comportamentais severos nas crianças expostas ao mercúrio in útero (Kimmel e Brelke-Sam, 1985). Surgiram mais ou menos na mesma época indicações de que o álcool etílico ingerido na gravidez causava um padrão de alterações fetais cuja característica mais grave era o retardo mental. Este padrão de alterações foi denominado por Jones e cols. (1973), Fetal Alcohol Syndrome (Síndrome Fetal pelo Álcool, SFA). A síndrome completa é constituída por distúrbios do Sistema Nervoso Central, retardo do crescimento pré e/ou pós-natal e dismorfias faciais características (lábio superior fino, ausência de sulco naso-labial, fissuras palpebrais pequenas entre outras). A incidência estimada da Síndrome Fetal pelo Álcool é de 1-2/1000 nascidos vivos (Dehaene et al., 1977). Os distúrbios do Sistema Nervoso Central relatados como seqüela da exposição pré-natal ao álcool incluem retardo mental de intensidade variável, atraso do desenvolvimento motor, problemas de fala e linguagem, distúrbios do equilíbrio, comportamentos hiper- ativos com déficit da atenção, incluindo hiperatividade, impulsividade, atenção diminuída, labilidade emocional e medos anormais. A ingestão de álcool etílico na gravidez também tem sido associada a abortamentos (Kaufman, 1983). 4. EFEITOS FETAIS PELO ÁLCOOL Na ausência de uma das características da Síndrome completa e conhecendo-se a ingestão materna intensa de álcool, criou-se o termo Fetal Alcohol Effects (Efeitos Fetais pelo Álcool). Este termo embora discutido quanto à sua utilidade (Aase et al., 1995), é útil no diagnóstico precoce de anomalias induzidas pelo álcool, já que ao nascimento por exemplo, é difícil constatar anomalias do Sistema Nervoso Central mais sutis como problemas comportamentais que requerem treinamento específico do médico, ou retardo mental, que é impossível de ser constatado ao nascimento. Por outro lado, quando não estão no conjunto, as anomalias induzidas pelo álcool e que fazem parte da SFA não são de forma alguma específicas, sendo comuns por exemplo a quadros como desnutrição intra-uterina. 5. MECANISMOS ENVOLVIDOS NA AÇÃO TERATOGÊNICA DO ETANOL Embora o mecanismo da ação teratogênica do etanol seja desconhecido, principalmente no que se refere à ação do etanol ao nível celular, várias ações do etanol têm sido documentadas e provavelmente estão envolvidas nos efeitos observados. Por exemplo, é possível que o mecanismo do retardo do crescimento ou dos abortamentos induzidos pelo consumo de álcool sejam diferentes dos que resultam em defeitos morfológicos. Foi proposto por alguns autores que os abortamentos espontâneos são resultados de aberrações cromossômicas relacionadas ao álcool, que as malformações são conseqüências da ação tóxica direta do etanol sobre o embrião e que o retardo do crescimento resulta do transporte de nutrientes essenciais prejudicado ao nível da placenta (Randall et al., 1990). Os problemas neurológicos poderiam resultar de qualquer mecanismo mencionado acima incluindo hipoxia perinatal e acidose possivelmente secundária ao prejuízo da circulação umbilical. Estudos com culturas de embriões de mamíferos demonstraram que há toxicidade direta do etanol sobre o desenvolvimento embrionário (Brown et al., 1979). Na situação in vivo, a quantidade de etanol que atinge o embrião depende de uma série de fatores entre eles a taxa de metabolismo do álcool pelo organismo materno e o padrão de ingestão de etanol. Padrões de ingestão que resultam em níveis sangüíneos altos de etanol podem afetar o crescimento cerebral 23 Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 enquanto que a mesma dose ingerida de forma espaçada que resulta em menores níveis sangüíneos de etanol pode não afetar. O acetaldeído, primeiro metabólito do etanol é também tóxico para o desenvolvimento embrionário e seu papel na etiologia da síndrome fetal pelo álcool ainda precisa ser esclarecido (Randall et al., 1990). Quanto às alterações cromossômicas, embora seja razoável supor que possam explicar os abortamentos espontâneos associados ao consumo de etanol, não se detectou nenhum padrão de alterações em crianças diagnosticadas com a síndrome fetal pelo álcool. Por outro lado, foram demonstradas alterações comportamentais na prole de animais machos tratados com álcool etílico (Abel e Lee, 1988). Isso sugere uma alteração genética a nível do esperma já que as mães não haviam sido tratadas. De qualquer forma nenhuma alteração cromossômica foi ainda detectada. Alterações do transporte de nutrientes pela placenta têm sido descritas após o uso crônico de etanol, assim como alterações morfológicas da placenta. O peso da placenta pode estar aumentado ou diminuído, e foram relatados trombos intervilosos e vilite não especifica (Baldwin, 1982). Esses achados podem estar envolvidos na etiologia do retardo do crescimento fetal e podem explicar o agravamento do desenvolvimento fetal na presença de desnutrição materna, onde a mãe já apresenta deficiência sérica de nutrientes. O prejuízo no transporte placentário de nutrientes pode ser explicado por uma diminuição geral no fluxo sangüíneo placentário e umbilical. Este efeito associado a hipoxia pode ser um dos principais envolvidos na etiologia dos sinais observados na síndrome fetal pelo álcool (Mukherjee e Hodgen, 1982). Há evidências de espasmo de segmentos da artéria umbilical na presença de etanol embora esse fato não tenha sido observado in vivo com níveis sangüíneos de etanol inferiores a 40 mg % (Erskine e Richie, 1986). É possível que o álcool promova um desequilíbrio entre dois prostanóides de atividade vascular importante. O primeiro a prostaciclina é vasodilatador enquanto que o segundo, o tromboxane, é vasoconstritor. Observações de que drogas do tipo da aspirina que reduz os níveis de tromboxane sem afetar os de prostaciclina reduziriam os defeitos congênitos produzidos pelo álcool são sugestivos de que o álcool atuaria por este mecanismo (Randall e Anton, 1984). 6. DESNUTRIÇÃO E DESENVOLVIMENTO Talvez o agente ambiental mais investigado quanto a seus efeitos sobre o desenvolvimento seja a desnutrição. Este fato é compreensível diante do número assustador de pessoas que sofrem fome em diferentes graus no mundo todo. A solução do problema implica em atitude política e não científica, 24 não havendo necessidade de provar que a fome resulta em prejuízos do desenvolvimento da criança para ser reconhecida como imoral pelo sofrimento imediato que causa. Mesmo assim, os cientistas investigaram intensamente, por mais de 20 anos as conseqüências de diferentes tipos de desnutrição sobre o desenvolvimento físico e mental das crianças. Talvez a maior contribuição destes estudos foi tornar evidente as dificuldades em estabelecer modelos de investigação em pesquisas sobre o desenvolvimento do comportamento (Smart, 1987, 1993). Apesar das dificuldades foi possível estabelecer que quando a desnutrição é imposta em períodos críticos do desenvolvimento humano os prejuízos mais evidentes ocorrem no desenvolvimento motor em comparação ao desenvolvimento mental (Smart, 1987). Dos modelos em animais de laboratório foi possível concluir que as alterações comportamentais mais replicáveis são no repertório social (Smart, 1993). Ratos desnutridos durante o desenvolvimento são mais agressivos na vida adulta do que animais não previamente desnutridos. Não temos conhecimento de estudo que tenha tentado verificar se este achado tem significado na população humana. 7. A INTERAÇÃO DO ÁLCOOL COM A DESNUTRIÇÃO A Síndrome Fetal pelo Álcool não afeta todos os filhos de alcoólatras, mas ocorre em cerca de 40 % deles (Jones et al., 1973). Além disso sua ocorrência na forma completa é verificada entre os filhos de mulheres que beberam intensa e cronicamente, muitas delas já com distúrbios orgânicos como conseqüência da ação deletéria do álcool sobre o organismo (cirrose hepática por exemplo). Estas observações geram a questão de que a Síndrome, na sua forma completa estaria relacionada à presença de fatores de risco associados à ingestão de álcool e que agravariam seus efeitos. Uma possibilidade é que na presença de tais fatores de risco o limiar para a produção de defeitos pelo álcool estaria diminuído. Um dos fatores de risco mais prováveis é a desnutrição materna. Na verdade a desnutrição é uma variável intimamente associada à questão do alcoolismo. O consumo de etanol gera desnutrição por vários mecanismos. Em primeiro lugar, substitui as calorias da dieta, mas suas calorias, vazias, não parecem ser aproveitadas para crescimento corporal e não são acompanhadas de vitaminas e sais minerais (Lieber, 1976). Por outro lado a má-nutrição assim gerada resulta em prejuízo funcional gerando má absorção, má digestão e prejuízo dos processos de detoxicação. Por ação tóxica direta o álcool gera insufi-ciência pancreática e deficiência de enzimas intestinais o que agrava a má nutrição. Deficiências específicas podem ser geradas através da indução de Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 enzimas microssomais como por exemplo a enzima que degrada vitamina A, contribuindo para a depleção desta vitamina (Lieber, 1991). Superpõe-se a esses efeitos o fato de que boa parte da população de baixa renda, usualmente desnutrida pela circunstância da poreza, consome elevados níveis de bebidas alcoólicas. Pelas mesmas razões esta população freqüenta de maneira irregular o atendimento pré-natal onde os perigos da ingestão de álcool durante a gravidez são divulgados. Com o objetivo de verificar o que estaria ocorrendo nestas circunstâncias entre a população de baixa renda no Brasil, realizamos há anos atrás um estudo que constou de entrevistas com puerperas de uma maternidade que atende à população de baixa renda da cidade de São Paulo e do exame dos seus recémnascidos para efeitos fetais causados pelo álcool (Silva et al., 1981). O pesquisador encarregado de examinar os recém-nascidos não tinha conhecimento do nível de ingestão de bebidas alcoólicas por parte da mãe e o entrevistador, similarmente, não conhecia as condições do recém-nascido. Medidas antropométricas (peso, altura, perímetro braquial, prega cutânea triceptal) foram colhidas das mães, de forma a permitir a caracterização do seu estado nutricional em paralelo às informações sobre as condições sócio-econômicas. A ingestão de bebidas alcoólicas foi avaliada de forma a obter dados sobre a freqüência, intensidade e variabilidade do padrão de beber, o que permitiu classificar as entrevistadas em quatro níveis crescentes de ingestão de álcool, variando de zero (abstêmias) a quatro (ingestão intensa caracterizada pelo consumo praticamente diário de etanol, com pelo uma vez na semana ocorrendo a ingestão de 5 ou mais “drinks”). Os resultados indicaram que: a. Havia uma grande porcentagem de mulheres (cerca de 50% da amostra) com estado nutricional inadequado para os padrões antropométricos. Esta inadequação era igualmente distribuída entre os diferentes níveis de ingestão de álcool e compatível com a baixa renda familiar constatada. b. 14% das entrevistadas referiram consumo intenso de bebidas alcoólicas durante a gravidez (grau 4). c. Nesta porção da amostra (grau 4), foi constatado um número maior de recém-nascidos com sinais sugestivos de efeito do álcool (peso e/ou comprimento pequenos para a idade gestacional, microcefalia e fissuras palpebrais pequenas). As conclusões deste estudo indicavam dois eixos importantes: 1. os efeitos do álcool sobre o desenvolvimento puderam ser constatados mesmo na presença de desnutrição materna. Ou seja, os sinais de alteração mesmo sendo inespecíficos, podiam ser determinados, predominando na amostra que ingeria níveis intensos de bebidas alcoólicas. 2. As variáveis desnutrição e etanol ocorrem simultaneamente na nossa população e é importante conhecer melhor a sua possível interação. A partir da segunda conclusão uma série de estudos em modelos animais foi iniciada com resultados que mostraram a complexidade do objeto de estudo. 8. ESTUDOS COM MODELOS ANIMAIS DA INTER-AÇÃO EXPOSIÇÃO AO ETANOL E DESNUTRIÇÃO Modelos animais são utilizados em toxicologia do desenvolvimento com os seguintes objetivos principais: 1. controlar variáveis de impossível controle nos estudos humanos (época exata e nível de exposição à droga, dieta e condições de vida idênticas nos grupos experimental e controle, etc.); 2. realizar avaliações da prole em procedimentos que não seriam éticos nos estudos humanos (avaliação neuro-anatômica em paralelo à avaliação de comportamento, etc.). Obviamente sua maior limitação é a possibilidade de extrapolação para o ser humano. Discussões aprofundadas sobre metodologia e seus problemas e soluções podem ser encontradas na literatura (Silva, 1991). No caso da compreensão da interação de efeitos da desnutrição com a exposição ao etanol algumas contribuições importantes resultaram dos estudos em animais. 9. ESTUDOS DO CRESCIMENTO FETAL E DO DESENVOLVIMENTO Tanto os estudos com desnutrição apenas protéica (Wainwright et al., 1985) quanto aqueles que utilizaram modelos de privação de quantidade total de ração oferecida sem alterar sua qualidade (Silva et al., 1987) concluíram que o etanol tem efeitos sobre o feto desnutrido que são mais graves do que os causados no feto não desnutrido. Por exemplo, em ambos os estudos o peso corporal de animais simultaneamente desnutridos e expostos ao álcool foi menor do que nos grupos em que a agressão se deu por apenas uma das variáveis. O esqueleto fetal teve seu desenvolvimento atrasado pelo etanol apenas nos fetos desnutridos (Silva et al., 1987). O peso fetal, em um dos estudos (Wainwright et al., 1985) só foi diminuído pelo etanol quando na presença de desnutrição. Outra conclusão importante é o fato de que na desnutrição ocorre um fenômeno de poupar o feto da agressão, o que não se observa na exposição ao etanol. Por exemplo, o peso cerebral é menos afetado pela desnutrição do que o peso corporal, ou seja, o cérebro é poupado dos seus efeitos, o que não ocorre na exposição ao álcool etílico (Wainwright et al., 1985). Outro fenômeno é o fato de que na desnutrição materna o peso fetal é muito menos 25 Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 diminuído do que o peso materno. Isso também não ocorre na exposição ao etanol (Silva et al., 1987). Estes resultados permitem concluir que a desnutrição representa fator de risco importante para os efeitos do etanol sobre o desenvolvimento. Em outras palavras alguns efeitos do álcool só se manifestam na presença concomitante da desnutrição. Esta observação começa a ser confirmada também na esfera neurocomportamental. O desempenho motor de ratos desnutridos expostos ao etanol tem sido consistentemente inferior ao de animais apenas desnutridos ou apenas expostos ao etanol (Silva et al., 1994). 10. MECANISMOS DA INTERAÇÃO DESNUTRIÇÃO-EXPOSIÇÃO AO ETANOL Tendo verificado que a desnutrição é fator de risco para a toxicidade do etanol surge a questão do mecanismo pelo qual a interação se daria. A primeira hipótese, por ser a mais simples e imediata é de que a farmacocinética (absorção, distribuição, metabolismo e eliminação) do álcool estaria alterada pela desnutrição, resultando em permanência prolongada do álcool no organismo desnutrido o que naturalmente significa expor os órgãos alvo por tempo maior a níveis mais elevados com conseqüente toxicidade aumentada. Numa série de estudos que buscaram verificar essa hipótese em modelos diferentes de desnutrição concluímos que: 1. Quando a desnutrição é protéica ocorre diminuição da atividade da enzima álcool desidrogenase, principal enzima na degradação do etanol, e conseqüentemente a eliminação é retardada (Silva e McLean, 1988). Sendo assim, nesse tipo de desnutrição não se pode descartar as alterações de farmacocinética ao explicar o aumento da toxicidade do etanol. Um achado interessante foi o de que em determinadas condições, como a lactação esta alteração é extremamente rápida, já ocorrendo prejuízo da eliminação do álcool com apenas 2 dias de privação protéica (Silva e McLean, 1990). 2. No modelo em que a desnutrição é produzida pela diminuição da oferta de ração sem alterar seu conteúdo protéico não ocorrem as alterações descritas para o modelo de privação protéica. Em outras palavras, não há prejuízo da eliminação de álcool mesmo em grau de desnutrição análogo em termos de peso corporal ao obtido pela privação protéica. Nesse modelo, embora o peso do fígado esteja muito reduzido em relação ao peso corporal parece haver aumento de atividade enzimática por grama de fígado o que resulta em eliminação do álcool semelhante à de animais não desnutridos (Silva e McLean, 1988). 26 A explicação do mecanismo de interação com o álcool nesse caso não pode ser farmacocinética. Uma possibilidade é a de que uma ação do etanol a nível do transporte placentário de nutrientes sería agravada na presença de um organismo materno já em condições nutricionais críticas. 11. ÁLCOOL COMO FONTE DE CALORIAS PARA DESNUTRIDOS Em algumas situações experimentais, onde a exposição ao etanol resulta em níveis sangüíneos menores do que os observados nos estudos relatados acima, os resultados têm indicado que a interação da desnutrição com o etanol pode ser aparentemente benéfica. Nestes estudos verificou-se que o peso corporal de ratos desnutridos expostos ao etanol foi maior do que o de ratos apenas desnutridos, o desempenho reprodutivo também foi melhor com maior viabilidade de fetos (Silva et al., 1982) e menor mortalidade no período de lactação (30). Algumas observações em estudo com seres humanos (Da-Silva, V.A. e cols., dados não publicados) também sugeriram melhora de parâmetros antropométricos de avaliação do estado nutricional entre mulheres desnutridas que bebiam álcool em comparação às desnutridas abstêmias. Essas observações abrem duas linhas de discussão que merecem a atenção de estudos futuros: 1. É preciso investigar com metodologia mais sensível (estudos comportamentais, por exemplo) se a prole desnutrida que se torna viável sob a ação do etanol apresenta sequelas dessa exposição. 2. As calorias do álcool parecem ser aproveitadas pelos organismos desnutridos. Esse fato contradiz a tradicional versão das calorias vazias (Lieber, 1976) o que já vem sendo discutido na literatura (Lands, 1993). No caso de desnutridos esse aspecto é interessante para a investigação. 12. CONCLUSÃO O etanol é sem dúvida uma droga de efeitos complexos. Embora por um lado seja claro que a desnutrição representa fator de risco para os efeitos do álcool sobre o desenvolvimento, por outro lado é possível que em doses baixas o consumo de álcool represente importante fonte calórica para o desnutrido, atenuando os graves efeitos da desnutrição. O efeito ansiolítico do álcool sobre o estresse causado pelos modelos experimentais de desnutrição também deve ser lembrado. AGRADECIMENTOS À professora Luciana Reis Malheiros pela valiosa colaboração na atualização bibliográfica, ao engenheiro André Luís de Abreu Moreira pela colaboração na preparação do manuscrito e ao CNPq pelo apoio financeiro nos vários estudos mencionados. Mundo & Vida vol. 2 (1) 2000 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AASE, JM; JONES, KL & CLARREN, SK. Do we need the term “FAE”? Pediatrics 95:428-430 (1995). ABEL, EL; LEE, JA. Paternal Alcohol Exposure Affects Offspring Behavior but not Body or Organ Weights in Mice. Alcohol Clin. Exp. Res. 12: 349355 (1988). BALDWIN, VJ; MACLEOD, PM & BENIR-SCHKE, K. Placental Findings in Alcohol Abuse. Birth Defects 18: 89-94 (1982). BORGES-SILVA, J; GELSOMINO, FL; DA-SILVA, VA. Ethanol Diminui os Efeitos da Desnutrição em Ratas Lactentes. IX Reunião Anual da FESBE, Caxambú (1994). BROWN, NA; GROULDING, EH; FABRO, S Ethanol Embryotoxicity: Direct Effects on Mammalian Embryos in vitro. Science 206: 573-575 (1979). DA-SILVA VA. Métodos Experimentais Utilizados na Avaliação de Efeitos Tóxicos Sobre o Desenvolvimento. Em: Mutagênese, Teratogênese e Carcinogênese, editado por M.Nazareth Rabello-Gay; Rodrigues, MALR; Monteleone-Neto, R. Sociedade Brasileira de Genética, Ribeirão Preto, pp.218-241 (1991). 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