Descontrair é o melhor remédio Mudar o clima causado pelos momentos de stress que surgem a partir do diagnóstico do câncer e durante o tratamento. Esse é o principal motivador das atividades lúdicas recomendadas para todas as idades e cada vez mais presentes nos hospitais de todo o país. Das brinquedotecas garantidas por lei aos famosos Doutores da Alegria, passando por oficinas de culinária, fotografia e pintura, o objetivo é descontrair criando situações que diminuam a solidão, aliviem o sofrimento e tragam conforto a pacientes e familiares, melhorando a qualidade de vida. Num contexto maior, essas práticas têm origem na política de humanização que visa a recuperação da autoestima e da confiança dos pacientes, assim como dos familiares e profissionais envolvidos no tratamento. No caso das crianças, a meta é fazer com que elas se desliguem da realidade dura e fria dos hospitais e possam se reconectar com o universo lúdico da casa e da escola. "Brincar funciona como uma ponte para que as crianças se comuniquem e expressem seus conflitos e dificuldades", afirma Patrícia Pecoraro, coordenadora de uma das primeiras brinquedotecas brasileiras, a do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (GRAACC), mantida pelo Instituto Ayrton Senna. É justamente para transformar a internação hospitalar dos pequenos pacientes em um momento mais agradável que a Associação Viva e Deixe Viver leva, há 12 anos, seus contadores de histórias para dentro dos hospitais. Com um repertório recheado de possibilidades, que pode até incluir a ajuda dos Power Rangers para tirar o Pinóquio da barriga da baleia, os voluntários são treinados para interagir com as crianças de acordo com o que elas propõem. "O hospital é um ambiente imperativo em que o paciente tem que tomar o remédio, tem que comer, tem que passar pelo tratamento. Buscamos entreter e informar sem impor uma história ou brincadeira, oferecendo à criança o direito de escolher o que quer ouvir, se quer ouvir", afirma Valdir Cimino, fundador da Associação que, por meio de 1.100 voluntários atuando em 74 hospitais distribuídos por nove estados brasileiros, promove um importante contato da criança com o mundo encantado das histórias infantis. Na opinião do oncologista Antônio Talvane, diretor clínico do Hospital do Câncer de Barretos, os benefícios das atividades lúdicas são as relações sociais que elas possibilitam, permitindo o compartilhamento das dificuldades ou a simples troca de experiências. É o caso de um grupo de mulheres que, nas tardes das sextas-feiras, se reúne para tirar dúvidas sobre a doença, mas também para agitar atividades. "Queríamos criar um ambiente amigável que facilitasse o enfrentamento desses momentos que podem ser até mesmo cruéis", afirma Christina Haas Tarabay, psicooncologista do Hospital A.C.Camargo, responsável pela criação do grupo junto com a enfermeira Simone Fortes e a mastologista Fabiana Makdissi. Dos desfiles de moda à ginástica orientada por um professor especializado em oncologia, as mulheres do grupo têm participado ativamente, levando também amigas e parentes. Não importa se a proposta é o teatro, a fotografia ou a música. A ludoterapia, terapia através do brinquedo ou da diversão, tem poder transformador, bem como o suporte familiar e de profissionais especializados. No Instituto do Câncer de São Paulo (ICESP), o programa "Tsurus e as Dobraduras Descontrair é o melhor remédio - Inês Martins (11-02-2010) Página 1 de 3 da Vida" vem instigando os acompanhantes e pacientes da sala de espera da quimioterapia do hospital. Enquanto dobram pássaros de origami, símbolos da vida longa e da saúde na cultura japonesa, eles depositam toda a fé na recuperação do doente, exatamente como reza a lenda daquele povo. Durante a atividade, são orientados por uma psicóloga a relacionar a dobradura com as várias fases do tratamento. "Fazemos a decodificação das dificuldades de nossos pacientes e acompanhantes", conta a psicóloga Heloísa Chiattone, consultora da diretoria executiva no programa Humaniza ICESP. Ela revela que o programa surgiu a partir da observação da prática da artista Rosana Sevilha, que dobrava os tsurus enquanto esperava o tratamento quimioterápico de sua mãe. A força das brinquedotecas Ao se perguntar por que as crianças odiavam o ambiente hospitalar, Viviane Senna, presidente do Instituto Ayrton Senna e irmã do piloto falecido, teve o insight de criar um espaço onde elas poderiam não apenas brincar, mas encontrar meios de lidar com a doença. Isso foi há 12 anos, quando nasceram as brinquedotecas mantidas pela entidade em hospitais oncológicos - e que inspiraram inúmeras iniciativas pelo Brasil. Atualmente o Instituto mantém três delas, a do GRAACC, em São Paulo, do Centro Infantil Boldrini, em Campinas, e do Grupo de Apoio à Criança com Câncer (GACC), em Salvador. Em compensação, esses locais são hoje obrigatórios em qualquer hospital que tenha internação pediátrica, conforme lei de autoria da então deputada federal Luiza Erundina, em 2005. Segundo Pecoraro, o grande mérito das brinquedotecas foi estimular a entrada de profissionais que, embora não fossem da área de saúde, tinham projetos de levar educação e humanização para dentro dos hospitais. Um movimento que facilitou a atuação das ONGs e organizações, a exemplo dos Doutores de Alegria, que completam 18 anos de existência. Considerados pelas Nações Unidas como uma das melhores práticas do gênero, os Doutores da Alegria desenvolveram uma pesquisa cujos resultados indicam que 91% das crianças recordam e relatam as brincadeiras realizadas pelos palhaços, enquanto 74,3% delas aceitam melhor os procedimentos médicos. Realizada junto aos profissionais da área de saúde no universo de 19 hospitais em que eles atuam, a pesquisa destaca melhorias nas relações dos profissionais com os pacientes, desses com a família, ou mesmo entre eles próprios. O envolvimento de todos os que estão em volta do paciente, dos funcionários da limpeza aos médicos, é a meta do "Humanizando Relações", da ImageMagica. Criada há 15 anos pelo fotógrafo André François, a organização rodou o país com oficinas de fotografia nas quais os participantes registram com câmeras a importância do ato de cuidar. "As oficinas mostraram que todos fazemos parte da vida desses pacientes", revela a enfermeira Renata dos Santos, do Hospital do Câncer de Barretos. "Agora vemos a fotografia como uma forma de aproximação afetiva", acrescenta a musicoterapeuta do hospital, Flávia Tutya. Descontrair é o melhor remédio - Inês Martins (11-02-2010) Página 2 de 3 Todas as iniciativas são válidas para elevar o ânimo dos pacientes. No Hospital A.C.Camargo, uma oficina mensal de culinária permite que os alunos trabalhem a aceitação de uma nova dieta, pois o tratamento do câncer costuma alterar o paladar, causando estomatites, enjoos, entre outras reações. Já no Hospital de Barretos, cerca de 20 pacientes que foram submetidos à laringectomia total, ou seja, que ficaram mudos a partir da perda da prega vocal, estão aprendendo a falar e a cantar utilizando a voz esofágica, produzida com o esôfago. Entusiasmados, eles integram o Coral Papo Furado e treinam com a ajuda de fonoaudiólogas e musicoterapeutas para a primeira apresentação, que ocorrerá no final do ano. O despertar para a pintura Quando ficou doente em julho de 2008, Aline Teles, então com 16 anos, era estagiária de help desk na FECAP, em São Paulo, onde estudava computação. Levava uma vida absolutamente normal. Gostava de dançar e ir à raves no fim de semana, tinha muitos amigos e era engajada em algumas causas como a preservação do meio ambiente: é simpatizante do Greenpeace. Em seis meses a sua vida mudou completamente. Depois de não conseguir se livrar de uma dor nos nervos ciáticos, ela foi aconselhada a buscar outros exames que detectaram um tumor na T5, a quinta vértebra torácica. Aline foi submetida a três cirurgias, ganhou 8 pinos, 2 hastes e uma placa de titânio, fez diversos tipos de tratamento, até descobrir que o seu tumor é de um tipo resistente à quimioterapia e à radioterapia, o condrossarcoma. Incentivada a pintar durante uma internação de exatos 100 dias no Hospital de Barretos, seu primeiro quadro saiu todo preto. "Era como eu estava me sentindo", lembra ela, que desde então vive deitada sem poder andar, mas que não parou mais de pintar num cavalete adaptado à sua cama. Aline conta que ao descobrir o gosto pela pintura, tudo foi "ficando mais colorido", bem como seus quadros que, de tão bonitos, mereceram uma exposição no hospital. Enquanto aguarda a próxima cirurgia para a extração completa de seu tumor, ela faz planos. Depois de recuperada quer ser voluntária para ajudar outros pacientes a descobrirem, como ela, atividades e dons que possam amenizar o tratamento contra o câncer. fonte: Revista ABCâncer Edição nº 53 Out 2009 - http://www.abcancer.org.br Descontrair é o melhor remédio - Inês Martins (11-02-2010) Página 3 de 3