Gargantua: o personagem aprisionado
José Luiz Ribeiro*
Abstract
Investigation about the comic and the dramaticity of the François Rabelais’ character Gargantua from
the point of view of gastronomic eating, drinking and different forms of “diseating” and that are also present
in the universe of the traditional popular comicity
“A tolice é a sabedoria licenciosa da festa, liberada
de todas as regras e restrições do mundo oficial e,
também das suas preocupações e da sua seriedade”.
Mikhail BAKHTIN
Gargantua, de François Rabelais é uma obra que, iluminada criticamente
por Mikhail Bakhtin, redimensiona o universo medieval e coloca o riso no
âmbito das discussões do final do século XX. Ao narrar, em clima épico, a
história de um gigante, o autor faz um retorno à infância povoada de histórias
dos tempos das grandes navegações e enxerga o mundo em contre-plongée.
Ao rever sua meninice, Rabelais estrutura uma obra, em que a figura
paterna surge como um ser fantástico, um super-herói, um herói forte e
tutelar. Pois Gargantua já nasce pai de Pantagruel e nesta genealogia de
inversão carnavalesca, o folgazão Grangousier, conforme observa Yara
Frateschi Vieira (1986)1 remete o pai do herói à figura paterna do próprio
autor. E é assim que assume contornos de um ideal que marca o final da
Idade Média: o melhor juiz, o Rei.
*
1
UFJF
Doutorando em Comunicação e Cultura - UFRJ
“O próprio pai de Rabelais estaria representado em Grandgousier, o pai de Gargantua”. (Vieira, 1986, p. 25)
José Luiz Ribeiro
Portador da graça do perdão ele será a ponte para um novo tempo,
onde a nova ordem será apontada:
Honra, amor, prazer,
Aqui dentro vêm
Por acordos justos.
Todos são robustos
E, por isso, tem
Honra, amor, prazer . (Rabelais, 1986 p. 241)
Ao utilizar, como procedimento para investigar o seu tempo, o riso,
incorporando personagens reais a um tratamento ficcional, o autor assume
o postulado do jogo infantil, da brincadeira e da demolição do próprio
riso. Essas regras vão nortear a criação do Gigante-pai, que se torna história
para divertir.
Gargantua, em sua origem, uma obra destinada ao lazer; é uma forma
do Dr. Rabelais, uma figura inquieta, que transita por vários ofícios, divertir
seus doentes. O lazer objetiva a recuperação física e o riso é um instrumento
libertador.
Ao conceituarmos esta obra como instrumento de diversão popular –
o que é provado pelo grande sucesso obtido junto ao público de seu tempo –
encontramos as dimensões lúdicas de uma narrativa de faz-de-conta, numa
sucessão épica de encaixes capaz de mostrar o burburinho da linguagem
popular, gritando nos ouvidos do inquieto religioso.
Nascidos da festa popular da feira, onde circula a abundância de
frutos e cereais, os personagens se instalam no universo do povo através do
jogo referencial do banquete de tripas, do vinho, do excremento e do riso.
No Gênero: As Regras do Jogo
32
Em sua origem Gagantua estabelece, através de uma piscadela de
olhos para o leitor, as regras que nortearão o universo de sua trajetória.
Existe, a partir de então, um com prometimento irrestrito entre o leitor e a
obra, no sentido de atingir, no espaço delimitado do livro (e da imaginação),
o código deste jogo. O expediente remete ao texto, que sugere, em seu ludismo,
a composição que Huizinga chama de ausência de ruptura radical entre o
jogador, caracterizado pelo autor e o assistente do jogo, o leitor. A sucessão
de exageros, tão característica do realismo grotesco, ultrapassa o racional e
estabelece uma evasão da vida real que, rompendo este universo pela
inversão, instala a carnavalização.
No confronto com o não-permitido, Rabelais joga com significados
cambiantes e, assim, consegue maravilhar o leitor de seu tempo e o do nosso,
Ipotesi: revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, v 3 - n 1 - p. 31 a 43
Gargantua: o personagem aprisionado
com um rico exercício de liberdade radical própria do carnavalesco. A lei
da subversão das regras, com a fuga do real e a instauração da desordem,
serve-se da alegoria para a libertação. A partir daí, mostra a segunda vida,
ainda que dentro do campo da utopia, como instrumento de um universo
de justiça e de igualdade.
O lúdico busca libertar o homem de suas tensões cotidianas e, para
que isso aconteça, é preciso que sua regra seja exposta de maneira clara.
Assim, ao se dirigir ao leitor, Rabelais o faz no melhor espírito dos textos
dramáticos que buscam seduzir o público – captatio benevolentia –
estabelecendo seu recorte desordeiro dentro deste universo lúdico. Fixa as
regras e pede ao leitor: “Libertai-vos de toda prevenção” e, como bom retórico,
continua a advogar, no endereçamento que faz aos leitores, antes mesmo do
Prólogo, em causa própria:
E não vos melindreis, ó vós que ledes,
Que nenhum mal contém, nem perversão.
É verdade que pouca perfeição
Salvo no riso, aqui podeis obter:
Outra coisa não posso oferecer,
Ao ver as aflições que nos consomem;
Antes risos que prantos descrever,
Sendo certo que rir é próprio do homem.
VIIVEI ALEGRES.3 (Rabelais, 1986 p. 39)
Dotado de uma linguagem teatral, o texto de Rabelais é um grande
roteiro que se presta, sem dúvida, a uma encenação moderna. O procedimento
lúdico da representação de está, de princípio, delimitado, ao defender o
riso como uma função biológica essencialmente humana. A comédia
torna-se, então, seu objetivo recuperador e podemos constatar sua presença
em todos os momentos de tensão social, principalmente subvertendo, de
maneira carnavalizada, a seriedade do texto e estabelecendo a integração
criativa e participante.
Ao assumir a comédia, ao nortear o riso como parâmetro clínico para
sua obra, temos a esfera de tratamento do Dr. Rabelais que, através do pharmakós,
procura eliminar o pranto que cerca a vida do homem medieval atemorizado
pelo fogo do inferno institucional, que só pode ser vencido pelo riso. Conforme
observa Bakhtin no prólogo, verifica-se a integração da medicina e da arte, mas
não apenas nos termos tradicionais de integração entre o comediante e o
vendedor de drogas farmacêuticas:
o autor proclama sem rodeios a virtude curativa da literatura (as
Crônicas, no caso), que distrai e faz rir; proclama-o no tom do
charlatão e do vendedor ambulante de feira; no Prólogo do Quarto
Ipotesi: revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, v 3 - n 1 - p. 31 a 43
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José Luiz Ribeiro
Livro, Rabelais retoma esse tema para provar a virtude curativa do
riso, refere-se à doutrina de Hipócrates, Galeno, Platão e outras
autoridades. (BAKHTIN, 1987, p. 139)
Através da brincadeira afasta-se a angústia e elimina-se a tensão. E o autor,
pressionado pelas instituições, depois de ter se afastado de uma ordem ignorante,
sabe que o riso destrói o medo e que sem o medo não existe o dogma. Assim
como o desespero gera o riso da loucura, a desconstrução da realidade se faz,
através do jogo de sentidos, um instrumento distanciador do mundo real que é
permitido pelo jogo representativo. E isso encontramos em Gargantua.
As regras básicas do procedimento temático da comédia estão
explícitas nas primeiras palavras do Prólogo do Autor e estarão pontuando
todo o contexto. Comer, descomer e copular estarão sendo tratados de
maneira natural e arquetípica, em oposição ao universo fechado de claustros
e regras. Fazem parte da ordem natural e, assim como o preceito bíblico diz
“dai de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede”, a obra é
hiperbolicamente dedicada aos ‘ilustríssimos bebedores” e pede a eles que
se divirtam “para satisfação do corpo e em proveito dos rins”. E, ao dirigir-se
ao leitor de maneira brincalhona, muda, pelo riso, o sentido do xingamento
e da maldição, advertindo: “Mas, escutai., pedaços de asno (a úlcera vos
corroa!): lembrai-vos de beber também à minha saúde, que a isso vos
provocarei em seguida”. (Rabelais, 1986, p. 45)
Gargantua: personagem em ruptura
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Dentro da obra de François Rabelais salta-nos aos olhos a confluência
do universo do jogo dramático que se estabelece no interior do primado de
um cômico de carnavalização. Gargantua é um gigante (como outros presentes
na literatura que lhe é contemporânea) e, assim, um ser diferenciado do
mundo comum. Sua existência se dá na dimensão do prodígio e do excesso.
Ao surgir como personagem-título de uma obra, delimita um mundo
que se instaura no universo masculino. Gargantua é um personagem
emblemático da Idade Média, pois, como ela, ele também é um personagem-médio. Não existe nele a terminalidade. Como os obreiros de
corporações que constróem igrejas em duzentos anos, para a glória de Deus,
ele faz parte de um processo de ligação entre gerações.
Como Gargantua já nasce pai de Pantagruel e, por sua vez, origina-se
do Grandgousier, ele está inserido num universo medieval em que a mulher
cumpre apenas a função de objeto de gozo e de alegria. Gargantua aprende
a ser homem a partir da perspectiva de um mundo que assenta as bases
do renascimento: nos campos de guerra, no exercício do saber e na
hierarquia dos peritos.
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Gargantua: o personagem aprisionado
Como personagem cômico, ele já nasce no universo da festa e isto
está caracterizado pela abundância e esbanjamento que o cercam. Ele é fruto
da alegria do grotesco encontro de Grandgousier com Gargamelle quando:
“Costumavam os dois brincar de bicho de duas costas, esfregando-se
alegremente, quando ela ficou grávida de um lindo filho, que carregou consigo
durante onze meses”. (Rabelais, 1986, p. 55)
Ao superar a natureza, em dois meses, ele adquire a situação insólita
que fará da fé um instrumento de riso, para discutir o “milagre” que acontece
a algumas mulheres que dão à luz muito tempo depois de se tornarem viúvas.
Este é o pretexto para que o autor se revele e revele o conteúdo masculinizante
do universo do personagem, que é filho de “um folgazão” com rapariga bonita
e cara”. (Rabelais, 1986, p. 55)
Discute-se, aqui, o universo do prazer, como legado de pai para
filho, permitindo a licenciosidade da festa com seu desregramento em
que a cópula sugerida faz explodir o riso. Prova disso é a fala de Rabelais
como raisonneur:
Graças a essas leis, as mulheres viúvas podem livremente entrar
no brinquedo, apostando e arriscando tudo, dois meses após o
falecimento dos maridos. E vós, meus caros gaiatos, se encontrardes
algumas em cuja intenção valha à pena abrir a braguilha, trepai
em cima e, por favor, trazei-as para mim... (Rabelais, 1986, p. 56)
Nosso herói é aquariano e seu nascimento coincide com a terça-feira
gorda, dia de celebração e esbanjamento. Assim, está ligado, como os mortais,
às entranhas escuras, onde habitam as tripas. Mas por um procedimento
dramático próprio da comédia, como assinala, o fato envolve a desconstrução
do modelo: nosso personagem não nasce de forma natural, não se arrisca à
contaminação pelo excremento das tripas. Seu nascimento cômico é
surpreendente, pois quando as parteiras tentam fazer o parto de sua mãe, ela
assume uma postura incomum e espanta a todas: “Pensaram que fosse a criança,
mas era o reto que lhe escapara, por se ter afrouxado o ânus, que vós chamais
olho-do-cu”. (Rabelais, 1986, p. 67)
Ao ter seu movimento natural cortado, o gigante deixa as tripas, que
representam a intermediação entre o alto e o baixo e mergulha no sangue de
onde emerge numa segunda via. Como observa Bakhtin: “o grotesco amarra num
mesmo nó indissolúvel, a vida, a morte, o nascimento, as necessidades, o alimento;
é o centro da topografia corporal onde o alto e o baixo são permutáveis” (Bakhtin,
1987, p. 141) . Assim, como o sangue do animal sacrificado gera a continuidade
da vida, Gargantua torna-se, como Dionísio, o nascido em segunda via. Como
nasce pelo ouvido, sua forma comunicativa imediata é através da fala: pede bebida.
E, mais uma vez, temos a associação da garganta, que leva às tripas, garante a
passagem do alimento e promove o intercâmbio do homem com o mundo.
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José Luiz Ribeiro
Se Gargantua, em si, é o excesso, ele é o símbolo da festa e sua descrição
revela o exagero que desperta o riso. Seu procedimento é sempre inesperado
dentro da lógica da vida comum. Ele é fruto do jogo de aparências, mas é,
também, uma busca de provocação do riso desmistificador, quando da imitação
paródica do sério. Rabelais é o narrador em presença e, ao emitir conceitos,
demole velhas regras e dogmas, como um histrião de feira que prescreve
medicamentos seriamente. Pois, para ele, “a fé é argumento das coisas de
nenhuma aparência” (Rabelais, 1986, p. 68) e, com mais seriedade ainda,
afirma, dizendo do poder do sagrado: “para Deus nada é impossível e, se ele
quisesse, as mulheres passariam a parir pelos ouvido” (Rabelais, 1986, p. 68)
Mais uma vez, o comportamento paródico surge na afirmação real e popular de
que, para Deus, nada e impossível - nem mesmo o fato grotesco – e, ironicamente,
questiona o dogma.
A personagem Gargantua continua a ser descrita por este viajante que
nos leva a conhecer, numa viagem cômico-grotesca, a epifania desta maravilha
biológica que nasceu e pediu para beber, num procedimento imitativo e
rebaixador do sério. Estabelece, desta forma, o jogo do cômico popular quando
descreve com adjetivos hiperbólicos a grandeza do rebento e suas razões de
agir, através do jogo de palavras que, investidas de sua oralidade, remetem
aos incômodos da vida possíveis de serem eliminados pela bebida:
E não bebia uma gota sem motivo: quando acontecia que estava
impaciente, irritado, zangado, triste ou quando estrebuchava,
chorava ou gritava, davam-lhe de beber, e ele logo voltava ao
natural, ficando quieto e alegre. (Rabelais, 1986, p. 71)
In riso veritas
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Gargantua acentua o cômico dionisíaco, a partir da flexibilidade
do grotesco e, simbolicamente, o sangue e o vinho passam a permitir
uma ligação deste processo de integração entre o mundo e o ser humano.
O vinho, como instrumento de celebração ritual, surge de diversas formas:
da transubstanciação cristã da comunhão ao pré-batismo de Gargantua,
seguido da confirmação pelo sangue. O vinho é descrito como fonte de
prazer e libertação. Para Gargantua, o próprio ruído simbólico do vinho, já
era canção de ninar.
A importância da bebida na vida do personagem que emerge da festa,
não poderia deixar de adquirir um tom ritualístico. Para Huizinga, a identidade
do ritual e do jogo já era reconhecida desde Platão e se postularia, não
apenas por todas as características intrínsecas ao próprio conceito de jogo
(regras fixas, demarcação do espaço, comprometimento irrestrito, por exemplo),
mas, principalmente, pelo distanciamento do cotidiano e imersão num mundo
diferente, especial, misterioso e mágico. (Huizinga, 1971, p. 21-2)
Ipotesi: revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, v 3 - n 1 - p. 31 a 43
Gargantua: o personagem aprisionado
Entretanto, logo a seguir o grotesco se introduz na possível seriedade
do universo sagrado. Assim, as garrafas em forma de breviário instalam o tom
paródico de sacralização da bebida, estabelecendo um álibi permitido pela
festa. O bebedor se vê, então, qualificado dentro desta sociedade em que o
vício passa a ter brasão de classe e estabelece a integração entre a beberagem
prescrita pelo médico e a bebida do excesso da festa. Aos remédios e aos
exercícios o receituário paródico acrescenta o vinho:
“Feliz não é quem cedo se levanta,
Mas quem cedo bebendo, o mal espanta”
(Rabelais, 1986, p. 125)
Ao invocar o vinho como forma motivadora do riso, através de
uma inversão paródica de um clichê de máxima, parece autorizado o
mesmo procedimento para se ler também in riso veritas. O vinho é o
ingrediente popular de celebração e promove a ruptura hierárquica e o
nivelamento social que caracteriza a festa. Ao libertar o bebedor que
“joga” com as palavras, desperta o riso e aquece o sentimento, ele
mostra o componente lúdico que compõe a festa popular e o banquete.
A embriaguês elimina o temor, dá coragem e revela o oculto; faz parte
do ritual de elevar e degradar, eliminando as regras sociais rígidas, à
maneira de Puntilla, de Brecht.
Tão importante é o espaço da taberna, da bebida e da libertação através
do vinho, dentro da obra rabelaisiana, que o Capítulo V, de Gargantua é
dedicado à conversa entre bebedores. Aí são estabelecidos parâmetros de
nivelamento, dessacralização e ruptura/estabelecimento (entronação/
destronação) de normas de comportamento, criando uma nova ordem: a
hierarquia dos peritos bebedores, que não permite a invasão de um mundo
estranho, procedimentos que dialogam com princípios lúdicos. As máximas
tornam-se regras:
“Anunciemos, ao som das botijas e garrafas que quem tiver perdido
a sede não tem nada a fazer aqui”. (Rabelais, 1986, p. 63)
ou:
“Beba sempre que não morrerá”. (Rabelais, 1986, p. 61)
Existe, ainda, na paródia do sério presente na conversa dos bêbados,
conclusões filosóficas que traduzem experiências práticas na confraria
dos bebedores:
Se o papel das minhas cédulas também bebesse como eu,
os meus credores teriam bastante vinho quando chegasse a hora
de pagar a conta.
Não há no meu corpo um só buraco que não provoque sede
Os pardais só comem quando lhes batem no rabo,
eu só bebo quando me agradam
(Rabelais, 1986, p. 62-3)
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José Luiz Ribeiro
O verbo se faz carniça
Apontando, ainda, para a figura da acumulação que caracteriza a festa,
há que se destacar a linguagem escatológica e carregada de licenciosidade
masculina da taverna que reproduz a praça pública que se mostra. A palavra
de baixo calão insinuando variantes da copula: “Mas se o meu caralho mijasse
desta urina, você gostaria de chupá-1o?” (Rabelais, 1986, p. 63)
Se o vinho é um instrumento de celebração primaveril, ele aparece
junto com o riso regenerador e com o lazer que revigora forças e elimina
tensão. Gargantua passa por este ritual e, depois do vinho, que lava as
entranhas, vem ao exterior sob a forma da urina. A repetição se torna rotina
e, escatologicamente, passamos a entender esta forma de integração entre o
mundo interior e o exterior:
Vivia espojando-se na lama, lambuzando o nariz, emporcalhando o
rosto, acalcanhando os sapatos, abrindo a boca às moscas ( ... )
Mijava nos sapatos, cagava na camisa, assoava o nariz nas mangas,
babava na comida, deitava por toda parte, bebia no chinelo e
costumava esfregar a barriga com um cesto. (Rabelais, 1986, p. 85)
Conforme Bakhtin, a lama nada mais é do que a eufemização das fezes
que, na festa popular, era lançada sobre os festeiros como simbolização,
juntamente com a urina, da fertilidade, exatamente por este movimento circular
de interior/exterior executado pelas vísceras.
A subversão da ordem coloca o personagem dentro do circuito dos
“fora da lei”; se observado pela lógica da normalidade, alguém que precisa
ser educado. De fato, ele está preso ao universo animalesco e todas as suas
ações estão marcadas por um certo elemento lúdico, já que, mesmo as
associações marginais implicam num certo movimento associativo dotado de
regras próprias, conforme observa Huizinga. (1971, p. 15)
Essa associação, em Gargantua se dá pela forma do grotesco, no qual
este tipo de comportamento favorece ao rebaixamento aviltante. Esse período
primaveril da existência do personagem delimita, dramaticamente, a utilização
dos procedimentos da comédia, considerada, como observa Frye (1973, p. 70)
desde Aristóteles, como um “gênero baixo de representação”, mas que em
Rabelais se instala no rebaixamento ritualístico das simbolizações cosmogônicas.
Gargantua habita um mundo de transgressões, onde homem e animal se
igualam na primazia do instinto como negação da ordem racional:
“Comia na mesma tigela que os cachorrinhos do pai.
Mordia-lhes as orelhas e eles lhe arranhavam o nariz;
soprava-lhes o cu e eles lambiam-lhe as bochechas.”
(Rabelais, 1986, p. 86)
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Ipotesi: revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, v 3 - n 1 - p. 31 a 43
Gargantua: o personagem aprisionado
O universo nivelador da festa se alastra, aqui, pela topografia do corpo,
onde não existem mais partes ou orifícios nobres: todos se equivalem. Para
Huizinga (1971, p. 3-4), a capacidade de brincar, presente também nos animais,
é uma evidência de que o jogo transcende aos fatores biológicos e fisiológicos;
prova de que tem uma função significante .
Esse Gargantua jovem transita pelo mundo dos homens,
incomodando-os, ou dando-lhes oportunidade de um riso gerado pelas
vísceras: um riso escatológico que une elogio e injúria, praga e louvor. Dele,
contemporaneamente, conforme Bakhtin, só existem leves vestígios na
linguagem familiar.
O universo do jogo sexual adolescente, neste período inaugural, pode
ser entendido pelo diálogo com Casa Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre, que, em sua pesquisa sócio-antropológica nos conta da iniciação dos
meninos com as criadas. Também em Rabelais encontramos:
O libidinoso garoto costumava bolinar as governantas de cima
para baixo, da frente para trás (upa, upa!) e já começando a exercitar
a piroca, que todos os dias enfeitavam com lindos ramalhetes, fitas
bonitas, belas flores, vistosas borlas, passando o tempo a alisá-la
como se fosse um tubo de ungüento e arrebentando-se de rir
quando ele endurecia, como se as brincadeiras lhe agradassem.
(Rabelais, 1986, p. 86-7)
Os ritos de celebração e de iniciação do jogo do sexo estão presentes
na vida do jovem Gargantua. A utilização vocabular da linguagem chula para
descrever suas experiências estabelece um sentido próprio do jogo de palavras
que batiza com inúmeros nomes o membro viril do personagem.
Ao estabelecer o limite do beber, comer e dormir, o universo do mundo
animal está presente no do pequeno gigante, mas o prepara para o próximo
passo. A comida ocupa, então, um ponto de destaque tão importante quanto
o da bebida. Das tripas aos caldos e sopas, encontramos uma trajetória que
delimita o processo da festa diária, quando há abundância e tragédia nos
momentos de carência. O mundo do herói está sempre ligado ao excesso e,
assim, a geografia de Grangouzier é uma geografia gastronômica que remete
ao Grande Guarda-Comida do Mundo:
Para isso tinha sempre boa provisão de presuntos de Morgúncía
(34) e de Baiona (35), uma porção de línguas de vaca defumadas,
fartura de chouriços e carne salgada com mostarda, além de ovas
de peixe e de um sortimento de salsichas, não de Bolonha, porque
tinha medo dos pratos lombardos (36), de La Brenne (39) e de
Rouargue (4O). (Rabelais, 1986, p. 55)
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José Luiz Ribeiro
Ao eliminar a fome, o homem afasta, temporariamente, a presença da
morte e torna-se o seu repositório, como cemitério de alimentos. A incorporação
do mundo através do alimento sólido cria um universo de sons que indiciam
as qualidades dos gêneros frente ao processo de trituração do alimento.
O jogo do alimento, através das regras do banquete no qual a disciplina,
a ordem e a combinação dos pratos sofrem, no rito carnavalizador, uma
ampliação de sua funcionalidade. Se a mesa do banquete tem uma ordem
estabelecida com entradas, pratos frios, peças de resistência e sobremesa, a
ordem do carnaval, ao substituir a hierarquia pelo nivelamento, elimina o
“bom tom” desse banquete oficial e estabelece uma reordenação do mundo
no contínuo e no esbanjamento. O marco da festa primaveril tem início com
o abate sacrificial e o exagero é a marca. O salgado é o pretexto para se beber
mais vinho, como podemos notar em Rabelais:
Foram abatidas trezentos e sessenta e sete mil e quatorze reses para
salgar na terça-feira gorda, a fim de haver na primavera bastante
carne com que, no início das refeições, se comemorasse os alimentos
salgados e melhor se entrasse no vinho. (Rabelais, 1986, p. 58)
Assim, o alimento só1ido atua como o atenuador dos efeitos do vinho,
tornando-se um alibi para o bebedor, que se livra da acusação do vício, mas
apenas pratica o hábito do processo alimentar. A sacralização dos hábitos
naturais é praticada pelos religiosos que dão a Gargantua o alibi perfeito ao
dizer: Minha natureza exige que eu durma depois de comer e coma depois
de dormir. (Rabelais, 1986, p. 125)
Durante todo este tempo o alimento caracterizou a necessidade básica
e, em Gargantua ele se transforma num símbolo, já que não podemos esquecer
que o que gera a guerra em que se envolve nosso herói é, justamente, o
alimento. A fogaça é um tipo de bolo e é ela que dá origem ao” bolo”
desencadeador da guerra que servirá de pano de fundo aos acontecimentos
que caracterizam. as ações do teatro de guerra.
Entre o desejo de comer dos pastores que guardam as vinhas para
defendê-las dos estorninhos e a prepotência dos fogaceiros estabelece-se o
conflito que fará a ação avançar. É uma alegoria entre a natureza da vida do
campo e seu conflito com os fogaceiros que se negam ao comércio. Esta
alusão confirma a afirmação de Frye de que “os contos populares seguem a
rota do comércio” . (Frye, 1973, p. 62)
Ao estabelecer o comer como um ato de posse, em que o homem
domina o alimento pela caça e administra a natureza pela agricultura,
instaura-se o primado técnico de sentido ritualístico que vai substituir o
Grande-Guarda-Comida-do-Mundo pela ação humana. O ato de comer
estabelece máximas como a de Touquedillon: “ ... é da pança que vem a dança
e onde reina a fome falta a força”. (Rabelais, 1986, p. 164)
40
Ipotesi: revista de Estudos Literários. Juiz de Fora, v 3 - n 1 - p. 31 a 43
Gargantua: o personagem aprisionado
Dessa força surge o episódio fantástico que mostra o riso através da
viagem insólita. Indisposto, Gargantua tenta comer uma salada e ingere, junto
com ela, seis peregrinos. A trajetória desses peregrinos dentro da boca
desencadeia o cômico pelo rebaixamento dessas personagens que buscam o
universo do espírito e se transformam em comida. O riso brota do jogo de
imagens que opõe, de um lado o nanismo dos peregrinos e, do outro, o
gigantismo de Pantagruel:
Uma vez devorados, os peregrinos trataram, o mais que
puderam, de se livrar da mó dos dentes de Gargantua e
julgaram que tivessem sido metidos dentro de algum porão
de cadeia. Quando Gargantua tomou o trago de vinho, tiveram
a impressão de que morreriam afogados em sua boca, e a torrente
de vinho quase os afastou para o abismo do estômago.
(Rabelais, 1986, p. 184)
O procedimento cômico se deu ao transformar os homens em
resíduos; e, ao expulsá-los, comete, inclusive, o milagre de curar o
peregrino canceroso ao pegá-lo pela braguilha e arrebentar o tumor.
A comédia se instala, nesta passagem, de uma forma fantástica. O jogo
da surpresa e da fuga do mundo mágico tradicional fazem emergir o
riso e a tensão dramática de maneira absolutamente inverossímil e
espetacular. A viagem de Gargantua torna-se um poço de surpresas, como
podemos confirmar com Frye: “De todas as ficções, a viagem maravilhosa ; a
única formula que nunca se exauriu, e é essa ficção a empregada como parábola...”
(Frye, 1973, p. 63)
Neste momento em que falamos da comida, cumpre, ainda, mostrar
que, em Gargantua, a mulher é incorporada a este universo, na metáfora
masculina que faz da cópula um ato de comer, interligando o prazer do sexo
ao prazer alimentar. Numa das raras passagens em que a mulher de feira é
referenciada, temos a descrição de que, quando não jogavam “iam ver as
mulheres da zona e entravam de novo nas comidas” (Rabelais, 1986, p. 125)
e, ironicamente, mostra a figura do abade Tranchelion como um grande bebedor
e traça o retrato dos com outro tipo de apetite: E os monges, que farras tem
feito? Estão comendo as mulheres de vocês enquanto vocês estão
peregrinando! (Rabelais, 1986, p. 210)
Conclusão
Ao entendermos a extrema ligação de Rabelais com o seu tempo,
podemos perceber a importância da festa popular em sua obra e, assim,
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José Luiz Ribeiro
descobrir a sua participação, como autor, em inúmeras manifestações de
natureza dramática, tão comuns ao período de sua vida. Esta característica vai
ser um ponto forte para que possamos entender Gargantua como um
personagem dotado do substrato dramático.
Ao ser delimitado como personagem grotesco, dentro do universo da
estrada sempre em movimento, educado por regras convencionais e reeducado
por outro mestre, ele apresenta, em pinceladas diagramáticas, um ser em
mutação. Personagem-meio que estabelece a união entre a ancestralidade
com Grandgousier e a continuidade com Pantagruel, ele se mostra como cria
de um grande autor que pretende provar que o natural não é torpe.
Através do estabelecimento da relação mítica de um gigante e sua
atuação em defesa da justiça, Rabelais cria um tipo de personagem capaz
de integrar uma sociedade dividida pela guerra, reincorporando a
hierarquia do mundo dividido entre vencidos e vencedores. Gargantua
está entre os vencedores e tem a seu lado um conjunto de heróis do
campo da batalha temporal ou espiritual. Uma nova ordem será criada
dentro da abadia dos telemitas.
Ao encontrarmos descrito todo o seu ambiente, sua relação com outros
personagens e toda a sua trajetória podemos traçar o retrato dramático do
gigante. É um personagem que consome rios de vinho, enxurradas de alimentos
e é capaz de afogar o povo com sua urina. Cada ponto desta obra rabelaisiana
é perpassado pelo universo dramático. O figurino está descrito no traje do
gigante e as razões da escolha do branco como personificador da clareza e
alegria, enquanto o azul invoca o céu, mas é, também segundo as regras do
marketing, a mais popular das cores.
Dotado de força dramática, o texto delineia a ação e faz avançar, através
dos conflitos, as peripécias do herói. A configuração da narrativa apresenta o
procedimento da inversão carnavalesca , travestindo o sério em riso e criando
uma alegoria que confere ao mundo hierático a visão do homem que vaga
pelo mundo e, vagabundo, recria uma nova ordem. Gargantua é ligado ao
personagem fanfarrão enraizado na comédia greco-latina. A obra tem a seiva
que é o alimento do riso regenerador da transgressão e do caos. A estrutura
épica, utilizando-se da justaposição episódica de cunho picaresco, dialoga
com seu tempo e aponta para a contemporaneidade pelo diálogo com a
lógica do fragmentário.
Gargantua, de François Rabelais, está postada como um grande desafio
para uma encenação moderna que poderia iluminar com o riso os caminhos
do homem do século XX. A voz da feira clama por vir de novo à praça
organizada da burocracia. Gargantua é portadora do caráter obsceno que
demonstra a voz do arquétipo encarregado de lhe assegurar o vigor popular
e extra-temporal como em toda grande obra. É uma esfinge que, com seu
enigma, pode mostrar como a sociedade dos deuses pode ser subvertida
pelo herói do riso.
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Gargantua: o personagem aprisionado
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/UMB, 1987.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como instrumento da cultura. Trad.
João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1971.
RABELAIS, François. Gargantua. São Paulo. Hucitec, 1986.
VIEIRA, Yara Frateschi: Introdução: RABELAIS, François. Gargantua. São Paulo.
Hucitec, 1986.
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