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Relatório das Sessões do Congresso Internacional de Químicos em Karlsruhe, 3, 4, e 5
de Setembro de 1860 [1]
Publicado originalmente por Richard Anschütz, August Kekulé, 2 vols. (Berlim: Verlag Chemie, 1929)
como Apêndice VIII (pp. 671-88 do vol. 1); tradução para o inglês de John Greenberg e William Clark
publicada por Mary Jo Nye, The Question of the Atom (Los Angeles: Tomash, 1984).
Tradução para o português: Fernando Weise / Aspirações Químicas – Dezembro de 2012. Versão PDF.
Foi ideia do Sr. Kekulé realizar um encontro internacional de químicos. Durante o outono de
1859 ele teve uma oportunidade de fazer as primeiras propostas nesse sentido – primeiramente
para o Sr. Weltzien, então para o Sr. Wurtz. Ao final de março de 1860, estes três cientistas,
todos em Paris no momento, planejaram os primeiros passos a serem tomados para colocar em
prática o plano em questão. Uma carta circular inicial foi elaborada, que visava ganhar o suporte
dos mais notórios homens da ciência. Ela ressaltava, em termos gerais, as diferenças que haviam
surgido entre as visões teóricas dos químicos e a urgência de pôr um fim a todas essas diferenças
por meio de um acordo comum, ao menos quando certas questões estivessem envolvidas.
Tendo sido recebidas as primeiras respostas favoráveis, alcançou-se um entendimento quanto
à data e ao local da reunião, e foi impressa uma segunda carta circular destinada a todos os
químicos europeus, que explicava os objetivos e metas de um congresso internacional, nos
seguintes termos: [2]
Paris, 15 de Junho de 1860
Caros Distintos Colegas,
O grande desenvolvimento que ocorreu na química nos anos recentes e as diferenças
em opiniões teóricas que emergiram, fazem de um Congresso, cujo objetivo é a
discussão de algumas questões importantes tomadas do ponto de vista do futuro
progresso da ciência, tanto oportuno quanto útil.
Os subscritores convidam para este encontro todos os químicos creditados por seu
trabalho ou posição a expressar alguma opinião em uma discussão científica.
Uma assembleia como esta não pode deliberar em favor de todos, nem aprovar
resoluções a que todos devem submeter-se, mas por meio de uma discussão livre e
minuciosa, certos desentendimentos podem ser eliminados e um acordo comum
facilitado em alguns dos seguintes pontos: a definição de importantes noções químicas,
como as expressas pelas palavras átomo, molécula, equivalente, atômico, básico; o
exame da questão dos equivalentes e das fórmulas químicas; a instituição de uma
notação e uma nomenclatura uniformes.
Cientes de que as deliberações da assembleia não terão uma natureza que reconciliará
todas as opiniões e eliminará todas as divergências imediatamente, os subscritores
acreditam, entretanto, que tais trabalhos possam preparar o caminho para um tão
desejado acordo entre os químicos no futuro, ao menos no que diz respeito às questões
mais importantes. Uma comissão poderia ser encarregada de continuar a investigação
dessas questões e ocupar delas instruídas academias ou sociedades com os meios
materiais necessários para resolvê-las.
O congresso reunir-se-á em Karlsruhe, em 3 de setembro de 1860.
Nosso colega, Sr. Weltzien, Professor da Escola Politécnica desta cidade, deseja assumir
as responsabilidades de Comissário Geral. Nesta capacidade, ele estará incumbido de
registrar os prováveis membros do Congresso e abrirá a assembleia às nove horas na
manhã do dia indicado.
Em conclusão, e visando evitar omissões infortunas, os subscritores requerem aos
indivíduos a que esta circular será enviada que a comuniquem a seus amigos cientistas
devidamente creditados a participar da conferência.
Babo V., Freiburg
Fremy, Paris
Pelouze, Paris
Balard, Paris
Fritzsche, St. Petersburg
Piria, Turin
Bekétoff, Kasan
Hofmann, A. W., London
Regnault, V., Paris
Boussingault, Paris
Kekulé, Ghent
Roscoe, Manchester
Brodie, Oxford
Kopp, H., Giessen
Schroetter, A., Vienna
Bunsen, Heidelberg
Hlasiwetz, Innsbruck
Socoloff, St. Petersburg
Bussy, Paris
Liebig, J., V., Munich
Staedler, Zurich
Cahours, Paris
Malaguti, Rennes
Stas, Brussels
Cannizzaro, Gênova
Marignac, Geneva
Strecker, Tübingen
Deville, H., Paris
Mitscherlich, Berlin
Weltzien, C., Karlsruhe
Dumas, Paris
Odling, London
Will, H., Giessen
Engelhardt, St. Petersburg
Pasteur, Paris
Williamson, W., London
Erdmann, O. L., Leipzig
Payen, Paris
Wöhler, F., Göttingen
Fehling, V., Stuttgart
Pebal, Vienna
Wurtz, Ad., Paris
Frankland, London
Peligot, Paris
Zinin, St. Petersburg
Nota: Você pode se inscrever para a conferência diretamente com o Sr. Weltzien, Escola
Politécnica, Karlsruhe, ou com o Sr. A. Kekulé, Professor de Química na Universidade de
Ghent, que repassará a inscrição ao Sr. Weltzien.
O número de pessoas que desejaram participar foi considerável, e em 3 de Setembro de 1860,
140 químicos [3] se encontraram na sala de reuniões da segunda Câmara de Estado, que foi
disponibilizada pelo Arquiduque de Baden.
A lista de químicos presentes é a que segue: [4]
I.
BÉLGICA.
Bruxelas: Stas;
Ghent: Donny, A. Kekulé.
II.
ALEMANHA.
Berlim: Ad. Baeyer, G. Quinke;
Bonn: Landolt;
Breslau: Lothar Meyer;
Kassel: Guckelberger;
Klausthal: Streng;
Darmstadt: E. Winkler;
Erlangen: v. Gorup-Besanez;
Freiburg i.B.: v. Babo, Schneyder;
Giessen: Boeckmann, H. Kopp, H. Will;
Göttingen: F. Beilstein;
Halle a.S.: W. Heintz;
Hanover: Heeren;
Heidelberg: Becker, O. Braun, R. Bunsen, L. Carius, E. Erlenmeyer, O. Mendius, Schiel;
Jena: Lehmann, H. Ludwig;
Karlsruhe: A. Klemm, R. Muller, J. Nessler, Petersen, K. Seubert, Weltzien;
Leipzig: O. L. Erdmann, Hirzel, Knop, Kuhn;
Mannheim: Gundelach, Schroeder;
Marburg a.L.: R. Schmidt, Zwenger;
Munique: Geiger;
Nuremberg: v. Bibra;
Offenbach: Grimm;
Rappenau: Finck;
Schönberg: R. Hoffmann;
Speyer: Keller, Mühlhaüser;
Stuttgart: v. Fehling, W. Hallwachs;
Tübingen: Finckh, A. Naumann, A. Strecker;
Wiesbaden: Kasselmann, R. Fresenius, C. Neubauer;
Würzburg: Scherer, v. Schwarzenbach.
III.
INGLATERRA.
Dublin: Apjohn;
Edimburgo: Al. Crum Brown, Wanklyn, F. Guthrie;
Glasgow: Anderson;
Londres: B. J. Duppa, G. C. Foster, Gladstone, Müller, Noad, A. Normandy, Odling;
Manchester: Roscoë;
Oxford: Daubeny, G. Griffeth, F. Schickendantz;
Woolwich: Abel.
IV.
FRANÇA.
Montpellier: A. Béchamp, A. Gautier, C. G. Reichauer;
Mülhousen i.E.: Th. Schneider;
Nancy: J. Nicklès;
Paris: Boussingault, Dumas, C. Friedel, L. Grandeau, Le Canu, Persoz, Alf. Riche, P.
Thénard, Verdét, Wurtz;
Strasbourg i.E.: Jacquemin, Oppermann, F. Schlagdenhaussen, Schützenberger;
Tann: Ch. Kestner, Scheurer-Kestner.
V.
ITÁLIA.
Genova: Cannizzaro;
Pavia: Pavesi.
VI.
MEXICO. Posselt.
VII.
AUSTRIA.
Innsbruck: Hlasiwetz; Lemberg: Pebal; Pesth: Th. Wertheim;
Viena: V. v. Lang, A. Lieben, Folwarezny, F. Schneider.
VIII.
PORTUGAL.
Coimbra: Mide Carvalho.
IX.
RÚSSIA. [e Polônia]
Cracóvia: Sawitsch;
São. Petersburgo: Borodin, Mendelyeev; L. Schischkoff, Zinin;
Varsóvia: T. Lesinski, J. Natanson.
X.
SUÉCIA.
Harpenden: J. H. Gilbert;
Lund: Berlin, C. W. Blomstrand;
Stockholm: Bahr.
XI.
SUÍÇA.
Bern: C. Brunner, H. Schiff;
Geneva: C. Marignac;
Lausanne: Bischoff;
Reichenau bei Chur: A. v. Planta;
Zurique: J. Wislicenus.
XII.
ESPANHA.
Madri: R. de Suna.
Primeira Sessão do Congresso
O Sr. Weltzien, Comissário Geral, abriu a primeira sessão com o seguinte discurso:
Senhores:
Como presidente interino, tenho a honra de abrir um Congresso sem precedentes em
sua forma, cuja natureza nunca antes fora equiparada. Para ter certeza: os cientistas
naturais e médicos alemães, sob a instigação de Oken e imitando seus colegas suíços,
reuniram-se quase que anualmente em várias cidades do país desde 1822. Seguindo a
tendência de tais congressos, cientistas naturais ingleses, franceses e também
escandinavos estiveram reunidos para propósitos semelhantes. Devotos de diferentes
ramos da ciência natural e da medicina estiveram regularmente presentes, embora
todos os participantes fossem invariavelmente sempre da mesma nacionalidade. Os
procedimentos desses congressos foram na maior parte caracterizados por relatórios
cujos tópicos não eram integrados a nenhum programa prévio, mas apresentados como
trabalhos em progresso, deixados ao discernimento individual. Um vívido e amigável
intercurso, instigado por uma sequência de festividades, unia cientistas naturais e
médicos relacionados étnica e linguisticamente por vários dias.
Diferente é o Congresso convocado hoje aqui. Pela primeira vez, os representantes de
uma ciência natural única e nova estão reunidos. Estes representantes pertencem,
entretanto, a todo tipo de nacionalidade. Nós podemos ter origens étnicas diferentes,
ou falar idiomas diferentes, mas estamos relacionados por nossa especialidade
profissional, estamos unidos pelo interesse científico e pelo mesmo projeto. Estamos
reunidos pelo objetivo específico de tentar iniciar uma unificação em torno de pontos
de interesse vital para nossa bela ciência. Em função da extraordinária rapidez do
desenvolvimento da Química e especialmente por causa do massivo acúmulo de
material factual, os pontos de vista teóricos dos pesquisadores e os meios de expressão,
tanto em palavras, quanto em símbolos, começaram a divergir mais do que seu
expediente para entendimento mútuo e, principalmente, mais do que é adequado para
a instrução. Considerando a importância da Química para outras ciências naturais e seu
caráter indispensável à tecnologia, parece excessivamente desejável lançar nossa
ciência a uma forma mais rigorosa, de forma que seja possível se comunicar de uma
maneira relativamente mais concisa.
Para que possamos alcançar isto, não podemos nos constranger em reavaliar vários
pontos de vista e convenções escritas, cuja variedade redunda em pouca importância; e
não devemos estar aprisionados a uma nomenclatura que contenha infinidade de
símbolos desnecessários aos quais falta qualquer base racional e os quais, para piorar,
são derivados, em sua maior parte, de uma teoria que dificilmente poderia ser mantida
atualmente. A grande adesão a esse congresso com certeza é uma indicação clara de
que estas inconveniências são reconhecidas universalmente e que sua remoção do
caminho rumo à unificação é desejável. A realização deste fim é um prêmio de tal beleza,
que vale muito à pena encarregar-se da tarefa aqui.
A noção original de um Congresso de Química foi comunicada a mim há algum tempo
por nosso colega Kekulé. No início deste ano dei os primeiros passos na direção de sua
realização. A maturidade deste empreendimento foi multiplamente reconhecida; eu
obtive apoio mesmo não solicitado de todos os cantos. Por causa disso, eu não duvido
que este Congresso será exortado a estabelecer as fundações para uma época não
pouco importante na história de nossa ciência.
A cidade de Karlsruhe, que há dois anos teve a grande felicidade de sediar um dos mais
esplêndidos congressos de cientistas naturais e médicos alemães, tem a honra de ver a
primeira Convenção de Química internacional acontecer dentro de seus muros.
Karlsruhe é a capital de uma pequena, mas abençoada província, em que, sob os
augúrios de um nobre príncipe e de um governo liberal, as artes e ciências florescem, e
onde seus devotos, estimados e sustentados, podem seguir ao chamado de sua devoção
com grande ânimo. Como é meu o prazer de dá-los calorosas boas-vindas a esta cidade,
espero que o mesmo bom ânimo permeie nosso Congresso e que nossa ciência um dia
olhe para trás, com satisfação, para nossa assembleia.
Após esta fala o comissário geral pede ao Sr. Bunsen para presidir, mas este recusa e pede à
assembleia para encorajar o Sr. Weltzien a dirigir as deliberações durante a primeira sessão. O
Sr. Weltzien é nomeado presidente e os Srs. Wurtz, Strecker, Kekulé, Odling, Roscoe e
Schischkoff são apontados para servirem como secretários.
Por sugestão do Sr. Kekulé, a assembleia decide que uma comissão será encarregada de elaborar
uma lista de questões que serão submetidas ao Congresso para deliberação.
O Sr. Kekulé toma a palavra para explicar o cronograma de questões (Então se segue uma análise
do pronunciamento do Sr. Kekulé). [5]
O Sr. Erdmann enfatiza a necessidade de dirigir as deliberações e resoluções da assembleia rumo
a questões formais em vez de pontos doutrinários.
Começa uma discussão quanto à realização das sessões da Comissão a portas fechadas ou
durante sessões plenárias perante toda a assembleia.
Após algumas palavras ente os Srs. Fresenius, Kekulé, Wurtz, Boussingault e H. Kopp, a
assembleia decide, com base das monções feitas pelo último destes, que as sessões serão
realizadas a portas fechadas.
Primeira Sessão da Comissão
A comissão reuniu-se em 3 de setembro, às 11:00 h, sob presidência do Sr. H. Kopp.
O presidente sugere que a discussão comece em torno das noções de molécula e átomo e pede
aos Srs. Kekulé e Canizzaro, cujos estudos englobaram estas questões especialmente, para fazer
uso da palavra.
O Sr. Kekulé enfatiza a necessidade de se distinguir entre molécula e átomo e, ao menos a
princípio, a molécula física e a molécula química.
O Sr. Canizzaro é incapaz de conceber a noção de molécula química. Para ele, há apenas
moléculas físicas, e a lei de Avogadro-Ampère é a base para considerações relacionadas à
molécula química. Esta última nada mais é que a molécula gasosa.
O Sr. Kekulé pensa, ao contrário, que os fatos químicos devem servir como base para a definição
e a determinação da molécula (química) e que considerações físicas devem ser evocadas apenas
como forma de verificá-las.
O Sr. Strecker aponta que em certos casos, o átomo e a molécula são idênticos, como no caso
do etileno.
O Sr. Wurtz diz que pode ser percebida certa dificuldade ao definir a molécula química do
oxigênio e dos elementos diatômicos em geral, que são comparáveis ao etileno. A visão destes
como moléculas formadas por dois átomos deriva de considerações físicas [6], mas até agora
nenhum fato químico parece militar a favor dessa duplicata.
O Sr. H. Kopp, sintetizando a discussão, diz que a necessidade de separar a ideia de molécula da
de átomo parece estar estabelecida; que a noção da molécula pode ser fixada com ajuda de
considerações puramente químicas; que a definição não precisa, por si só, envolver densidade;
e, finalmente, que parece natural chamar a maior quantidade de molécula e a menor quantidade
de átomo. Em conclusão, o orador formula a primeira questão a ser colocada à assembleia. Essa
questão é a que segue: “É apropriado estabelecer uma distinção entre os termos molécula e
átomo, e chamar de moléculas, que são comparáveis, até onde as propriedades físicas se
aplicam, às menores porções de um corpo que entram o saem de uma reação, e chamar de
átomos as menores quantidades dos corpos contidos nessas moléculas?”
O Sr. Fresenius chama a atenção à expressão átomo composto e diz e que estas duas palavras
guardam uma contradição. O comentário do Sr. Fresenius motiva o aparecimento de uma
segunda questão a ser submetida à assembleia, que segue: “Pode a expressão átomo composto
ser eliminada e substituída por expressões como radical ou resíduo?”
O Sr. Kopp volta ao programa proposto pelo Sr. Kekulé, e chama atenção para a definição da
palavra equivalente. Parece a ele que a noção de equivalente é perfeitamente clara e
nitidamente diferente das noções de molécula e átomo. Consequentemente, a comissão adota,
sem discussões, a terceira proposição a ser submetida à assembleia, que segue: “A noção de
equivalentes é empírica e independente da ideia de molécula e átomo”.
A sessão continua, com o Sr. Erdmann a presidindo [7]. A discussão sobre notação é levantada:
o Sr. Kekulé aponta que as notações molecular e atômica, ou a notação dos equivalentes, podem
ser empregadas, mas como em qualquer sistema, é necessário ater-se rigorosamente a uma
noção em particular, não importa qual delas seja, uma vez adotada.
O significado da palavra “equivalente” é objeto de diversos comentários. O Sr. Béchamps diz que
equivalência só pode ser assumida em casos em que as funções dos corpos são idênticas.
O Sr. Schischkoff não compartilha da mesma opinião. Ele pensa que a notação para equivalência
e quantidades equivalentes é independente de funções químicas. Todos assumem uma
equivalência entre o cloro e o hidrogênio. Após algumas observações apresentadas pelos outros
membros acerca do mesmo assunto, a sessão entrou em recesso.
Segunda Sessão do Congresso
Sob presidência do Sr. Boussingault
Ao tomar a palavra, o Sr. Boussingault agradece ao congresso por ter confiado a honra de
presidência a um cientista do qual os estudos compreendem problemas de química aplicada em
detrimento de pontos de teoria abstrata. O presidente vê nesta escolha que o congresso desejou
testificar a unidade das assim chamadas velha e nova química. Ele protesta contra estes termos
e comenta que não é a química que envelhece, mas os químicos.
O presidente anuncia que o trabalho da Comissão não está terminado, mas que ela concordou
em trazer três questões à assembleia para deliberação. Ele pede a um dos secretários para
informa-las à assembleia.
Os Sr. Strecker toma a palavra e lê para a assembleia as questões elaboradas pela comissão e
indicadas acima.
O Sr. Kekulé se aprofunda nos pontos especificados pela primeira questão. No que se refere à
hipótese fundamental que pode ser feita quanto à natureza da matéria, o orador levanta a
questão da necessidade em se adotar a hipótese atômica ou se uma hipótese dinâmica já é
suficiente. A primeira opção parece preferível a ele. A hipótese de Dalton foi confirmada por
tudo que se sabe a respeito da natureza dos gases. Pode-se considerar pequenas unidades ou
pequenos componentes nos gases e quando o mesmo corpo pode alcançar os estados gasoso,
líquido e cristalino, é possível que as moléculas cristalinas sejam precisamente os pequenos
componentes em questão, ou que estes sejam uma fração daqueles. Mas a natureza destas
relações não pode ser especificada. O que é certo é que em reações químicas existe uma
quantidade que entra ou sai da reação na menor proporção e nunca numa fração desta
proporção. Estas quantidades são as menores capazes de existir em um estado livre. Estas são
as moléculas definidas quimicamente. Contudo, estas quantidades não são indivisíveis; as
reações químicas conseguem cortá-las e separá-las em partículas absolutamente indivisíveis.
Estas partículas são os átomos. Os elementos em si, quando estão livres, consistem em
moléculas formadas por átomos [8]. Portanto, a molécula livre de cloro é formada por dois
átomos. Isso nos leva a considerar diferentes unidades atômicas e moleculares:
1. moléculas físicas
2. moléculas químicas
3. átomos
As moléculas físicas gasosas não se mostram idênticas às moléculas físicas dos sólidos e líquidos.
Em segundo lugar, as moléculas químicas não se mostram idênticas às moléculas gasosas.
Portanto, não está estabelecido se a menor quantidade de uma substância que entra em uma
reação é também a menor quantidade dessa substância que desempenha um papel em
fenômenos de calor.
É preciso dizer, entretanto, que a molécula química é normalmente idêntica à molécula física.
Até mesmo sustentou-se que a primeira não representa outra coisa que não a segunda. Para o
orador, isto não procede. A molécula química possui uma existência independente e, para
permitir assumir a distinção em questão, basta demonstrar sua veracidade em alguns casos. Mas
isto é fácil. Não foi comprovado que, para a densidade do vapor de enxofre, as moléculas
químicas nem sempre separam-se uma da outra, mas permanecem fundidas sob certas
condições (a 500° C) para formar moléculas físicas?
O orador acrescenta que a existência e a magnitude das moléculas químicas pode e deve ser
determinada por demonstrações químicas e que os fatos físicos não são suficientes para
alcançar tal resultado [9]. Com a ajuda de considerações físicas, como poderia ser comprovado
que o ácido clorídrico é formado de um único átomo de hidrogênio e um único átomo de cloro?
Não seria suficiente multiplicar a fórmula HCl por certo coeficiente, e fazer o mesmo para todas
as outras fórmulas, para que se pudesse estabelecer uma concordância perfeita entre
propriedades físicas?
O Sr. Canizzaro toma a palavra para apontar que a distinção entre moléculas físicas e moléculas
químicas não parece a ele necessária nem claramente estabelecida.
O Sr. Wurtz expressa a opinião de que este é um ponto secundário que pode ser reservado.
Parece a ele, ao contrário, que a questão relativa ao estabelecimento da distinção entre os
termos “molécula” e “átomo” foi quase concluída e que todos parecem reconhecer a unidade
de tal distinção. É uma questão de clarificar o uso de palavras geralmente de uso comum; é
puramente uma questão de definição e o orador pensa que em uma questão desse tipo, talvez
houvesse propriedade e utilidade na expressão, pela assembleia, de uma opinião subsequente
à discussão. Essa opinião, contudo, não prenderia ninguém e não haveria nada de obrigatório
quanto a ela.
Começa a discussão relativa às palavras “radical composto”. O Sr. Miller pensa que a linguagem
científica não poderia trabalhar com as palavras “átomo composto”. Há átomos de substâncias
simples; há átomos de substâncias compostas.
Os Srs. Kekulé, Natanson, Strecker, Ramon de Luna, Nicklès, Béchamps e outros membros
presentes apresentaram opiniões variadas tanto em uma quanto em outra direção, mas a
discussão desta questão, como a da que a precedeu, não levou a qualquer resolução da
assembleia.
Segunda Sessão da Comissão
Sob presidência do Sr. H. Kopp.
O Sr. Kekulé explica suas ideias acerca de notação química. Ele aponta que tanto uma notação
atômico-molecular quanto uma noção em equivalentes pode ser empregada. No primeiro caso,
a fórmula química representa a molécula; no segundo, representa equivalência. Os seguintes
exemplos ilustram essa distinção:
Notação atômico-molecular
H Cl
H2O
H3Az
Notação em equivalentes
H Cl
HO
H az [10]
O importante é não misturar estas notações e confundi-las, como comumente acontece. Elas se
misturam, por exemplo, se a água for escrita como HO = 9 e a amônia como H3Az = 17, etc.
O Sr. Canizzaro ressalta a importância das considerações relativas a volumes na questão de
notação. Os argumentos elaborados pelo orador são reproduzidos por extenso na terceira seção
do congresso (ver a frente).
O presidente chama a atenção para o curso demasiado da discussão e aponta que, dentro da
Comissão, as questões devam ser apenas indicadas em vez de investigadas. Ele também avalia
que a discussão relativa à notação em equivalentes, como a que havia sido formulada pelo Sr.
Kekulé, pode ser deixada de lado. Ninguém pode servir-se dela. O orador acredita que não seria
propício ater-se muito a questões teóricas compreendendo o conteúdo das coisas, e ater-se sim
a questões formais. Vários membros expressam uma opinião semelhante e o Sr. Erdmann, em
particular, chama a atenção para a urgência de adotar uma noção cujos símbolos sempre
representem um valor, e sempre o mesmo valor dado.
Sumarizando a discussão, o presidente reconhece que, em função dos avanços recentes na
ciência, é desejável que algumas massas atômicas sejam dobradas, mas que seria útil levar em
conta a notação que notação foi, em geral, empregada até agora e introduzir uma notação que
represente estas massa duplicadas e não se atenha tão rigorosamente aos símbolos
representando diferentes valores na outra notação. Como medida transitória e para evitar
confusão, ele pensa que é conveniente adotar certos símbolos para indicar as diferenças em
questão. Consequentemente, o presidente aprova o hábito de alguns químicos em barrar [cortar
com uma barra horizontal os símbolos] as massas atômicas duplicadas. Em conclusão, ele
formula a questão para ser submetida ao Congresso na seguinte maneira:
“É desejável harmonizar a notação química com os recentes avanços na ciência dobrando um
certo número de massas atômicas?”
Terceira Sessão da Comissão
Sob presidência do Sr. Dumas.
O Sr. Kekulé resume a discussão da próxima sessão e repete a questão, anunciada pelo Sr. Kopp,
de uma forma levemente mitigada. De acordo com o orador, essa questão deveria ser colocada
da seguinte forma:
“Os recentes avanços na ciências garantem uma mudança de notação?”
O Sr. Strecker propõe que a notação atômica seja adotada a princípio.
O presidente ressalta fortemente as desvantagens que resultam da atual confusão. Ele aponta
que se o estado desse assunto continuasse, ele poderia minar não apenas a direção correta da
docência e dos avanços na ciência, mas também a confiabilidade dos trabalhos industriais.
Pensemos, diz o presidente, no que nos lembramos de vinte anos atrás. A tabela de massas
atômicas de Berzelius era tanto o suporte básico de toda a ciência química, quanto o guia
infalível para operações industriais. Hoje não há nada que possa substituir essa autoridade
reconhecida universalmente e temos que ser cuidadosos para que a química não caia da alta
posição de prestígio que tem encontrado entre as ciências até agora.
O Sr. Wurtz está satisfeito que o Sr. Dumas tenha chegado ao coração do problema, e pensa que
é necessário retornar aos princípios da tabela de massas atômicas e à notação de Berzelius. De
acordo com o orador, mudanças marginais na interpretação de alguns fatos seriam suficientes
para colocar os princípios e esta notação em harmonia com os requisitos da ciência moderna. A
notação propícia à adoção atualmente não é exatamente a de Gerhardt. Gerhardt prestou
serviços enormes à ciência. Hoje ele já está morto, e seu nome, diz o orador, deve ser citado
apenas com respeito. Entretanto, parece que este químico tenha cometido dois erros. Um
compreende apenas forma, enquanto o outro é inerente ao cerne da questão.
Primeiramente, em vez de apresentar sua notação como embasada nos novos princípios, a
relaciona moderadamente aos princípios de Berzelius, acobreando assim sua inovação sob um
nome respeitado. Em segundo lugar, parece que Gerhardt esteja errado ao ligar todos os óxidos
da química inorgânica ao óxido de prata e ao óxido de potássio anidro, atribuindo a eles, no caso
deste último, a fórmula
. Na química orgânica devem haver óxidos correspondendo ao
óxido de etileno, da mesma forma que há representantes do óxido etílico e de outros que
correspondem ao óxido de glicerol, e se o hidrato de potássio, por exemplo, pode ser comparado
ao álcool, então outros hidratos devem ser comparados ao glicol e à glicerina. É possível
entender que estas considerações são capazes de prontamente justificar algumas mudanças na
notação de Gerhardt e nas massas atômicas que ele atribui a certos metais.
Após uma discussão em que participaram os Srs. Canizzaro, Wurtz e Kekulé, o Sr. Kekulé opina
que a questão está suficientemente preparada para submissão à deliberação pelo Congresso, e
pede que a anotação da questão seja confiada aos secretários.
Esta proposição é adotada pela comissão.
Terceira Sessão do Congresso
Sob presidência do Sr. Dumas.
Ao assumir o posto, o presidente dirige algumas palavras de agradecimento à assembleia e
expressa a esperança de que um entendimento comum possa ser alcançado em algumas
questões a serem apresentadas perante o congresso.
Em seguida, o presidente sugere que a assembleia designe dois vice-presidentes. Os Srs. Will e
Miller são escolhidos para essas posições. O Sr. Odling substitui o Sr. Roscoe, que teve de se
ausentar, como secretário. Então os secretários leem as questões, cuja anotação tinha sido a
eles confiada e que tinham sido formuladas pela Comissão. As questões foram concebidas
segundo o seguinte:
“É desejável harmonizar a notação química com os avanços da ciência?”
“É apropriado adotar novamente os princípios de Berzelius, e no que tange à notação, trazer
certas modificações a estes princípios?”
“É desejável distinguir novos símbolos químicos daqueles que estavam em uso há quinze anos,
com a ajuda de símbolos particulares?”
O Sr. Canizzaro toma a palavra para se opor a segunda proposição. A ele parece muito pouco
adequado ou lógico fazer a ciência regredir aos tempos de Berzelius, para levar a química
percorrer novamente um caminho que ela já trilhou. Em verdade, o sistema de Berzelius já
passou por diversas modificações e estas levaram ao sistema de fórmulas de Gerhardt. E estas
modificações não foram introduzidas abruptamente ou sem transições para o sistema; elas
foram resultado de avanços sucessivos. Se Gerhardt não os tivesse proposto, eles o teriam sido
pelo Sr. Williamson ou pelo Sr. Odling, ou qualquer outro químico que participou da evolução
da ciência.
“A fonte à qual retorna o sistema de Gerhardt é a teoria Avogadro-Ampère da constituição
uniforme de substâncias no estado gasoso. Essa teoria nos leva à visão de moléculas de algumas
substâncias simples como suscetíveis a divisão no futuro. O Sr. Dumas compreendeu a
importância da teoria de Avogadro e todas as suas consequências. Ele propôs a questão: Há
acordo ente os resultados da teoria de Avogadro e os resultados deduzidos por meio de outros
métodos para determinar as massas específicas de moléculas? Dando-se conta de que a ciência
ainda era carente de resultados experimentais deste tipo, ele quis reunir o maior número
possível antes de arriscar qualquer conclusão geral no assunto. Então, pôs-se a trabalhar e, com
ajuda do método que aplicara para determinar a densidade de vapores, ele presenteou a ciência
com resultados valorosos. Entretanto, parece que ele nunca levou o método longe o bastante
para poder inferir dos resultados a conclusão geral que objetivava. Seja como for, considerando
essa reserva que pensou necessária, pode-se dizer que foi ele que colocou os químicos no
caminho da teoria de Avogadro, pois ele, mais do que ninguém, foi responsável pela introdução
do hábito de escolher fórmulas para as substâncias voláteis correspondentes ao mesmo volume
ao ocupado pelo ácido clorídrico e pela amônia.
A mais evidente mostra da influência da corrente do Sr. Dumas aparece escrita por um de seus
alunos, o Sr. Gaudin. O Sr. Gaudin aceitou a teoria de Avogadro sem reservas. Ele estabeleceu
uma distinção direta e clara entre as palavras átomo e molécula, por meio da qual pôde
reconciliar todos os fatos com a teoria. Esta distinção já havia sido feita pelo Sr. Dumas, que
chamou a molécula de átomo físico em suas aulas de filosofia química. Ela certamente é uma
norteadora do sistema de Gerhardt.
Atendo-se mais efetivamente à teoria de Avogadro que Gerhardt ateve-se outrora, e tomando
vantagem dos novos dados experimentais sobre as densidades de vapores, o Sr. Gaudin
estabeleceu que átomos nem sempre são a mesma fração das moléculas de corpos simples – o
que quer dizer que moléculas nem sempre resultam do mesmo número de átomos; enquanto
as moléculas de oxigênio, hidrogênio e outros halogênios são formadas por dois átomos, a
molécula de mercúrio é composta de um só átomo. Ele foi longe ao ponto de comparar volumes
iguais de álcool e éter para deduzir a composição relativa de suas moléculas. Mas sua mente
não conseguiu compreender os resultados dessa comparação, e os químicos se esqueceram da
sua ideia. E ainda assim, essa comparação foi um dos pontos de início para a reforma proposta
por Gerhardt.
Outros químicos, dentre os quais Proust, também aceitaram a teoria de Avogadro e chegaram
às mesmas conclusões gerais que o Sr. Gaudin.
O que fez Gerhardt nesse ponto da ciência?
Ele aceitou a teoria de Avogadro e a consequência de que átomos de corpos simples são
divisíveis e aplicou essa teoria para deduzir a composição relativa das moléculas de hidrogênio,
oxigênio, cloro, nitrogênio, ácido clorídrico, água e amônia. Se ele tivesse parado nesse ponto,
ele não teria chegado além de Avogadro e do Sr. Dumas. Mas então, ele submeteu todas as
fórmulas da química orgânica a uma investigação geral e descobriu que todas essas fórmulas
correspondentes a iguais volumes de ácido clorídrico e amônia eram confirmadas por todas
reações e analogias químicas. Então, ele dedicou-se a modificar fórmulas que excedessem a
regra introduzida pelo Sr. Dumas. Ele tentou mostrar que as razões para violação da regra dos
volumes iguais eram infundadas. Reduzir as fórmulas de todas as substâncias voláteis da química
orgânica a volumes iguais foi o ponto inicial das reformas propostas por Gerhardt. As
modificações das massa atômicas de certas substâncias simples, a descoberta das relações que
os hidratos, quer ácidos, quer básicos, têm com a água, foram consequências desse primeiro
passo. E o que aconteceu em seguida? Os experimentos inesquecíveis do Sr. Williamson de
eletrificação, em éteres compostos, acetonas compostas, os de Gerhardt com os ácidos anidros,
os do Sr. Wurtz com radicais alcoólicos, etc. sucessivamente confirmaram o que predissera
Gerhardt como consequência de seu sistema. Portanto, ocorreu na química algo análogo ao que
aconteceu com a óptica quando foi introduzida a teoria ondulatória. Essa teoria predisse com
maravilhosa precisão os fatos que os experimentos confirmaram posteriormente. O sistema de
Gerhardt não foi pouco frutífero em predições exatas. Ele está intimamente misturado e ligado
a todas obras da química que o precederam e a todos os avanços que o sucederam na história
da ciência. Não é um salto abrupto, um evento isolado. É um passo à frente regular,
aparentemente pequeno, mas com grandes resultados. A partir de agora, esse sistema não pode
ser erradicado da história da ciência. Ele pode e deve ser discutido e modificado. Mas é o
sistema que deve ser tomado como ponto de partida, quando for o caso de introduzir à ciência
química um sistema de fórmulas de acordo com o atual estado do nosso conhecimento. Talvez
alguns químicos seja tentados a dizer: a diferença entre as fórmulas de Gerhardt e de Berzelius
é muito pequena, pois a fórmula para a água, por exemplo, é a mesma em ambos os sistemas.
Mas precisamos tomar cuidado. A diferença é aparentemente pequena, mas grande em sua
base. Berzelius estava sob a influência das ideias de Dalton. A ideia de uma diferença ente átomo
e molécula de uma substância nunca foi capaz de penetrar em sua mente. Em todas as suas
discussões ele considerava implicitamente que átomos de substâncias simples são, face a face,
forças físicas, unidades da mesma ordem, átomos compostos. Por essa razão, passou a
considerar que volumes iguais contém o mesmo número de átomos. Logo ele percebeu que essa
regra podia ser aplicada a todas as substâncias simples e durante toda sua carreira científica,
não atribuiu qualquer valor ao átomos de substâncias compostas ao escolher fórmulas. Ele foi
até forçado a restringir a regra de números iguais de átomos em volumes iguais a um número
muito pequeno de substâncias simples – ou seja, àquelas que são permanentemente gasosas –
introduzindo assim à constituição de gases e vapores uma diferença que físico nenhum poderia
admitir. Berzelius não considerou que moléculas de substâncias simples podiam se dividir ao se
recombinar. Ao contrário, ele considerava que duas moléculas frequentemente formam a
quantidade que entra íntegra à combinação. Isso é o que chamava de átomos duplos. Assim, ele
assumiu que água e ácido clorídrico continham a mesma quantidade de hidrogênio – uma
quantidade igual a duas moléculas físicas juntas.
Então vocês podem ver, senhores, a profunda diferença que existe entre as ideias de Berzelius
e as de Avogadro, Ampère, do Sr. Dumas e de Gerhardt.
Fico surpreso que o Sr. Kekulé, que disse em seu livro que Gerhardt foi o primeiro e único que
entendeu completamente a teoria atômica, aceitou a proposição da comissão.
Acredito ter mostrado”, continuou o Sr. Canizzaro, “que uma discussão de fórmulas deve tomar
como ponto de partida as fórmulas de Gerhardt, mas não mantenho que todas elas devam ser
aceitas na forma em que ele as propôs. Longe disso; eu tentei, há alguns anos, introduzir certas
modificações a elas, de forma a evitar as inconsistências que, a meu ver, existem no sistema de
Gerhardt. De fato, é estranho ver que este químico tenha renunciado à teoria de Avogadro após
toma-la como base para suas reformas. Aqui está o que ele mesmo comentou: ‘Há moléculas
em 1, 2 e 4 volumes, assim como há em 1/2, 1/3 e 1/4 de um volume.’ (Comptes rendus des
travaux de Chimie, 1851, p. 146). E ele continuou com o seguinte (p. 147): ‘Talvez seja
surpreendente me ver defender essa tese, quando recomendei e ainda recomendo
constantemente que uma notação regular na químcia orgânica deva ser seguida, representando
todas as substâncias voláteis pelo mesmo número de volumes, 2 ou 4. O químicos que veem
aqui duas afirmações contraditórias, esquecem que nunca reconheci no princípio anterior uma
verdade molecular, mas uma condição a ser satisfeita para que se chegue ao conhecimento de
certas leis ou certas relações que poderiam escapar à atenção do observador em uma notação
arbitrária ou alguma indicada para casos especiais’.
Certamente havia fatos que forçaram Gerhardt a abandonar a teoria de Avogadro, mas também
havia hipóteses injustificáveis. Os fatos eram as densidades do vapor de ácido sulfúrico
monohidratado, do sal amoníaco e do percloreto de fósforo.
Vocês já sabem senhores, que na ocasião da publicação do artigo do Sr. Deville sobre a
dissociação de certos compostos pelo calor, eu fui o primeiro a tentar interpretar a ocorrência
dessas densidades anormais, ao supor que os corpos em questão dividem-se em dois e que na
verdade, uma mistura de vapores é pesada pela determinação dessas densidades. Após mim, o
Sr. Kopp propôs a mesma interpretação, de sua própria forma.
Não irei reproduzir aqui os debates que invocamos a favor dessa interpretação. Apenas
acrescentarei que um dos membros deste Congresso acabou de me dizer que o ponto de
ebulição do ácido sulfúrico é quase constante sob pressões bem variadas – um fato que mostra
que a questão aqui não está relacionada a ponto de ebulição, mas a ponto de decomposição.
Estou convencido de que outros fatos confirmarão a interpretação que demos às densidades
anormais e, como resultado, vou dissipar as dúvidas que alguns cientistas ainda aparentam ter
no que tange à teoria de Avogadro.
Mas independentemente dos fatos que acabei de citar, havia também hipóteses injustificáveis
que distanciaram Gerhardt da teoria de Avogadro. Vou mostrar que este é o caso.
Gerhardt tomava como uma verdade demostrada que todos os compostos metálicos têm
fórmulas análogas àquelas correspondentes aos compostos hidrogenados. Daí segue que as
fórmulas para cloretos de mercúrio são HCl, Hg2Cl, ao considerar que a molécula de mercúrio
livre é formada de dois átomos, como a de hidrogênio. Observemos que as densidades de
vapores levaram a resultados diferentes. Assim, para representar a composição de volumes
iguais dos seguintes cinco corpos: hidrogênio, ácido clorídrico, mercúrio, cloreto de mercuroso
e cloreto mercúrico, teremos as seguintes fórmulas:
H2, HCl, Hg2, Hg2Cl, Hg2Cl2
A comparação entre essas fórmulas mostra que nas moléculas de mercúrio livre e de dois de
seus cloretos existe a mesma quantidade de mercúrio, expressa por Hg2, e que o cloreto
mercuroso é análogo ao ácido clorídrico, enquanto o cloreto mercúrico contém o dobro de cloro
em sua molécula.
Como resultado, a mesma razão que nos levou a dobrar o átomo de carbono também nos leva
a dobrar o átomo de mercúrio. Isso infere que a quantidade de mercúrio expressa por Hg2 nas
fórmulas anteriores representa um átomo único. Neste caso, vê-se um átomo igual ao da
molécula do corpo livre; e que em sais mercurosos este átomo equivale a um só átomo de
hidrogênio, enquanto nos sais mercúricos, equivale a dois átomos de hidrogênio. Em outros
termos, para empregar a linguagem de uso comum atualmente, o mercúrio é monoatômico nos
sais mercurosos, mas nos sais mercúricos, é diatômico como os radicais dos glicóis do Sr. Wurtz.
É importante agora apontar que dobrando a massa atômica do mercúrio, como feito com a
massa atômica do enxofre, chegamos a números de acordo com a lei dos calores específicos.
Mas se for duplicada a massa atômica do mercúrio, podemos ser levados, por analogia, a dobrar
também as massas do cobre, do zinco, do chumbo, do estanho, etc. – resumindo, acabaríamos
de volta ao sistema de massas atômicas do Sr. Regnault, que está de acordo com os calores
específicos, com o isomorfismo e com analogias químicas.
A verdadeira infelicidade era que o sistema de Gerhardt conflitava com a lei dos calores
específicos e com o isomorfismo. Este embate produziu duas químicas diferentes – uma, que
trabalhava com substâncias inorgânicas e concedia grande valor ao isomorfismo; e a outra, que
investigava substâncias orgânicas e não o considerava. Assim, a mesma substância química não
poderia ter a mesma fórmula numa química e na outra. O embate que acabei de indicar decorria
do fato que o sistema de Gerhardt não era inteiramente consistente; ele desaparece logo que
as inconsistências são contornadas.
As densidades de vapores consistem num meio de determinar a massa das moléculas de
substâncias, quer simples, quer compostas. Os calores específicos são usados para verificar a
massa dos átomos e não das moléculas. O isomorfismo revela analogias na constituição
molecular.
Em suporte às modificações de massas atômicas que acabei de sugerir, citarei os seguintes fatos:
todos os compostos voláteis de mercúrio, zinco, estanho e chumbo contêm quantidades de
metal representadas em notação comum por Hg2, Zn2, Sn2, Pb2. Este fato, por si só, basta para
indicar que estas quantidades representam os próprios átomos dos metais em questão. O fato
de que existem três oxalatos de potássio e amônio (radicais monoatômicos), enquanto existem
apenas dois oxalatos de bário e cálcio (radicais diatômicos) também poderia ser citado. Mas por
hora, não enfatizo a questão, e não posso negar, por outro lado, que há um caso em que a massa
atômica deduzida da comparação de composições moleculares está em conflito com aquela
deduzida a partir dos calores específicos. O caso é relativo ao carbono. Mas pode ser que a lei
dos calores atômicos possa ser mascarada por outras causas que influenciam no calor específico.
Em síntese, senhores, eu proponho que o sistema de Gerhardt seja aceito, levando em
consideração as modificações de massas atômicas de certos metais e as fórmulas de seus sais
que eu sugiro que daí decorram.
E se não conseguirmos alcançar um acordo completo em que aceitemos a base para o novo
sistema, pelo menos evitemos emitir uma opinião contrária que não sirva a qualquer propósito.
Pelo contrário, poderíamos apenas obstruir o sistema de Gerhardt de ganhar defensores a cada
dia. Ele já é aceito pela maioria dos químicos jovens químicos que hoje desempenham o papel
mais ativo nos avanços da ciência.
Neste caso, restrinjamo-nos a estabelecer algumas convenções para evitar a confusão de usar
símbolos idênticos que significam valores diferentes. Generalizando um padrão já estabelecido,
adotemos letras cortadas para representar as massas atômicas dobradas."
O Sr. Strecker presta alguns esclarecimentos quanto à elaboração da segunda proposição
apresentada ao Congresso. Este rascunho originalmente menciona o nome de Gerhardt, mas a
a maior parte do comitê desejava substituir o nome pelo de Berzelius. O orador não
compartilhava dessa opinião. A ele não parecia haver razão para voltar a Berzelius, que talvez
pudesse ser criticado por uma longa lacuna na questão de átomos e equivalentes. Útil e urgente
seria melhorar o que já existe levando em conta os avanços da ciência desde Berzelius. O Sr.
Strecker acrescenta que as doutrinas expressas no “sistema de Gerhardt” oferecem vantagens
reais. Ele, por sua vez, irá adotar as novas massas atômicas em seus artigos, mas não acha que
seja a hora de introduzi-las em livros docentes e elementares.
O Sr. Kekulé compartilha de todas as opiniões do Sr. Canizzaro. Parece útil a ele, entretanto,
manter reservas quanto a um detalhe. O Sr. Canizzaro considera o cloreto mercuroso como
contendo HgCl (Hg=200). Parece mais racional ao Sr. Kekulé considera-lo uma combinação
análoga ao “líquido holandês” [cloreto de etileno], ou seja, contendo Hg2Cl2 (Hg=200) e assumir
que no momento da vaporização, a molécula Hg2Cl2 se divide. [11]
O Sr. Will não quer entrar em detalhes quanto às questões apresentadas ao Congresso. Ele se
reserva a apontar que o Congresso precisa proceder diretamente ao seu objetivo. Este objetivo
é encontrar uma notação clara e lógica, incapaz de gerar confusão nas mentes daqueles não
acostumados às fórmulas, e adequada não apenas a expressar os fatos há muito aceitos na
ciência, mas também aqueles acrescentados a ela continuadamente pelas novas descobertas.
O Sr. Erdmann sugere que as duas primeiras questões sejam deixadas e que a discussão se
atenha à última. A ele parece difícil chegar a um consenso no que se refere a questões de
princípio, e especialmente, impor uma notação, seja qual for, por meio de voto.
O Sr. Wurtz comenta que não foi ideia de ninguém impor uma ou outra opinião. Depara-se com
dois tipos de questões – as que se referem ao fundamentos e as que envolvem apenas pontos
formais. Se não há condições propícias para resolver as primeiras por meio de voto, se elas ainda
não estão suficientemente maduras, nada impede que se vote em questões puramente formais.
O Sr. Hermann Kopp lembra que, em vários pontos teóricos, as opiniões dos químicos estão
divididas. Essas diferenças de opinião são causadas em parte por desentendimentos e se
refletem na própria notação. Poderia ser muito útil uma discussão para acabar com os
desentendimentos.
O Sr. Erlenmeyer sugere que os símbolos cortados sejam usados sempre para expressar massas
atômicas que representam os antigos equivalentes dobrados. [12]
O Sr. L. Meyer diz que esse ponto parecia estabelecido, pois ninguém apresentara nenhuma
objeção contra ele.
O Sr. Canizzaro acha inútil votar para a terceira questão.
O Sr. Boussingault chama a atenção para a possível dificuldade que entender erroneamente a
votação em congresso pode causar às questões consideradas. Votar é expressar a vontade do
Congresso, e o Congresso não deseja impor a opinião da maioria a ninguém.
O Sr. Will tem a mesma opinião.
O Sr. Normandy afirma que os cientistas que sugerem a introdução de certas reformas no que
se refere a notação, são aqueles que trabalham principalmente com a química orgânica. Agora,
pode-se notar que nem sempre os cientistas concordam entre si em alguns pontos. Por isso,
parece prematuro aplicar princípios ainda em discussão à química inorgânica.
O Sr. Odling fala sobre a questão dos símbolos cortados. Ele lembra que Berzelius os introduziu
à ciência para expressar átomos dobrados. A barra, segundo ele, é sinal de divisibilidade, e
parece contrário à lógica usá-la em símbolos para átomos indivisíveis de oxigênio e carbono.
Concordando completamente que os átomos dobrados de Berzelius tinham uma conotação
diferente da dos átomos indivisíveis, para os quais havia sido proposto o uso de símbolos
cortados, o Sr. Kekulé aponta que estes símbolos cortados devem expressar não a divisibilidade
dos átomos, mas a divisibilidade dos valores representados por esses símbolos, que são o dobro
dos que eram usados no passado.
Em respostas às observações dos Srs. Erdmann e Normandy, o Sr. Kekulé acrescenta que não é
suficiente impor uma opinião teórica ou notação por meio de voto, mas que uma discussão
desses assuntos é necessária e útil, e não falhará em trazer frutos.
O Congresso, consultado pelo presidente, expressa a vontade de que o uso de símbolos cortados
para representar massa atômicas dobradas em relação às usadas no passado, seja introduzido
à ciência.
O Sr. Dumas fecha a terceira e última sessão do Congresso, após de prestar respeito ao Grande
Duque de Baden e agradecê-lo por sua hospitalidade.
Notas:
[1] estou em débito com meu colega, Prof. Gaufnez, de Bonn, por examinar o texto em
Francês. – Estou reproduzindo todas as notas de rodapé que aparecem na publicação de 1929.
Não é claro para mim quais notas são de Wurtz e quais são de Anschütz. Algumas notas
contêm a notação entre parênteses (A.); entretanto, outras, como esta, também parecem ser
de Anschütz -- CJG]
[2] A carta circular foi enviada em alemão, francês e inglês. O texto alemão está datado:
“Karlsruhe, 10 de Julho de 1860”; o texto inglês: “Londres, 1º de Julho de 1860”. Com a versão
francesa dos procedimentos do Congresso, incorporei o texto em francês da circular que, se
comparado com as versões em alemão e inglês, contém o nome “Regnault” dentre os
subscritores; falta o nome “Mitscherlich” no texto em inglês.
[3] A lista de membros impressa, suplementada por adições à mão, contém 126 nomes (A.)
[4] Organizei os participantes por país e cidade em que trabalhavam no momento. (A.)
[5] Cf. Apêndice 9. (A.)
[6] No manuscrito de Kekulé, e de adicionou a seguinte nota na margem: “Nem sempre!” (A.)
[7] No manuscrito de Kekulé, ele acrescentou: “Kekulé e Will discordaram”. (A.)
[8] No manuscrito de Kekulé, há a seguinte nota na margem: “Uma molécula é 1, no máximo 2
átomos” (A.)
[9] A seguinte nota consta no manuscrito de Kekulé: “Grande exemplo: NH4Cl, SO3 · OH2.” (A.)
[10] H = 1. C = 8. O = 16. Az = 14. az = 14/3.
[11] Cf. Kekulé Ann. (1857), 104, 132n
[12] Originalmente sugerido por Williamson (A.)
Tradução do relatório para português: Aspirações Químicas. Dezembro de 2012.
aspiracoesquimicas.net
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Relatório da Conferência de Karlsruhe