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I Seminário Latino-Americano do Programa Les Mots de la Ville
“VOCÊ ESTÁ NA FAVELA”
Regina Helena Alves da Silva
Departamento de História - FAFICH/UFMG
César Geraldo Guimarães
Departamento de Comunicação Social - FAFICH/UFMG
I. A intensidade dos lugares
Diante da chamada era da informação e da disseminação de bens
simbólicos transnacionais através do consumo dos produtos gerados pelos meios
audiovisuais, os lugares emergem atualmente como o domínio de práticas
culturais e manifestações artísticas que transitam entre o local e o global, o
nacional e o transnacional, as heranças fragmentadas das antigas culturas
populares e a onipresença da cultura de massa. Neste novo cenário cultural, em
que se destacam os processos globalizados de consumo no qual se reestruturam
as antigas comunidades de pertencimento (como afirma Canclini), os códigos que
nos unificam ou que, pelo menos, permitem o reconhecimento das identidades
individuais e coletivas, devem ser vistos como pactos móveis de leitura dos bens e
das mensagens, situados no tecido polifônico das cidades.
Porém, ao contrário
1
daqueles que vêem no fenômeno da
gloablização apenas a desterritorialização dos espaços provocada pela expansão
das tele-tecnologias e a proliferação de um imaginário multilocalizado, produzido
em escala planetária pela indústria cultural, os lugares, com suas práticas locais,
1
CANCLINI. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização, p. 61-62.
2
tornaram-se - segundo a expressão de Milton Santos - o teatro da constituição de
uma nova identidade, que orienta-se mais pela intensidade do que pela
2
longevidade das tradições e a acumulação de experiências passadas. Embora
sejam cada vez mais atravessados pela informação, pela técnica e pela ciência,
quando vistos sob a ótica do cotidiano os lugares revelam-se como o abrigo de
comunidades afetivas ou estéticas que compartilham a intensidade mesma da
vida, para além de valores e sentimentos que propiciam a identificação e o
pertencimento comum. A comunidade, contudo, não deve ser vista como algo
destituído de conflitos ou desentendimentos: o que deve ser ressaltado aqui é que
a intersubjetividade aí forjada, fundadora de todo sentido, contempla tanto o
consenso quanto o dissenso.
3
Domínio de manifestações e fenômenos culturais denominados
mestiços ou híbridos (por mesclarem diferentes componentes), os lugares, com
suas
práticas
materiais
e
simbólicas
universalização imaginária do consumo
particulares,
testemunham
que
à
se contrapõem ações criativas e
apropriações originais que promovem novos modos de subjetivação, tanto
4
individuais quanto coletivos . Constituídas por traços heterogêneos (políticos,
estéticos, econômicos) e pela multiplicidade de formas expressivas, essas ações
criativas permitem aos sujeitos a conquista de um gesto auto-posicionante que os
põe diante de uma alteridade ela também subjetiva - sejam outros sujeitos, seja o
próprio espaço urbano.5 Movimentos artísticos como o mangue beat em Recife, os
2
SANTOS. Das modas ao modo: trajetórias da geografia humana. Revista Sexta-feira nª 3, out. 98,
p. 106.
3
Sobre esse tema, cf. o texto de Francis Jacques, “Consensus et conflit: une réévaluation”, in
PARRET (Org). La communauté en paraoles, p. 97-124.
4
Beatriz Sarlo adverte, com razão, que se os meios de comunicação de massa levaram à erosão
dos antigos poderes, das identidades cristalizadas e dos velhos preconceitos, não se sabe, ao certo
se eles poderão garantir as bases para a criação de novos poderes autônomos. Para uma
discussão mais detalhada, cf. o cap. III (“Culturas populares, velhas e novas”), de Cenas da vida
pós-moderna, p. 99-122.
5
Nos termos de Guatarri, essas ações criam um território existencial auto-referencial em
adjacência ou em delimitação com a alteridade. Cf. GUATTARI. Caosmose, p.19.
3
bailes funk no Rio de Janeiro e a expansão da cultura hip hop em centros como
São Paulo e Belo Horizonte, são os indicadores mais visíveis dessa nova
cartografia cultural que se desenha nos espaços das metrópoles.
Tais
manifestações artísticas, constituidoras daquilo que Shusterman denomina
estéticas populares, têm contribuído enormemente para novas formas de aliança
entre a experiência estética e a vida.
Nossa
investigação,
6
contudo,
não
pretende
privilegiar
as
manifestações de natureza artística. Tomando como ponto de partida a
diversidade dos dicursos disseminados por uma rádio comunitária (a Rádio
Favela, de Belo Horizonte) pretendemos capturar os traços daquela poética da
criatividade cotidiana (segundo a expressão de Michel de Certeau) que se
dissemina, de maneira astuciosa e dispersiva, nas regiões definidas e ocupadas
pelos sistemas da produção televisiva, urbanística e comercial. Sob esse ponto
de vista, as análises das representações contidas discursos midiáticos, bem como
no comportamento do espectador e do ouvinte, devem ser complementadas pelo
estudo daquilo que o consumidor “fabrica” diante das diferentes mídias e, de
modo análogo, pela compreensão do “uso que se faz do espaço urbano, dos
produtos comprados no supermercado ou dos relatos e legendas que o jornal
distribui”.
7
Com seus modos de viver particulares e suas distinções simbólicas
exercidas no domínio mesmo do consumo, os lugares demonstram que o território
não se deixa recobrir inteiramente pela rede audiovisual. Se a “sociedade vive em
estado de televisão”8, a comunidade, em contrapartida, por meio da existência
6
Cf. SHUSTERMAN. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. Rio de
Janeiro: Ed. 34,1998.
7
CERTEAU. A invenção do cotidiano, p. 39.
8
SARLO. Cenas da vida pós-moderna, p. 81. Servimo-nos aqui da oposição clássica em Sociologia
- e que remonta a Max Weber e a Ferdinand Tonnies -
entre Gemeinschaft (comunidade) e
Gesellschaft (sociedade). Enquanto a comunidade só existe na existência concreta e
compartilhada, socialmente vivida e sempre se refazendo cotidianamente, a sociedade, por sua
vez, se baseia na na racionalização dos comportamentos e na tradução abstrata das idéias e dos
valores. Acerca desse tema, cf. TACUSSEL. Comunidade e sociedade: a partilha intersubjetiva do
4
comum e ordinária, multiplica as diversas práticas que se “reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural”.9 Nesse sentido, nossa
pesquisa enfoca um território em particular: o chamado aglomerado da Serra, com
sua conhecida rádio comunitária - Favela FM (104,5), originária da Vila Nossa
Senhora de Fátima -, e as inúmeras “quebradas” (segundo a expressão dos
moradores) que constituem essa enorme porção periférica do espaço urbano de
Belo Horizonte. Trata-se de um território com um população em torno de 160 mil
habitantes, espaço de convivência de movimentos comunitários, manifestações
da cultura hip hop e da música funk, práticas remanescentes das culturas
populares, sem falar das múltiplas formas de expressão que a Rádio Favela põe
no ar e espalha pela região.
Assim, neste trabalho, pretendemos investigar de que maneira as
nomeações do espaço urbano, tal como elas se apresentam no interior de um
território social estigmatizado - o da favela - revelam a dimensão agonística do
discurso e a apropriação simbólica dos espaços. Para tanto, escolhemos como
objeto de análise algumas manifestações discursivas dessa rádio comunitária,
existente desde 1981, no bairro da Serra, periferia de Belo Horizonte, concebida e
mantida inteiramente pelos moradores da região. A rádio já foi fechada cinco
vezes pela polícia desde sua criação e em duas ocasiões teve seus equipamentos
totalmente destruídos.
“Desde de janeiro [de 1998], quando o projeto de lei que regulamenta as
rádios comunitárias foi aprovado no Senado, a Favela deixou de ser
importunada pela polícia e passou a se considerar rádio comunitária, e não
pirata. Depois de ter seu registro negado em 1995, a estação entrou com um
novo pedido de legalização em janeiro. Em 20 de fevereiro, o presidente
sentido. Geraes - Revista do Departamento de Comunicação Social e do Mestrado em
Comunicação Social da UFMG, nª 49, maio de 98, pp. 3-12.
9
CERTEAU. A invenção do cotidiano, p.41.
5
Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei que institui o Serviço de
Radiofusão Comunitária, mas a rádio ainda opera sem concessão.”
Mas,
desde
1996
a
Associação
Cultural
de
10
Comunicação
Comunitária Favela FM passa a ter o seu reconhecimento como entidade cultural
e consegue a liberação de seu alvará de funcionamento pela Prefeitura Municipal
de Belo Horizonte.
II. Estar na Favela
Belo Horizonte é uma das primeiras cidades projetadas do país e
2
possui cerca de 335 km de superfície e uma população residente de 2,02 milhões
de habitantes.
11
Cerca de 25% da população da cidade vive em favelas ou
conjuntos habitacionais de baixa renda. A área urbana inicialmente projetada
corresponde hoje a menos de 3% do território do município. Das áreas livres
disponíveis (que correspondem a cerca de 20%, incluindo antigas zonas rurais)
muito pouco pode ser aproveitado para a expansão da ocupação urbana em
função da topografia acidentada e da ocorrência de áreas de preservação.
O aglomerado da Serra é composto por 11 vilas e favelas entre elas
a Vila Nossa Senhora de Fátima, onde se encontra a sede da Rádio Favela. A vila
possui apenas 10% de saneamento básico, 48% estão servidos por coleta de lixo,
a água encanada está disponível somente para cerca de 70% da população,
praticamente não existe pavimentação nas ruas, a comunidade sofre constantes
ameaças de deslizamento e inundação na época das chuvas e está longe de ter
seus problemas de urbanização, saúde, educação, segurança, etc., minimamente
resolvidos.
10
Folha de São Paulo, 23-07-1998, 5º caderno, p. 1.
11
Censo demográfico de 1991.
6
A Rádio Favela se propõe a relatar o cotidiano do morro e do
favelado, a vida dos moradores da periferia da cidade, “e denunciando problemas,
procura realizar um trabalho de informação quanto a direitos e cidadania”.
12
A origem da Rádio Favela é apontada por seus integrantes como
tendo se dado a partir dos eventos de cunho musical e cultural que eram
realizados como alternativa de lazer no final dos anos 70 nas ruas próximas à
favela.
“A intenção de criar um espaço para divulgar música e cultura negra, falar da
discriminação contra os moradores da favela e conscientizar os jovens da
comunidade quanto aos problemas relacionados à violência e às drogas,
agravados com a entrada do tráfico que então se instalava naquela local,
levaram
a que, algumas pessoas ligadas à organização de tais eventos,
tomassem a iniciativa de montar também uma rádio.”
13
“Alguns dos fundadores continuam com o trabalho até hoje, batalhando pelo
resgate da cidadania dos marginalizados moradores da favela. Comemoram a
popularidade da rádio e a eficácia dos seus programas anti-drogas e próestudo, as tristemente exibem suas perdas. Da turma inicial, poucos restam.
Muitos se envolveram profundamente com o tráfico, foram mortos nas brigas,
nas batidas policiais ou simplesmente desapareceram.”14
A rádio se apresenta em um primeiro momento como "a voz do morro"
“Mantendo-se próxima, tanto fisicamente quanto em termos de linguagem ao
público ao qual se dirige, veiculando um discurso de valorização da favela e
das pessoas que lá vivem...”.
12
www.radiofavelafm.com.br
13
www.radiofavelafm.com.br
14
Estado de Minas, 11-05-1997.
15
www.radiofavelafm.com.br
15
7
A idéia daqueles que mantêm a rádio no ar é de valorizar a "lógica
interna do morro", com sua fala, símbolos, gírias e traduzir para essa linguagem,
discursos e informações às vezes distantes de sua realidade. Conscientização
quanto a direitos, denúncia à postura abusiva da polícia no morro, questões
relacionadas à drogas e violência, discriminação racial, melhorias nas áreas e
saúde, infra-estrutura, saneamento são temas constantemente discutidos na
rádio.
A rádio funciona como referencial para ouvintes de diferentes
localidades de baixa renda, podendo possibilitar ações integradas para melhorar
sua qualidade de vida ou lutar por direitos comuns. Através da diversidade de seu
discurso possibilita que uma identificação se construa
que se afirme uma
identidade, surgindo assim o que pode ser chamado de uma “comunidade de
ouvintes”.
Segundo
os
responsáveis
pela
Rádio
Favela
isso
significa
concretamente uma forma de organização para além das formas tradicionais, que
atualmente sensibilizam pouco e dificilmente são capazes de mobilização,
sobretudo entre as camadas jovens da população.
16
17
Com a ampliação de seu alcance , a rádio se propõe a possibilitar
não a anulação das diferenças existentes entre esses dois universos distintos, o
da favela e o do asfalto, já que continua a afirmar a existência de uma
diversidade, mas permite uma comunicação, uma aproximação entre ambos e
possibilita a diminuição das distâncias e desigualdades.
A rádio apresenta como objetivo principal a realização de um
trabalho de tradução de uma linguagem técnica e especializada, para uma
linguagem mais próxima à realidade das populações de baixa renda e se propõe a
cuidar das particularidades das formas de expressão da comunidade.
18
16
www.radiofavelafm.com.br
17
A Rádio Favela ocupa o 4º lugar geral de audiência em Belo Horizonte segundo pesquisas do
IBOPE.
18
www.radiofavelafm.com.br
8
Essa linguagem é chamada pelos responsáveis pela rádio de
“favelês”, ou seja, a fala do morro com suas gírias e símbolos, uma linguagem
particular com um código próprio.
“A gente fala o favelês. É favelado falando pra favelado, não é aquela coisa
autoritária: ‘é o fulano que vai falar’, não é os caras do asfalto.”
19
"a audiência da rádio incomoda muito, sobretudo porque não falamos o
português, e sim o favelês".
20
A distinção entre a favela e o asfalto não era comum em Belo
Horizonte até o surgimento da Rádio Favela. Segundo a rádio o poder público não
atua no morro, “aqui em cima”, ele cuida apenas da cidade, as políticas públicas
e os equipamentos urbanos são apenas para os “lá de baixo”.
O espaço do aglomerado ocupa uma grande parte da Serra do
Curral e o único meio de transporte que faz a ligação com o asfalto – a cidade –
são alguns ônibus que servem ao bairro da Serra.
21
O ponto final desses
transportes fica atrás do Hospital Evangélico na última rua asfaltada dessa região
da cidade. A multidão de habitantes do aglomerado tem apenas essa entrada
para as 11 vilas e favelas. No começo do morro existe uma grande praça de terra
22
– apelidada pela população local de “Savassinha”
– de onde partem várias
vielas que são as vias de acesso para as favelas.
A partir da localização do aglomerado a rádio trabalha com a
distinção cidade/asfalto/lá embaixo
X
favela/morro/o alto. Essa relação
estabelecida pela localização espacial do aglomerado se transforma em
denominação social. Aqueles que pertencem a favela, ao morro, ao alto são os
19
20
Graffiti, ano 2, nº 3, out. 97.
Entrevista concedida por Misael Avelino dos Santos (diretor de programação e fundador da
rádio), Estado de Minas,16-08-1998.
21
Bairro de classe média.
22
Savassi é o nome dado pela população de Belo Horizonte para a região entorno de uma praça da
zona sul da cidade onde ficam os cafés, bares e comércio da classe média e alta da cidade.
9
pobres, os excluídos da cidade, sejam eles moradores do aglomerado ou não. O
asfalto é o lugar dos que pertencem a cidade onde estão as melhores condições
de vida, os equipamentos urbanos, etc.
A cidade é o outro lugar, aquele ao qual eles não pertencem, é onde
23
24
se encontra tudo que precisam: o posto de saúde , escolas , a luz, o asfalto, o
saneamento, a coleta de lixo, etc. O alto/morro é o lugar do vazio do poder
público, é onde a comunidade manda.
Os programas e as campanhas25 da Rádio Favela sempre reafirmam
essa distinção entre o morro/favela e a cidade/asfalto. Para a rádio o asfalto
sempre olhou para a favela como lugar do lixo, da poluição, da sujeira, das
doenças, e mais recentemente da violência e da criminalidade, ou seja, como um
lugar estigmatizado. Mas para a rádio a favela é o lugar da comunidade que são
todos aqueles que pertencem a esse lugar chamado pelos “de baixo” de favela,
são todos os que entendem a favela como um lugar de convivência, como um
lugar de pertencimento.
23
O único posto de saúde do aglomerado foi fechado por falta de médicos depois de alguns
incidentes violentos na região. A população das favelas é atendida por um posto localizado no
bairro da Serra.
24
Os 160 mil moradores do aglomerado têm apenas 3 escolas municipais e 4 estaduais a
disposição. Algumas dessas estão localizadas na cidade no início da subida do morro.
25
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Algumas das campanhas realizadas pela Rádio Favela:
Prevenção quanto ao uso de drogas e envolvimento com o tráfico e a violência;
“Vamos armar as crianças de cadernos e lápis”;
Divulgação de músicos e grupos emergentes, incentivando o surgimento de um mercado
independente de novos realizadores e produtores culturais;
Valorização das expressões artísticas da cultura negra aliado a um trabalho contra a
discriminação racial;
Utilidade Pública: informativos, comentários, entrevistas e debates sobre cultura, saúde,
saneamento básico, segurança, direito do consumidor, lazer, transportes, educação, limpeza
urbana, direitos humanos, moradia, esportes;
Internet dos Favelados: recados e avisos de toda natureza para os moradores do aglomerado;
etc.
10
III. O território das palavras
Mais do que designar um espaço habitado - seja o centro, a favela
ou o mangue - as palavras que os sujeitos utilizam para nomear um território
urbano
expressam
um
duplo
movimento
de
demarcação
simbólica,
necessariamente dialógico (nos termos de Bakhtin): por um lado, elas trazem
consigo os traços de uma experiência compartilhada - são índices de uma
comunidade de sentido - e por outro, traduzem uma relação com o outro, com
aquele que vive em outro espaço. Entretanto, para dar conta dessa relação entre
a identidade e a alteridade, não basta estabelecer uma correlação entre as
palavras designadoras e aquilo que é designado, explorando-se os campos
semânticos adjacentes, os termos sinônimos ou correspondentes, a ambiguidade,
a polissemia ou as variações de sentido que um mesmo termo recebe ao nomear
lugares distintos.
A representação dos territórios urbanos, seja do ponto de vista dos
seus moradores, seja do ponto de vista dos técnicos e dos especialistas
(administradores, engenheiros, urbanistas, arquitetos), possui uma complexidade
que ultrapassa em muito a lógica das relações entre sentido e referente. As
palavras que nomeiam um território urbano só podem se manifestar plenamente
nas formas concretas do discurso: elas não se oferecem, abstratamente, sob a
forma de um inventário ou repertório de significações colhidas a posteriori.
Inscritas em modalidades discursivas particulares e submetidas às modulações da
enunciação, as palavras que designam um território nomeiam um mundo, e se o
sentido aí varia continuamente é porque, ao promover a distinção entre nós e
eles, o discurso - segundo Jacques Rancière - redistribui a maneira como os
corpos falantes estão distribuídos numa articulação entre a ordem do dizer, a
ordem do fazer e a ordem do ser.
26
26
RANCIÈRE. O desentendimento, p. 67.
11
Ao descrever a maneira como os sujeitos nomeiam o seu espaço
particular - o da favela - e o espaço da cidade ou do asfalto, pretendemos
demonstrar a tensão entre a desqualificação e a valorização das palavras
estigmatizantes (Jean-Luc-Racine). Essa tensão se estabelece, inicialmente, de
um modo bastante simples. Assim que sintonizamos o rádio e ouvimos o bordão
“Você está na favela”, somos colocados numa estranha situação: se pertencemos
à comunidade dos ouvintes habitantes do lugar, percebemos aí não apenas um
reconhecimento simples, mas uma atitude afirmativa, por assim dizer. Se somos
estranhos à essa comunidade, se não nos vinculamos a ela pela co-presença e
pelo co-pertencimento a um conjunto de práticas e de experiências vividas num
território
comum, encontramo-nos diante de um outro que nos interpela,
paradoxalmente próximo e distante de nós.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da
globalização. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1996.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro, 1993.
PARRET, Herman (org). La communauté en paroles; communication, consensus,
rupture. Liège. Márdaga, 1991.
RACINE, Jean-Luc. <http://www.unesco.org/most/p2wp3d.htm>, 06/04/1999 Les
vocabulaires de la stigmatisation urbaine. (Colloque “Les mots de la ville”,
Paris 4-6 décembre 1997, Atelier 5)
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
SANTOS, Milton. Das modas ao modo: trajetórias da geografia humana. Sextafeira - Revista de Antropologia, nª 3, out. 98, p. 106.
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.
SHUSTERMAN. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular.
Rio de Janeiro: Ed. 34, 1998
TACUSSEL. Comunidade e sociedade: a partilha intersubjetiva do sentido.
Geraes - Revista do Departamento de Comunicação Social e do Mestrado
em Comunicação Social da UFMG, nª 49, maio de 98, pp. 3-12.
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SILVA, Regin Helena Alves da. Você está na favela. 1999.