Diego Kosbiau Trevisan1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o surgimento e consolidação da estética como disciplina filosófica no interior do ambiente filosófico alemão do século XVIII, mais especificamente nas filosofias de Baumgarten e Kant. Em primeiro lugar discutiremos os contornos iniciais da estética em Baumgarten como uma ciência filosófica das representações sensíveis, pertencentes à faculdade inferior do conhecimento. Na sequência, após expormos as insuficiências desse modelo baumgarteano, analisaremos esforço de Kant em libertar a estética dos padrões racionalistas, abrindo a possibilidade para uma disciplina filosófica da sensibilidade genuína e radicalmente autônoma Palavras-chave: Estética; Baumgarten; Kant; Sensibilidade Abstract: This article aims to analyze the emergence and consolidation of aesthetics as a philosophical discipline within the German philosophical environment of the eighteenth century, more specifically in the philosophies of Baumgarten and Kant. At first we discuss in Baumgarten the initial outlines of aesthetics as a philosophical science of the sensible representations belonging to the lower faculty of knowledge. After exposing the shortcomings of this Baumgartian' model, we arrive then at Kant's effort to free the aesthetics from the rationalists standards, opening up the possibility for a philosophical discipline of sensibility genuinely and radically autonomous. Key-words: Aesthetics; Baumgarten; Kant; Sensibility 1. Introdução - abertura da reflexão filosófica para a especificidade da sensibilidade Visto que a reflexão <Nachdenken> contém em geral o princípio (inclusive no sentido de começo) da filosofia, e tendo ela novamente florescido, na sua independência, nos tempos modernos (após a época da Reforma luterana), e uma vez que, justamente desde o início, não se ateve simplesmente ao abstrato, como nos primórdios filosóficos dos gregos, mas se arrojou ao mesmo tempo à matéria, aparentemente ilimitada, do mundo fenomênico, deu-se o nome de filosofia a todo o saber que se ocupa do conhecimento da medida permanente e do universal das individualidades empíricas, e do necessário das leis na aparente desordem infinita multiplicidade do acidental, e deste modo recebeu o seu conteúdo das próprias intuições e percepções do exterior e do interior, da natureza presente e do espírito presente, e do peito do homem2. Neste trecho da primeira parte da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, A Ciência da Lógica, Hegel faz um curioso diagnóstico sobre o papel da filosofia nos tempos modernos. Por meio da Reforma luterana, descobriu-se na reflexão o princípio da subjetividade e, com isso, a sua independência, ou ainda, a liberdade infinita do pensamento em relação ao próprio conteúdo pensado. A filosofia, dessa 1 Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutorando em Filosofia pela USP e pela Johannes Gutenberg-Universität Mainz (JGU). O artigo contou com financiamento da FAPESP e do DAAD. [email protected]. 2 HEGEL, G.W.F. Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaftten. Hamburg: Felix Meiner, 1969. § 7. Trad. Port. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome. Vol 1. Lisboa: Edições 70, 1988. 170 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 Estética como „ciência do sensível‟ em Baumgarten e Kant 2. Baumgarten – os primórdios de uma estética filosófica 3 Para uma análise exaustiva e filosoficamente refinada do movimento completo de nascimento da nova Estética, Cf. o clássico estudo de Alfred Baeumler. Das Irrationalitätsproblem in der Ästhetik und Logik des 18. Jahrhunderts biz zur Kritik der Urteilskraft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesselschaft Darmstadt, 1967. O original é de 1923 (Kants Kritik der Urteilskraft. Ihre Geschichte und Systematik. Halle). O autor mobiliza um número impressionante de fontes para descrever de modo elegante e instigante a história do surgimento da Estética como história da eclosão e estabelecimento do princípio da subjetividade e, com isso, da irracionalidade no pensamento da Aufklärung europeia. É certo que não pretendemos e nem podemos competir nesse artigo com o estudo de Baeumler. 4 “Com a nova ciência [a Estética], cujo surgimento A. Bauemler denomina „um acontecimento de amplo significado histórico‟ em conexão „com uma das mais importantes reviravoltas no interior da consciência de si europeia em geral‟, a filosofia acolhe o problema de, como ciência racional fundada sobre um conhecimento claro e distinto, contrapor a ela a poesia e, com esta, „pintura, música, escultura, arquitetura, gravura‟ e tudo o mais que se pode contar como artes liberais e belas‟, com a pretensão a uma verdade que a filosofia tem fora de si, como „algo que se encontra fora de seu alcance‟ e que é seu „oposto‟”. RITTER, J. “Ästhetik”. In: Historisches Wörterbuch der Philosophie. Basel: Schwabe, 2007. Tomo 1. p. 556. 171 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 forma, viu seu campo ampliado de forma radical: não mais apenas o abstrato, o puro inteligível, mas, antes, toda a amplitude da efetividade, incluindo tudo aquilo que parecia refratário a qualquer abordagem filosófica, a saber, a “infinita multiplicidade do acidental”, “as individualidades empíricas”, em uma palavra, a realidade sensível. Não se trata, decerto, de tomar a sensibilidade em sua opacidade material, na absoluta e irredutível singularidade de suas manifestações, mas, antes, apenas como o lócus onde o universal e o necessário se apresentam como produtos da atividade filosófica, como reflexos do Espírito e de sua liberdade infinita. Ora, é possível afirmar que para Hegel o trabalho realizado por Kant de desabilitação da metafísica dogmática e de seus objetos por excelência: Deus, Alma e Mundo, e de radicalização do primado da razão prática, teve como uma de suas principais consequências a expansão do terreno legítimo do pensamento filosófico para tudo aquilo em que este possa deixar a marca de sua liberdade, agora já liberta de um universo de objetos determinados. No movimento esboçado acima, a sensibilidade, esse “Outro” do pensamento, torna-se um legítimo objeto da filosofia. Como resultado, não mais concebida como simples poética, mas como ciência do sensível, a Estética surge como uma digna disciplina filosófica. O objetivo desse artigo consiste em retraçar, em linhas bem gerais, o percurso acima esboçado e apresentar alguns momentos do “nascimento” desse novo objeto filosófico3. Em termos mais precisos, pretendemos aqui discutir a concepção de estética como uma “ciência filosófica do sensível” surgida no ambiente intelectual alemão no século XVIII. O trajeto escolhido é bem delimitado: partindo de Baumgarten, passando pelas bases leibnizianas de seu pensamento e, enfim, chegando a Kant, o propósito é analisar – de modo esquemático, cumpre ressaltar – a maneira pela qual uma ciência que tem a sensibilidade como sua base de interrogação adquire gradualmente uma envergadura filosófica a princípio impensada no interior do racionalismo da Aufklärung alemã. No percurso que vai de Baumgarten a Kant poderemos observar de que maneira todo o reino da sensibilidade - das impressões sensíveis de objetos até os sentimentos "irredutivelmente sensíveis" - adquire a dignidade de um tema filosófico autônomo, surgindo, com isso, um “‟acontecimento de amplo significado histórico‟ em conexão com „uma das mais importantes reviravoltas no interior da consciência de si europeia em geral‟”4. Desse modo, discutiremos o valor da nova Estética nem tanto no interior da perspectiva mais costumeira, que imediatamente a identifica com uma teoria da arte, quanto, na realidade, na sua acepção mais ampla de uma ciência ou disciplina filosófica da sensibilidade e da vida subjetiva. A estética (a teoria das artes liberais <artes liberales>, a doutrina do conhecimento inferior <gnoseologia inferior>) é a ciência do conhecimento sensível7. Ainda que seja na Estética que os contornos dessa nova disciplina filosófica tornam-se pela primeira vez mais nítidos, Baumgarten esboçara seu projeto 15 anos antes, numa obra chamada Meditações filosóficas sobre alguns tópicos referentes à essência do poema. Aqui a Estética é definida como “uma ciência que conhece algo sensivelmente”, em oposição à lógica, descrita como “uma ciência que conhece algo filosoficamente”8. A contraposição entre essas duas disciplinas9, central para a compreensão do ineditismo e mesmo das insuficiências de Baumgarten, é elucidada por meio da referência às faculdades de conhecimento das quais cada uma trata. Segundo Baumgarten, a lógica é “a ciência que guia a faculdade suprema do conhecimento no conhecimento da verdade”, ao passo que a Estética é “a ciência que guia a faculdade inferior de conhecimento”10. Esta última, que aqui nos interessa 11, é caracterizada por 5 Para uma análise completa e exaustiva da Estética em Baumgarten, Cf. TEDESCO, S. L'estetica di Baumgarten. Centro Internazionale Studi di Estetica. Palermo, 2000. Em nossa exposição nos limitaremos a apontar os momentos mais fundamentais do nascimento dessa nova disciplina filosófica. 6 Idem. pp. 556-557. 7 Est § 1.Utilizamos a versão bilíngue alemão/latim: BAUMGARTEN, A.G. Ästhetik. Lateinisch-deutsch. Hamburg: Felix Meiner, 2007. Todas as referências às obras de Baumgarten são feitas acordo com as seguintes abreviações: Est. (Estética); Med. (Meditações filosóficas sobre alguns tópicos referentes à essência do poema); Met. (Metafísica). 8 Med. § 115. Utilizamos a tradução em português da obra presente em BAUMGARTEN, A.G. Estética. A Lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993. 9 O próprio termo “estética” em Baumgarten é cunhado a partir de um confronto com a lógica: “Existindo a definição, podemos facilmente descobrir o termo assim definido. Já os filósofos gregos e os padres da Igreja sempre distinguiram cuidadosamente as coisas sensíveis (aisthéta) das coisas inteligíveis (noéta). É evidente o bastante que coisas sensíveis não equivalem somente aos objetos das sensações, uma vez que também honramos com este nome as representações sensíveis de objetos ausentes (logo, os objetos da imaginação). As coisas inteligíveis devem, portanto, ser conhecidas através da faculdade do conhecimento superior, e se constituem em objetos da lógica; as coisas sensíveis são objetos da ciência estética (episteme aisthetiké), ou então, da Estética” (Med. § 116). Essa oposição reaparece – modificada – em Kant, com as duas partes de que é composta a Doutrina Transcendental dos Elementos da Crítica da Razão Pura, a Estética e a Lógica Transcendentais. 10 Med. § 115 11 A lógica e a faculdade superior do conhecimento são definidas por Baumgarten no interior do quadro racionalista de Wolff. Cf. WOLFF, C. Philosophia Rationalis sive Logica § 61: “É denominada lógica a 172 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 No cenário intelectual alemão, a Estética surge como disciplina verdadeiramente filosófica pela primeira vez por meio da pena de Baumgarten5. Para ele, essa antiga disciplina reabilitada cientificamente tem por tarefa de fundo “romper o confronto entre filosofia e arte, na medida em que o âmbito do sentimento e da sensação sensíveis <sinnlichen Empfindens und Fühlens> é inserido no contexto da filosofia como um campo até então „não cultivado‟ por esta, de modo a reconciliar, assim, a verdade da poesia e da arte com a verdade da filosofia”6. Esse projeto de reconciliação <Versöhnung> - que encontra prosseguimento na Estética de Hegel e mesmo na de Kant - inclui, por certo, uma reavaliação do estatuto da sensibilidade: esta, para figurar como legítimo objeto filosófico, tem de adquirir uma “dignidade” até então imprevista na tradição da filosofia clássica alemã. É a esta revalorização da sensibilidade operada por Baumgarten que voltaremos nossa atenção nesta seção, para, na seguinte, contrastar com a solução – mais radical – kantiana. Logo no primeiro parágrafo da primeira edição de sua Estética, de 1750, Baumgarten define a Estética como a “ciência do conhecimento sensível“: parte da filosofia que trata do uso da faculdade de conhecimento no conhecimento da verdade e na prevenção do erro: por isso, definimo-na como a ciência que guia a faculdade de conhecimento no conhecimento da verdade”. Cf. MIRBACH, D. “Einführung”. In: BAUMGARTEN, A.G. Ästhetik. Bd 1. Hamburg: Felix Meiner, 2007. pp. XXVII-XXXII. 12 Segundo Baumgarten, às faculdades inferiores de conhecimento pertencem, além das mencionadas, a faculdade sensível da compreensão sutil ou perspicácia <feinen Einsicht; perspicacia> (composta pelo engenho sensível <ingenium sensitivum>, como capacidade sensível de reconhecer as similaridades das coisas, e pela acuidade sensível <acumen sensitivum>, como capacidade sensível de apreender as diferenças das coisas), a memória sensível, a faculdade de ficcionar <facultas fingendi>, a faculdade sensível de previsão <praevisio>, do juízo <facultas diiudicandi, iudicum sensitivum> e de pressagiar <praesagitatio, expectatio casuum similium>, assim como a faculdade de referência sensível <facultas characteristica sensitiva>”. Met. §§ 519ss. Utilizamos a seguinte edição bilíngue alemão/latim Metaphysica-Metaphysik. Stuttgart-Bad Cannstatt: frommann-holzboog, 2011 13 Cf. Med. §§ 2-15; Est. §§ 7-8. 14 Leibniz propõe sua teoria dos diferentes graus de conhecimento de forma mais detalhada e concisa em Meditationes de cognitione, veritate et ideis (1684). As citações desta obra são feitas aqui em cotejo com a tradução em alemão, cujas passagens, por sua vez, são retiradas de MIRBACH, D. Op. Cit. Cumpre aqui notar que a distinção avançada por Leibniz dos diferentes graus de conhecimento é crucial para determinar o modo como um objeto é conhecido: em primeiro lugar, “ela distingue relativamente à pergunta sobre se um objeto é conhecido apenas como um todo ou também em suas marcas características específicas; em segundo lugar, relativamente à pergunta acerca de quais marcas características específicas são apreendidas em qual „estágio‟ de análise, tanto em suas correlações recíprocas como também em referência ao objeto como um todo” (pp. XXXII-XXXIII). Como veremos, em Baumgarten a reconfiguração dos “graus de clareza” pressuposta pela Estética implicará uma espécie distinta de conhecimento de objetos singulares, que, contrariamente às mônadas leibnizianas, devem ser contados como objetos sensíveis. Cf. JÄGER, M. Kommentierende Einführung in Baumgartens ‘Aesthetica’. Hildesheim & New York: Georg Olms Verlag, 1980. pp. 137ss. 15 Para uma análise mais completa desse tópico - e, de resto, sobre a filosofia de Baumgarten -, Cf. SCHWAIGER, C. Alexander Gottlieb Baumgarten - Ein intellektuelles Porträt. Stuttgart-Bad Cannstatt: frommann-holzboog, 2011. pp. 43ss. 16 LEIBNIZ, G. W. Meditationes. Apud. Mirbach, D. Op. Cit. p. XXXII 17 LEIBNIZ, G. W. Meditationes. Apud. MIRBACH, D. Op. Cit. p. XXXIII. 173 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 Baumgarten em sua Metafísica no interior da parte consagrada à Psicologia Empírica: segundo ele, a faculdade inferior do conhecimento é aquela à qual dizem respeito todas as capacidades cognitivas concernentes à sensibilidade, tais como o “sentido” <sensus>, a “imaginação” <fantasia>, e assim por diante12. De modo mais amplo, Baumgarten define as representações sensíveis, pertencentes à faculdade inferior de conhecimento, como representações confusas, ou seja, como representações indistintas, em oposição às representações distintas, pertencentes à faculdade superior de conhecimento, tema próprio da lógica13. Essa distinção remete diretamente a Leibniz, que, em oposição crítica a Descartes, diferencia representações claras e obscuras, distintas e confusas, e, sob este último título, adequadas e inadequadas, simbólicas e intuitivas 14. Antes de analisar a peculiaridade da concepção baumgarteana a respeito das representações sensíveis, vejamos o quadro teórico em que ela se insere 15. Segundo Leibniz, obscura é uma “representação que não basta para reconhecer, como um todo, um objeto uma vez percebido e distingui-lo de um todo similar. Clara, pelo contrário, é uma representação que basta para o reconhecimento de um todo em distinção a um outro“16. Representações claras, por sua vez, podem ser ou confusas ou distintas: em uma representação clara/confusa o objeto é completamente reconhecido, o sujeito que conhece, contudo, “não está em condição de contar individualmente as notas características que são suficientes para a distinção de um coisa em relação às outras, embora a coisa possua notas características e determinações nas quais seu conceito pode ser analisado“17. Dentre os exemplos destas representações contam-se aquelas das quais os sentidos dão testemunho: “cores, cheiros, paladares“, assim como “representações de 18 MIRBACH, D. Op. Cit. p. XXXIII. LEIBNIZ, G. W. Meditationes. Apud. MIRBACH, D. Op. Cit. p. XXXIII. 20 Segundo Leibniz, não é possível ao homem um conhecimento adequado de objetos em virtude da inesgotável quantidade de notas características presentes nas suas representações. Na falta de adequação do conhecimento, utilizamos sinais para esclarecer aquilo que permanece obscuro numa análise mais longa – como, por exemplo, o conhecimento “simbólico“ ou “cego“ utilizado na álgebra e na aritmética. (MIRBACH, D. Op. cit. p. XXXV). A forma de conhecimento suprema, assim, é o conhecimento intuitivo de um objeto composto, conhecimento que apreende, de um só golpe, todas as notas características que são pertencentes a tal objeto, ou seja, atinge o conhecimento de forma imediata e direta, sem precisar, pois, de análise. Como dito, tal conhecimento seria reservado apenas a Deus (Cf. LEIBNIZ, G.W. Nouveaux essais sur l’entendement humain. Paris: Flammarion, 1993. Livro 4, Cap. XVII, § 15). 21 Med. § 12. 22 Med. § 13. 23 “A introdução da denominação „representação sensível‟ serve menos para uma „transformação na designação‟ <Umbezeichnung> de sua gradual distinção em relação à representação distinta e adequada, quanto, inversamente, para a determinação de uma qualidade especificamente própria – que não deve ser medida com o padrão de distinção – das representações obscuras e claras-confusas” (MIRBACH, D. Op. Cit. p. XXXIX). 19 174 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 artistas ou pintores, que julgam sobre acerto ou erro, apreço ou desapreço de uma obra de arte, mas sem saber de quais notas características em particular da obra advêm esses juízos”18. Em oposição a isso, clara/distinta é uma representação que contém também notas características particulares do objeto conhecido que “são comuns a mais sentidos, como aquelas do número, do grandeza, da forma, que não contêm sob si nenhuma contradição e que são suficientes para distinguir o objeto em relação a outros e conhecêlo como pertencente a um gênero ou espécie“19. De acordo com Leibniz, apenas representações claras/distintas podem também ser caracterizadas como adequadas. Somente por meio delas se pode afirmar a existência de um conhecimento completo do objeto, do qual, portanto, é fornecida uma definição real, que demonstre sua possibilidade interna e o distinga adequadamente em relação aos demais objetos que lhe são aparentados. Tal conhecimento completamente adequado e distinto, no entanto, é possível apenas em Deus e seu entendimento intuitivo; aos homens, que somente podem pensar discursivamente, restam representações inadequadas e simbólicas, cujo grau de clareza e distinção é gradativamente aumentado por meio de um distendido processo de análise que, porém, nunca chega a termo. Em outras palavras, é vedado ao homem um pleno conhecimento dos objetos naturais 20. O ineditismo de Baumgarten pode ser percebido sob esse pano de fundo leibniziano. Nas Meditationes, Baumgarten define as representações sensíveis, isto é, claras/confusas, como “poéticas”21. Em contraposição, “representações distintas, perfeitas, adequadas, que percorrem todos os graus, não são [sensíveis], por conseguinte, tampouco poéticas” 22. Baumgarten se opõe a Leibniz não tanto por distinguir as representações sensíveis como claras/confusas (e inadequadas) em relação às representações intelectuais como claras/distintas (e adequadas), de acordo com a posição que cada uma ocupa nos “graus” do conhecimento, mas sobretudo em virtude de algo que lhes é próprio: serem irremediavelmente sensíveis. Assim, a peculiaridade do conhecimento que é próprio à Estética define-se pela faculdade de conhecimento à qual pertence seu objeto e não por uma deficiência que lhe é constitutiva e que poderia ser remediada caso nossa capacidade cognitiva fosse diversa, infinita e perfeita como a divina. Um esforço progressivo de análise não pode mudar a qualidade intrínseca da representação sensível. Desta irredutibilidade nasce a peculiaridade do objeto estético 23. Partindo dessa crítica implícita à doutrina leibniziana, Baumgarten institui um novo campo de conhecimento para o homem: o de uma ciência propriamente “estética”. 24 Cf Med. §§ 14-21; Met. § 531. MIRBACH, D. Op. Cit. p. XLII. 26 Med. § 18 27 Med. §§ 11, 18-19. 28 Est. § 752 .“O primeiro critério do conhecimento sensível (...) é, portanto, o de riqueza (ubertas), a quantidade de notas características dos objetos representados sensivelmente. Por conseguinte, a ubertas aesthetica [é considerada] como prima cura do esteta” (MIRBACH, D. Op. Cit. p. XLIV). 25 175 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 Segundo ele – e em contraposição a Leibniz –, haveria duas modalidades de clareza de representações: intensiva e extensiva. Ao invés de buscar uma distinção e uma adequação absolutas no conhecimento de um objeto natural, possíveis apenas para o entendimento intuitivo de Deus, o homem somente pode aspirar a um conhecimento claro extensivo das representações sensíveis. Ao passo que para Leibniz haveria a possibilidade, ao menos numa perspectiva lógica, de que uma representação clara/confusa se transformasse em uma representação clara/distinta através de um aumento gradual e infinito do conhecimento das diversas notas características pertencentes a ela, segundo Baumgarten seria possível ao homem apenas um incremento gradual da clareza das representações, seja através do conhecimento específico de determinadas notas características, a clareza “intensiva”, seja através de um aumento do número de notas características conhecidas, a clareza “extensiva”24. Assim, o conhecimento sensível se opõe de modo mais claro ao intelectual: este deve “conhecer notas características particulares de um objeto tão intensivamente/claro, isto é, tão distinta ou, de modo aproximativo, tão adequadamente quanto possível”, enquanto que o conhecimento sensível “indica que é possível apreender o mesmo objeto de modo extensivo/claro em uma maior quantidade de notas características, mesmo se estas não são conhecidas em particular”25. Em poucas palavras, o conhecimento sensível procura um conhecimento mais variado, e nem tanto profundo, de um determinado objeto. A especificidade do tratamento estético começa, assim, a ser caracterizada de modo mais completo. Ora, o conhecimento sensível não é um “estágio prévio” ao conhecimento intelectual, mas, antes, possui um objetivo diverso: ao passo que este visa conhecer distintamente o objeto, isto é, identificar a “espécie” à qual pertence determinado objeto, discriminando as marcas características que ele compartilha com outros objetos que lhe são próximos, o conhecimento sensível, por sua vez, busca conhecer o maior número possível de características do mesmo objeto, definindo, assim, aquilo que lhe é “próprio e incomparável”. Conhecer um determinado objeto singular (enquanto tal, determinado completamente) na multiplicidade de suas notas características, isto é, deter um conhecimento claro/extensivo deste objeto, é a finalidade da Estética26. Assim, quanto mais determinado for o objeto, quanto maior for o conhecimento claro/extensivo e menor o conhecimento claro/intensivo, tanto mais esse objeto será poético e digno de uma apreciação estética 27. Ou seja, a estética lida com “objetos totalmente determinados”, “coisas singulares”28 - em uma palavra, coisas irremediavelmente sensíveis. Com essa breve exposição da especificidade do conhecimento estético omitimos, porém, aquilo que, para os sucessores de Baumgarten, constitui as fragilidades de sua doutrina. Não é preciso muito esforço para notar que aqui a concepção de uma disciplina autônoma do sensível permanece rudimentar: não apenas a persistência do jargão escolar obstrui desenvolvimentos temáticos, mas sobretudo o marco teórico em que é formulada caracteriza-se como um obstáculo intransponível. Apesar dos esforços, o domínio estético em Baumgarten ainda permanece subordinado a padrões lógicos, de modo que “não apenas a beleza está subordinada à exigência de perfeição lógica, como também ela não é nem mesmo concebível fora dela. O elemento estético não é então 3. Kant – A Estética Transcendental e as “emancipações” da sensibilidade Antes de passar à reformulação por que passa o âmbito sensível e estético nas duas principais obras kantianas em que esse tema é discutido, a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Faculdade de Julgar, cumpre tratar de um escrito de Kant do período préCrítico que, para muitos comentadores, serve como base para desenvolvimentos conceituais que encontrariam acabamento definitivo apenas após o início do período crítico: Forma e princípios do mundo sensível e do mundo inteligível (De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis), mais conhecido como Dissertação de 1770. Para os propósitos do presente trabalho, analisaremos apenas um aspecto desta obra, a saber, o isolamento das formas puras da intuição como fonte autônoma e autosubsistente de representações sensíveis, para, então, chegar ao radicalismo da concepção kantiana da sensibilidade apresentada nas duas obras mencionadas. Na Dissertação de 1770 Kant concebe espaço e tempo como “formas puras da sensibilidade”, diferenciando-os radicalmente do entendimento ou “inteligência” <intelligentia> como duas fontes distintas de representações: ao passo que os objetos que a sensibilidade nos fornece são todos sensíveis, ou seja, fenômenos, aqueles que são dados à inteligência caracterizam-se como inteligíveis, ou seja, númenos32. Dessa forma, distinguem-se um mundo sensível, relativo ao que é “subjetivo na mente 29 LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 406. Para diversas críticas à doutrina estética de Baumgarten, Cf, além de Lebrun, SANTOS, L. R. “O estatuto da sensibilidade no pensamento kantiano: lógica e poética do pensamento sensível”. In. Idem. A Razão Sensível. Estudos Kantianos. Lisboa: Edições Colibri, 1994. THEIS, R. “Aux sources de l‟Esthétique transcendantale”. In: Kant-Studien. Vol 80-1. 1989. WERLE, M. A. “O lugar de Kant na fundamentação da estética como disciplina filosófica”. In: Dois Pontos. vol 2. n. 2. 2005. 30 WERLE, M. A. “O lugar de Kant na fundamentação da estética como disciplina filosófica”. Op. cit. p. 134. 31 LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. Op. cit. p. 409. 32 Dissertatio Ak II: 392. As obras de Kant são citadas segundo a edição da Academia (Kants gesammelte Schriften: herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenschaften, anteriormente Königlichen Preussischen Akademie der Wissenschaften, 29 vols. Berlin, Walter de Gruyter, 1902– ) e de acordo com o seguinte modelo: a abreviação do nome da obra, seguida do volume e da página da edição da Academia (Ak) e da edição em português correspondente. Nas citações da Crítica da Razão Pura, a página da edição da Academia é substituída pelas mais convencionais referências “A” e “B”, correspondentes à primeira e à segunda edições da obra, respectivamente. As abreviações utilizadas são as seguintes: EE (Primeira Introdução à Crítica da Faculdade de Julgar), Dissertatio (Forma e princípios do mundo sensível e do mundo inteligível) KrV (Crítica da Razão Pura), KU (Crítica da Faculdade de Julgar) e MS (Metafísica dos Costumes). Consultamos as seguintes traduções: Crítica da Razão Pura. Petrópolis: Vozes, 2012. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. Metafísica dos Costumes. Petrópolis: Vozes, 2012. Escritos Pré-Críticos. São Paulo, Ed. Unesp, 2005. 176 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 nada além do que uma arte de agradar”29. De certa forma ainda persiste, sob nova roupagem, a prevalência de elementos exteriores (lógicos, cognitivos) na apreciação estética e sensível – o “padrão” da “perfeição estética” e da “verdade sensível” ainda permanece preso a um ideal de plenitude lógica tomado de empréstimo ao quadro metafísico relativo às “faculdades de conhecimento” que trava, em seu princípio, desenvolvimentos adicionais. Dito de outro modo, Baumgarten não assume o radicalismo de uma nova concepção do juízo estético segundo a qual “não é a sensibilidade que deve ser posta em cheque pela razão, mas a razão pela sensibilidade”30; a escolha mesma da rubrica conhecimento sensível “indica que a reabilitação do sensível efetua-se sempre no espírito do intelectualismo” 31. Veremos agora como Kant retoma o movimento que radicalizará a autonomia do sensível e da arte. O que é sensitivo (...) pode ser inteiramente distinto, e o que é intelectual, confuso ao máximo. O primeiro caso observamos no protótipo do conhecimento sensitivo, a geometria, o segundo caso no órganon de tudo o que é intelectual, a metafísica (...). Não obstante, cada um desses conhecimentos guarda o sinal de sua ascendência, de modo que os primeiros, por mais distintos que sejam, são denominados, em virtude de sua origem, sensitivos; os segundos, mesmo que confusos, permanecem intelectuais36. A partir disso, torna-se possível a Kant conceber uma Estética, uma “ciência“ da sensibilidade cujos princípios ou critérios de avaliação não dependem da lógica ou de qualquer outra disciplina da tradição racionalista. Em outras palavras, depois de Kant torna-se autorizada a rejeição do paradigma racionalista dos graus de conhecimento e do critério lógico de distinção e indistinção para a determinação da especificidade de uma disciplina estética. Como é sabido, essa inovação conceitual é exposta de modo mais bem acabado na Crítica da Razão Pura. Aqui Kant argumenta haver dois sentidos de “Estética”: um psicológico, relativo à doutrina do gosto e que busca estipular critérios de apreciação de obras de arte, e outro transcendental, relativo ao irredutível elemento sensível presente no processo do conhecimento. O primeiro sentido é atribuído por Kant a Baumgarten, que, segundo ele, “buscou submeter o julgamento crítico do belo a princípios racionais e elevar as regras do mesmo à condição de ciência“37, tendo, no entanto, fracassado em seu intento, dado que os critérios em que se baseiam tais regras são todos empíricos, 33 Dissertatio Ak II: 398. Dissertatio Ak II: 398. 35 Dissertatio Ak II: 407. 36 Dissertatio Ak II: 394-395. 37 KrV B 36 34 177 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 humana”, ou ainda, ao que pode ser dado ao espaço e tempo, um mundo, portanto, que “contém o fundamento da conexão universal de tudo na medida em que é fenômeno”33, e um mundo inteligível, cuja forma “reconhece apenas um princípio objetivo, isto é, alguma causa pela qual há a ligação dos existentes entre si” 34 na medida em que estes são considerados não segundo a sua matéria, ou seja, segundo aquilo que pode ser dado aos sentidos, mas antes enquanto seres inteligíveis ou numênicos em “comércio mútuo” e apreensíveis apenas pelo entendimento35. Desse esboço originário do idealismo transcendental da Crítica da Razão Pura surge o argumento que será de crucial importância para a solução radical de Kant para o problema de fundamentação de uma Estética filosófica: a crítica à ideia esboçada na primeira seção deste artigo acerca do critério lógico de distinção entre representações sensíveis e intelectuais, a saber, que o conhecimento sensível seria eminentemente confuso, ao passo que o conhecimento intelectual, pelo contrário, claro e distinto. Para Kant não é mais válida essa propagada tese racionalista sobre distinção ou indistinção de representações como índice da diferença entre conceito, ou representação intelectual, e intuição, ou representação sensível. A sensibilidade se diferencia do intelecto não pela inadequação ou confusão de suas representações relativamente à adequação ou distinção das representações intelectuais, ou mesmo, como ocorria em Baumgarten, partindo-se do critério de clareza intensiva ou extensiva das representações envolvidas, mas antes pela radical separação que existe na fonte mesma de onde provêm ambas as classes de representações. Segundo Kant, é possível que um “conhecimento sensível“ seja plenamente claro e distinto e um conhecimento inteligível, por seu turno, indistinto e confuso no mais elevado grau. Ora, há exemplo melhor do que a precária ciência metafísica para atestar a até então negada confusão das representações intelectuais? uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori (...). Na Estética Transcendental isolaremos a sensibilidade retirando primeiramente tudo aquilo que o entendimento nela pensa por meio de seus conceitos, de modo que nada reste a não ser a intuição empírica. Em seguida, separaremos ainda desta última tudo aquilo que pertence à sensação, de modo que nada reste a não ser a intuição pura e a mera forma dos fenômenos, a única coisa que a sensibilidade pode fornecer a priori. Nesta investigação se verificará que há duas formas puras da intuição sensível como princípios do conhecimento a priori, quais sejam, o espaço e o tempo38. A Estética Transcendental, assim, se ocupa daquilo que é irredutivelmente sensível no conhecimento dos objetos: as formas puras da sensibilidade, espaço e tempo, sem que se ponha em questão a distinção ou clareza dos objetos assim representados. O movimento, iniciado na Dissertação de 1770, de autonomização do âmbito sensível, de instituição de uma lógica própria para as representações da sensibilidade, que não mais podem ser medidas por critérios tomados de empréstimo à lógica e às disciplinas da metafísica tradicional (como, por exemplo, a Psicologia Empírica, na qual eram discutidas as diversas “faculdades de conhecimento”), encontra nessa nova doutrina estética proposta uma etapa crucial. Na Crítica da Faculdade de Julgar Kant radicaliza esse processo de libertação do sensível em relação a critérios que se aplicam apenas ao intelectual. Kant explora na obra aquilo que pode ser denominado o “puramente subjetivo“, ou seja, não aquilo que é subjetivo na constituição de um objeto do conhecimento (um “subjetivo/objetivo“, como, por exemplo as percepções sensíveis dadas no espaço e no tempo e que devem ser atribuídas a um objeto qualquer), mas, antes, aquilo que é despertado tão-somente no sujeito, não passível de ser caracterizado como propriedade efetivamente objetivas de um determinado objeto. Na Introdução à Metafísica dos Costumes Kant torna mais claro o que é exposto de forma mais sintética na Crítica da Faculdade de Julgar. A “vida“ é ali definida como algo que liga primitivamente o homem à sua determinação como ser natural, e o elo sensível com esse elemento natural do homem é obtido através do sentimento <Gefühl>, a inevitável receptividade à sensação de prazer ou desprazer provocada por um objeto39. Esse sentimento é decerto ligado à sensibilidade, e mais: àquilo que da sensibilidade somente pode ser dito do sujeito, e não do objeto representado subjetivamente pela sensibilidade. Bem entendido, o sentimento diferencia-se do sentido <Sinn>, ou seja, daquilo que é subjetivo na representação mas que, não obstante, pode ser referido a um objeto com vistas ao conhecimento (objetivo) do mesmo. Kant se refere aqui àquilo discutido na Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura: os objetos que conhecemos são todos dados no espaço e tempo, ou seja, nas formas puras da sensibilidade; nesta medida, um objeto é dado através de uma representação na sensibilidade, referida, por certo, a algo “externo” que pode ser objetivamente conhecido através das categorias do entendimento. No caso do sentimento, contudo, não há essa remissão a um “objeto”, ou melhor, não a um objeto a ser conhecido: no sentimento, não se trata de uma, digamos, “representação subjetiva/objetiva”, mas antes de uma representação "subjetiva/subjetiva", ou seja, de algo puramente subjetivo não 38 39 KrV B 36 MS Ak VI: 211. Cf. EE Ak XX: 201-209; KU Ak V: 177-179. 178 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 retirados da experiência, não possuindo, pois, a universalidade exigida por uma disciplina científica. Por escrúpulo filosófico, Kant afirma que apenas o sentido transcendental deveria ser conservado. É o que ele busca realizar em sua Estética Transcendental. Esta é 40 MS Ak VI: 211. “Essa nova Sinnlichkeit não tem mais nada a ver com aquela da Estética transcendental: se „estético‟ permanece equivalente a sensível, é porque agora „sensível‟ cessa de ser sinônimo de „presente na intuição‟ (...). Esta significação restrita dada agora à „estética‟ afasta então qualquer referência à sensibilidade enquanto instrumento de conhecimento, ao espaço enquanto condição da sensibilidade”. LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. Op. Cit. pp. 410-411. Não entraremos na discussão sobre as mudanças provocadas pela Crítica da Faculdade de Julgar na concepção mesma de Kant sobre a “Estética”. Para isso, cf. o capítulo IX, “O Prazer Puro”, de LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. Op. cit. 42 KU Ak V: 203-211. 43 KU Ak V: 211-219. 44 KU Ak V: 219-236. 45 KU Ak V: 236-240. 41 179 ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014 ligado à faculdade de conhecimento 40. Esse sentimento, a “representação subjetiva irredutivelmente subjetiva“, é despertado por ocasião do prazer estético no juízo estético de um objeto - como já havia notado Baumgarten – singular. Nesta “nova Sinnlichkeit” ou "nova Sensibilidade" abre-se a possibilidade para uma “Estética” radical, uma teoria de apreciação artística de objetos singulares que não se confunde com uma teoria da sensação ou do elemento sensível no conhecimento do objeto41. A Crítica da Faculdade de Julgar de Kant, publicada em 1790, desenvolve os contornos dessa "nova Sinnlichkeit". Aqui Kant expõe os detalhes envolvidos nesse prazer estético, na noção de desinteresse pela existência do objeto ajuizado como belo em sua singularidade absoluta. O caráter irremediável e absolutamente subjetivo do objeto estético é ilustrado pelos 4 momentos do juízo estético, discutidos na Analítica do Belo da Crítica da Faculdade de Julgar Estética. O primeiro momento seria o da qualidade do juízo: o comprazimento ou agrado <Wohlgefallen> estético, ainda que referido ao sentimento de prazer e desprazer, não pode dizer respeito à nossa faculdade de desejar, posta em movimento pelo prazer que determinado objeto nos causa. Isso significa que o valor da existência do objeto não depende de nossas carências e necessidades, que nos impelem a produzi-lo por meio do agir; inversamente, o juízo estético deixa o elemento sensível subsistir livremente por si e nasce de um prazer que aceita a existência independente do objeto42. No segundo momento, o da quantidade do juízo estético, é afirmado que o belo produz um comprazimento universal sem conceito, ou seja, imediato, do objeto belo em sua singularidade absoluta: no juízo estético do belo, não tomamos consciência do conceito e da subsunção que se opera sob esse conceito; não há, pois, conhecimento do objeto como um produto natural ou como um dado material quantificável em padrões matemáticos ou físicos 43. O terceiro momento é o da relação do juízo, segundo o qual o belo deve possuir apenas a mera forma de uma conformidade a fins, ou seja, na medida em que esta conformidade a fins é percebida no objeto sem a representação de uma finalidade efetiva. No belo não há uma relação teleológica externa, nele fins e meios não permanecem exteriores uns aos outros - em outras palavras, o objeto estético possui uma conformidade a fins sem fim, o comprazimento produzido no juízo não responde a nenhuma finalidade observável 44. Por fim, no último momento do juízo estético, o da modalidade, o belo é caracterizado como objeto de um comprazimento necessário sem conceito, uma necessidade universal subjetiva que apenas se torna objetiva sob a pressuposição de um paradoxal sentimento comunitário não fundado em princípios objetivos45. Em resumo, o juízo estético busca redignificar a sensibilidade por meio do isolamento de um sentimento que realça o caráter desinteressado, universal, finalista e compartilhável de um objeto singular na sua referência ao sujeito que assim o ajuíza. Referências bibliográficas BAEUMLER, A. Das Irrationalitätsproblem in der Ästhetik und Logik des 18. Jahrhunderts biz zur Kritik der Urteilskraft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesselschaft Darmstadt, 1967. BAUMGARTEN, A.G. Ästhetik. Lateinisch-deutsch. Hamburg: Felix Meiner, 2007. __________. Estética. A Lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993. __________. Metaphysica-Metaphysik. 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No entanto, o que até aqui dissemos já basta para percebemos o modo como Kant atinge a autonomia radical do estético e da sensibilidade perante os padrões judicativos e normativos aos quais em Baumgarten aqueles encontravam-se, em maior ou menor medida, presos. No juízo que aprecia determinado objeto como “belo“ e por meio do qual é despertado no sujeito um paradoxal sentimento de prazer subjetivo, desinteressado e universal observamos não apenas “uma emancipação da sensibilidade“ e “uma autonomia do estético relativamente ao entendimento e à Lógica“ como também uma “emancipação da sensibilidade relativamente a ela própria, pois o estético do juízo de gosto não é o privado e passivo da mera sensação de agrado, mas é um juízo – embora não lógico – que tem pretensão a uma certa „aprovação universal‟ <allgemeine Stimmung> ou „validade comum‟ <Gemeingültigkeit>47”. O processo de autonomização do estético, que se inicia em Baumgarten e sua ideia de clareza extensiva da representação sensível e passa, já em Kant, pela ruptura completa com a teoria racionalista dos graus do conhecimento e pela formulação de uma doutrina estética transcendental dos princípios próprios à sensibilidade no processo cognitivo, chega, na Crítica da Faculdade de Julgar, a um ponto definitivo de inflexão: a validade universal do juízo estético não depende de algum apoio na lógica e tampouco representa uma generalização empírica que repousa num universo determinado de objetos do conhecimento; pelo contrário, obedece a critérios próprios, que não compartilha com nenhuma outra disciplina. A Estética, assim liberta dos critérios clássicos de uma poética normativa e da submissão à lógica como disciplina superior, pôde então trilhar livremente seu caminho e se reinventar no percurso que a conduziu até os dias de hoje. LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. 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