DOI: 10.4025/4cih.pphuem.324
NARRATIVAS E REFLEXÕES SOBRE A ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA NO
ESTADO DO PARANÁ1
Yonissa Marmitt Wadi
UNIOESTE - CNPq2
Karoline Vitorino Da Silva De Paula
PIBIC / UNIOESTE / CNPq 3
Attiliana de Bona Casagrande
PIBIC / UNIOESTE / CNPq 4
Introduzindo
A trajetória da assistência psiquiátrica no Estado do Paraná foi marcada por mudanças
significativas oriundas de compassos e descompassos do processo mais amplo de
institucionalização da loucura no Brasil. Na atualidade transformações mais profundas,
amparadas no campo legislativo e normativo, são visíveis através da chamada Reforma
Psiquiátrica, que tem como princípios éticos a inclusão, a solidariedade e a cidadania de
pessoas com sofrimento psíquico. Nota-se a constituição de um novo aparato institucional no
cenário da assistência psiquiátrica, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e
Hospitais-Dia. Porém, as instituições especializadas (hospitais ou clínicas psiquiátricas), mais
ou menos modernizadas, mantêm-se ainda ativas a despeito das críticas sofridas ao longo da
trajetória de constituição da referida reforma.
É indubitável a necessidade de compreender os contornos históricos e regionais desta
experiência.
Neste
sentido,
esta
comunicação
apresenta
reflexões
oriundas
do
desenvolvimento do projeto de pesquisa “Assistência psiquiátrica no Estado do Paraná:
mapeamento e análise histórica das instituições, da legislação e das principais políticas
públicas” que, entre outras fontes utiliza-se das fontes orais. Considerando-se tais premissas
enfatiza-se, neste trabalho, através da análise de relatos orais, a compreensão e os significados
atribuídos ao processo de assistência por alguns sujeitos que dele participam, especialmente
aqueles que mantêm vínculos profissionais com as instituições, buscando entender – entre
outras questões – como a subjetividade destes, para além dos ditames dos saberes e dos
poderes constituídos, informa e modela a constituição das próprias experiências rememoradas.
3580
O desenvolvimento do Projeto
O projeto de pesquisa “Assistência psiquiátrica no Estado do Paraná: mapeamento e
análise histórica das instituições, da legislação e das principais políticas públicas” tem se
desenvolvido no sentido de organizar informações dispersas sobre tal processo no referido
estado brasileiro, propiciando a abertura para pesquisas de maior profundidade que
circunscrevam as diferentes experiências da assistência psiquiátrica contemporânea – marcada
pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica –, proporcionando assim a possibilidade de análise
sobre a superação ou não do paradigma manicomial na assistência aos chamados loucos, na
região em destaque.
Tendo como alvo principal a compreensão dos contornos históricos e regionais da
experiência da assistência psiquiátrica no Estado do Paraná, o referido projeto busca, entre
outros objetivos: 1) identificar e localizar geograficamente instituições voltadas ao
atendimento psiquiátrico no estado; 2) levantar e analisar a legislação federal e estadual
relativa à assistência psiquiátrica, bem como as principais políticas públicas desenvolvidas,
especificamente no Paraná; 3) historicizar brevemente o processo de constituição e
transformação das principais instituições voltadas à assistência psiquiátrica desta unidade
federativa, observando os contextos históricos de seu surgimento e as suas condições atuais;
4) identificar as condições de acesso e preservação dos acervos documentais existentes nas
instituições pesquisadas, além dos acervos existentes em outras instituições públicas tais
como arquivos, secretarias de estado, bibliotecas, etc., referentes ao tema em estudo.
No sentido de elucidar a problemática e atingir os objetivos propostos, a equipe do
projeto tem se utilizado de diferentes fontes, localizadas em instituições públicas (arquivos,
bibliotecas, órgãos da administração estadual, etc.) e privadas (os próprios hospitais
psiquiátricos), além de construir suas próprias fontes através, por exemplo, da aplicação de
questionários escritos e da realização de entrevistas orais.
As entrevistas
Não havia a intenção inicialmente, quando se propôs o projeto, de se utilizar como
fontes, entrevistas orais. Porém, bem cedo, ao serem deflagrados os primeiros movimentos de
realização da pesquisa, na leitura de bibliografias de apoio e nos contatos travados com as
instituições, percebeu-se a importância de sua realização e partiu-se para tanto.5
Estabelecemos como limite possível, neste momento da pesquisa6, entrevistar uma ou duas
3581
pessoas indicadas pelos responsáveis pelas instituições – por vezes, proprietários/as ou
administradores/as – e também possíveis sujeitos que, mesmo desvinculados da instituição
atualmente, participaram ou presenciaram fatos relevantes para o cumprimento dos objetivos
propostos.
As entrevistas, neste caso, temáticas, “versam prioritariamente sobre a participação do
entrevistado no tema escolhido”7 e permitem a compreensão do que escapa a outros
documentos, ou seja, algumas reflexões subjetivas que informam e modelam a constituição
das experiências rememoradas. É importante ressaltar que, ainda que os depoimentos
coletados não sejam, de forma alguma, verdades absolutas, são, indubitavelmente,
representações do acontecido segundo a manifestação da memória do entrevistado. Sendo
assim, as entrevistas temáticas também compartilham com aquelas a relação com o método
biográfico, pois “seja concentrando-se sobre um tema, seja debruçando-se sobre um indivíduo
e os cortes temáticos efetuados em sua trajetória, a entrevista terá como eixo a biografia do
entrevistado, sua vivência e sua experiência.”8
Ao estabelecer os limites indicados por Alberti no vínculo com a problemática da
assistência – o envolvimento com ela em um período cronológico ou o desempenho de
funções relacionadas - havia a consciência de que o resultado das mesmas poderia não
contribuir para elucidar as perguntas que tínhamos ou, por outro lado, ser extremamente
relevante. Pode-se dizer hoje, realizadas entrevistas em diversas instituições, que a última
alternativa têm sido preponderante e conseguimos levantar um conjunto de informações
preciosas para seguir no desvelamento da problemática do projeto, para além do objetivo mais
estrito de fornecer informações para a construção de um breve histórico das instituições
investigadas. Resta-nos fazer uma análise profunda dos depoimentos coletados, pois estes
permitem compreender algo que escapa a outros documentos que estamos analisando, ou seja,
os significados atribuídos ao referido processo pelos sujeitos diversos que dele participam, e
quiçá, como a subjetividade destes – para além dos ditames dos saberes e dos poderes
constituídos – informa e modela a constituição das próprias experiências rememoradas.
Neste sentido, a intenção da equipe do projeto é publicar ao final da pesquisa, um
livro-inventário sobre as instituições psiquiátricas paranaenses – especialmente os hospitais
especializados – no sentido de tornar públicas informações que possibilitem a abertura de
novas pesquisas e o aprofundamento de discussões, que serão pela abrangência do projeto ora
desenvolvido, apenas panorâmicas. Deste inventário deverão constar informações como:
“histórico do hospital” (contemplando as informações sobre ano da criação, o processo de
construção, os sujeitos e grupos envolvidos, os trâmites burocráticos, as mudanças suscitas
3582
após a promulgação das leis da reforma psiquiátrica, etc.), “descrição das dependências”,
“condições gerais de acesso aos arquivos documentais” e “descrição do acervo”.9 Além deste
histórico, a partir das entrevistas orais abriram-se possibilidades analíticas múltiplas, que
serão exploradas em futuros artigos e ensaios, buscando ter acesso não apenas aos fatos
rememorados, mas fundamentalmente ao processo de criação de significados subjetivos
relacionados a estes, atentando-se para o fato de que as narrativas são constituídas na
contemporaneidade, a partir de um presente vivido – marcado por profundas mudanças na
estrutura da assistência psiquiátrica e quiçá, na própria compreensão do que deva ser esta –,
presente este atribuidor de significados ao passado, ao presente e ao futuro.
Neste artigo, apresentam-se reflexões sobre o processo de constituição e transformação
de duas instituições psiquiátricas paranaenses, o Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, localizado
na cidade de Loanda e a Clínica HJ, no município de União da Vitória através de depoimentos
coletados a partir de um roteiro pré-definido, porém aberto, que buscava entre outras
questões, conhecer o processo de fundação das instituições, os apoios recebidos para tanto, a
reação da cidade frente a idéia de instalar nesta um hospital psiquiátrico, bem como, a
percepção dos depoentes frente as mudanças contemporâneas no processo de assistência
psiquiátrica e a Reforma Psiquiátrica.
O caso das instituições psiquiátricas de Loanda e União da Vitória/PR.
A importância das entrevistas no cumprimento de nossos objetivos – especialmente no
que tange a construção de um histórico da instituição – pode ser visualizada, na reflexão sobre
o processo de constituição e transformação das duas instituições psiquiátricas referidas, o
Hospital Psiquiátrico Nosso Lar e a Clínica Psiquiátrica HJ.
É preciso atentar que, embora seja notável o cuidado e a racionalização das falas no
depoimento, talvez por alguma dúvida, ainda, a despeito dos esclarecimentos da equipe do
projeto sobre suas intenções, ou pelo fato da própria questão da “loucura” ser um campo em
que os “ares” permanecem suspensos vistos os acontecimentos oriundos, principalmente, do
processo de Reforma Psiquiátrica, a própria percepção do depoente sobre as mudanças
alcança alguns movimentos, internos e externos, de transformação da instituição, incabíveis
nos questionários fechados também aplicados.
Tratando-se especificamente do Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, de Loanda, após
contato prévio com a administradora e por indicação e intermédio da mesma, realizamos a
entrevista com o Sr. Pedro Leiva Andreo, vice-presidente da instituição e um dos fundadores
3583
do próprio Hospital.10 Na entrevista, o Sr. Pedro relatou que a história da fundação do
Hospital Psiquiátrico Nosso Lar nasceu de outra instituição, o Albergue Nosso Lar. Segundo o
entrevistado, ambas as instituições foram criadas pelo Centro Espírita Nosso Lar e com o
mesmo objetivo, efetivar o compromisso que os espíritas possuem em realizar a caridade. De
acordo com o depoente, a construção do Albergue em 1967, em um terreno doado por um
membro da comunidade espírita, não recebeu a demanda que esperava. Então o prefeito da
época, médico renomado no município, sugeriu a um dos fundadores que o albergue fosse
transformado em hospital psiquiátrico, visto a falta de recursos que o município possuía em
tratar, segundo o Sr. Pedro, as pessoas com “problemas mentais”, tendo que levá-las à capital
do Estado. Assim, atender-se-ia de um lado a necessidade e de outro o desejo de se realizar a
caridade.
As lembranças expressas na fala do depoente indicam que a idéia de fundação do
hospital, que surgira de um indivíduo não ligado aos espíritas, encontrou ressonância entre
aqueles na medida em que o objetivo de distribuir caridade – expresso pela fundação do
Albergue – se faria cumprir com a nova instituição. Desta forma, em 1970, após a
apresentação da proposta de mudança em reunião da diretoria responsável pelo Albergue
aprovou-se a transformação do Albergue em Hospital. Porém, continuou a existir, ao lado do
Hospital, uma dependência chamada Albergue Noturno Nosso Lar.
No caso da Clínica Psiquiátrica HJ, em União da Vitória – PR, o sócio-administrador
Sr. Fernando Ferencz se auto-indicou para a entrevista oral11. Por meio da análise da
transcrição desta entrevista, bem como pela aplicação do questionário, pode-se saber que o Sr.
Fernando é sócio-propietário da Clínica em questão. Segundo o depoente, a fundação da
Clínica aconteceu em 1983, a princípio como um consultório na região central da cidade e
após três anos a clínica expandiu o atendimento, iniciando o processo de internação com 20
leitos:“Até que deu-se início em 1986, foi quando a Clínica Médica HJ começou a atender
tratamento mesmo e internar pacientes”, segundo o depoente. Somente em 1992, foi
transferida para o atual local, afastado do centro. A idéia de construção de uma instituição
especializada em psiquiatria, afirma o Sr. Fernando, surgiu de Warrib Motta, médico que
atuava na 6ª Regional de Saúde, em conjunto com os anseios do médico psiquiatra Hans
Jacob, sócio-proprietário fundador e que, no momento da entrevista, permanecia atuante na
direção clínica.12 Segundo Sr. Ferencz, o Dr. Jacob foi o personagem que liderou o processo –
principalmente de ordem financeira – da construção da clínica, enquanto que o Dr. Warrib
esteve à frente na busca de apoio político. Percebe-se então, a existência de uma iniciativa
privada ancorada pelo poder público.
3584
Com relação aos apoios recebidos para a fundação do Hospital Psiquiátrico Nosso Lar,
o Sr. Andreo ressaltou que a prefeitura sempre esteve ligada ao Hospital e que na época
apoiou com material para a construção e funcionários, porém, quem sustentou o Hospital nos
seus anos iniciais foi a própria comunidade e a Fundação Caetano Munhoz da Rocha13, ligada
a Secretaria Estadual de Saúde e do Bem Estar Social. Atualmente, segundo o depoente, o
Hospital recebe verba do SUS, mas é a comunidade que apóia e contribui, através de doações,
para o funcionamento do Hospital.
A comunidade de União da Vitória também apoiou a construção da Clínica HJ,
segundo o Sr. Ferencz, especialmente com doações que compuseram um fundo. Porém,
diferente de Loanda foi a prefeitura que doou o terreno onde foi construído o novo prédio, em
1992: “Aqui a... O terreno foi doação da prefeitura, né?! Por isso veio pra cá. A prefeitura
tinha em poder essa... esses loteamentos aqui e acabou doando pra clínica.” A respeito disso,
em outra entrevista realizada em União da Vitória, com a Sra. Salete Venâncio, a depoente
deixou explícito o aspecto comunitário da construção do prédio:
Ficava a tarde toda lá e... era, era de madeira, era uma casinha comum de madeira
(...). Daí é ... a gente começou, o Dr. tinha um caminhãozinho pequeno na época,
saía, saía eu e mais uma menina que trabalhava lá, uma colega minha e o motorista,
nós saía em todas essas é... olarias de tijolos e começamos a pedir tijolos,
começamos a pedir material e o povo começou dá, dá resposta. (...) 80 % daqueles
dois pavilhões foram doações (...) Quem era pedreiro ia lá ajudar a fazer, quem era
carpinteiro ia lá na carpintaria, assim, sabe? 14
Segundo o Sr. Ferencz, na época de sua ampliação e início do atendimento
psiquiátrico, a clínica atendia a demanda do consórcio das prefeituras dos municípios da
região, a ANSULPAR e apenas em 2002 passou a atender pelo SUS. Foi depois deste
convênio com o SUS, que a clínica passou a atender mais pacientes de União da Vitória, pois
anteriormente, os leitos eram basicamente destinados a pacientes dos municípios do consórcio
supracitado. Para o depoente foi também o convênio com o SUS que possibilitou melhorias,
como o financiamento para a manutenção da estrutura física.
Como vimos, nas duas instituições analisadas, houve apoio da comunidade para a
construção dos hospitais, o que nos leva a refletir sobre a reação da cidade quando do anúncio
de tais construções. Também, ainda que tais construções surgissem de iniciativas privadas (de
um grupo religioso ou de médicos), o poder público municipal corroborou tanto a idéia da
fundação, quanto forneceu recursos para sua efetivação (doação de terreno, funcionários,
etc.). Porém, os depoentes enfatizam aspectos diferentes deste processo: para o Sr. Andreo, de
Loanda, o catalisador da fundação do hospital foi o sentimento religioso de caridade,
3585
enquanto para o Sr. Ferencz, de União da Vitória, a fundação do hospital foi resultado da
necessidade de resolver uma demanda por saúde, ou de combate a doença, ressaltando o
caráter médico-científico da iniciativa.
De acordo com o Sr. Andreo, assim como toda a entidade social, a construção do
Hospital Psiquiátrico foi bem recebida pela população regional, devido à necessidade da
mesma e a grande falta de recursos que havia neste tipo de assistência na época.
Olha a entidade social ela é sempre bem vinda onde ela chega, né?! Porque a
necessidade existe né?! Em toda parte principalmente em saúde mental. E nós tamo
numa região muito grande, né?! Uma região pobre, nossa região não é uma região
muito rica, é uma região muito pobre e o atendimento pelo SUS né?! Sendo gratuito,
sempre foi, sempre, sempre gratuito, isso sempre pega bem. Sempre foi gratuito,
apesar de que havia certa dificuldade.
É importante notar que, segundo o entrevistado, a população agradou-se da construção
do hospital psiquiátrico pelo fato de que haveria um atendimento mais próximo, não sendo
necessário um deslocamento exaustivo até Curitiba.
Em relação à reação da cidade com a fundação da Clínica HJ, o Sr. Ferencz declarou
que “não foi boa não”, justificando-a da seguinte forma: “(...) porque além de todo mundo ter
uma idéia errada do hospital psiquiátrico né?! Generalizar muito essa idéia ruim do hospital
psiquiátrico (...). Então isso ai repercutiu muito mal pro município.”. A Sra. Salete – a outra
depoente de União Vitória – reforçou essa idéia de imagem negativa da clínica especializada
em psiquiatria, especialmente quando essa ainda localizava-se no centro da cidade: “Tanto
que até... teve uma tentativa de suicídio. Porque lá são dois andares, uma mulher tentou
pular, se suicidar. É... então isso repercute também na sociedade né?!”. No entanto, fez uma
ressalva, pois haveria um conjunto de pessoas com outra visão do hospital: “Agora quem
precisava mesmo, que tinha familiar que tava dentro da clínica apoiava, mas como são
poucos dentro de uma sociedade o que predomina é que as pessoas falem mal mesmo.” Nos
relatos também se pode observar que o fato da Clínica Psiquiátrica HJ ser transferida para
uma região periférica, retirada do centro da cidade, demonstra um elemento estigmatizador do
atendimento psiquiátrico.
Perguntamos aos depoentes sobre as principais mudanças ocorridas nas instituições ao
longo do tempo e, especialmente, após a deflagração da Reforma Psiquiátrica, que no Paraná
foi legalmente instituído pela Lei Estadual nº 11.189/95.15 A lei dispôs “sobre as condições
para internações em hospitais psiquiátricos e estabelecimentos similares de cuidados com
transtornos mentais”.16 Em seu artigo primeiro a lei estabeleceu que ninguém com base em
alegação de “transtorno mental” poderia ser limitado em sua condição de cidadão e sujeito de
3586
direitos, sofrendo internações ou quaisquer outras formas de privação de liberdade sem o
devido processo legal.17 A seguir definiu qual o novo modelo de atenção em saúde mental a
ser erigido no estado do Paraná:
O novo modelo de atenção em saúde mental consistirá na gradativa substituição do
sistema hospitalocêntrico de cuidado às pessoas que padecem de sofrimento
psíquico por uma rede integrada de variados serviços assistenciais de atenção
sanitária e social, tais como ambulatórios, emergências psiquiátricas em hospitais
gerais, leitos ou unidades de internação psiquiátrica em hospitais-gerais, hospitaisdia, hospitais-noite, centros de convivência, centros comunitários, centros de atenção
psicossocial, centros residenciais de cuidados intensivos, lares abrigados, pensões
públicas comunitárias, oficinas de atividades construtivas e similares.18
No sentido de promover a implantação do novo modelo de assistência, a lei da reforma
psiquiátrica paranaense condicionou ainda, em seu artigo 3º, a construção ou ampliação de
hospitais psiquiátricos (públicos ou privados) e a contratação e financiamento de novos leitos
nesses hospitais, a uma prévia aprovação pelo Conselho Estadual de Saúde. Aos hospitais
psiquiátricos foi facultada pela lei, na medida da extinção de leitos psiquiátricos, a abertura de
leitos em outras especialidades, no sentido de propiciar sua transformação em hospitais gerais
ou unidades de atenção à saúde mental.
Segundo o Sr. Andreo, de Loanda, desde sua fundação o hospital sofreu mudanças
físicas, foi ampliado e suas dependências melhoradas, mas, para ele, a mudança fundamental
foi com relação a equipe de funcionários:
Fundamental mesmo, a equipe né, que trabalha, porque hoje tem todos os
profissionais que são exigidos por lei no hospital. Tem médico psiquiátrico, tem
médico clínico geral, tem as enfermeiras, tem uma equipe de auxiliar de
enfermagem. Tem toda a equipe que o hospital precisa, de nutricionista até... né,
psicólogo.
Em União da Vitória, a primeira mudança que ocorreu na Clínica HJ, foi a mudança de
local de instalação. Segundos os depoentes, isto foi conseqüência, principalmente, da reação
ruim de habitantes da cidade em relação à abertura de uma instituição psiquiátrica num local
central. Teria sido a tentativa de suicídio de uma paciente, quando a clínica encontrava-se
ainda ‘sob os olhos da cidade’, que segundo o Sr. Ferencz incentivou a mudança: “Foi mais
uma das coisas que ajudou também pra o município doar esse terreno aqui”. Tanto o
depoimento sobre a reação da cidade, quanto sobre a mudança de localidade da clínica,
reforça a idéia de que os hospitais “tinham a mesma função social que os asilos, ou seja, isolar
o paciente da comunidade, resguardando-a do perigo que ele supostamente representa”.19
Outro momento de mudança significativa, segundo o Sr. Ferencz, foi o ano de 1997 quando a
3587
clínica sofreu uma re-estruturação completa, por conta do inicio da fiscalização por parte do
Estado – fiscalização até então inexistente segundo o depoente –, provavelmente suscitada
pela lei da reforma psiquiátrica. Nesse ano inclusive, houve o fechamento da instituição por
seis meses até a sua regularização, principalmente em relação ao tratamento, pois segundo o
Sr. Ferencz, a estrutura física já estaria adequada desde 1992 com a construção do novo
prédio. A fala do depoente indica que as mudanças em relação ao tratamento, ocorreram de
acordo com dois preceitos básicos exigidos pela portaria 224 do Ministério da Saúde, de 29 de
janeiro de 199220, ou seja, a multiprofissionalidade na prestação de serviços – “É que foi
contratada mais gente. Naquela época não tinha terapeuta, não tinha psicóloga (...)” –, além
da observância da diversidade de métodos e técnicas terapêuticas, pois pelo que pode-se
observar o tratamento era só farmacológico: “Então mudou drasticamente. A parte de
remédios também. Foi cortado drasticamente, por causa do tratamento mais intensivo com
profissionais, né?!”.
Quando instigado a falar sobre a constituição de novos aparatos institucionais no
cenário da assistência psiquiátrica, muitos destes suscitados pelo processo de Reforma
Psiquiátrica, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), presente na mesma Regional
de Saúde que o Hospital, o Sr. Andreo deixou claro que “tudo o que for colocado pra bem do
indivíduo é importante”. E ressaltou que, pelo fato de existirem níveis de “problemas
mentais” variados, a lista de espera por uma vaga no hospital ainda é grande, mesmo com a
existência do CAPS. Na entrevista, também fez questão de afirmar a importância do hospital:
Sempre fazemo a coisa com qualidade, dedicação, investimos no hospital e ninguém
trabalha no hospital pra se promover, trabalha no hospital porque gosta, trabalha
com amor, isso é comigo, isso é com meus companheiros, é uma ideologia.
O Sr. Andreo também expressou alegria em dar a entrevista e disse que havia aberto o
coração, pois acha importante ser conhecido o que ele tem e pensa. Eis um trecho de sua fala:
“(...) Eu fiquei contente com vocês de fazerem essa entrevista, né?! Achando isso bom porque
é interessante colocar... O que a gente tem ser conhecido e o que a gente pensa também, né?”
Também questionamos o Sr. Ferencz sobre o conjunto das suscitadas pela Reforma
Psiquiátrica e pela legislação em geral, sobre o que afirmou: “(...) na verdade a gente teve
mudanças, mas não por causa da legislação. Mas sim, por causa de experiência que trás de
fora, né?!”. Além do que, segundo o depoente, como a legislação é antiga, a clínica HJ foi
sendo construída na mesma temporalidade dessas leis:
A Reforma Psiquiátrica e a Legislação já são antigas, né?! Então... desde que
começou a montar a clínica aqui... já, já havia essas reformas, né?! Agora, não deu
3588
muita mudança pra gente aqui, né?! Porque na verdade a... a idéia do Ministério é
acabar com o Hospital Psiquiátrico, né?! Só que o que acontece, eles vão fechar
os... hospitais que estão irregulares, que não tão funcionando perfeitamente. Então
o... ficam só os que tão funcionando bem. É... por isso que a gente virou referência
estadual. Foi fechado com 1250 leitos no Estado na área de psiquiatria, ta?! E...
esses leitos agora tão começando a...a demandar pras outras áreas, ou... os
hospitais psiquiátricos que já, que ficaram aberto ou pro sistema, tem o CAPS, né?!
Pronto-socorro, ambulatório...
.
Com relação às outras formas de assistência psiquiátrica, tais como CAPS e
ambulatórios, o Sr. Ferencz atribuiu um valor positivo, qualificando esses atendimentos como
suplementares ao internamento, sendo este destinado apenas para casos emergenciais.
Entretanto, observou-se uma fala orientada pelo imaginário da Reforma Psiquiátrica, quando
o depoente afirma, “A gente não quer excluir os pacientes da sociedade, mas enquanto eles
tão em crise não têm condições de ficar no meio da sociedade. Então a gente trata aqui,
afastado do centro da cidade, mas trata também tentando fazer uma re-socialização pra
eles.”
Estas breves reflexões que trouxemos sobre as entrevistas obtidas pela equipe do
projeto “Assistência psiquiátrica no Estado do PR”, são apenas um exemplo das inúmeras
possibilidades suscitadas pelos depoimentos orais na compreensão da complexidade do
processo de assistência psiquiátrica. As falas permitiram recuperar a percepção de sujeitos que
viveram toda, ou parte substantiva, do processo de constituição de instituições especializadas
para ‘internamento’ dos tidos como loucos, uma das faces deste processo, e quiçá a mais
significativa dele, pois nela alicerçou-se a assistência durante muito tempo. São também falas
de sujeitos que vivem as transformações contemporâneas desta assistência e, portanto, são
fundamentais para compreender os limites e as possibilidades da Reforma Psiquiátrica no
estado.
Notas
1
Este trabalho é parte do projeto de pesquisa “Assistência Psiquiátrica no Estado do Paraná: mapeamento e
análise histórica das instituições, da legislação e das principais políticas públicas”, sob coordenação da Prof. Dra.
Yonissa M. Wadi, com apoio da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná – SESA e financiamento do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e da Fundação Araucária de Pesquisa – PR
2
Doutora em História; Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq; Professora do CCHS e dos Programas
de Mestrado em História e em Desenvolvimento Regional e Agronegócio – UNIOESTE. E-mail:
[email protected]
3
Graduada em Ciências Sociais (Licenciatura); Aluna do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais UNIOESTE; Bolsista PIBIC / UNIOESTE / CNPq. E-mail: [email protected]
4
Aluna do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais - UNIOESTE; Bolsista PIBIC / UNIOESTE / CNPq. Email: [email protected]
5
A intenção era desenvolver um segundo projeto somente dedicado a coleta de depoimentos de diferentes
sujeitos envolvidos com a assistência psiquiátrica no Estado do Paraná (dirigentes institucionais, usuários,
autoridades públicas, familiares...). A antecipação do intuito pela realização de algumas entrevistas temáticas não
demoveu-nos da idéia inicial e devemos, em breve, iniciar uma nova pesquisa voltada a constituição de um
acervo de história oral relativo ao tema.
3589
6
Este limite decorre das próprias limitações de acesso impostas a equipe pelas administrações hospitalares.
Alberti, 2004, p. 37.
8
Alberti, 2004, p. 38.
9
Iniciativas semelhantes resultaram nos livros de Weber e Serres (orgs.), 2008 e Porto; Sanglard; Fonseca e
Costa (orgs.), 2008.
10
ANDREO, Pedro Leiva. Pedro Leiva Andreo: depoimento. [08/10/ 2008]. Entrevistadores: Karoline V. da S.
de Paula e Jovane G. dos Santos. Loanda, 2008. 1 cd de áudio.
11
FERENCZ, Fernando. Fernando Ferencz: depoimento [25/11/08]. Entrevistadores: Attiliana De Bona
Casagrande e Jovane G. dos Santos. União da Vitória, 2008. 1 cd de áudio.
12
Apesar de demandas não conseguimos entrevistar o médico Hans Jacob na ocasião de nossa visita.
13
A natureza jurídica da Fundação Caetano Munhoz da Rocha, antiga denominação do Instituto de Saúde do
Paraná, era de entidade de direito público.
14
VENÂNCIO, Salete. Salete Venâncio: depoimento [25/11/08]. Entrevistadores: Attiliana De Bona Casagrande
e Jovane G. dos Santos. União da Vitória, 2008. 1 cd de áudio. A Sra Salete Venâncio é coordenadora da ONG
Associação de Apoio a Dependentes de Drogas - ADAD, que encaminha pessoas para internação no hospital.
15
A lei paranaense é anterior a lei nacional de reforma psiquiatria, que apesar de ter seus debates iniciados em
1989, somente foi sancionada em 2001 (Lei Federal nº 10.216/01).
16
BRASIL. Ministério da Saúde. Legislação em saúde mental 1990-2004. 5.ed. ampl. Brasília: Ministério da
Saúde, 2004, p.53. O projeto que resultou na lei é de autoria do então deputado estadual, o médico Florisvaldo
Fier, conhecido por Dr. Rosinha.
17
O parágrafo único do referido artigo estabeleceu os requisitos para a internação voluntária de pessoas maiores
de idade em hospitais psiquiátricos e estabelecimentos similares, para o que seria exigido laudo médico que
fundamentasse o procedimento, bem como informações que assegurassem “ao internado tornar opinião,
manifestar vontade e compreender a natureza de sua decisão”. BRASIL, 2004, p.53.
18
Art. 2º, in BRASIL, 2004, p.53
19
PAULIN; TURATO, 2004, p. 245.
20
BRASIL, 2004, p.56.
7
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