A POSSIBILIDADE DE UMA EDUCAÇÃO NEGATIVA RODRIGUES, Liliana ([email protected]) Universidade da Madeira A formalidade do conhecimento substituiu a sua vertente prática e útil e, assim, neste mundo moderno, desenvolveu-se uma ruptura com os fins últimos da educação. A racionalização dos sistemas tecnocratas incluiu o conceito de meritocracia como o único critério possível numa democracia instrumental e instrumentalizada. E a exigência de desenvolvimento de competências funcionais fizeram com que os educadores adiassem a emancipação dos seus alunos. As disciplinas são, de facto, fusões duvidosas de subgrupos e de tradição. Elas influenciam o rumo da mudança tanto pela contestação como pelo compromisso. Os próprios conflitos entre as disciplinas pelo status definem o currículo e a sua definição relaciona-se com a evolução da comunidade disciplinar. A versão laboratorial foi aceite como a forma científica pura e teve as suas consequências sobre a definição do que é conhecimento passível de ser ensinado. Isto significa que o trabalho académico e o esforço da indagação tornaram-se fins em si mesmos, enquanto que os propósitos utilitários da ciência foram silenciados. É a cisão clara entre um mundo de abstracção e um mundo experiencial. É também o momento em que a educação perde os seus fins pedagógicos. (…) o conhecimento disciplinar da Biologia e das Ciências (…) revelou uma tendência para abandonar as finalidades utilitárias e práticas, a favor de uma forma académica e universitária que reflectia definições hegemónicas do conhecimento, caracterizadas por um status elevado. (GOODSON, I., 2001: 113) O ensino, particularmente o ensino secundário, traduziu a ciência em conhecimento descontextualizado e desencarnado do mundo dos homens. A especialização das diversas disciplinas está subordinada a estruturas do poder na educação onde grupos dominantes continuam a influenciar a escolarização. A organização em disciplinas rigidamente definidas implica, da nossa parte, a compreensão da influência que o poder tem na forma como a sociedade selecciona, classifica, transmite e avalia o próprio conhecimento. Na nossa opinião, o XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana conhecimento curricular não é um “dado” mas, antes, o resultado da luta social decorrente da distribuição desigual da riqueza e do poder. É útil perspectivar os currículos enquanto justificações ideológicas das relações de classe. (Idem, op. cit.: 196) A hierarquia racional funde-se com o social. O capitalismo oferece uma legitimação da dominação que surge da base social do trabalho. As nossas sociedades estão enfermas da barbárie que salda os interesses da sumptuosidade banqueira. A inumanidade a que assistimos é o mal maior da civilização contemporânea. É preciso repeti-lo até que a evidência nos entre olhos adentro: a nossa única riqueza é a vida, uma vida continuamente afinada pelo progresso da sensibilidade e da inteligência humana. Ela é-nos dada sem reservas, sem contrapartidas. Não temos de a sacrificar pelo preço corrente do infortúnio. O nosso combate já não consiste em como sobreviver numa sociedade de predadores, mas em como viver por entre seres vivos. (VANEIGEN, R., 2003: 117) O homem economizado não desvela nem depreende o clientelismo dos tribunos que fizeram da infra-estrutura social a coacção dos tempos modernos. Esta visão apoderou-se, lentamente, de todas as esferas vitais – defesa, sistema escolar, saúde, família, etc. – e impôs formas de vida em que a dominação perdeu o seu carácter explorador e opressor para se tornar racional. As relações de poder que dão origem ao viés criam a violência simbólica através da qual as relações de poder da prática pedagógica não são reconhecidas como tal. (BERNSTEIN, B., 1982: 242) É aqui que o currículo se torna, de facto, um instrumento explícito do poder. A própria inovação, nomeadamente a tecnológica, é também ela uma adaptação às estratégias de reprodução social. À maior compreensão e destreza tecnológica corresponde o poder de controlar a informação e daqui resulta o poder de controlar a vida dos outros. Há um modelo mecanicista, estruturado e burocrático que reflecte a nossa cultura e que inspirou o modo como aprendemos e ensinamos. Esse modelo determinou a organização das escolas e o seu poder está codificado na distribuição do conhecimento. A aparente diluição do currículo clássico que resulta da introdução de inovações serve, apenas, para confirmar que as relações de classe inerentes às diferentes formas curriculares podem assumir uma diversidade de disfarces, mas que a realidade é tão inalterável como as próprias relações de classe (GOODSON, I., 2001: 211). XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana Assim, a divisão social do trabalho e a divisão social do conhecimento organizam-se em função das mesmas tendências de classe social. Há um assentimento e reforço mútuos daquilo a que podemos denominar de destino social. As relações internas integradas no currículo desempenham um papel significativo na definição das suas relações externas. O currículo é, inequivocamente, uma construção social .(Idem, op.cit.: 213). O conhecimento curricular não é neutro. Há interesses sociais incorporados na forma de conhecimento. O currículo secundário académico e tradicional tem marginalizado e subordinado outros currículos existentes. A educação para a mente, portanto, para a racionalização é dirigida a fins e a sua estrutura traz o exercício de controlar. A obscuridade semântica tolerada pelos alunos confere legitimidade à definição social daquilo que merece ser transmitido e por isso mesmo, o professor tradicional pôde abandonar o arminho e a toga, e ele pode mesmo gostar de descer do seu estrado a fim de misturar-se à multidão, mas não pode abdicar da sua protecção última, o uso professoral de uma língua professoral. (BOURDIEU, P. e PASSERON, J. C., 1982:123) O sistema educativo é um projecto histórico-social e, portanto, político que mostra o que a sociedade e os interesses nela dominantes esperam dos homens. Esta asfixia tende a desvanecer-se na consciência das pessoas porque a dominação é legitimada pela ideia de crescente produtividade que proporciona aos indivíduos uma vida mais confortável. A sociedade promete ao indivíduo um sentido para a sua existência, mas isso, de facto, não é cumprido aqui e agora. A insegurança e a injustiça social, bem como a desvalorização do sentido da vida (inclusive pelas escolas) fez com que o indivíduo se voltasse para dentro de si na procura pelo sentido que não revela nenhuma utilidade para o trabalho social. A insatisfação humana assenta não na imperfeição das coisas mas no próprio homem. Por isso mesmo, a acção educativa é determinada essencialmente não por aquilo que o homem tem de social, mas naquilo que ele ainda conserva de pessoal. A vida sensata não é de modo algum uma racionalidade pura (que seria ausência do mal). Se assim fosse, estaríamos impedidos de realizar qualquer bem. Educar para uma vida sensata é reconhecer o valor social do indivíduo e fazê-lo reconhecer a insensatez da sua vida no plano pessoal. Isto é, no plano da sociedade o indivíduo está dividido, sente-se dividido e, assim, é essencialmente insatisfeito. (WEIL, E., 1990:130) XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana À educação cabe o reconhecimento interno da não compreensão da realidade, precisamente pela insatisfação que faz do sujeito objecto de si próprio. Quer dizer, o indivíduo que se volta para dentro de si e descobre a sociedade como um facto problemático. Esta mesma sociedade que o protege da violência exterior e dos próprios homens exige que, no plano social, o homem não seja livre. A prescrição de agir conforme a lei universal opõe-se ao desejo da liberdade razoável. São as determinações do que o homem considera exterior que lhe permitem agir racionalmente e determinar-se razoavelmente: uma liberdade absoluta seria uma liberdade inútil, cujo próprio conceito é concretamente impensável. (Idem, op.cit.: 136) A pergunta pelo sentido do mundo é a questão pelo sentido da liberdade e da razão hic et nunc. E essa resposta quer-se aqui e agora. E talvez seja esta a verdadeira razão do meu destino. Talvez já tenha chegado ao túmulo de onde posso recuperar o mundo perdido, o mundo invisível. Mas nunca o saberei porque já não estou aqui. Umas vezes, parece-me ser este o conteúdo da felicidade tão arduamente pesquisada; outras vezes, creio que já estou no inferno. (AZÚA, F., 1986: 115). Deixar-se ficar pela pura reflexão é abandonar a vida. O homem é absoluto no seu projecto e na sua finitude. A coisificação, o esquecimento e o fechamento do homem enquanto ser humano implica que a educação liberte as consciências pelo e no mundo. Só assim pode o homem ser no mundo e assumir a responsabilidade por si e pelo próprio mundo. (...) porque a sua responsabilidade diz respeito ao seu mundo e ao seu ser no mundo, e não se pode traduzir em cálculo, pois ela é a realidade do sentido total do mundo sobre o mundo pelo qual ele transcende o mundo (...) e, transcendendo-a na finitude, o faz seu [ao sentido] (WEIL, E., 1974 : 386). A exclusividade da nossa existência não significa apenas responsabilidade por si e pelos outros. Ela implica responsabilidade sobre a liberdade do projecto humano e do mundo. Ela é coerência que transgride o que é dado na sua insuficiência, a saber, o sentido é de todos e de cada um. A razoabilidade nem sempre é assumida precisamente porque ela não é um dado descritivo. E é aqui que a mutabilidade e o devir humanos são vistos como construção e configuração. O que é o homem? (Idem, op.cit.: 10). O homem é um ser dual na sua unicidade e a sua tarefa é a de transformação do seu próprio ser. Tal metamorfose transporta a subtracção daquilo que não é razoável, a saber: a pura racionalidade e a pura animalidade. Os homens são razão, o que não significa que compreendam este enunciado. Ao educador cabe responder ao recurso do homem que não se compreende XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana como razão. Mas isto também não significa que a educação seja o Discurso da Sabedoria. Educação e Sabedoria não se confundem. O discurso educativo é mais um discurso que versa sobre a Sabedoria. Não se trata de ser o discurso pelo discurso. Não se resume ao discurso desrazoável. O homem é razoável, (...) é a expressão da mais alta, mais humana aspiração do homem: o homem, quando se declara razoável, não fala de um facto nem pretende falar de um facto, mas exprime o desejo último, o desejo de ser livre, não da necessidade (ele não o será jamais e isso não perturbará mais do que a necessidade incomoda o animal) mas do desejo. É o homem que o homem deve transformar, pela razão e em vista da razão (...) (Idem, op.cit.: 11). Para o homem insensato a educação não é o caminho, precisamente porque não compreende que o caminho se modifica a partir da situação histórica, isto é, do lugar em que o homem está. Esse é o espaço em que nos tornamos fortes, o que quer dizer que somos livres. A vida, não raras vezes, assume-se como o desvio à reflexão e à razão. A miséria e a necessidade tornaram o homem um servo da vida. Não de uma vida qualquer, mas de uma vida sem sentido. A insatisfação da razão não contenta o homem que pela reflexão deseja ser educado, isto é, que anseia pelo sentido. É a própria insatisfação que fundamenta a procura pela educação, pelo momento em que a perplexidade da existência (o mesmo é dizer, de um mundo desinteressado e desinteressante) se torna um instante de pesquisa. E é também aqui que se dá a escolha. A opção pela educação é a escolha livre pela razão que se realiza no mundo da violência que é empírico. Esta é uma razão sensata porque se compreende no mundo, neste mundo. E só ela pode prometer ao homem a felicidade. Mas este processo educativo não tem lugar no homem que vive na e para a violência. O destino do homem não é a violência, embora ela seja sempre possível. Por isso mesmo é que uma educação sensata indica que agir é realizar valores. Os nossos valores. Mas para isso é necessário a saída da pura reflexão. No entanto, apenas por ela, reflexão, é possível encontrar sensatez na realidade. Só assim é possível a acção. Uma acção que se realiza de acordo com a lei concreta que por ser positiva não deverá contradizer os princípios da moral pura. Só assim é possível constituir a coincidência entre a razão e a vontade empírica. O homem educado é o homem livre, isto é, a sua acção é acção intrínseca ao sujeito onde a razão domina a paixão e onde o universal é subordinante ao particular. Daí que a própria educação seja uma escolha livre e justificada, a posteriori, pela razão. XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana Ela, educação, deve orientar para o princípio da vontade razoável: compreensão de que o homem não é pura racionalidade, nem pura subjectividade. Este é o momento em que os fins da educação coincidem com os fins da humanidade. Humanidade que nos é intrínseca e que deseja a liberdade. Almejar a liberdade é ficar-se no plano da intenção. A beatitude existencial da intenção torna-se a espera de uma acção paralisada. Isto é, entre aquilo que nos dita a consciência moral e a acção existe um abismo no que se refere à realização das intenções. É o Reino dos Fins kantiano que não pertence ao aqui e agora. Seres racionais estão pois todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Daqui resulta porém uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objectivas comuns, isto é um reino que, exactamente porque estas leis têm em vista a relação de seres uns com os outros como fins e meios, se pode chamar um reino dos fins (que na verdade é apenas um ideal) (KANT, I., 1992: 76). É a queda no absurdo que contradiz continuamente a própria consciência. Mas há sensatez neste mundo. A vida, esta vida, é contradição, é dualidade e unicidade. Tal como o homem é uno na sua divisão. E apenas a liberdade razoável pode fazer o particular ascender ao universal. O conteúdo da história por não ser definitivo jamais será superado, isto é, as nossas vivências e transformações ocorrem precisamente em nome desse conteúdo. O inserto da vida não está fora da vida. O seu sentido é uma descoberta individual que está aí. (...) tendemos para um destino desconhecido, sem prestar atenção ao que aparece ao longo do caminho; e alcançado esse destino, uma voz trocista diz-nos que o nosso destino era PRESTAR ATENÇÃO E DESCANSAR em cada uma das minúsculas revelações que se tinham ido abrindo à nossa passagem; cada uma delas nos aconselhava, destino, e muito menos um destino feliz. Só assim se luta contra a asfixia e a angústia do tempo e do dono da cortina: prestando atenção ao que se ENCONTRA e não ao que se PROCURA. (AZÚA, F., 1986:114) A educação não pode se colocar fora da vida e do mundo. É seu dever constituir dentro de si o problema do sentido num mundo que é histórico e, portanto, acidental. O próprio educador é determinado por essa contingência. Só o homem da reflexão (e aqui não pretendemos defender o pedantismo pseudo filosófico) pode ser educador porque agora ele compreende um mundo que exige uma acção razoável através de um sentido a ser realizado em circunstância. É sujeito que não se verga à pressão e à XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana opressão. Mas são pelas conjunturas que alcançamos a universalidade do entendimento e da liberdade. A superação da reflexão coincide, não com a negação do dever ser, mas com a acção sensata. Assim, o educador deve medir as consequências dos seus actos já que as suas máximas têm implicações no nosso mundo. A liberdade não é para ser pensada mas vivida. A sua intencionalidade exige que seja real, aqui e agora. A execução do sentido é o fim da existência humana, ou seja, é a própria felicidade. Cabe aos educadores serem homens de reflexão/acção. O homem não espera encontrar um fim na realidade, mas encontrar um fim sobre a realidade (WEIL, E., 1974: 397). O desejo do sentido lança o homem em busca da felicidade prometida que é assegurada em e na liberdade. É dever do educador, pela palavra, intimar à liberdade que deverá ser a expressão de um sistema mais justo e universal. O currículo escolar é uns dos instrumentos mais óbvios que trava e sacrifica a vida. Mas quem ama o conhecimento, a liberdade e a vida jamais permitirá que o silêncio tome conta da sua alma. (...) talvez penseis, Atenienses, que fui condenado por não ter recorrido àqueles discursos que vos podia ter persuadido, se eu achasse que me era lícito fazer e dizer tudo para escapar a uma condenação. Grande engano! Se fui condenado, não foi por falta de discursos, mas de audácia e impudência, foi por não ter usado aquela linguagem que gostaríeis de ouvir, por não ter chorado, gemido, feito e dito aquelas coisas indignas de mim (...). Mas entendi que não devia, por causa do perigo, proceder de maneira indigna de um homem livre e, por isso, não me arrependo da defesa que apresentei. Prefiro morrer depois de semelhante apologia a viver por um preço desses! Nem no tribunal nem na guerra é lícito a alguém (...) recorrer a todos os meios para escapar à morte (PLATÃO, 1972: 102). A insubmissão e a resistência podem, muitas vezes, ser o único modo de dissídio autónomo, isto é, o meio pelo qual não nos conformamos com uma liberdade silenciada no conforto da cobardia. Neste sentido, a educação é o conteúdo e a realização da acção discursiva que age sobre condições que negam a liberdade. Isto significa que a Educação, em si mesma, não produz liberdade. Ela é acção consciente sobre o mecanismo cego do trabalho social (CANIVEZ, P., 1989: 19) cuja pobreza e miséria tornou os homens alienados de si próprios e do mundo. XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana Mas foi esta condição que fez com que no indivíduo nascesse o desejo e a exigência de liberdade. A violência é imanente ao homem precisamente porque ele é um ser empírico e é aqui que a educação se realiza: por meio das paixões. A educação tem por fim libertar o homem da violência, não só daquela que lhe é intrínseca como a violência extrínseca. (...) Assim, a educação é a domesticação do animal no homem (...) (WEIL, E., 1990: 62). E é também o fazer do aprendiz um educador de si próprio. Tudo o que é humano traz a marca da educação. Tudo o que o homem realiza envolve a precedência da educação. A instrução não se confunde com a educação, da mesma maneira que a moral não se equivoca com a ética. Mas isto também não significa que a instrução não possua valia educativa. Para além da utilidade do seu conhecimento e da aprendizagem especializada, a instrução submete o carácter à universalidade e à objectividade. Aliás, uma vez aprendido o método qualquer homem pode instruir-se. Por isso mesmo é que a instrução é o meio pelo qual o progresso atinge os seus fins. O progresso nunca tem fim porque (...) a ideia de um fim do progresso torna-se uma contradição nos seus próprios termos. Tanto os povos atrasados como os avançados terão necessidade (...) sempre de mais e mais instrução pela simples razão de que uns e outros querem sempre mais e mais frutos do progresso (ARENDT, A. et al, 2000: 60). O calculismo e a racionalidade das civilizações (e dos próprios interesses individuais), bem como uma vida melhor (seja isso que o for) fizeram da instrução um canal que engendra liberdade se esta tiver o Outro como limite. Daí que ela esteja sempre ao serviço da Educação. Somos cada vez mais instruídos e cada vez mais infelizes, sem que disso tenhamos consciência. Possuímos cada vez mais e sentimo-nos cada vez menos. Parecemos cada vez mais e somos cada vez menos. Então, o que é que nos pode ainda perturbar? (...) Podemos porventura chamar tédio a isto. (...) Se uma civilização inteira for atingida pelo tédio, esta pode tornar-se uma coisa efectivamente séria (...). Se, obtido tudo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoas ainda estão insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mesmo sentimento de insatisfação, pode desencadear-se o recurso a coisas menos razoáveis. Estamos todos de acordo num ponto, a saber: a violência é o único e verdadeiro passatempo (Idem, op.cit.: 61- 62). Os missionários do desenvolvimento deram-nos o que prometeram. Porquê esta insatisfação? Parece que nada nos preenche. Entediado, o homem não encontra XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana uma vida que o satisfaça. O tédio pode forjar diversas espécies de violência: contra si, contra o outro e/ ou violência desinteressada que se espalha cada vez mais. É à educação que cabe travar a violência e tornar a liberdade razoável, já que não se pode instruir ninguém no uso da liberdade. Se queremos construir a nossa vida temos que ser os próprios arquitectos desse empreendimento. Instrução ou especialização alguma nos pode dizer como será o resultado de um cometimento destes. A elas apenas cabe o estatuto de instrumento mediador. A vida prudente mostra que além da instrução e acima dela está a educação. Uma educação que mostra que cada homem é empreiteiro do seu próprio pensamento e que pensar deve ter um sentido. A educação que propomos, numa linha weiliana, não seria afirmativa, mas negativa pois não apresentaria onde está o sentido mas onde ele nunca pode residir. Uma educação que obrigaria cada um a admitir a sua perplexidade, o seu tédio, o seu desespero – não a confessá-lo publicamente a uma autoridade ou a um especialista, mas a confessar a si mesmo que está à procura de qualquer coisa que não tem e que deseja mais do que tudo no mundo. Não há uma impossibilidade inerente a esta tarefa, nem para o educador, nem para o aluno (Idem, op.cit.: 61- 67). A educação abraça o jugo da virtude do indivíduo. O valor do homem e da educação que lhe foi oferecida espelha-se nas suas acções e nas atitudes do quotidiano. A educação deve propor a moral ao indivíduo e é ela que deve conduzir o indivíduo ao início de uma reflexão moral pessoal sob a autoridade exclusiva da razão. A educação não é certamente o que há de mais elevado; mas não se vê como seria possível, no plano da formação do homem, chegar ao cume sem partir da base (WEIL, E. et al, 1990: 66). O fim da educação é educar o homem violento à razão sensata. A violência é um dado e ela não deve ser objecto da nossa admiração, nem de provocação. A violência deve ser transformada e a universalização do indivíduo é o objectivo dessa transformação. O educador não deve vilipendiar a ideia de que se trata de educar o homem violento à razão e que não há razão salvo para o indivíduo violento. O educador sabe que a justificação da educação descobre-se na reflexão e que é seu compromisso formar homens, que pela decisão livre operam sensatamente no seu lugar no mundo. Eles sabem o que fazem e porque fazem e, pela sua própria liberdade obedecem às imposições do universal na conjuntura concreta e histórica. Mas isto não XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana pode ser atingido sem a instrução. É pela instrução que se pode dar a oblação de ocasiões, a estima e o respeito pela universalidade dos direitos, responsabilidades e valores. Também é pela instrução que nasce a desvaidade intelectiva. Mas apenas pela educação pode à humanidade (...) ser revelado algo que ela quase esqueceu, a saber, que o pensamento é em si uma grande e bela coisa, que o sentimento é nobre quando não é adulterado pelo sentimentalismo e pelo desejo de posse e que, quando ousamos olhálo, o mundo é belo (ARENDT, A. et al, 2000: 67). No mundo real, o educador ocupa o seu lugar, porque esse mundo não é pura impetuosidade nem é pureza inteligível. A violência é inerente ao mundo, mas ela não é pura, quer dizer, o mundo é violência transfigurada, disciplinada, educada e sensata num nível ainda raso e o educador é uma possibilidade, isto é, pode ser porque persiste de facto. E se a educação é um facto histórico, também o educador é pensamento de uma comunidade e se houver conflito ele não deixa de estar inerente à comunidade e ao próprio pensamento da colectividade. Aliás, é porque ele faz parte do grupo que pode estar em pendência com ele. (...) ele é consciência de si de uma consciência que não se conhece como tal, mas existe. (...) só quem supera a reflexão formal colhe a necessidade desta superação (WEIL, E. et al, 1990: 75). O educador tem presente que a sua função é no e deste mundo e aí dar-se-á o terminus dos aparentes opostos: mundo/ razão, empírico/ puro. O mundo e a comunidade serão a negação e a superação do mal. Negação essa que se deve ao educador. No entanto, no mundo há um legado do mal, mas ele, educador, não será o Mal. Nasce a compreensão real do mundo como razoável e a Acção tem como condição conhecer as máscaras de uma que razão se arroga no mundo (ainda que a razão não tenha consciência de si mesma). Neste território que é o mundo, os homens não são puros seres que reflectem as suas acções, mas são eles que actualizam a moral viva e a possibilidade da educação é autêntica e percebida como tal, um mundo que não deve perecer para que a moral e a educação sejam mantidas na sua pureza, mas deve viver pela educação para a moral e pela liberdade na razão (Idem, op.cit.: 76). A positividade da moralidade e da educação está no seu sentido para o mundo e para o homem que busca a sensatez. O mundo não deve ser visto apenas no que ele tem de mal, quer dizer, a sua transmutação é o empenho perceptivo no que ele tem de sensato. XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana A obra weiliana é uma reflexão sobre a violência, sobre o homem que deve ser educado para sujeitar a sua animalidade. A violência é condição necessária para a criação de um situação de não-violência, isto é, o indivíduo deve descobrir a humanidade nele, deve tornar-se homem e elevar-se ao universal. A própria violência é por Weil considerada sensata quando reage à profanação daquilo que no homem é humano. Por isso mesmo, há em nós o dever moral de procurar uma felicidade razoável e, desse modo, certar a violência. É preciso encontrar um sentido para a vida, nesta vida, nesta comunidade, nesta ocasião histórica em que existimos e cuja moral deve ser objecto do nosso julgamento e da nossa compreensão. É preciso que sejamos homens (sujeitos) e deixemos de ser indivíduos (objectos). O homem tornou-se escravo de um sistema que lhe cegou a alma de tal forma que está impossibilitado de identificar um sentido para a existência. O indivíduo que, renunciando a qualquer outro sagrado, consagra-se inteiramente ao trabalho social, obterá, em igualdade de condições, uma porção maior de vantagens sociais, do que se reservar para outros fins (históricos) uma parte de suas forças. (...) dizer que a sociedade define-se pelo conceito de eficácia na luta com a natureza exterior é o mesmo que dizer que o indivíduo tem sucesso na medida em que se qualifica como um bom combatente e assim estabelece o seu direito a uma parte relativamente grande do produto social. (...) A sociedade particular – só em princípio existe a sociedade mundial - conta com o elemento histórico e recalca-o no indivíduo. A rigor ela promete, embora isso não seja evidente, um sentido para a vida humana, mas ela não pretende absolutamente oferecê-lo hic et nunc.(Idem, op.cit.: 122). A sociedade contemporânea fez do homem um ser insatisfeito, precisamente por ser indivíduo empírico, atestado de desejos, sem um sentido que dirija a sua vida, quer dizer, indivíduo vazio, desrazoável. A violência está nas coisas, nas nossas vidas, na quotidianeidade. Ignorarmos a violência é ignorarmos a nós próprios. É preciso olhá-la de frente e combatê-la. Nós somos responsáveis pela subtracção da violência em nós, mas essa responsabilidade é sempre livre, é uma opção, ou antes, a opção pela violência é também uma escolha e ninguém é obrigado a querer ser moral. (...) A escolha é possível num sentido, mas não é possível não escolher. Posso sempre escolher, mas devo saber que se eu não escolher, escolho ainda (...) (SARTRE, J.P., 1981:254). A opção pela educação e pelo dever daquele que é razoável não pode ser uma escolha para amanhã. A verdadeira educação é aquela que age aqui e agora, na moral XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana concreta de uma determinada comunidade, no tempo de um indivíduo histórico. É a morigeração do mundo e do indivíduo hic et nunc. A educação é para ser realizada no mundano mundo dos homens e a escolha pela razão sensata alcança, por parte do sujeito da reflexão o todo do qual faz parte e ocupa um lugar. Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens (...) (Idem, op.cit.: 219). Todo o projecto, por mais individual que seja, tem um valor universal (...). Há universalidade de todo o projecto no sentido de que todo o projecto é compreensível para todo o homem. (...) Podemos dizer que há uma universalidade do homem (...) (Idem, op.cit.: 252). A educação é uma via que conduz à razão, isto é, daquele que decidiu pela razão. Ninguém é obrigado a escolher e a deixar-se conduzir pela razão, tal como ninguém tem forçosamente de optar pela violência. A educação não só é o exercício da liberdade, como é aquela que forma o indivíduo quanto ao uso sensato dessa mesma liberdade. Educar é dissertar com o homem. É a discussão que liberta o homem da sua particularidade, que o conduz a si mesmo, à virtude e ao Bem; ele não pode ser ele próprio sem ser virtuoso (WEIL, E., 1974: 135). Ao reconhecer a virtude o homem reage e persegue a vida recta porque esta e o saber (o reconhecer) são semelhantes entre si. A educação é constituída como uma dificuldade da moral. É a educação de um ser moral/ imoral, que é moral porquanto é imoral. Diante da moral e por conseguinte, diante da educação, estas encontram um ser que é são porque pode ser pérfido, isto é, um ser que não é naturalmente bom, nem mau, ele é amoral (não é nem moral, nem imoral). É uma responsabilidade do homem a educação daquele e de todos os que obedeçam à lei universal. O educador sabe que o Bem está enraizado no Mal e que este apenas pode ser transformado, o que é o mesmo que dizer que não é possível a total erradicação do Mal no mundo. A violência que a educação pretende combater não é a violência da natureza exterior, nem aquela violência que sofremos dos nossos semelhantes, mas a violência que o homem, enquanto ser razoável, comporta em si mesmo enquanto ser empírico. A libertação do sofrimento do homem sobre si mesmo é a transformação das suas paixões por condição delas próprias. Quando se trata de educar para a virtude, a educação deve propor uma moral ao indivíduo, uma acção razoável, uma atitude correcta, um sentido moral concreto e histórico. A educação que visa a virtude é a mais nobre e a mais elevada, porque XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana pretende formar homens com poder de decisão e de acção razoável no seu lugar no mundo. O discurso educativo é também um modo de agir, já que por ele se educa. O discurso não só influi nos outros como forma o seu próprio obreiro. A contínua modificação da realidade histórica deve-se ao contraste das individualidades empíricas que concorrem para uma mais franca concomitância e auxílio entre os homens. A educação supervisiona estas alterações porque elas dizem respeito a todos e a cada um. Por isso, consagrar-se à educação é participar no universal real e efectivo da sociedade. A educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir a responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens. A educação é também o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo entregues a si próprias, para não lhes retirar a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto, para, ao invés, antecipadamente as preparar para a tarefa de renovação de um mundo comum. (ARENDT, A. et al, 2000: 52-53). Por estar inserido numa moral viva, o educador deverá esperar pelo assentimento dos outros para realizar o Discurso e a Acção. Mas, não há garantia que o mundo seja decoroso a esse seu esforço. Pode ser eximido por ser tanto improfícuo e inútil, como perigoso. A educação para a liberdade implica a confiança daqueles que de algum modo já optaram pela razão, ainda que esta esteja edificada nos seus espíritos de forma frágil e confusa. Assim, há uma pré-educação que se expõe na vontade razoável da razão. O mundo já entreviu a razão, a liberdade e a educação. Pela educação o homem prepara-se para dar conteúdo à liberdade. Ser livre é ser feliz, mas é também responsabilidade. Aqueles que se arredam às responsabilidades da liberdade não poderão jamais ser felizes nem continuar livres. A educação que visa a virtude tem como correlato a felicidade do indivíduo razoável, finito e condicionado. A felicidade é, portanto, um dever. A felicidade é um dever, ela não é nem dado, nem é um dado (...) O homem nascerá sempre violento e ele não pensará a ideia de felicidade sem o auxílio da filosofia; ele não a pensará sobretudo se a satisfação completa o deixa insatisfeito e o torna absurdo aos seus próprios olhos (WEIL, E., 1974 : 204). A razoabilidade implica colocar-se entre este mundo e os fins a que nos propomos. Daí que a educação seja sempre uma opção livre e pela razão. O consenso e a coerência universais entre os seres razoáveis são precisamente a moralização dos indivíduos. No entanto, o problema (...) é o de desenvolver um discurso que seja XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana coerente sem ser fechado e que prometa tornar a realidade coerente, definida pela condição no que diz respeito à situação, pela revolta no que toca ao indivíduo (Idem, op.cit.: 396). O mundo não exige, nem pede homens que discorrem, mas homens que actuam. Não se pretende depreciar a reflexão filosófica, mas sim atribuir à Filosofia o lugar que lhe é devido. Esse lugar não é de ser chefe de governo, ou Rei-Filósofo de Platão (PLATÃO, 1990: 273), mas o de ser educador pela discussão e pelo diálogo. O homem é essencialmente um ser insatisfeito. Essa insatisfação é fruto de uma estrutura de trabalho que circunscreveu os indivíduos livres a coisas. O que se propõe é uma busca e um lugar onde a felicidade e a liberdade não sejam meras ideias regulativas, mas que sejam liberdade e felicidade autênticas neste mundo. O homem é no mundo, ele é finito, o que não o impede de agir, de ininterruptamente se eleger e se reanimar. O homem age porque não é feliz e pelos seus actos procura dar sentido à vida, a esta vida. A felicidade é o fim a atingir pela vida moral e activa, aqui e agora. Ela está aí e não basta desejá-la, é preciso procurá-la, ver isso que temos diante dos olhos. A felicidade não está fora do mundo, mas os olhos são cegos. Deve-se é procurar com o coração (SAINT-EXUPÉRY, A., 1987: 82). Há muitas feições para a felicidade. E na ausência de sentido perde-se a vida. A vida não cabe num raciocínio fortificado pela exactidão teorética ou verificação empírica. A própria racionalidade implica afectividade. E da mesma maneira que a emoção pode obscurecer a consciência também a pode animar. Os homens são subjugados de múltiplas formas: sociedade, cultura, deuses, ideias e paixões. Arrastados pelas nossas criações a emancipação transfigurou-se em angústia que oprime. A educação deve dialogar crítica e racionalmente com as ideias, sem eliminar a paixão e o mito que pelo imaginário criam e dão sentido. O que se pretende é que a liberdade desobrigue o homem e que ele por ela não se consuma. (...) É que a felicidade, ao contrário do prazer imediato, supõe uma gestão racional de recursos e percursos (...). (...) quando se fala de gestão racional (...) já não se está a pensar na razão fria, porque a razão mais razoável – sabemo-lo hoje – é a razão emocional. Dosear a razão e a emoção na proporção certa não é, porém, tarefa fácil (...). (...) quem encara a felicidade como um dever dificilmente escapa a uma contradição: porque sofre enquanto luta pelo bem-estar (...) e sofre ainda mais sempre que não consegue atingir o seu objectivo. (RIBEIRO, A., 2003: 7). XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana Mas efectivamente desejamos e perseguimos a felicidade. E ela depende da nossa potencialidade de catálise, descoberta e decisão. Pela escolha (e toda a escolha comporta o aleatório) decidimos livremente ainda que ela comporte o risco e a incerteza. Neste sentido a liberdade em simultâneo impede e permite que sejamos livres. Somos manipulados, dirigidos e impelidos e livres. O homem está condenado a esta dupla vivência porque enquanto incompleto e inacabado vive da esperança e do desespero. Nada há que transcenda e demarque a liberdade humana, a não ser o acordo sobre esses limites. A razão não é um seguro que nos permite um sono tranquilo, mas é o que nos mantém (ou deveria manter) em estado de vigília. A evolução da Educação só pode ser alcançada quando a liberdade se tornar a essência do ensino: educar para a acção razoável e universal do género humano (educação política) e sobre si mesmo (educação moral). O discurso da supervisão pedagógica afiança a revolução quando a alienação humana é substituída pela consciência da situação inumana de violência. Neste sentido, ele (discurso da supervisão pedagógica) é o apossar-se da teoria sobre a realidade. A acção da educação é negativa porque ela é a negação do que os indivíduos vivem como retractação deles mesmos e do que são para eles mesmos, isto é, seres essencialmente insaciados. Mas o mundo deverá ser um espaço de liberdade concreta onde cada um possa fruir da sua existência. A finalidade da educação é conduzir o indivíduo a pensar, e especialmente, a compreender as imposições a ele feitas e, se for o caso, porque é que tal importuno, que de facto se exige dele, não é exigível. Precisamente por isto, na educação observa-se o dever de insubordinação inactiva quando o que se exige dela é intolerável. A acção educativa deve tornar inaplicável uma doutrina estupra, discricionária e totalitária. E de muitas formas se veste o despotismo. A própria sociedade não é o lugar da razão aberta e da autoconsciência do espírito. A escravatura contemporânea assenta na impossibilidade de reconhecer um sentido para a própria existência. É a escolha da violência onde o mundo desumanizado se mancha pela incoerência. A razão não pode presumir a sua própria satisfação porque ela não se realizou (agiu) sobre e para os homens. A educação, no aqui e no agora, é o único meio que pode conduzir, aquele que por ela optou, à razão sensata. Neste sentido, a educação para a liberdade é já o exercício da liberdade. Este exercício procura a felicidade já que nenhum ser livre, pressupomos nós, deseja a infelicidade. O pensamento só tem XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana sentido se servir para formar o espírito. Mas descobrir a razão não significa que se encontrou tudo o que a razão vai encontrar. A razão só tem expressão no diálogo e na discussão. O discurso educativo não é o destino da liberdade e a recusa da razão é outra possibilidade no interior da liberdade. O receio da liberdade é o medo do risco, da incerteza e da responsabilidade. Existirão sempre os dissidentes autónomos que ousam insubmissão e resistências. Mas também sabemos que o refúgio da liberdade pessoal, regra geral, implica a exclusão da liberdade social. A liberdade puramente egocêntrica, que ignora as regras e as imposições sociais, bem como os imperativos morais, torna-se criminosa. As liberdades que transgridem a lei acabam na prisão. (...) A liberdade acarreta com ela transgressão. A liberdade sem freio encaminha-se para o crime, a liberdade em rebelião arrisca a morte. (...) (...) Determinados indivíduos revelam então as suas capacidades de imaginar e conceber e, transgredindo as normas, manifestam-se como inventores, teóricos, pensadores, criadores. Esta liberdade ainda é rara... (MORIN, E., 2003: 268) Educar-se é tornar-se homem. E se a liberdade, valor e nobreza humanas são bens sacrossantos, a aversão e o protesto são igualmente dignos de acato. A dissidência e a contraposição são formas de violência. Mas esta é uma violência sensata que se insurge contra a violação da humanidade no homem. E é aqui que é preciso perguntar se estamos em circunstância de querermos vir a ser pessoas, prescindindo de ser entidades individuais. É pela educação que aprendemos a nossa humanidade. A tarefa daquele que educa e que se educa é precisamente inverter esta situação paradoxal já que tudo o que sabemos detém um carácter insular. A insuficiência do ponto de vista natural poderá ter como ponto de partida a ideia de incerteza. A incerteza não é uma ruptura que implique a ideia de renunciar a si mesmo. O que se pretende é o rompimento com aquilo que anula a descoberta. O educador tem o dever de fazer sentir no outro essa falta para poder orientar e auxiliar no preenchimento desse vazio que parte de dentro do ser, daquele que sente essa falta como necessariamente sua. Mas isto implica que haja responsabilização por parte do educador. Por mais forte que seja a sua tendência para se orientar para a luz, aquilo que é vivo necessita de segurança da obscuridade para alcançar a maturidade (ARENDT, H. et al, 2000: 39). Educar é o exercício da liberdade que forma o homem para o uso sensato dessa mesma liberdade. E quem não está em condições de assumir a sua liberdade tem XV Colóquio AFIRSE – Complexidade: um novo paradigma para investigar e intervir em educação? A Possibilidade de uma Educação Negativa RODRIGUES, Liliana necessidade de um mestre (Idem, op.cit.: 69). O grande objectivo da educação é (deveria ser?) fazer do homem um educador de si próprio e de todos os que necessitem de educação. Encontrar a humanidade pela educação significa o encontro com a liberdade. Com a totalidade complexa que é o homem. Com a possibilidade de um mundo construído de forma consciente e sensata. É já altura de não mais dilacerar o ser humano entre uma razão crua e uma experiência destituída de si mesma. Referências bibliográficas ALTHUSSER, L. (1974). Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Ed. Presença. APPLE, M. (1999). Ideologia e Currículo. Porto: Porto Ed. APPLE, M. (1999). Poder, Significado e Identidade. Porto: Porto Editora. APPLE, M. (1999). Políticas Culturais e Educação. 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