A Carta de Direitos e o Direito Civil1(*) From Montreal, Canadá, em 11/9/2010 Com a pontualidade de todas as demais atividades do evento, o Prof. Emeritus Adrian Popovici, da Universidade de Montreal, iniciou sua palestra, às 9h30 minutos. Deu o pontapé inicial, também, para a etapa 2 do I Congresso Internacional da AMB na cidade de Montreal, no Canadá. As muitas surpresas trazidas da etapa de Toronto, pelos cerca de duzentos participantes do evento, se aprofundaram ainda mais. As diferenças sistêmicas e de enfoque, do Direito Consuetudinário e do Direito Estatutário, vão muito além da existência ou não de códigos. Códigos que, aliás, são hoje uma realidade dentro dos dois sistemas. O palestrante Popovici abriu a sua fala em português, com uma rápida observação: “Examinando o programa do Congresso, convenci-me de que os senhores voltarão especialistas em Direito do Canadá mas não terão tempo para se divertir”. Em seguida, em Inglês, dedicou-se ao tema de sua palestra. A Carta de Direitos do Canadá, informou, é tardia. Data de 1982. Até então a garantia dos direitos fundamentais se fazia com base no Direito Consuetudinário, havendo uma Declaração de Direitos das Pessoas (Direito Privado, sem força constitucional), de meados da década de 70, texto este que pode ser alterado segundo os moldes aplicáveis à alteração da lei ordinária. Como a Carta de Direitos, que é constitucional, surgiu após a Declaração de Direitos das Pessoas, é natural que houvesse, na sequência, o confronto dos dois textos e, principalmente, o questionamento das garantias, para verificar a congruência das disposições da anterior Declaração de Direitos das Pessoas com as novas disposições da Declaração de Direitos. Esse exame do impacto da Declaração de Direitos sobre as relações privadas das pessoas era exatamente o tópico a ser abordado pelo palestrante. A Declaração de Direitos rege a relação entre o cidadão e o Estado e suas emanações. Um texto de lei pode ser declarado inconstitucional, se contrário à Declaração. Mas essa declaração de inconstitucionalidade tem efeitos indiretos, conforme afirmou o professor expositor, sobre os indivíduos e sobre a interpretação dos direitos civis. Pela forma de organização do Direito canadense, esse reflexo se faz dentro das balizas territoriais provinciais. A Declaração de Direitos do Canadá inicia afirmando a dignidade e a igualdade dos seres humanos. E, em seus primeiros artigos, dedica-se a explicitar os direitos e liberdades da pessoa. Para fins de comparação, o palestrante lembrou o artigo 5º da Constituição brasileira e o capítulo II do Código Civil do Brasil, que cuida dos direitos da personalidade. Para zelar pela efetividade dos direitos e liberdades afirmados na Declaração de Direitos, há uma Comissão especializada, com legitimidade para reportar-se às Cortes de Justiça. Ela zela pelo duplo efeito da Declaração: o vertical (Estado/indivíduo) e o horizontal (indivíduo/indivíduo). Horizontalmente, a Declaração, no seu artigo 49, (*) Este texto relata, de forma resumida, a palestra de mesmo título ministrada pelo Professor Emeritus Adrian Popovici, em 11/9/2010, no I Congresso Internacional da AMB, em Montreal, no Canadá. confere à vítima de uma violação o direito de obter a interrupção da ação ilícita, a reparação correspondente e, se a ação ilícita é intencional, pode haver também a imposição de uma indenização punitiva (punitive damages). O expositor ocupou-se do impacto da Declaração de Direitos sobre as relações privadas (efeito horizontal). Segundo afirmou, o artigo 49 fortaleceu os princípios da responsabilidade civil, bem mais antigos e oriundos da Common Law2. Assim, concretamente, continuou o palestrante, se há uma violação das garantias da pessoa, quem sofreu a lesão pode ir à Comissão para que esta atue visando à cessação da violação, se persistente, e à reparação. Mas pode ir, também, diretamente às Cortes, às suas expensas. Tratando-se de conflito entre dois direitos, caberá ao juiz fazer a ponderação, devendo-se levar em conta que não há hierarquia entre os direitos e liberdades. Lembrou o expositor, ainda, que a indenização punitiva, também chamada de indenização exemplar, é uma instituição da Common Law, de rito civil. Ela tem como escopo refrear o indivíduo contra a reincidência. Tem efeito preventivo, portanto, mediante a imposição de um tipo de multa privada que reverte para a vítima. Para fixar o quantum desta indenização, as Cortes levam em conta a gravidade da culpa e a fortuna do agressor. Terminada a exposição teórica, o palestrante trouxe aos presentes quatro casos submetidos à Suprema Corte do Canadá e que ilustram o impacto da Declaração de Direitos sobre as relações de direito privado: 1º caso: uma senhora assinou um contrato de emprego com uma municipalidade, com cláusula para morar no local durante a vigência do contrato. Ela mudou-se e veio a questão: seria a cláusula válida ou não? Embora as respostas possam ser muito variadas (ela pode ter aceitado a cláusula porque o salário era melhor sob tal condição, por exemplo), a Corte entendeu que a cláusula agredia a liberdade de ir e vir, conforme alegava a autora, e decretou a invalidação. 2º caso: uma jovem senhora viu-se exposta, numa revista cultural, publicada em Montreal, numa foto tomada quando ela estava sentada nas escadas de uma casa numa rua de muita circulação. Segundo o expositor, alguns juízes dizem que se trata de uma bela foto e de uma bela mulher. A jovem processou a revista, alegando atentado à sua imagem e à sua vida privada, sem fazer prova de dano, mas apenas alegando que pessoas riram dela. A Corte Suprema, confirmando o pensamento dos tribunais inferiores, decidiu que havia prejuízo à vida privada (não à imagem, que é considerada um aspecto da vida privada) e impôs indenização de 2000 dólares pela divulgação da foto sem consentimento. Popovici concluiu a descrição dizendo que acredita que o Canadá é o único país em que se deferiu indenização sem o reconhecimento da ocorrência de dano, mas apenas pela divulgação da foto. 2 Autores nacionais e estrangeiros dividem-se a respeito do uso do feminino ou do masculino na referência ao Direito Comum. Optamos pelo feminino. Para mais detalhes, ver PEREIRA, S. Tavares. Devido processo substantivo (Substantive due process). Florianópolis:Conceito Editorial, 2007. p. 30. 3º caso: Um senhor judeu assinou um contrato de aquisição de um imóvel num condomínio de luxo. Nesse contrato, havia uma cláusula pela qual o adquirente não poderia construir nada no terraço sem autorização prévia do condomínio. Passados alguns anos, o comprador construiu no terraço uma sukkah – uma cabana que simboliza os eventos do povo judeu. Interpelado, o adquirente alegou que a cláusula de proibição contrariava seu direito fundamental de liberdade religiosa. Numa decisão apertada, de 5 a 4, a Suprema Corte decidiu que a cláusula atentava contra a liberdade religiosa do comprador, devendo ser considerada inválida, e manteve a construção. 4º caso: trata-se de outra questão de liberdade religiosa. Uma senhora judia, apesar da convenção feita com seu marido, não pôde obter dele o consentimento para o divórcio, sem o qual ficou impedida, após a separação e conforme os ditames de sua religião, de casar-se novamente. O marido havia assumido o compromisso de conceder-lhe tal consentimento. Mas só após 15 anos o cumpriu. Ela, em decorrência, entrou com pedido de perdas e danos, levando os tribunais a manifestarem-se sobre o caso. As cortes consideraram o contrato existente, válido e descumprido, apesar das alegações do marido de afronta à liberdade religiosa. Muitos entendem que esta decisão contrariou a decisão do caso anterior, informou o expositor. Relatados os casos e suas soluções, o Professor Popovici realçou que tais casos desafiam o Direito Civil, não sendo conflitos entre cidadãos e autoridades, dos quais habitualmente tratam as Declarações de Direito. Mas que exigem a interpretação, a análise e a decisão à luz e em consonância com a Declaração de Direitos. De Montreal, Canadá - Sebastião Tavares Pereira, juiz do trabalho aposentado do TRT12, Diretor de EAD da Amatra12 e autor do livro Devido processo substantivosubstantive due process.