Oriente Médio Uma primavera cheia de enigmas por Gianni Valente régoire III Laham, patriarca de Antioquia dos Greco-melquitas, tem a sua residência habitual no coração da antiga Damasco, a poucos metros do lugar onde São Paulo foi batizado por Ananias. O seu ponto de observação é único para decifrar com olhos de bispo o que está acontecendo na Síria. G 36 30DIAS Nº 9 - 2011 Por sua própria índole, Sua Beatitude não é do tipo de ficar tranquilo e calado diante das convulsões que abalam as vidas de seus irmãos do Oriente Médio, começando pelos cristãos. Já em março passado convocara na sede do Patriarcado quinze embaixadores de nações ocidentais e Acima, uma manifestação contra o presidente sírio Bashar Assad em Talbiseh, na província de Homs, na Síria, em 27 de maio de 2011; à direita, uma manifestação a favor do presidente sírio no centro de Damasco em 23 de agosto de 2011 O patriarca de Antioquia dos Greco-melquitas Grégoire III Laham por ocasião do 25º Encontro Internacional de Oração pela Paz organizado em Munique pela Comunidade Santo Egídio em setembro de 2011 O alarme pelo destino dos cristãos. Os conflitos entre grupos de poder que correm o risco de degenerar em guerra civil. As oportunidades perdidas dos líderes árabes e as intervenções interessadas das potências ocidentais. Entrevista com Grégoire III Laham, patriarca de Antioquia dos Greco-melquitas, sobre todas as incógnitas que afligem o Oriente Médio árabes residentes em Damasco: uma consulta aberta para para discernir juntos a contribuição mais previdente que a comunidade internacional poderia ter fornecido para a superação do conflito sírio, e evitar que degenerasse em guerra civil. Depois, em abril, Grégoire reuniu notas e sugestões que nasceram daquele encontro em uma carta-documento, que logo foi enviada a todos os chefes de Estado da região. 30Dias encontrou o Patriarca dos Greco-melquitas em Munique, onde Grégoire III participava do 25º Encontro Internacional de Oração pela Paz organizado na capital da Bavária pela Comunidade de Santo Egídio. Entre os chefes das Igrejas cristãs do Oriente Médio parece crescer o alarme pelas possíveis consequências da chamada primavera árabe. GRÉGOIRE III LAHAM: Por favor, evitemos confundir os problemas ligados às revoluções destes últimos meses com os ligados às relações entre cristãos e muçulmanos. O problema aberto com as revoluções é um cenário novo para o Oriente Médio, e é, antes de tudo, uma questão de poder. Em contextos como o da Síria, as implicações religiosas tocam principalmente as relações entre os muçulmanos. Os cristãos, em princípio, não são um alvo. Mas se continuar uma situação de caos, de instabilidade e de conflito pelo poder, as coisas para os cristãos irão piorar. No Oriente Médio sempre aconteceu assim. Nas situações de caos e nas revoluções sangrentas os cristãos são os primeiros a pagar, sempre e em todos os lugares. A “experiência” iraquiana custou muito ao pequeno rebanho de cristãos daquele país. O que o senhor conseguiu entender da situação síria? A única coisa evidente é que ao contrário de outros lugares as revoltas não surgiram da insatisfação econômico-social. Na Síria, desde os últimos anos de poder de Assad pai já tinha iniciado um certo progresso na agricultura, na indústria, na construção de estradas. Havia um sistema educati- ¬ 30DIAS Nº 9 - 2011 37 Oriente Médio Nas revoltas, na Síria, sem dúvida, há uma vontade geral de maior liberdade política. Mas há também a contraposição dos grupos em luta para ter em mãos o controle da situação. E nisso o dinheiro também tem a sua parte. Conto-lhe um episódio. Havia uma senhora que fazia faxina na casa de uma senhora idosa que eu conhecia. A um certo ponto, não apareceu mais. Então a senhora idosa telefonou-lhe: querida, por que você não veio mais aqui trabalhar? E a outra respondeu-lhe: senhora, eu saio todos os dias para protestar por meia hora, e em três dias ganho mais do que a senhora me paga em um mês... vo e de saúde que garantia a todos pelo menos a alfabetização e a assistência médica. Não se pode dizer realisticamente que a revolução é feita pelos pobres. Mas então, o que aconteceu? Na minha opinião uma raiz de protesto foi a política, com algumas implicações religiosas. No partido Ba’ath que guia o país, as posições de poder estão todas em mãos da minoria islâmica alawita. Os sunitas, que também ocupam oitenta por cento dos cargos na burocracia estatal, não controlam os cargos de chefia. Na mídia ocidental tudo é narrado em “preto e branco”, como uma batalha pela liberdade contra um regime ditatorial. Sem dúvida, há uma vontade geral de maior liberdade política. Mas há também a contraposição dos grupos em luta para ter em mãos o controle da situação. E nisso o dinheiro também tem a sua parte. O que o senhor quer dizer? Quem usa o dinheiro? Conto-lhe um episódio. Havia uma senhora que fazia faxina na casa de uma senhora idosa que eu conhecia. A um certo ponto, não apareceu mais. Então a senhora 38 30DIAS Nº 9 - 2011 Manifestantes antigovernamentais na praça Tahrir, no Cairo, onde em fevereiro deste ano começou a revolta contra o presidente Hosni Mubarak idosa telefonou-lhe: querida, por que você não veio mais aqui trabalhar? E a outra respondeu-lhe: senhora, eu saio todos os dias para protestar por meia hora, e em três dias ganho mais do que a senhora me paga em um mês... Também em Derhaia, uma pessoa que conheço falou-me de jo- vens que saíam para protestar por meia hora, com máquinas fotográficas e filmadoras, para depois voltar cada um em sua própria casa. Enfim, acontece algo estranho, enigmático. E o senhor, Beatitude, também pensa que exista um complô? ENTREVISTA COM GRÉGOIRE III. Uma primavera cheia de enigmas Papa Shenouda III, patriarca copta de Alexandria, com o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan, no Cairo, em 14 de setembro de 2011 Não se trata de criar suposições de complôs. Mas certamente há manipulações e aspectos que permanecem enigmáticos. Todas as revoluções do mundo árabe contêm estes elementos. Por quarenta anos os regimes de Mubarak e de outros foram aliados, reconhecidos pelo Ocidente democrático, de repente, do dia para a noite, como por magia, tornaram-se ditadores... Há algo artificial em tudo isso. Eu sempre desejei um processo de amadurecimento democrático que envolvesse todas as instituições, as universidades e os centros culturais, as novas organizações profissionais, os homens de religião. Apenas um semelhante amadurecimento, que compreenda os dados culturais e difunda a consciência dos direitos de cada um, pode realmente levar ao pleno desenvolvimento das estruturas democráticas. Ao invés disso, na mudança repentina que vemos diante de nós, permanece no fundo alguma coisa indecifrável. Os países árabes não estão preparados para uma instauração fulmínea dos modelos europeus de democracia. E certos aspectos fazem temer que com as revoltas se possa voltar atrás. Contudo os governantes sírios, nos últimos anos, apresentavam-se diante do mundo com um perfil inovador e reformista, mostrando-se intencionados a acompanhar e favorecer os processos de melhorias econômica e social que estavam acontecendo no país. Então por que a única palavra como resposta aos protestos foi a repressão? Quando iniciaram as revoltas na Tunísia e no Egito, devia-se partir para um caminho mais decidido de abertura. E isso não aconteceu. Prevaleceu a lógica e os mecanismos dos sistemas de segurança. Agora as coisas degeneraram e não se recuperam de um momento a outro. Tanto de um lado como de outro, agora, há os que pensam apenas em prevalecer, em ter tudo em mãos, e não procura soluções de diálogo e compromisso. Ninguém quer ouvir as razões dos outros. Não há outra saída senão a ajuda externa. Dentro tudo parece se encaminhar marcado pela fórmula mors tua, vita mea. O senhor espera uma intervenção internacional, talvez militar? A Síria como a Líbia? Não acredito que isso seja feito. A própria Europa não parece ter uma posição unívoca sobre a situação síria. Certamente não se espera uma intervenção militar. Também a arma das sanções, invocada e apoiada por muitos países ocidentais, não me parece oportuna, se se pensa que nenhuma sanção jamais foi feita contra a política de Israel. Seria preciso de um outro tipo de interferência. Uma ingerência externa de caráter diplomático, que acompanhe governo e oposição no caminho das negociações mesmo através de meios de comunicações reservadas. E ajude a retomar aqueles processos de mudança que já estavam iniciados. Quem deveria trabalhar para que isso aconteça? Um importante papel poderia ter a Turquia. Mas o também chamado Quarteto [EUA, UE, Rússia e ONU, ndr] que acompanha as negociações de paz entre Israel e Autoridade palestina. Não se pode separar os acontecimentos na Síria e em todo o mundo árabe das perspectivas de uma paz possível e duradoura entre israelenses e palestinos. O senhor cita a Turquia. Muitos observadores veem na experiência política de Erdogan um modelo de conciliação entre islã e democracia que poderia ser aplicado também nos países árabes. Parece-me difícil que os árabes possam seguir exemplos propostos pelos que no tempo do império otomano tentaram suprimir a língua, a literatura e a civilização árabe. Resta o fato de que até agora não houve nenhuma posição árabe verdadeiramente digna e nobre, que estivesse à altura do que está acontecendo. Não entendo como é que os países árabes ainda não convocaram um summit para tratar destes problemas e encontrar juntos soluções compartilhadas, para não comprometer o futuro. Se nós árabes, e não os outros, não nos colocarmos juntos para enfrentar a nova situação que se abriu com as revoltas e suas trágicas consequências, e se não as- ¬ 30DIAS Nº 9 - 2011 39 Oriente Médio A oração da sexta-feira na Mesquita dos Omíadas em Damasco sumirmos juntos o seu encargo, com a ajuda da comunidade internacional, o futuro do mundo árabe corre o risco de se tornar obscuro. As várias revoltas do mundo árabe poderiam levar a confrontos de uns contra os outros. E o mundo árabe corre o risco de se desmantelar em uma série de “estadinhos” confessionais em luta entre si. Do que depende o êxito? Como se resolve? Eu espero realmente que se chegue a constituir uma nova Carta de leis e direitos adequados ao mundo árabe moderno. Mas isso só pode acontecer através de processos graduais, com uma evolução a ser amadurecida passo após passo. Ao contrário as revoluções abrem novas feridas que depois se cicatrizam com dificuldade. Enfim, as palavras-chave devem ser evolução e amadurecimento, e não revolução. Nessa perspectiva, os cristãos também poderiam se tornar com maior decisão operadores de mudança. Segundo alguns observadores os cristãos deveriam sentir simpatia imediata pelas revoltas que colocam em crise regimes autoritários e esperam também para o Oriente Médio a chegada de sistemas democráticos de estilo ocidental. De modo geral os cristãos sabem que na Síria podem ir adiante com o regime e talvez participar a uma evolução do regime no sentido mais democrático. Mas têm medo do caos. Têm medo de manipulações externas que possam colocar em crise a tradicional convivência com os próprios concidadãos muçulmanos. Houve alguns casos preocupantes no distrito de Homs, com os desordeiros que da mesquita lançavam apelos para que todos fossem assediar e expulsar os cristãos. Alguns muçulmanos vizinhos de casa de famílias cristãs fugiram com medo de serem envolvidos em um ataque. Nesses casos de perigo imediato, pode-se ver também a intenção de 40 30DIAS Nº 9 - 2011 alargar o caos e usar a fachada do conflito islâmico-cristão para cobrir outras coisas. Colocar os cristãos no meio para aumentar a tensão e o alarme. Os que animavam essas provocações eram forasteiros, gente vinda de fora, não os moradores locais. Perto de Homs foram também queimadas lojas e casas de cristãos. É preciso rezar, e estar alerta, não ter medo diante das provocações. O presidente Assad continua a indicar os fundamentalistas e os mercenários como os verdadeiros inspiradores dos movimentos contra o regime. Nos últimos anos criaram-se leis e regulamentos estatais com a intenção de controlar a difusão de “ideias extremistas”. Uma tal repressão, talvez, tenha tido efeito contrário? Algumas daquelas medidas, como a proibição para as professoras de usar o véu integral nas escolas, de fato, não tiveram uma larga aplicação. Claro, os islamitas querem aumentar a sua influência. Mas tenho a convicção de que a Síria não seja um terreno fértil para suas estratégias de expansão. A Síria tem um passado laico ainda antes da entrada do partido Ba’ath no poder. Não vejo na sociedade síria uma grande solicitação de vínculos que os fundamentalistas tentam impor à vida social. Os chefes religiosos islâmicos são li- gados ao governo, de fato atuam como funcionários religiosos. Os revoltosos de matriz islâmica atuam fora dos sistemas oficiais centrais. Como o senhor avalia o comportamento da Santa Sé diante dos vários protestos violentos que aconteceram nos países árabes em 2011? Depois dos acontecimentos egípcios, a Santa Sé evitou a multiplicação de intervenções. O Papa falou bem. Talvez, em algumas ocasiões, os órgãos de informação vaticana ao apresentar as notícias parecem agregar-se de modo excessivamente acrítico a network orientadas como Al Jazeera. Se posso acrescentar uma anotação pessoal, gostaria de sentir mais a participação e a proximidade das Igrejas nacionais, e em particular dos episcopados europeus. Poderiam tentar colocar em campo iniciativas para favorecer o diálogo. Uma última pergunta: na opinião de alguns, o que está acontecendo hoje nos países do Oriente Médio tem muitas semelhanças com o que aconteceu em 1989 nos países do Leste europeu. O senhor concorda com isso? Não. Aqui a realidade religiosa e sociocultural e histórico-política é completamente diferente. Tratase de uma comparação completamente errada. Ou talvez seja apenas propaganda dissimuladora. q