Nossa Senhora de Fátima O Anjo da Paz Entre junho e agosto de 1916, Lúcia e seus priminhos Francisco e Jacinta conduziam suas ovelhinhas como de costume, até que, num dia de muito calor, foram ter a um lugar chamado Chousa Velha, um pouco a oeste de Aljustrel, no meio de um olival. Estavam os pastorinhos a brincar quando subitamente o céu se escureceu e se espalhou uma névoa espessa. Lembraram-se então da Loca do Cabeço, perto de onde o rebanho pastava. A toda pressa, abrigaram as ovelhas debaixo de uma árvore frondosa e correram ladeira acima a refugiar-se naquela cavidade. Era o que de melhor havia por ali, e os três continuaram a brincar. Passado um tempo, os pastorinhos merendaram, rezaram o terço e mal terminaram de rezar, a chuva cessou e o sol voltou a brilhar. Os três começaram a divertir-se atirando pedras para o fundo do vale. De repente levantou-se um vento, um vento estranho; olharam espantados as árvores agitadas e deram com um clarão, vindo do nascente, que se aproximava cada vez mais forte, cada vez mais esplendoroso. Lúcia reconheceu a alvura singular daquela "estátua de neve", transparente pelo sol, que um ano antes vislumbrara com outras meninas ("Parecia uma pessoa embrulhada num lençol"). Mas desta vez a luz aproximou-se tanto que, ao chegar à pedra da entrada da loca, puderam distinguir a forma de "um jovem dos seus catorze a quinze anos, mais branco que se fora de neve, que o sol tornava transparente como se fora de cristal", descreve Lúcia. Podiam ver agora perfeitamente os traços de um rosto humano de indescritível beleza. Estupefatos, emudecidos, contemplavam-no paralisados. «Não temais. Sou o Anjo da Paz. Orai comigo!» Ajoelhou em terra e curvou a fronte até o chão. Os pastorinhos imitaram-no e repetiram as suas palavras: «Meu Deus, eu creio, adoro, espero e Vos amo. Peço-Vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e não Vos amam.» Mais duas vezes o Anjo pronunciou aquela oração e depois lhes recomendou: «Orai assim. Os corações de Jesus e Maria estão atentos às vossas súplicas. » Então desapareceu. A oração gravou-se de tal forma na mente de Lúcia e Jacinta (Francisco não chegara a ouvi-la) que nunca mais a esqueceram e, a partir desse instante, a repetiam muitas vezes por longo tempo, até caírem de cansaço. Depois da aparição, os três sentiam-se fracos e aturdidos. Aos poucos, foram-se refazendo e começaram a reunir o rebanho, pois entardecia. Ao longo do caminho de volta para Aljustrel, nenhum deles tinha vontade de falar. Lá se iam calados, silenciosos, pensativos... Era o aviso do Céu que escolhera aqueles corações pequeninos para coisas grandes. Sacrifícios e orações pelos pecadores A segunda aparição deu-se semanas depois. As crianças foram passar em casa as horas mais quentes do dia e brincavam junto do poço, quando, subitamente, viram junto deles a mesma figura. «Que fazeis? Orai, orai muito. Os corações santíssimos de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente, ao Altíssimo, orações e sacrifícios. » - Como nos havemos de sacrificar? Perguntou Lúcia. «De tudo o que puderdes, oferecei a Deus sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores. Atraí assim, sobre a vossa pátria, a paz. Eu sou o Anjo da sua guarda, o Anjo de Portugal. Sobretudo, aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar. » E desapareceu. As crianças ficaram tolhidas de espanto e novamente permaneceram numa espécie de êxtase. Quando recuperaram o domínio de si, Francisco foi o primeiro a falar. Tinha visto o Anjo, mas novamente não ouvira suas palavras. Somente no dia seguinte Lúcia pôde lhe contar o que havia dito o Anjo. Ainda se passou mais um dia para que conseguisse reunir as idéias e explicar, como podia quem era o Altíssimo, e o que significava "os Corações de Jesus e Maria estão atentos às vossas súplicas". Jacinta dizia ao irmão: - Tem cuidado, nestas coisas fala-se pouco. - E continuava - Quando falo no Anjo não sei o que me acontece; não posso falar nem brincar, nem cantar... Não tenho forças para nada... - Nem eu também - dizia Francisco. - Mas que importa?... O Anjo é mais que tudo isso: pensemos nele! Desde então, o menino pôs-se a refletir sobre o que o Anjo quisera dizer ao falar de sacrifícios e começou a rivalizar com a irmã e a prima na renúncia a pequenos prazeres e satisfações, em reparação pelos pecadores. Os três passavam horas e horas prostrados em terra a repetir sem cessar a oração que o Anjo lhes ensinara. Reparações ao Santíssimo Sacramento Passaram-se três meses. Estavam os pastorinhos novamente na gruta do Cabeço e, depois de rezarem o terço, como de costume, puseram-se a recitar juntos a oração. Acabavam de repeti-la mais uma vez quando subitamente a mesma luz cristalina brilhou novamente sobre o vale e o Anjo tornou a aparecer-lhes: belo, resplandecente, deslumbrante, suspenso no ar. Trazia numa mão um Cálice e, sobre ele, com a outra mão, segurava uma Hóstia. Deixou-os suspensos no ar, prostrou-se por terra e disse: «Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores. » Repetiu três vezes essa oração com as crianças. Depois se levantou, tomou novamente o Cálice e a Hóstia e deu a Comunhão a Lúcia, dando o Cálice a beber aos dois irmãozinhos, dizendo: «Tomai e bebei o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus. » De novo em adoração, repetiu a súplica à Santíssima Trindade. E desvaneceu-se na luz do sol. A sensação da presença de Deus nessa ocasião foi muitíssimo mais intensa e deixou-os tão exaustos que, dias depois, Francisco comentava: - Gosto muito de ver o Anjo; mas o pior é que, depois, não somos capazes de nada. Eu nem andar podia! Isso tudo aconteceu quando Lúcia tinha nove anos, Francisco, oito, e Jacinta, seis. Nenhuma das crianças contou sobre a aparição do Anjo, nem em casa nem em parte alguma. Somente na Segunda Memória, escrita em 1937, é que Lúcia se refere incidentalmente ao Anjo da Paz, relato inesperado pelos 21 anos de ocultamento, e que causou grande surpresa. A Senhora mais brilhante que o sol Um dos lugares prediletos das crianças pastoras ficava nas terras do pai de Lúcia. Era um pequeno vale, chamado Cova da Iria. Os pastorinhos brincavam e cantavam cantigas daquele tempo, como esta: Amo a Deus no Céu, Amo-o também na terra; Amo o campo, as flores, Amo as ovelhas na serra. Com os meus cordeirinhos Eu aprendi a saltar. Sou a alegria da serra E sou o lírio do vale Sou uma pobre pastora Rezo sempre a Maria. No meio do meu rebanho Sou o sol do meio-dia. Ó, i, ó ái! Quem me dera ver-te agora! Ó, i, ó ái! Meu Jesus, já nesta hora! Mas depois das experiências com o Anjo, eles já não cantavam com o mesmo entusiasmo de antes. Já não eram os mesmos. Além disso, os problemas de saúde da mãe de Lúcia, e a guerra que se desenrolava na Europa, refletindo-se na vida da pequena vila, trouxeram para os pequenos muitos sofrimentos; eles, porém, lembravam-se das palavras do Anjo e tudo ofereciam: - Meu Deus, oferece-Vos todos estes sacrifícios e sofrimentos em reparação pelos pecadores e pela sua conversão. As crianças tinham agora consciência de que existia um mundo angustiado, às voltas com o incompreensível mistério do sofrimento. No dia 13 de maio de 1917, um domingo, os pais de Jacinta e Francisco planejaram ir a uma feira próxima para fazer compras, e mandaram as crianças à missa em Fátima. Era um dia muito bonito, e já passava do meio-dia quando os pastorinhos conduziram as ovelhas até a Cova da Iria, passando então a se entreter na construção de uma casinha de pedras. Estavam entretidos nesse trabalho, quando foram surpreendidos por um raio de luz, que lhes pareceu um relâmpago. Correram para se abrigar, quando um segundo relâmpago os fez afastarem-se da árvore, e então pararam pasmados. Bem diante deles, na copa de uma azinheira de cerca de um metro de altura, viram uma esfera de luz e, no centro, uma Senhora, "vestida toda de branco, mais brilhante que o sol, espargindo luz, mais clara e intensa que um copo de cristal, cheio d'água cristalina, atravessado pelos raios do sol mais ardente", nas palavras de Lúcia. Seu rosto era de uma beleza indescritível. Tinha as mãos juntas, em atitude de quem reza apoiadas no peito; da mão direita pendia um terço. As vestes pareciam ser feitas unicamente de luz. A túnica era branca, como branco era o manto, orlado de uma luz ainda mais intensa a reluzir como outro que lhe cobria a cabeça e lhe descia até aos pés. Não se lhe viam o cabelo nem as orelhas. Era impossível fixar os olhos em seu rosto, pois sua luz os cegava. Fascinadas, aproximaram-se tanto que se colocaram dentro do círculo de luz que a acompanhava. «Não tenhais medo. Eu não vos faço mal» As crianças não sentiam medo, o que as assustara fora somente o "relâmpago" e o receio da trovoada. Uma grande alegria e paz inundavam suas alminhas. Refeita do susto, Lúcia perguntou: - De onde é vossemecê? «Sou do Céu!» - E que é que vossemecê me quer? «Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13, a esta mesma hora. Depois direi quem sou e o que quero. E voltarei ainda aqui uma sétima vez.» - E eu também vou para o Céu? «Sim, vais» - Que felicidade! Ir para o Céu!... E a Jacinta? «Também.» - E o Francisco? «Também irá, mas terá de rezar muitos terços. » O olhar da formosa Senhora parecia agora fixar magoado o pastorinho que nada ouvia e não via distintamente a Celeste Visão. - Ó Lúcia, eu não vejo nada... Arruma-lhe uma pedra, a ver se é gente ou não! "Que idéia!... Atirar uma pedra a uma Senhora tão bonita e tão boa!", pensa Lúcia. Mas perguntou: - Então vossemecê é a Nossa Senhora do Céu e o Francisco não a pode ver? «Ele que reze o terço e assim também me verá. » Lúcia voltou-se para o primo: - Olha, Francisco, a Senhora diz que rezes o terço e já a podes ver. E o pequeno, começando a rezar, logo goza da presença da Virgem Santíssima. Entretanto, ele não podia esquecer as ovelhas que andavam na Cova e se preocupava que não comessem a plantação que havia por perto. - Deixa! - disse Lúcia. A Senhora diz que as ovelhas não os comem. - Qual não comem!... As ovelhas não comerem os chícharos? Deixa, deixa, a Senhora lá sabe! - Ó Lúcia - manifestou-se Jacinta - pergunta à Senhora se tem fome. Ainda ali temos broa e queijo... E oferece-lhe um cordeirinho... Mas Lúcia se lembrou de duas moças, amigas de seus irmãos, que há pouco haviam morrido. - A Maria do Rosário do José das Neves está no Céu? «Sim.» - E a Amélia? «Está no Purgatório até o fim do mundo.» Que pena sentiu Lúcia! Também a Senhora parecia triste ao perguntar: «Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser mandar-vos em ato de reparação pelos pecados com que é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores?» - Sim, queremos! - respondeu Lúcia, em nome dos três. «Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.» Ao dizer "a graça de Deus", a Senhora abriu pela primeira vez as mãos e delas saíram feixes de luz muito intensa, cujo reflexo envolveu as crianças, penetrou-lhes no peito e atingiu-lhes o mais íntimo da alma. Conta Lúcia que essa luz os fez "ver a nós mesmos em Deus, mais claramente do que nos vemos no melhor dos espelhos". Por um impulso irresistível, prostraram-se de joelhos e começaram a repetir intimamente: "Ó Santíssima Trindade, eu Vos adoro. Meu Deus, meu Deus, eu Vos amo no Santíssimo Sacramento". A Senhora esperou que terminassem e então disse: «Rezai o terço todos os dias, para alcançar a Paz para o Mundo e o fim da guerra.» Em seguida, foi-se elevando suavemente da azinheira, subindo em direção ao nascente, até desaparecer. As crianças permaneceram um longo tempo de olhos fixos no céu. Estavam silenciosas e pensativas, porém não se sentiam cansadas e abatidas, como ficavam ao ver o Anjo da Paz. Sentiamse leves como pássaros. E logo viram, como dissera a Senhora, que as ovelhinhas não haviam tocado nos feijões e nos chícharos. - Ai que Senhora tão bonita! - exclamava Jacinta repetidas vezes. - Estou mesmo a ver que ainda vais dizer a alguém - dizia-lhe Lúcia. - Não digo nada a ninguém; está descansada. Esquecida, porém, de todos os seus propósitos e recomendações da prima, Jacinta correu para a mãe e gritou toda alvoroçada: Ó mãe, vi hoje Nossa Senhora na - Credo, filha! És uma boa santa para veres Nossa Senhora. Cova da Iria! Mas Jacinta insistiu e se pôs a contar os detalhes de tudo o que havia acontecido, arrematando: - Ó mãe, é preciso rezar o terço todos os dias... a Senhora disse isso à Lúcia. E disse também que nos levava todos três para o Céu, a Lúcia, o Francisco e mais eu... e mais outras coisas disse que eu não sei, mas que a Lúcia sabe... Quando Ela entrou pelo céu dentro, parece que as portas se fecharam com tanta pressa que até os pés iam ficando de fora, entalados... Era tão lindo o céu!... Havia lá tantas rosas albardeiras!... O Imaculado Coração de Maria No dia de Santo Antônio, apareceram os primeiros peregrinos na casa de Lúcia. Tendo voltado da missa em Fátima, Lúcia foi com os primos e os peregrinos até a Cova da Iria. Naquele dia havia 50 pessoas, algumas vindas de longe, para presenciar o momento da aparição. Ainda não era meio-dia quando chegaram e as pessoas se espalharam pelo lugar à sombra da grande azinheira, abrindo cestos com comida. Uma moça começou a recitar em voz alta umas orações de um livro de piedade. Rezaram então um terço e, ao iniciarem a ladainha Lúcia interrompeu, dizendo que não haveria tempo. Logo exclamou: - Jacinta! Já lá vem Nossa Senhora, que já deu o relâmpago! Todos os três correram para a azinheira pequena, com o povo atrás em círculo, ajoelhados sobre as moitas e os tojos. Lúcia levantou as mãos como em oração e perguntou: - Vossemecê mandou-me vir aqui, faça o favor de dizer o que me quer. «Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem que rezeis o terço todos os dias, e que aprendais a ler. Depois direi o que quero.» Lúcia pediu-lhe a cura de um doente. «Se se converter curar-se-á durante o ano. » - Queria pedir-lhe para nos levar para o céu. «Sim; Eu levarei em breve a Jacinta e o Francisco para o Céu. Mas tu ficarás cá mais algum tempo. Jesus quer servir-se de ti para Me fazer conhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao Meu Imaculado Coração. » - Fico cá sozinha? «Não, filha. E tu sofres muito com isso? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O Meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus.» Dizendo essas palavras, abriu as mãos como da outra vez, comunicando-lhes um feixe de luz vivíssima que os envolveu como num lago de ouro. Era como se estivessem submergidos em Deus. Jacinta e Francisco pareciam estar na parte dessa luz que se elevava para o Céu, e Lúcia na que se espargia sobre a terra. Nossa Senhora tinha sobre a palma da mão direita um Coração cercado de espinhos que penetravam nele, fazendo-o sangrar horrivelmente. Era o Coração Imaculado de Maria, ultrajado pelos pecados da humanidade, a pedir reparação. Desvanecida essa revelação, a Virgem voltou para o Céu na direção do nascente. Algumas pessoas mais próximas notaram que os rebentos no topo da azinheira se inclinavam na mesma direção, como se as vestes da Senhora os tivessem arrastado. A mãe de Lúcia, no dia seguinte, levou-a até Fátima para que desmentisse toda a história das aparições ao Prior. Este, porém, acolheu a menina com amabilidade e acreditou que realmente algo estivesse acontecendo. No entanto, para grande espanto de Lúcia, sugeriu que tudo poderia ser uma enganação do demônio. Jacinta e Francisco tratavam de dissuadi-la de crer nessa possibilidade, mas Lúcia cada vez mais se decidia a não ir à Cova no mês seguinte. A visão do inferno Maria Rosa, mãe de Lúcia, sentiu-se aliviada quando, no dia 13 de julho, percebeu que sua caçula não pretendia levar o rebanho à Cova da Iria. Mas quando chegou a hora, Lúcia sentiu-se subitamente impelida e correu à casa dos tios, em busca dos primos, para irem ao encontro da Senhora. Densa multidão já se aglomerava no local, pois os fatos do mês anterior haviam corrido de boca em boca. Cerca de 2 ou 3 mil pessoas, devotas ou curiosas, lá estavam ao redor das crianças, que rezavam o terço. Tio Marto, pai de Jacinta e Francisco, também estava lá; inesperadamente, encontrou ali também sua esposa, Olímpia. É que, tendo ouvido a conversa dos três pequenos, ela havia ido até Maria Rosa e ambas se dirigiram para a Cova, munidas de velas bentas para exorcisar o espírito maligno que se manifestasse a seus filhos. Era já o meio-dia solar. Estavam ainda rezando o terço quando Lúcia, muito pálida, olhou para o nascente e gritou: - Fechem os chapéus! Fechem os chapéus que já aí vem Nossa Senhora! A mesma nuvenzinha acinzentada apareceu pairando sobre a azinheira, leve e transparente. O sol amainou e começou uma aragem muito fresca, mal se percebendo que era pleno verão. No silêncio profundo, apenas as pessoas mais próximas dos videntes conseguiam ouvir como um zumbido vindo da azinheira, mas sem distinguir as palavras da Senhora. - Vossemecê que me quer? «Quero que venhais aqui no dia 13 do mês que vem, que continuem a rezar o terço todos os dias, em honra de Nossa Senhora do Rosário, para obter a paz do mundo e o fim da guerra, porque só Ela lhes poderá valer.» - Queria pedir-lhe para nos dizer quem é, para fazer um milagre com que todos acreditem que Vossemecê nos aparece. «Continuem a vir aqui todos os meses. Em outubro direi quem sou, o que quero, e farei um milagre que todos hão de ver para acreditar.» Lúcia então pensou em alguns pedidos que várias pessoas lhe haviam feito. Um deles foi pela cura do filho de Maria Carreira, que desde a segunda aparição acompanhava as crianças. Nossa Senhora disse que não o curaria, mas lhe daria meios de vida se rezasse o terço todos os dias. E acrescentou: «Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes, em especial sempre que fizerdes algum sacrifício: "Ó Jesus, é por vosso amor, pela conversão dos pecadores, e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria".» «ao dizer estas últimas palavras, a Senhora abriu de novo as mãos, como nos dois meses passados. O reflexo pareceu penetrar na terra, e vimos como um mar de fogo, os demônios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados como caem as fagulhas nos grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizavam e faziam estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerozas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes, como negros carvões em brasa.» Conta Lúcia: As crianças ficaram tão atemorizadas que recearam estar a ponto de morrer, como se não lhes tivesse sido dito que as três iriam para o Céu. Ergueram os olhos em súplica desesperada para a Senhora que os contemplava com melancólica ternura. «Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando vierdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo pelos seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para o impedir, virei pedir a consagração da Rússia ao Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem aos meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas. Por fim, o Meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal, conservar-se-á sempre o dogma da Fé.» Continua Lúcia, em relato do Terceiro Segredo, como divulgado em 26 de junho do ano 2000: «vimos ao lado de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fôgo em a mão esquerda; ao centilar, despedia chamas que parecia iam encendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n'uma luz emensa que é Deus: "algo semelhante a como se vêm as pessoas n'um espelho quando lhe passam por diante" um Bispo vestido de Branco "tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre". Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dôr e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de juelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam varios tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns atrás outros os Bispos Sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de varias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, n'eles recolhiam o sangue dos Martires e com êle regavam as almas que se aproximavam de Deus.» Disse então Nossa Senhora: «Isto não o digais a ninguém. Ao Francisco, sim, podeis dizê-lo. Quando rezardes o terço, dizei depois de cada mistério: "Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu, principalmente aquelas que mais precisarem".» Seguiu-se um momento de silêncio. Então Lúcia perguntou: - Vossemecê não me quer mais nada? «Não, hoje não te quero mais nada.» Com um último olhar cheio de afeto, a Senhora elevou-se em direção ao nascente até desaparecer. Logo começaram a interpelar as crianças, que ainda estavam aturdidas: - Ó Lúcia, que te disse E Para uns é E - Não, senhor, não o posso dizer. - Nossa É Senhora é boa, não que ficaste um coisa para outros o tão triste? segredo. boa? é má. dizes? Por esse tempo já parecia não haver ninguém em Portugal que não soubesse das notícias de Fátima. Os jornais católicos faziam referência aos fatos com grande prudência. A imprensa anticlerical acusava os padres de inventarem tudo, para recuperar o prestígio da Igreja. Enquanto isso, Lúcia sofria em casa as conseqüências da destruição que o povo causava nas plantações da Cova da Iria. No local já não se podia cultivar coisa alguma. - Tu, agora, quando quiseres comer, vais pedi-lo a essa Senhora! - diziam à menina, que muitas vezes nem ousava pedir um pedaço de pão, indo dormir com fome. Mas Lúcia jamais se revoltou contra a oposição que sofria da família, particularmente da mãe. Tudo via como cumprimento do que o Anjo lhe havia dito, a respeito de aceitar os sofrimentos que Deus lhes enviaria. Além disso, foi inúmeras vezes levada à presença do pároco para interrogatórios, para que, quebrada sua teimosia, admitisse que toda essa história não passava de mentira. Mas o bom padre não encontrava contradição alguma nas palavras da pequena, e abanava a cabeça sem saber o que fazer a respeito de tudo aquilo. Somente no campo, com os priminhos, é que tinha um pouco de paz. Mesmo assim, suas conversas agora eram melancólicas, marcadas pelas revelações espantosas do dia 13 de julho. Rezavam e faziam penitências pelos pobres pecadores. Jacinta não se comprazia com a promessa de que iria para o Céu: queria que todos também lá fossem. E dizia: - Penso no inferno e nos pobres pecadores... O inferno! O inferno!... Que pena eu tenho das almas que vão para o inferno. E as pessoas lá vivas a arder como lenha no fogo!... Ó Lúcia, por que será que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? Se eles o vissem, já não faziam mais pecados para não irem para lá. Hás de dizer àquela Senhora que mostre o inferno a toda aquela gente. Verás como se convertem. De vez em quando Jacinta interrompia sua oração para perguntar: - Ó Lúcia, ó Francisco, vocês estão a rezar comigo?... É preciso rezar muito para livrar as almas do inferno... Vão para lá tantas, tantas!... E rezavam pelos pecadores que não rezam. Pela conversão dos pecadores, deixavam muitas vezes de beber água e não comiam. Por sua vez, Francisco parecia menos abalado com as revelações do inferno e das futuras atribulações da humanidade. Freqüentemente exclamava, arrebatado: - Como é Deus!!! Não se pode dizer! Isto sim, que a gente nunca pode dizer! Mas que pena Ele estar tão triste! Se eu O pudesse consolar!... Visões e o seqüestro Em agosto, Jacinta começou a ter visões proféticas. Certo dia, tendo terminado de rezar com o irmão e a prima no Cabeço, levantou-se e disse a Lúcia: - Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente a chorar com fome e sem nada para comer? E o Santo Padre numa igreja, diante do Imaculado Coração de Maria, a rezar? E tanta gente a rezar com ele? Nas visões de Jacinta sempre havia coisas sobre o Papa (embora não soubesse qual Papa), e ela ficava tão perturbada, que queria contar a todos, para que assim rezassem constantemente por ele. - Posso dizer que vi o Santo Padre e toda aquela gente? - Não! - respondia Lúcia. Não vês que isso faz parte do segredo? E que por aí logo se descobria? Mais uma vez, estando os três à beira do poço, Jacinta fitava o espaço e então disse a Lúcia: - viste o Santo Padre? Não! - Não sei como foi! Eu vi o Santo Padre numa casa muito grande, de joelhos, diante de uma mesa, com as mãos na cara, a chorar. Fora da casa estava muita gente e uns atiravam-lhe pedras, outros lhe rogavam pragas e diziam-lhe muitas palavras feitas. Coitadinho do Santo Padre! Temos que pedir muito por ele! Ao mesmo Não tempo, tanto a família como os curiosos atormentavam as crianças: Ainda por aqui, ainda não foste para o Céu? - E a tal mulherzica já veio outra vez passear por cima das azinheiras? - Achas que acredito nas tuas mentiras? Também os sacerdotes as afligiam, e muito. Porém, de vez em quando aparecia algum que os ensinava, animando-os e confortando-os. Um deles disse a Lúcia: - A menina deve amar muito a Nosso Senhor por tantas graças e benefícios que lhe está concedendo. Estas palavras, ditas com tanta bondade, gravaram-se tão intimamente na sua alma, que a pequena dizia repetidas vezes, ensinando também aos priminhos: - Meu Deus, eu Vos amo em agradecimento pelas graças que me tendes concedido. Marcante para eles foi o aparecimento de Padre Cruz, que conversou longamente com as três crianças, ensinando-lhes muitas jaculatórias, tais como: - Ó meu Jesus, eu - Doce Coração de Maria, sede a minha salvação! Dizia Vos amo! Jacinta: - Gosto tanto de dizer a Jesus que o amo!... Quando lhe digo muitas vezes, parece que tenho um lume no peito, mas não queima. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, que nunca me canso de Lhes dizer que os amo! Mas, enquanto isso, o governo anticlerical via os três confidentes de Nossa Senhora como perturbadores da ordem pública. No dia 11 de agosto, Lúcia foi com o tio e o pai para Ourém, onde foram inquiridos pelo administrador. No dia seguinte, um domingo, já se avolumava o povo em Aljustrel, à espera da aparição do mês. Ao entardecer, três homens vindos de Ourém interrogaram acidamente as crianças, ameaçando-as de morte caso insistissem em guardar silêncio sobre o segredo. Na manhã do dia 13, o próprio administrador apareceu na casa de tio Marto, dizendo desejar ir até o local do milagre. Colocou as crianças em seu carro, para levá-las à Cova da Iria; disse que poderiam passar antes em Fátima, para o Prior fazer-lhes algumas perguntas. Foi assim realmente, porém, partindo da casa do Prior, a carruagem fez uma curva na direção oposta: estavam indo para Ourém! Enquanto isso, na Cova da Iria os peregrinos que rezavam o terço ouviram um murmúrio e um ruído como de trovão; viram um relampejar de luz e uma nuvenzinha frágil vindo do leste, branca e transparente, que flutuou e pousou levemente sobre a azinheira. Maravilhados e surpreendidos, muitos observaram que o rosto das pessoas parecia brilhar com as cores do arco-íris e as roupas ficaram manchadas de vermelho, amarelo, azul e alaranjado. A folhagem das árvores e arbustos parecia coberta de flores brilhantes, em vez de folhas, e até a terra seca estava coberta de cores alegres. A Senhora viera, sem dúvida. Mas não encontrou as crianças. Pouco depois, a nuvenzinha se elevou novamente e se dissipou no céu. Em Ourém, o administrador interrogou os três pastorinhos, mandando-os depois encarcerar na mesma cela dos presos. Assustados com a situação, desapontados por não terem podido ir à Cova, tristes com a expectativa da Senhora não mais lhes aparecer, ofereciam todo esse sofrimento a Deus, em espírito de reparação. Rezaram um terço, acompanhados pelos prisioneiros, e chegaram a brincar um pouco com eles, até que foram chamados novamente à presença do administrador. Ameaçados de serem jogados num caldeirão de azeite quente, nem assim as crianças abriram a boca para revelar o segredo da Senhora. Os três passaram a noite na casa do administrador. No dia seguinte, depois de mais um interrogatório frustrado, foram levados de volta a Fátima. Antes de irem para casa, os pastorinhos foram ao local das aparições para rezar o terço diante da árvore. Causou pena ver o estado da azinheira, com mais galhos do que folhas. Perto dela estava uma mesa com dois castiçais e algumas flores, levadas para ali no dia 13 por Maria Carreira. Muitas pessoas haviam lançado sobre essa mesa algumas moedas, cuja aplicação Lúcia ficou de perguntar à Senhora em 13 de setembro. Nos Valinhos No domingo seguinte, dia 19 de agosto à tarde, Lúcia, Francisco e o irmão João foram levar as ovelhas para uma fazenda do tio de Lúcia: os Valinhos. Eram mais ou menos quatro horas da tarde quando Lúcia começou a notar que a temperatura refrescava, o sol se amainava, e então surgiu o relâmpago. Também a irmã de Lúcia, Teresa, e seu marido, que estavam para entrar em Fátima, perceberam nesse momento as mesmas coisas que se viram no dia 13 na Cova da Iria. Ao sentir que Nossa Senhora vinha, e Jacinta não estava no local, exclamou para o primo: - Ó João, vai buscar a Jacinta depressa que vem lá Nossa Senhora! Como o rapaz não quisesse ir, na intenção de ficar e ver também a Senhora, Lúcia lhe prometeu dois vinténs para que fosse a toda pressa. Quando deu o segundo relâmpago, Jacinta chegava com João. Momento depois, aparecia a Senhora sobre uma azinheira. - Que é que Vossemecê me quer? - perguntou Lúcia, como das outras vezes. «Quero que continueis a ir à Cova da Iria, no dia 13, e que continueis a rezar o terço todos os dias.» Novamente, Lúcia pediu que Ela fizesse um milagre para todos acreditarem. «Sim. No último mês, em outubro, farei um milagre para que todos creiam nas minhas aparições. Se não vos tivessem levado à aldeia, o milagre seria mais grandioso. Virá São José com o Menino Jesus para dar a paz ao mundo. Virá também Nosso Senhor para abençoar o povo. Virá ainda Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora das Dores.» - Que é que Vossemecê quer que se faça do dinheiro e das outras ofertas que o povo deixa na Cova da Iria? «Façam-se dois andores; um leva-o tu com a Jacinta e outras duas meninas vestidas de branco; o outro, que o leve o Francisco com mais três meninos. O dinheiro dos andores é para a festa de Nossa Senhora do Rosário e o que sobrar é para ajuda de uma capela que hão de mandar fazer.» - Queria pedir-lhe a cura de alguns doentes. «Sim; curarei alguns durante o ano.» Ela fez uma pausa e continuou, depois, muito triste: «Rezai, rezai muito, e fazei sacrifícios pelos pecadores, que vão muitas almas para o inferno por não haver quem se sacrifique e peça por elas.» Então, como das outras vezes, foi se elevando até sumir em direção ao nascente. As crianças ficaram cheias de júbilo, depois de tantas desilusões e vexames sofridos. Quando saíram do êxtase e se sentiram capazes de se mover, cortaram alguns galhos da árvore em que Nossa Senhora havia pisado, levando-os para casa. Jacinta foi logo dizendo: - Ó tia, vimos outra vez Nossa Senhora!... Nos Valinhos! - Ai, Jacinta! Sempre vocês me saíram uns mentirosos! Nem que Nossa Senhora lhe vá aparecer agora em toda parte por onde vocês andam!... Mas a extraordinária fragrância dos galhos da azinheira dos Valinhos foi, para as famílias dos videntes, um sinal de que alguma coisa singular realmente estava acontecendo. O tempo todo as três crianças dedicavam à oração e a imaginar que mortificações poderiam praticar pela conversão dos pecadores. No mês de agosto, de maior seca, chegaram a ficar nove dias sem beber água. Em lugar de comer as frutas doces que os pais lhes davam, comiam ervas do campo e pinhas verdes. Tendo encontrado uma corda áspera no caminho para Aljustrel, os três a repartiram para usar na cintura como um silício, dia e noite. Eram claros os sinais de que essas penitências agradavam a Deus. Particularmente, Jacinta agora era mais paciente, carinhosa, e aberta aos sofrimentos. Teve muitas visões sobre coisas futuras. Certo dia, rezou três Ave-Marias por uma mulher muito doente, e todos os sintomas da doença desapareceram. Por outra mulher, que os injuriava chamando-as de impostoras e mentirosas, Jacinta pediu que os três fizessem muitas penitências para que se convertesse; e de fato, nunca mais a ouviram dizer uma palavra menos bondosa. Vinte mil peregrinos na Cova da Iria O número de devotos de Nossa Senhora de Fátima ia aumentando dia a dia. Na Cova da Iria, os devotos se comportavam como se estivessem na igreja, ajoelhando-se quando lhes era possível, e os homens descobriam a cabeça para rezar. Com grande dificuldade, as crianças passaram pela multidão para chegar ao pé da azinheira. No caminho, gente do povo e até senhoras e cavalheiros caíam de joelhos diante deles, pedindo-lhes que apresentassem à Senhora suas aflições. - Pelo amor de Deus, peçam a Nossa Senhora que me cure o meu filho que é aleijadinho! Que me cure o meu que é cego! O meu que é surdo! - Que me traga meu marido, meu filho, que anda na guerra. Que me converta um pecador! - Que me dê saúde que estou tuberculoso!... Ali apareciam todas as misérias da pobre humanidade. Alguns gritavam até do alto das árvores e muros, para onde subiam a fim de ver os videntes. E as crianças haviam apenas visto a Mãe do Salvador. Como não terá sido nos caminhos de Israel, quando Nosso Senhor andava pelo mundo? Chegados à azinheira milagrosa, Lúcia começa o terço, e toda a gente a segue na oração. Agora a Cova da Iria transformava-se num grande templo cuja abóbada era o Céu. Dá-se o relâmpago. Um globo luminoso que todo o povo vê, move-se do nascente para o poente, deslizando lento e majestoso. Acontece então uma chuva de pétalas coloridas, que desaparecem antes de chegar ao chão; o sol escurece a ponto de deixar ver as estrelas; uma aragem fresca suaviza os rostos escaldados. Tudo causa assombro e alegria. De todos os lados se ouvem brados de louvor à Virgem Santíssima, que mais uma vez vem manifestar seu poder e misericórdia. - Que é que Vossemecê me quer? «Continuem a rezar o terço a Nossa Senhora do Rosário, todos os dias, para alcançarem o fim da guerra. » E novamente recomenda que não faltem no dia 13 de outubro, em que virá São José com o Menino Jesus para dar a paz ao mundo, Nosso Senhor para abençoar o povo, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora do Carmo. Depois de um curto silêncio, a Senhora acrescenta: «Deus está contente com os vossos sacrifícios, mas não quer que durmais com a corda; trazei-a só durante o dia.» Desse modo, foi corrigido o excesso de mortificação ao qual as crianças se submetiam. - As pessoas me têm pedido para pedir muitas coisas. Esta pequena é surdamuda. Não a quer curar? - e Lúcia acrescenta os muitos outros pedidos de que se lembrava. «Alguns curarei, outros não, porque Nosso Senhor não se fia neles.» - O povo gostava de ter aqui uma Capela. «Empreguem metade do dinheiro, que até hoje têm recebido, nos andores, e sobre um deles ponham Nossa Senhora do Rosário, a outra parte será destinada a ajudar a construção duma Capela.» - Há muitos que dizem que eu sou uma intrujona, que merecia ser enforcada ou queimada. Faça um milagre para que todos creiam! «Sim, em outubro farei um milagre para que todos acreditem.» - Umas pessoas deram-me duas cartas para Vossemecê e um frasco de água de colônia. «Isso de nada serve para o Céu.» E começou a elevar-se até desaparecer. Parte da multidão viu novamente o globo nevado. O Milagre do Sol Em todo o país de Portugal se falava nas Aparições de Fátima e sobretudo no milagre esperado em outubro. Os inimigos da Igreja se riam dessa profecia e dos simplórios que acreditavam nela. Não podendo deixar de cobrir tal notícia, o jornalista Avelino de Almeida, o mais conceituado de Portugal na época, escrevia na edição de 13 de outubro do jornal O Século: Que não se ofendam as almas piedosas nem se assustem os corações crentes e puros (...) Este é apenas um artigo de jornal sobre um acontecimento que não é novidade na história do catolicismo... Alguns o encaram como uma mensagem do céu e da graça. Outros vêem nele a prova evidente de que o espírito de superstição e de fanatismo lançou raízes tão profundas que será difícil, se não de todo impossível, destruí-lo. (...) Segundo o que afirmam as crianças, a Virgem aparece sobre uma azinheira, rodeada de uma nuvem por todos os lados. É tão poderosa a sugestão coletiva, ali causada pelo sobrenatural e mantida por uma força sobre-humana, que os olhos se enchem de lágrimas, as faces se tornam pálidas como cadáveres, homens e mulheres caem de joelhos, cantando hinos e rezando juntos o terço." Em Fátima e Aljustrel, onde menos se dava fé às palavras dos pastorinhos videntes, reinava um verdadeiro pavor: temia-se que, não acontecendo o tal milagre prometido, o povo lhes queimasse as casas e os matasse. A mãe de Lúcia acordou-a no dia 12, mal nascido o sol: - Ó Lúcia, é melhor irmos à confissão. Dizem que havemos de morrer amanhã na Cova da Iria... Se a Senhora não faz o Milagre, o povo mata-nos. Portanto é melhor que nos confessemos, a fim de estarmos preparadas para a morte... Mas Lúcia respondia com toda a calma: - Se a mãe quer se confessar, eu vou também; mas não por este motivo. Não tenho medo que nos matem. Estou certíssima que a Senhora há de fazer amanhã tudo o que prometeu. O dia 13 de outubro amanheceu com uma chuva torrencial. Havia cerca de 70 mil pessoas na Cova da Iria. Pelo caminho, como no mês anterior, muitos se aproximavam dos pastorinhos pedindo graças e curas. A água da chuva escorria por suas roupas, e as pessoas enlameadas até os joelhos cantavam hinos. Um dos padres que passara a noite toda na chuva e na lama, de tempos em tempos consultava nervosamente o relógio. Ao aproximar-se a hora da aparição, todo o povo rezava o terço, até que Lúcia, impulsivamente, disse que fechassem os guarda-chuvas. E, apesar da chuva que ainda caía, um por um os presentes obedeceram. O padre olhou novamente para o relógio depois de alguns instantes e disse: - Já passou do meio-dia. Fora com tudo isto! É tudo uma ilusão! Começou a empurrar os três pequenos videntes com as mãos e Lúcia, quase a chorar, recusou-se a sair do lugar. - Quem quiser ir-se embora, que se vá, que eu não vou! Nossa Senhora disse que vinha. Veio das outras vezes e agora também há de vir. Já se ouviam queixas e murmúrios de desapontamento entre os presentes, quando Lúcia olhou para o nascente e disse a Jacinta: - Ó Jacinta, ajoelha-te que já lá vem Nossa Senhora! Já vi o relâmpago. - Vê bem, filha! Olha que não te enganes! - disse Maria Rosa. Mas Lúcia nem ouviu a recomendação. As pessoas mais próximas já notaram que suas feições se tornavam coradas e de uma beleza transparente. Olhava agora arrebatada para a Senhora. - Que é que Vossemecê me quer? «Quero dizer-te que façam aqui uma capela em minha honra. Sou a Senhora do Rosário. Que continuem a rezar o terço todos os dias. A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.» - Tenho muitas coisas para lhe pedir: se curava uns doentes, se convertia uns pecadores... «Uns, sim; outros, não. É preciso que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.» E o rosto da Senhora tomou um ar sério: «Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido.» - Não me queres mais nada? «Não te quero mais nada.» - E eu também não quero mais nada. Despedindo-se, a Senhora abriu as mãos, como das outras vezes, e o brilho que delas saía subia até onde devia estar o sol. A multidão viu as nuvens se abrirem e o sol aparecer entre elas, no azul do céu, como um disco luminoso. Muitos ouviram Lúcia gritar: - Olhem para o sol! porém, ela estava em êxtase e não se recorda de ter dito isso, pois estava totalmente absorta em outras visões que se sucederam... "desaparecida Nossa Senhora na imensidade do firmamento, vimos ao lado do sol São José com o Menino e Nossa Senhora vestida de branco com um manto azul. São José com o Menino pareciam abençoar o mundo, pois faziam com as mãos uns gestos em forma de cruz." Conta Lúcia: E somente Lúcia teve a visão seguinte: "Pouco depois, desvanecida essa aparição, vi Nosso Senhor e Nossa Senhora que me dava a idéia de ser Nossa Senhora das Dores. Nosso Senhor parecia abençoar o mundo da mesma forma que São José. Desvaneceu-se esta aparição e pareceu-me ver ainda Nossa Senhora em forma semelhante a Nossa Senhora do Carmo". Enquanto isso, a multidão presenciava o milagre prometido por Nossa Senhora: o sol rompia as nuvens e, bem no zênite, na posição de meio-dia, brilhava como um disco de prata. Era possível realmente olhar para ele, sem que sua luz ofuscasse. Isso foi por um instante. Todos ainda olhavam para o sol, assombrados, quando ele começou a "dançar", segundo a descrição das pessoas: ele começou a girar sobre si mesmo, como uma bola de fogo, e então parou. Logo voltou a girar, mas velozmente. Ainda girando, suas bordas ficaram escarlates e começaram a lançar chamas por todo o céu, e com isso sua luz se refletia em tudo e em todos, com as diferentes cores do espectro solar. Ainda girando rapidamente, e espargindo chamas coloridas, por três vezes o sol pareceu desprender-se do céu e precipitar-se em zigue-zague sobre a multidão. Muitos julgavam ser o fim do mundo, e as pessoas se ajoelhavam na lama pedindo perdão de seus pecados. Houve quem fizesse confissão pública em altos brados, e alguns dos que haviam ido até a Cova para fazer troça dos crédulos prostraram-se em terra entre soluços e orações desajeitadas. O fenômeno durou por uns dez minutos, e depois, elevando-se em zigue-zague, o sol voltou a sua posição normal e brilhante, ofuscando como o sol comum. As pessoas se entreolhavam e diziam: "Milagre! Milagre! As crianças tinham razão! Nossa Senhora fez o milagre! Bendito seja Deus! Bendita seja Nossa Senhora!" Muitos riam, outros choravam de alegria, e houve quem notasse que suas roupas se haviam secado subitamente. Soube-se que o fenômeno foi visto até a quarenta quilômetros de Fátima. Personalidades como o Prof. Almeida Garret e membros da nobreza de Portugal registraram seu testemunho. A imprensa anticlerical foi obrigada pelos fatos a noticiar o fenômeno. Escreveu o mesmo jornalista Avelino de Almeida, que esteve presente na Cova da Iria: Carta a alguém que pede um testemunho insuspeito (...) Foste um crente na tua juventude e deixaste de sê-lo. Pessoas de família arrastaram-te a Fátima, no vagalhão colossal daquele povo que ali se juntou a 13 de outubro. O teu racionalismo sofreu um formidável embate e queres estabelecer uma opinião segura socorrendo-te de depoimentos insuspeitos como o meu, pois que estive lá apenas no desempenho de uma missão bem difícil, tal a de relatar imparcialmente para um grande diário, O Século, os fatos que diante de mim se desenrolaram e tudo quanto de curioso e de elucidativo a eles se prendesse. Não ficará por satisfazer o teu desejo, mas decerto que os nossos olhos e os nossos ouvidos não viram nem ouviram coisas diversas, e que raros foram os que ficaram insensíveis à grandeza de semelhante espetáculo, único entre nós e de todo o ponto, digno de meditação e de estudo. (...) Nas precedentes reuniões de fiéis, não faltou quem tivesse suposto ver singularidades astronômicas e atmosféricas que se tomaram como indício da imediata intervenção divina. Houve quem falasse de súbitos abaixamentos de temperatura, da cintilação de estrelas em pleno meio-dia e de nuvens lindas e jamais vistas em torno do sol. Houve quem repetisse e propalasse comovidamente que a Senhora recomendava penitência, que pretendia a ereção de uma capela naquele local, que em 13 de outubro manifestaria, por intermédio de uma prova sensível a todos, a infinita bondade e a onipotência de Deus... (...) Vi que o desalento não invadiu as almas, que a confiança se conservou viva e ardente, a despeito das inesperadas contrariedades, que a compostura da multidão que superabundavam os campônios foi perfeita e que as crianças, no seu entender privilegiadas, tiveram a acolhê-las as demonstrações do mais intenso carinho por parte daquele povo que ajoelhou, se descobria e rezou a seu mandado ao aproximar-se a hora mística e suspirada do contato entre o céu e a terra... E, quando já não imaginava que via alguma coisa mais impressionante do que essa rumurosa mas pacífica multidão animada pela mesma obsessiva idéia e movida pelo mesmo poderoso anseio, que vi eu ainda de verdadeiramente estranho na charneca de Fátima? A chuva, à hora prenunciada, deixar de cair; a densa massa de nuvens romper-se e o astro-rei -- disco de prata fosca -- em pleno zênite aparecer e começar dançando num bailado violento e convulso, que grande número de pessoas imaginava ser uma dança serpentina, tão belas e rutilantes cores revestia sucessivamente a superfície solar... Milagre, como gritava o povo; fenômeno natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabê-lo, mas apenas de te afirmar o que vi... O resto é com a Ciência e com a Igreja... Era o fim glorioso das aparições de Fátima. Mas agora podia começar o trabalho de investigação oficial da Igreja e tornava-se ainda mais importante o testemunho dos pastorinhos.