Mu Chebabi – Uma Coisa É Uma Coisa, Outra Coisa É Outra Coisa
Bem que Mu Chebabi se esforça para mostrar que “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é
outra coisa”, expressão popular que dá título ao seu segundo CD autoral.
Que uma coisa é o compositor inspirado, pop e popular de sucessos como “Hoje eu quero sair
só” (de seu primeiro CD, canção conhecida na voz do parceiro Lenine e de tantos outros
cantores); outra coisa é o diretor musical (ou melhor, humorista musical) por mais de 20 anos
a serviço do Casseta e Planeta. Que uma coisa é o samba que sai naturalmente de sua
criação de nativo do Rio de Janeiro, parceiro de malandros como Arlindo Cruz (no “Samba da
globalização”, usada como vinheta da TV Globo) e Claudio Jorge; outra coisa é a influência
pop de tudo quanto é música do mundo, que recebe em suas antenas fincadas na areia de
sua Copacabana natal. Que uma coisa é o racionalista cético, de origem árabe-cristã mas ateu
por formação; outra coisa é o cara que toca piano para “seu” Zé Pelintra, entidade-malandro
da umbanda que volta e meia lhe aparece, sobretudo nos momentos de criação...Mu Chebabi
se esforça. Mas “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, título do CD que registra
sua mais recente produção musical é, na verdade, uma fina ironia: nas onze canções Mu
mostra que, pelo menos na sua música, tá tudo junto e misturado.
Senão ouçam “O gringo”. É samba? Um sambaço, mas com altas doses de rock e funk
misturados, samba com guitarra elétrica e suingadíssima programação eletrônica. É música ou
humor? As duas coisas, ótima música para ouvir em casa, tocar no rádio e dançar na festa,
mas uma observação ácida e bem humorada (não fosse uma parceria com o Casseta Helio de
La Peña) daquele gringo que chega por aqui e logo “Tá pegando geral/Tá passando o rodo/Tá
levando só gostosa pro cafofo/Qual é!/Aquele gringo é safado tá cheio de mulher”.
Ou então ouçam a linda “Papo de abelha”, um samba à Novos Baianos, no qual a mistura de
humor e lirismo está entranhada na essência da canção: na melodia grogue do sujeito que,
meio bêbado, vai fazer galanteios no ouvido da menina; na brincadeira com o “z” do zumbido
da abelha na letra, “Zuzu bem/Virou papo de abelha/Vou dizer um montão de „z‟/Na sua
orelha/Zoiô, zoiei/Zanzo, zanzei/Zarô, zarei/Zuô, zuei...”.
Em cada uma das faixas, Mu Chebabi exerce essa síntese, esse ponto de vista musical e
existencial forjado nas misturas de Copacabana, do Rio, do Brasil. O samba calcado na levada
do cavaquinho “Brasileiro – Uma agulha no palheiro” usa as tais misturas como tema. “Foi em
Roraima que Ederaldo viu sua filha Odete/Aparecer num aparelho de televisão/O caboclo que
sonhava em Nova York/Acabou casando e trabalhando lá no Maranhão/Japonês fechou mais
cedo a pastelaria/Pra torcer na arquibancada do Pacaembu/Enquanto isso um surfista em
Floripa/Já fazia feijoada à baiana com angu/São tantos tipos, tanta gente, tanta confusão/Sou
brasileiro e tenho identidade, CPF, habilitação”, canta Mu sua “Aquarela do Brasil” escorada
num arranjo de sopros sofisticado e moderno do também pianista Itamar Assiere.
O samba dá a coloração básica da mistura, mas o maior pavor de Mu, um devoto da melhor
tradição da música carioca, era que sua criação espontânea fosse vista como oportunismo.
Por isso, e também naturalmente, o samba de Mu é, sempre, misturado, diferente, pessoal,
com aquele ponto de vista forjado em Copacabana. “Beth está chegando” talvez seja o
melhor exemplo dessa pegada que perpassa todo o CD: é um samba, com pegada pop,
gravado entre Rio e Los Angeles por um naipe de sopros da pesada, onde se destaca o
trompete afro-cubano de Arturo Sandoval e com a intervenção ao modo hip hop de seu
parceiro na música, o poeta Mano Mello. “Copacabana é invadida/Um satélite me espia/Não
dá pra esconder”, explicita a letra.
Em “A morena”, a canção talvez mais amorosa do disco, o samba reaparece misturado com
uma levada de ijexá baiano e pelo sofisticado acordeom de Chiquinho Chagas em diálogo com
a variada percussão de Jovi Joviniano e o sax soprano de Mário Sève.
Já “Aquele samba que ninguém ouviu”, um “samba de maquininha” mistura-se com aquele
sincopado tão samba-rock que veio de Jorge Ben e se espalhou mundo afora. É um
comentário de Mu sobre o samba que gringo faz, com direito também à programação
eletrônica e scratch (ambos pelo especialista DJ Roque) e outra cena bem humorada na letra,
a do sujeito que quer olhar a moça que passa mas não quer que ela perceba. O samba, todo
no sapatinho, parece, mais do que embalar, dizer a mesma coisa da letra com seus
negaceios: “O bamba não balança quando a nega passa/O bamba não/O bamba não olha,
disfarça/O bamba, não”.
Em “Seu Zé”, samba de devoto em homenagem a Zé Pelintra, tem feição clássica e evidente
influência das batidas de candomblé e da umbanda, do samba antigo com direito a faca no
prato. Não propriamente religioso, Mu tem fascínio e devoção real pela entidade malandra da
umbanda: “Seu Zé Pelintra está numa encruza/De terno branco, não me tranque a rua/Seu
Pelintra ninguém é santo/Com o encanto da morena nua”. Para acompanhá-lo nessa
homenagem musical (“O gato preto sabe que a magia/Do Seu Zé Pelintra está na melodia”),
Mu convocou gente da elite instrumental do samba, o violão perfeito de seu parceiro Claudio
Jorge (que segura a harmonia e as levadas de várias faixas do disco), a percussão de
Marcelinho Moreira.
As misturas vão além do samba. “Pianista do Cinema Mudo”, parceria com o xará Mu Carvalho
(ex-Cor do Som), é uma releitura contemporânea da história do “Apanhei-te cavaquinho” de
Ernesto Nazareth (“Apanhei-te Mini-Moog/E o seu Nazareth/Até bateu no cavaquinho/E depois
deu no pé”). Carrega a mesma idéia original, de uma música de difícil execução que assuste o
músico amador e mala que queira se meter a tocá-la. Em ritmo de um baião de Egberto
Gismonti (“Coisas pra um certo/ Egberto cabeludo/Pianista de cinema mudo”), destila
influências musicais que vão de Hermeto Pascoal ao choro.
“Borogodó” é a canção mais propriamente pop do disco, fluente e de levada funk, feita em
parceria de Mu com sua filha Madê, de 18 anos. Já outra balada pop, “Sozinha”, parceria com
Mombaça, é sofisticada, calcada nos violões virtuoses de Claudio Jorge, Luiz Filipe de Lima
(no 7 cordas) e do autor, e com letra de uma violência rara em canções de amor: “Lá se vai
mais um amor/Um outro amor vai chegar/E você vai acabar sozinha”, pragueja a canção, não
sem o humor que sutilmente perpassa todo o disco.
Pegada pop e sofisticada ao mesmo tempo, lirismo desbragado e cheio de humor,
Copacabana e sua misturas, “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, chega ao fim
com uma balada que o sintetiza, “1,99”. “Tudo vai parar no camelô/Que depois corre do
rapa/Por onde você procura amor/Só tem Xerox da capa/Onde você mora/Em que praia você
vai/Sou Copacabana/Todo made in Paraguai”.
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release do CD Uma coisa é uma coisa, outra coisa é