MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
ANO
4 • N º 6 • OUTUBRO 1996
Tiragem da 1a edição: 42.000 exemplares
OUTUBRO
96
1
MUNDO
Geografia e Política Internacional
edição especial: 20 páginas
Caro leitor:
A Redação de Mundo tem o prazer de anunciar que esta edição conta com 20
páginas - 4 além das 16 tradicionais -, mas você não pagará nem um centavo a mais. É que
você é o principal convidado de nossa festa: comemoramos a passagem à maioridade do
encarte Mundo - Texto e Cultura.
Mundo - T&C nasceu em 1995, como um encarte de 4 páginas de Mundo Geografia e Política Internacional. A partir desta edição, T&C passa a ter 8 páginas e um
novo nome: chama-se, agora, só Texto & Cultura. Na verdade, T&C deixou de ser encarte:
passa a ser um boletim autônomo e integralmente dedicado ao universo da cultura, em
especial no que se refere à literatura e produção de textos, incluindo técnicas de Redação.
E será publicado com a mesma periodicidade de Mundo - GePI (6 edições por ano).
Esta edição de T&C - a última encartada em Mundo - GePI - é dedicada ao centenário da morte do compositor brasileiro Carlos Gomes, autor de várias óperas, das quais
a mais conhecida é O Guarani. T&C traz, também, o resultado final de seu Concurso
Nacional de Redação, incluindo a publicação integral (e comentada) da dissertação vencedora: Matou o pombo-correio, ligou o computador e trancou a oca, de Victor Anatoly
Ritow Borba, do Colégio Sigma de Goiânia. Por fim, T&C contempla os vestibulandos
com duas páginas de exercícios e toques de redação.
Por enquanto, você ganha dois boletins pelo preço de um. E nós é que ficamos
felizes por isso.
vestibular vestibular
Fronteiras da globalização
Esta edição de Mundo é especialmente dedicada ao
vestibular. Aqui, você encontrará textos sintéticos,
ilustrados por nove mapas atualizados, e exercícios
especialmente selecionados, sobre os principais
temas de geografia e política internacional, todos
tendo como eixo comum a questão da
globalização, processo que ocupa um lugar central
no cenário econômico e geopolítico mundial
contemporâneo.
■ Pág. 3: As ‘‘cidades globais’’
São as cidades que, na era da globalização,
funcionam como nexos entre países e
continentes integrados por fluxos de
mercadorias, capitais e informações
■ Pág. 4: Conflitos que desafiam a globalização
O que há de semelhante entre o Ulster, a
Palestina e a Bósnia? Todas essas regiões têm
sido, há algum tempo, focos de tensão
geopolítica onde se chocam interesses étnicos,
nacionais e religiosos
■ Pág. 5: Hong Kong e Panamá
Em 1997, dois baluartes da expansão dos
impérios marítimos retornarão aos seus donos
originais: Hong Kong e o Canal do Panamá. A
colônia britânica passará à soberania da China
Popular. O canal oceânico passará à
administração panamenha, como etapa para a
completa devolução em 1999
Marcos Vianna/AJB
■ Págs. 6 - 7:
A tragédia de 50 milhões de refugiados
Os movimentos em grande escala de refugiados
e de outros emigrantes forçados converteram-se
em uma característica do mundo
contemporâneo. Poucas vezes houve tantas
pessoas em tantas partes do mundo obrigadas a
deixar seus países para buscar segurança em
outros locais
vestibular
Ei-lo que surge,
de novo, no
horizonte, o velho
monstro
mitológico. Como
o Minotauro
no labirinto, o
vestibular exige
que os jovens
passem pela prova
- o ritual de
iniciação que
lhes permitirá
seguir o curso
superior e
ingressar na fase
adulta da vida
(v. Editorial à
pág. 3). A todos
os candidatos, a
Redação deseja
a melhor sorte
do Mundo!!!!
■ Pág. 8: Mercosul
Diferentemente do que divulgou a imprensa
brasileira nos últimos meses, Chile e Bolívia
não entraram para o Mercosul, mas deram um
primeiro passo nessa direção: firmaram tratados
de associação. Eles passam a aceitar regras de
tarifas comerciais reduzidas no intercâmbio
com os quatro integrantes do Tratado de
Assunção de 1991
■ Pág. 9: Pequeno balanço do Plano Real
Em dois anos, o plano de estabilização aumentou
o consumo popular e encaixou o Brasil na
economia mundial, mas desindustrializou o país
e ampliou o desemprego
■ Págs. 10 - 11: Diário de Viagem Especial
Velejando pelo Caribe: Laís Guaraldo,
professora de História da Arte e ilustradora de
Mundo, relata com texto e ilustrações as suas
impressões de uma viagem que fez em barcos à
vela pelo Caribe
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
2
MUNDO
Índice Geral de Mundo - 96
Você encontra, abaixo, o índice geral de tudo o
que foi publicado no boletim Mundo - Geografia e
Política Internacional em 1996. Na primeira parte do
índice, os assuntos são listados segundo o número da
edição do boletim em que aparecem. Na segunda parte, o índice é organizado por região geopolítica. Os
números em negrito (fora dos parênteses) indicam o
número da edição do boletim; dentro dos parênteses,
indicam as páginas. Por exemplo: Europa Ocidental 1:(5) 2:(5-10) assinala que o assunto será encontrado
em Mundo nº 1, à página 5, e também em Mundo nº
2, às páginas 5 e 10.
■ Número 1 - março 1996
Estado nacional e globalização
Internet, cultura e Estado nacional
IRA retoma terrorismo na Grã-Bretanha
Escalada do narcotráfico na Colômbia
Eleições conduzem direita ao poder na Espanha
Jayme Brener analisa a política de Arafat na Palestina
O Meio e o Homem: Água, recurso escasso
Diário de Viagem: Chile
■ Número 2 - abril 1996
Entrevista: FHC e a política externa do Brasil
Velhos e novos significados da palavra “comunista”
Europeus rediscutem Tratado de Maastricht
Crise chinesa no Estreito de Taiwan
Hinduísmo radical ameaça democracia indiana
Nelson Blecher discute o valor das grifes globais
O Meio e o Homem: Os vales do Indo e Ganges
Diário de Viagem: Londres
■ Número 3 - maio 1996
Expansionismo contamina eleições em Israel
Terror de Estado desvaloriza civilização
Nacionalismo aproxima Yeltsin de Zyuganov
Conferência da ONU discute cidades
Newton Carlos radiografa o Partido Republicano
O Meio e o Homem: 10 Anos de Tchernobyl
Diário de Viagem: Egito, Palestina, Israel
■ Número 4 - agosto 1996
Sonho imperial ressurge nas eleições russas
Transição gera instabilidade no leste europeu
Países ricos patrocinam tortura
Revolução tecnocientífica e desemprego
Antonio Carlos R. Moraes comenta a Agenda 21
O Meio e o Homem: Tempestades e furacões
Diário de Viagem: Moscou
■ Número 5 - setembro 1996
EUA: Eleições assinalam fim do ciclo do New Deal
Diplomacia latino-americana dos EUA perde o rumo
Americanos retomam o Big Stick contra Cuba
Yeltsin e a saúde dos governantes
O boom chinês e o efeito-estufa
J. M. Pasquini Durán explica crise argentina
O Meio e o Homem: Vale do Nilo
Diário de Viagem: Bolívia
■ O Mapa de Mundo
Europa Ocidental - 1:(5) 2:(5-10)
Europa Oriental - 4:(9)
CEI - 3:(5-11) 4:(6-7-8-10) 5:(3)
Estados Unidos - 3:(4) 5:(4-6-7-8)
América Latina - 1:(4-8-10) 5:(5-9-10)
Brasil - 2:(6-7)
Oriente Médio - 1:(9) 3:(6-7-10)
Ásia Meridional - 2:(9-11)
Oriente e Pacífico - 2:(8) 5:(11)
“... quando dei por mim, 'táva aqui...”
OUTUBRO
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A
s coisas aconteceram com o boletim Mundo mais ou menos como
na música do Chico César. Olhando para trás, notamos com satisfação que
percorremos um longo e gratificante caminho.
Em quatro anos de trabalho intenso, produzimos 24 edições de
Mundo. Participamos de centenas de palestras em escolas Brasil afora, em
que reunimos dezenas de milhares de alunos. Mantivemos contatos,
conversas e debates com professores, orientadores pedagógicos e diretores.
Publicamos Cadernos de Pangea e até um livro de nossa própria editora, o
ABC do Mundo Contemporâneo.
Nesses quatro anos, o boletim cresceu - em quantidade e qualidade.
Em 1993, Mundo 1 saiu com 8 páginas e tiragem de 5 mil exemplares. Em
1996, Mundo 6 sai com 20 páginas e tiragem de 42 mil exemplares. Isso
significa o seguinte: começamos nossa grande aventura paradidática rodando
40 mil páginas por edição. Agora, rodamos 840 mil páginas. Crescemos,
portanto, 21 vezes! Esse crescimento se reflete geograficamente. Em 1993,
nossa área de abrangência limitava-se, praticamente, a São Paulo. Hoje,
Mundo atinge os quatro cantos do país: estamos em 15 Estados (do Amapá
ao Rio Grande do Sul), 80 cidades, 230 escolas.
E não vamos parar por aí. No próximo ano, teremos três boletins: o
tradicional Mundo - Geografia e Política Internacional (com 12 páginas, 6
edições por ano), o novo Texto & Cultura (8 páginas, 6 edições por ano), e
uma novidade absoluta: um boletim para o Primeiro Grau, cujo nome é
Espaços - tempo territórios tecnologias mas já carinhosamente apelidado como
‘‘Mundinho’’ (8 páginas, 4 edições por ano). Para fazer o ‘‘Mundinho’’,
mantivemos reuniões de consulta e análise crítica com dezenas de professores
das mais conceituadas escolas de Primeiro Grau - aos quais manifestamos
aqui, publicamente, nossos mais sinceros agradecimentos. E, além dos três
boletins, vamos manter nossa programação de palestras, a publicação de
Cadernos de Pangea e a promoção de atividades especiais, como o Concurso
Nacional de Redação de T&C, realizado com grande sucesso este ano.
É muita coisa, temos consciência disso. Um de nossos sócios, aliás,
comentava outro dia que estava surpreso diante de tanta coisa acontecendo
com nossa pequena empresa. A surpresa não é gratuita: ela é provocada pelo
fato de que ninguém planejou tudo isso.
A gente sabia, desde o começo, que havia uma forte demanda,
especialmente entre os jovens, por uma informação inteligente, sofisticada e
crítica sobre os grandes fenômenos da conjuntura geopolítica e cultural do
mundo contemporâneo. A gente sabia, também, que as boas escolas do país
estavam - e estão - dispostas a investir na formação de seus alunos. O que a
gente não sabia - e nem tinha como avaliar - é que o nosso trabalho seria
recebido com tanto entusiasmo e calor humano.
Não há recompensa maior do que essa, e nessa afirmação não há
demagogia nem retórica barata. Desde o primeiro boletim, nossa ambição
maior era reunirmos as nossas experiências como professores, jornalistas e
autores no sentido de contribuir, pouco que fosse, para a formação dos
jovens - os futuros responsáveis pelos destinos de nossa nação. Acreditamos
que os números, dessa vez, são transparentes - isto é, eles revelam, de fato, a
qualidade de nossa experiência -, e nos autorizam a dizer que estamos sendo
bem-sucedidos.
Na verdade, nossas realizações superaram nossas mais atrevidas
expectativas. E - nunca é demais repetir - isso se deve somente a você,
diretor, coordenador pedagógico, professor, aluno. Vocês são a nossa
destinação e o sentido de nosso empreendimento. Agradecemos a todos, e
prometemos, de nossa parte, não economizar esforços no sentido de
preservar a qualidade daquilo que, modestamente, oferecemos ao vosso
juízo.
Só nos resta, agora, manifestar a todos os nossos mais sinceros votos
de um ótimo 1997!
convite
Você é nosso convidado. Venha festejar conosco a passagem do século e a entrada do
novo milênio. Estamos enviando-lhe este convite com grande antecedência, mas há um
motivo para isso: queremos ter a certeza de poder contar com a sua presença.
Sabemos que muitas festas estão sendo programadas para comemorar o grande evento e que você terá que fazer uma opção entre inúmeros convites. Mas não se preocupe.
Optando pela nossa festa, você não perderá nenhuma outra. É que a nossa será na noite de
31 de dezembro do ano 2000.
Isso mesmo: não vamos fazer festa no dia 31 de dezembro de 1999. A nossa será uma
festa restrita. Só comparecerão os que aprenderam a contar os séculos. Há, além de tudo,
uma grande vantagem na data da nossa festa: as praias, praças e ruas estarão vazias, pois a
imensa maioria vai ficar em casa, curtindo ainda a ressaca da festança do ano anterior.
Melhor: poderemos escolher livremente o local da comemoração.
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
E
Fronteiras
da globalização
Internacionalização da economia
semeia “cidades globais”
A
Edson P. Rosa
Geografia classifica as
cidades a partir das relações que elas
estabelecem com o espaço nacional.
A globalização começa a desafiar os
conceitos geográficos tradicionais,
selecionando um conjunto de cidades cuja dinâmica sócio-econômica
define-se cada vez mais pelas relações
com o espaço internacional. São as
“cidades globais”, ou “cidades mundiais”, que funcionam como nexos
entre países e continentes integrados
por fluxos de mercadorias, capitais e
informações.
No passado, quando o comércio internacional começou a interligar espaços distantes, desenhando a moldura da
economia-mundo, algumas cidades desempenharam funções similares. Gênova, no mar
Tirreno, e Veneza, no mar Adriático, foram as
pioneiras do movimento de expansão comercial da Europa, nos séculos XIV e XV. A primeira controlou as rotas do Mediterrâneo ocidental, que abrangiam os portos do Magreb,
de Ceuta e da península ibérica. A segunda
dominou as rotas do Mediterrâneo oriental,
interligando os portos do mar Egeu, da Ásia
Menor e do Egito. Dois séculos mais tarde,
Amsterdã, na Holanda, tornou-se a mais importante “cidade mundial”, funcionando
como vértice do comércio holandês no Oriente e no Ocidente. A Companhia das Índias
Orientais estabeleceu a hegemonia holandesa
sobre as rotas do Índico, agindo nos mercados asiáticos a partir da sua base de Batávia,
na Indonésia. A menos poderosa Companhia
das Índias Ocidentais chegou a controlar o
comércio açucareiro do Caribe e, por algum
tempo, as áreas de plantations nordestinas na
América Portuguesa.
Essas “cidades globais” do passado
eram cidades-Estado. Elas puderam desenvolver funções internacionais predominantes
porque não estavam limitadas pelas fronteiras
territoriais dos Estados modernos. Isso as distingue da Lisboa dos séculos XVI e XVII, da
Londres dos séculos XVIII e XIX ou da Nova
Iorque do século XIX, que funcionaram como
nexos do intercâmbio transoceânico, mas cujas
relações predominantes estabeleceram-se com
o espaço geográfico delimitado pelas fronteiras de Portugal, da Inglaterra e dos Estados
Unidos.
Na era da globalização, os Estados não
perdem a sua importância, e as fronteiras políticas não se dissolvem. Mesmo assim, a in-
Hong Kong: moderna e arcaica
tensidade dos fluxos que integram a economia-mundo promove o reaparecimento de cidades cuja dinâmica externa sobrepuja os laços que as conectam ao espaço interno. Entretanto, ao contrário das “cidades globais” do
passado, as contemporâneas não são, essencialmente, elos de fluxos materiais, mas de fluxos imateriais. Elas abrigam os principais mercados financeiros do planeta e as sedes das
corporações transnacionais.
Nova Iorque, Tóquio e Londres são as
clássicas “cidades mundiais” da globalização.
Wall Street é o endereço do maior mercado
financeiro do mundo. Tóquio é o centro das
finanças da Ásia e do Pacífico. A City londrina abriga o euromercado de capitais. A posição de Londres encontra-se ameaçada pelas
reticências britânicas a adotar o Euro, a moeda única européia prevista pelo Tratado de
Maastricht. Caso a Grã-Bretanha fique de fora,
o euromercado tenderá a se transferir para
Frankfurt, na Alemanha, sede do futuro Banco Central europeu.
Cingapura e Hong Kong consolidaram
as suas funções internacionais por serem, na
prática, cidades-Estado. Nesse sentido, assemelham-se às antigas Gênova, Veneza e Amsterdã. Desempenham papéis cruciais como
nexos do intercâmbio de mercadorias. Porém,
mais importante ainda, funcionam como sedes macro-regionais das corporações
transnacionais que atuam na Bacia do Pacífico. Essa função é disputada por outras cidades que, em diferentes macro-regiões, aspiram
à condição de endereços continentais das
megaempresas: Seul, Taipé, Bangcoc e Kuala
Lumpur, na Ásia, Cidade do México, São Paulo e Buenos Aires, na América Latina, Cidade
do Cabo, na África sub-saariana. Cada uma
delas é um espelho da riqueza e da miséria da
economia-mundo.
D
I
T
O
R
I
A
L
A moda de saltar no abismo com uma corda elástica atada
ao tornozelo tem sua origem em um antigo ritual indígena da
Nova Zelândia. Jovens em idade de passar à fase adulta tinham
que saltar, mas usando uma ‘‘corda’’ que, de fato, era um cipó
não-elástico. Conseqüentemente, o impacto da queda era integralmente absorvido pelo corpo do jovem. Se ele sobrevivesse,
intacto, seria admitido como novo membro adulto da tribo. Se,
ao contrário, deslocasse a perna, ou rompesse os nervos e músculos - evento, aliás, mais provável-, fracassaria.
O vestibular é um ritual que, por sua violência e grau de
arbitrariedade, não se distingue, substancialmente, da cerimônia de iniciação neozelandesa. Nos dois casos, o jovem tem que
se provar preparado para enfrentar condições potencialmente
hostis. No caso dos indígenas, condições impostas pela natureza; no caso do vestibular, pela sociedade, em que a regra básica é
vencer, derrotar a concorrência, ser o melhor.
Mas, ser o melhor em quê, exatamente? Quem foi que disse que um jovem estará melhor preparado do que outro para
enfrentar a vida universitária, só porque conseguiu acertar a resposta a um número maior de questões colocadas por uma banca
examinadora? Quem define a competência de tal ou qual banca?
E quem estabelece a justa adequação das questões formuladas?
Os que, por exemplo, leram denúncias divulgadas neste espaço
sabem que a prova de Geografia da Fuvest-96 foi medíocre, e
que os responsáveis pela sua formulação recusaram-se, autoritariamente, a sequer debater a questão.
Aí o jovem candidato que estudou, deu o máximo de si,
viveu um ano de tensão e tormento, faz o exame e, eventualmente, não passa. Pressionado pela família, por amigos, professores e parentes, pode se sentir derrotado, humilhado. É a este
jovem, principalmente, que este editorial se dirige.
Cruel ou não, o vestibular é um ritual obrigatório a todos
os que queiram seguir carreira universitária. OK. Então, que seja
cumprido. Mas se você não conseguir desta vez, isso apenas significa que você não terá preenchido as expectativas da banca.
Isso nada diz sobre sua aptidão para a vida. Se você quer mesmo, tente de novo. Mas lembre-se: a vida é infinitamente maior
do que o vestibular. Não se atormente. É mais ou menos isso:
use a corda elástica da autoconfiança - não se arrebente com o
cipó da censura alheia. E bola para frente, porque - diz o poeta tudo vale a pena se a alma não é pequena. No fim, o que importa,
mesmo, é a alma. O vestibular vem muito, muito depois.
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X
P
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N
T
E
MUNDO - Geografia e Política Internacional é uma publicação de Pangea - Edição e Comercialização
de Material Didático LTDA.
Redação: José Arbex Jr. (Editor Geral), Demétrio Magnoli (Geografia e Política Internacional),
Nelson Bacic Olic (Cartografia), Paulo César de Carvalho (Texto & Cultura)
Revisão: Paulo César de Carvalho
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MT 14.779)
Diretor Comercial: Arquilau Moreira Romão
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
Endereços: São Paulo: Rua Romeu Ferro, 501. CEP 05591-000 - Fone: (011) 211-9640; Fone-Fax: 870-1658
Ribeirão Preto: Espaço Cultural Tantas Palavras - Rua Floriano Peixoto, 989 CEP 14.025-010 Fone: (016) 634-8320 Fax: (016) 623-1875.
Belém: J.M.C. Morais, Trav. S. Pedro 261 Altos - Comércio Belém (PA) CEP 66023-570 Fone: (091) 982-9675 (celular)
Colaboradores: Jayme Brener, Newton Carlos, J.B. Natali, Nicolau Sevcenko, Rabino Henry I. Sobel,
Carlos A. Idoeta (Anistia Internacional), Roberto Kishinami (Greenpeace), Hassan El Emleh (Federação
Palestina do Brasil). Texto & Cultura: Agnaldo J. Gonçalves, Emília Amaral, José de Paula Ramos Jr.,
Lucília M. S. Romão.
A Redação não se responsabiliza pela opinião ou informação veiculadas em matérias assinadas.
Assinaturas: Por razões técnicas, só oferecemos assinaturas coletivas para escolas conveniais. Pedidos
devem ser encaminhados aos endereços acima. Exemplares individuais podem ser obtidos nos seguintes
endereços, em SP:
• Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), na Faculdade de Geografia da Universidade de SP (USP).
• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900.
• Em Ribeirão Preto: na Sucursal (v. endereço acima)
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3
Fronteiras
da globalização
Etnias e religiões erguem “muros” de ódio
Na Irlanda, na Bósnia e na Palestina, a divisão do espaço geográfico virou sinônimo de
fronts de guerra
reconduziram ao poder o Likud, partido
expansionista e avesso ao diálogo com a
OLP. O novo rumo político indicado pelas
eleições gera enormes incertezas quanto ao
futuro do processo de paz na região.
Por fim, a Bósnia continua sendo
um local de tragédias intermináveis. Essa
república da antiga Iugoslávia se constitui
num verdadeiro mosaico de povos, onde
se destacam os muçulmanos (43% da po-
pulação), sérvios (32%) e croatas (17%),
grupos que se envolveram numa sangrenta
guerra civil que durou de 1992 a 1995. No
segundo semestre de 1995, o governo dos
Estados Unidos tomou a iniciativa de reunir na cidade de Dayton representantes das
etnias em conflito além de autoridades dos
governos da Sérvia e da Croácia. O acordo
de Dayton definia que a Bósnia se tornaria
uma confederação de duas entidades autô-
nomas: a Federação Muçulmano-Croata,
controlando 51% do território, e a República Sérvia de Srpska, com os 49% restantes (v. o mapa). Embora tentando preservar a Bósnia como um Estado único, os
acordos de Dayton podem legitimar os ganhos territoriais obtidos através da limpeza étnica e cristalizar a divisão efetiva do
país em zonas etnicamente homogêneas.
O REINO UNIDO E A IRLANDA DO SUL
A QUESTÃO PALESTINA
LÍBANO
CO
MAR
MEDITERRÂNEO
NTI
Mar
do Norte
OA
TLÂ
O que há de semelhante entre o
Ulster, a Palestina e a Bósnia? Todas essas
regiões têm sido, há algum tempo, focos
de tensão geopolítica, onde se chocam interesses étnicos, nacionais e religiosos.
No caso do Ulster, também conhecido como Irlanda do Norte, o que chama
a atenção é o antagonismo religioso. Lá, a
maioria da população é protestante e deseja continuar sendo parte integrante do Reino Unido. Todavia, existe uma minoria
católica (cerca de 35% da população) que
quer se livrar da tutela de Londres e unir o
Ulster à Irlanda do Sul, ou Eire, onde a
maioria da população é católica (v. o mapa).
A rivalidade entre os dois grupos religiosos
é muito antiga e uma parcela dos católicos
sustenta o IRA (Exército Republicano Irlandês) que, ao longo de décadas, fez do
terrorismo o eixo da sua estratégia política.
Os atos praticados pelo IRA e a conseqüente reação britânica (apoiada pelos protestantes), transformaram o Ulster numa das
mais importantes e permanentes áreas de
tensão na Europa Ocidental. As iniciativas
políticas e diplomáticas para solucionar o
conflito, esboçadas em setembro de 1994,
tiveram até hoje pouco efeito prático.
Já na Palestina, região geográfica
onde se situa atualmente o Estado de Israel, os confrontos se verificam entre judeus
e palestinos, especialmente na Faixa de Gaza
e Cisjordânia (v. o mapa). Esses dois territórios, habitados majoritariamente por palestinos, foram conquistados por Israel na
Guerra dos Seis Dias, em 1967. De lá para
cá, os vários governos israelenses estimularam a implantação de colônias de população judaica nos territórios palestinos, acirrando os ânimos entre as duas comunidades e multiplicando os obstáculos a uma
paz negociada.
As novas condições internacionais
geradas pelo fim da Guerra Fria e pelo desfecho da Guerra do Golfo, em 1991, possibilitaram a assinatura de um histórico
acordo entre o governo de Israel e a Organização Para a Libertação da Palestina
(OLP), em setembro de 1993. Neste acordo, previa-se a instalação de um regime de
autonomia limitada para os palestinos na
Faixa de Gaza e na cidade de Jericó, situada na Cisjordânia. Dois anos depois, em
setembro de 1995, um novo acordo fixava
a meta da extensão gradual da autonomia
para outras importantes cidades da
Cisjordânia. Contudo, as eleições realizadas em Israel, em maio passado,
SÍRIA
A BÓSNIA APÓS OS ACORDOS DE DAYTON
1
CROÁCIA
ESCÓCIA
OC
EAN
4
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
2
IRLANDA
DO NORTE
SÉRVIA
Jerusalém
IRLANDA
DO SUL
INGLATERRA
PAÍS
DE
GALES
CROÁCIA
JORDÂNIA
3
Sarajevo
Londres
ISRAEL
Reino Unido
MONTENEGRO
MAR
ADRIÁTICO
EGITO
Federação Muçulmano Croata (51% do território)
República Sérvia de Srspka (49% do território)
Territórios
ocupados por
Israel
1 Colinas de Golã
2 Cisjordânia
3 Faixa de Gaza
ARÁBIA SAUDITA
MUNDO no Vestibular
1) A Irlanda do Norte ou Ulster vem se constituindo num dos focos de tensão permanente na Europa Ocidental. Com base nos
seus conhecimentos sobre o assunto, caracterize resumidamente os principais aspectos do conflito que ocorre naquela região
européia.
2) No segundo semestre de 1995, foi esboçado um plano de paz para a Bósnia em Dayton (EUA).Quais foram os principais itens
definidos pelo acordo de Dayton?
3) Aponte a principal diferença dos acordos de paz firmados em 1993 e 1995 entre a Organização de Libertação da Palestina
(OLP) e o governo de Israel.
RESPOSTAS
1) O Ulster é parte integrante do Reino Unido, e sua população é constituída por duas comunidades religiosas. A maioria da
população é protestante, mas existe uma expressiva minoria católica. A rivalidade entre as duas comunidades é bastante antiga.
Os católicos pretendem que o Ulster se separe do Reino Unido e junte-se à Irlanda do Sul, onde a imensa maioria da população
é católica, enquanto que os protestantes pretendem continuar unidos à Grã Bretanha. Foi para defender os interesses da
minoria católica que foi criado o Exército Republicano Irlandês (IRA).
2) Os acordos de Dayton definiram que a Bósnia seria considerada como um estado único, mas que teria duas entidades territoriais
com grande grau de autonomia: a Federação Mulçumano-Croata, com 51% do território, e a República Sérvia de Srspka,
ocupando o restante do país.
3) Em setembro de 1993, ficou estabelecido que se estalaria um regime de autonomia limitada para os palestinos na Faixa de Gaza
e na cidade de Jericó, situada na Cisjordânia. Em setembro de 1995, um novo acordo estendia a autonomia para outras
importantes cidades da Cisjordânia, acordo este não totalmente cumprido pelo governo de Israel (principalmente na cidade de
Hebron).
OUTUBRO
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MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
Fronteiras
da globalização
5
Devolução de Hong Kong e do Canal
marca fim de uma era
As duas rotas que ligaram o Ocidente ao Oriente retornam aos seus donos - respectivamente, a
China continental (comunista) e o Panamá
A devolução das duas rotas não tem
o mesmo significado. A importância de
Hong Kong jamais foi tão grande quanto
nesse final de século e a passagem à soberania chinesa cobre a colônia com uma nuvem de incertezas. A importância do Canal
do Panamá reduziu-se paulatinamente, e a
passagem ao controle panamenho representa pouco mais que uma troca de guarda.
Hong Kong é uma cidade-mundial
(v. pág. 3). É, acima de tudo, a porta de
entrada dos investimentos internacionais na
China, que cresce, há meia década, a taxas
de quase 10% ao ano. Nem o mundo dos
negócios nem a China dos neo-comunistas querem assistir ao declínio da cidaderota. Mas há o imponderável. O tratado de
devolução assegura a manutenção das normas econômicas de Hong Kong, mas não
das suas liberdades políticas. Pequim não
pode conviver com a democracia na Hong
Kong incorporada, pois teme o poder de
contágio desse vírus. Parte da população de
Hong Kong não parece disposta a aceitar o
ferrolho dos mandarins vermelhos. O
declínio é uma possibilidade real, mesmo
HONG KONG: A PÉROLA DO ORIENTE
C
H
I
N
C A N A L D O PA N A M Á
OCEANO
ATLÂNTICO
A
contrariando a vontade dos dois lados.
O Canal do Panamá é uma passagem congestionada, com seus atuais 12 mil
navios/ano. Os superpetroleiros e
megagraneleiros de hoje já circunavegam a
América do Sul. Cogita-se de um novo canal, na parte nicaragüense do istmo, ou de
um “canal seco” que integre ferrovia,
oleoduto e navios. Além do mais, desde a
invasão americana de 1989, Washington
manda diretamente no governo do Panamá. Quando se tem o todo, para que vai se
querer a parte?
Colón
ECLUSAS DE
GATÚN
Shenzhen
Kow Loon
Victória
ECLUSAS DE
PEDRO MIGUEL
ECLUSAS DE
MIRAFLORES
Balboa
Capital
Outras cidades
MAR DA CHINA
Limites de Hong Kong
Ferrovia
Espaço urbanizado
Zona do Canal (soberania do
Panamá e administração dos EUA)
Panamá
OCEANO
PACÍFICO
Zona econômica especial
MUNDO no Vestibular
1) O ano de 1997 será marcado por alguns fatos de relevância política desde há muito anunciados. Dois pontos estratégicos no
caminho de importantes rotas comerciais serão devolvidos aos seus “donos originais”: o canal do Panamá e Hong Kong. Com base
nos seus conhecimentos sobre o assunto, responda:
a) Quais os dois países que vêm dominando estes dois importantes pontos estratégicos do mundo atual? b)Qual a importância
estratégica do canal do Panamá para os EUA? c) Qual a importância estratégica de Hong Kong?
RESPOSTAS
1a) O canal do Panamá está, desde o início do século XX, sob o domínio dos Estados Unidos, enquanto que Hong Kong tem
estado ligado à Grã Bretanha desde a segunda metade do século XIX.
1b) Este canal inter-oceânico cuja construção foi concluída em 1914, serviu desde o início como ligação marítima entre as costas
leste e oeste dos Estados Unidos. Hoje se apresenta também como a principal rota comercial entre os EUA e os mercados da Ásia
e Pacífico. Também passam por aí as mercadorias que saem do Japão e Tigres Asiáticos e se destinam ao mercado americano.
1c) Este protetorado britânico que se estende por áreas peninsulares e insulares junto ao litoral sudeste da China Comunista foi
cedida pelo governo chinês no século XIX ao Império Britânico, que exploraria região por 99 anos. Inicialmente, Hong Kong
funcionou como uma espécie de elo de ligação entre o Extremo Oriente e Ocidente. Hoje, o seu papel mudou um pouco: é a
principal porta de entrada de investimentos internacionais que se dirigem à China, país que nos últimos anos vem apresentando
as maiores taxas de crescimento econômico do mundo
Em 1997, dois baluartes da expansão dos impérios marítimos retornarão aos
seus donos originais: Hong Kong e o Canal do Panamá. A colônia britânica no Mar
da China Meridional passará à soberania
da China Popular. O canal oceânico no istmo centro-americano passará à administração panamenha, como etapa para a completa devolução em 1999.
A Hong Kong britânica nasceu da
Guerra do Ópio (1839-42). Derrotados, os
chineses foram obrigados a ceder a Londres uma ilha na foz do rio Sikiang. Pouco
mais tarde, a península de Kowloon foi
anexada à ilha e, em 1898, os britânicos
obtiveram uma concessão de 99 anos sobre os chamados Novos Territórios, nas
cercanias da península, que perfazem 90%
da superfície de Hong Kong (v. o mapa).
O Canal do Panamá americano
nasceu junto com a Política do Big Stick. A
recusa do Senado colombiano em ratificar
um tratado que permitiria a Washington
construir e usufruir da soberania sobre um
canal oceânico foi respondida com o estímulo direto à secessão da região ístmica da
Colômbia. Em 1904, o país que surgiu da
separação - o Panamá - assinou o tratado
de “cessão perpétua” da Zona do Canal e
as obras foram iniciadas, concluindo-se em
1914.
A Colônia da Coroa e o Canal dos
ianques cumpriram funções similares, num
mundo que atravessava a euforia do comércio internacional - ambos foram rotas de
uma fase áurea da globalização. Hong Kong
funcionou como ponte entre a China e a
Europa, envolvendo o Extremo Oriente nos
circuitos econômicos comandados pelo
Ocidente. De uns poucos pescadores em
1841, o território pulou para 300 mil habitantes no final do século e 1,6 milhão em
1940. Hoje, abriga quase 6 milhões e ostenta PIB per capita superior ao de países
da Europa Ocidental. O Canal do Panamá
surgiu como ligação marítima entre as costas leste e oeste dos Estados Unidos, integrando os fluxos daquele que já tinha se
tornado o maior mercado nacional do planeta. Com o tempo, tornou-se a principal
rota entre o leste americano e os mercados
da Ásia e do Pacífico, para finalmente transformar-se na grande rota das exportações
japonesas e dos Tigres Asiáticos para o Ocidente (v. o mapa).
OUTUBRO
96
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
Refugiados e exilados já somam 50 milhões no mundo
Fronteiras
da globalização
Os números da tragédia
Em 1991, a Acnur tinha sob sua responsabilidade
17 milhões de refugiados; em 1993, 23 milhões; no
começo de 1995, 27 milhões. Destes 27 milhões,
14,5 milhões são refugiados que saíram de seu país;
5,4 milhões foram deslocados, mas permaneceram
nos limites das fronteiras de seu próprio país; 4
milhões regressaram ao seu país, mas vivem em
condição sub-humana e continuam sob
responsabilidade da Acnur; os restantes 3,5 milhões
foram expulsos de seu país, mas sequer são
reconhecidos como refugiados. Outros 23 milhões
estão espalhados pelo mundo, mas sem contar com
a proteção da Acnur. Nenhum continente escapa ao
problema dos deslocamentos populacionais em
massa. Atualmente, é possível encontrar populações
de refugiados superiores a 10 mil pessoas em 70
países em todo o mundo.
No Cáucaso, há pelo menos
1,5 milhões de refugiados
como resultado dos conflitos
entre países e também de
conflitos internos.
Na Rússia, desde 1994 há centenas
de milhares de refugiados da
guerra na Chechênia.
No Afeganistão, a longa
guerra contra soldados soviéticos
(1979/88) fez milhares de refugiados
no Paquistão e no Irã. A guerra civil
dos últimos 8 anos só fez agravar
a já caótica situação regional.
No Oriente Médio,
existem pelo menos
2,8 milhões de palestinos
espalhados por vários Países
em torno de Israel, de onde
fugiram ou foram expulsos.
Mais de 1 milhão
de refugiados ruandenses
chegaram ao Zaire em 1994.
Foi um dos maiores e mais
rápidos movimentos de
refugiados já vistos.
Atualmente, a ONU
da proteção e ajuda
a 2,2 milhões de
pessoas da região
No Sri Lanka, antigo Ceilão,
o sangrento conflito entre
o governo central e a minoria
tâmil, causou mais de 100 mil
refugiados no próprio País
e na Índia.
Depois de quase
duas décadas de conflitos
internos, cerca de
1,6 milhões de pessoas
voltaram para
Moçambique
entre 1992/95
Em setembro, as brasas ainda
quentes da Guerra do Golfo de 1991 volMAR
GEÓRGIA
taram a crepitar. Forças blindadas do diNEGRO
tador iraquiano Sadam Hussein penetraARMÊNIA AZERBAIJÃO
TURQUIA
MAR
ram na zona de exclusão aérea do norte
CÁSPIO
do país, desencadeando retaliações aéreas
dos Estados Unidos. O pavio da nova
paralelo 36ºN
confrontação foi aceso pelas disputas
SÍRIA
clânicas entre os curdos. Os curdos são
MAR
IRÃ
MEDITER. LÍBANO
refugiados especiais, em dois sentidos. São
IRAQUE
Bagdá
refugiados na sua própria terra, e constiISRAEL
paralelo 32ºN
tuem a mais numerosa minoria nacional
JORDÂNIA
do mundo. Há cerca de 25 milhões de
KUWAIT
GO
curdos, quase todos repartidos pela TurLF
O
PÉ
quia (12 milhões), o Irã (5,5 milhões), o
RS
IC
Iraque (4 milhões) e a Síria (1 milhão).
O
QATAR
ARÁBIA SAUDITA
O Curdistão (v. o mapa) não é um
E.A.U.
EGITO
Estado, mas uma região histórica recortada pelas fronteiras políticas desses EstaÁrea de população curda
dos do Oriente Médio. Os primeiros reSUDÃO
OMÃ
gistros da presença dos curdos na região
datam do início do primeiro milênio antes da Era Cristã, na época dos Medas e
dos Assírios. A singularidade cultural curda sobreviveu aos milênios graças à segurança proporcionada pela natureza e aos caprichos da geopolítica dos impérios. Praticando o pastoreio transumante
nas montanhas da Alta Mesopotâmia, do Anti-Taurus e do Zagros, as tribos curdas puderam se
defender dos povos das planícies e dos planaltos. Situadas em uma zona-tampão entre os impérios
turco e persa, souberam conservar uma vasta autonomia política real adaptando-se à flutuação das
rivalidades vizinhas.
“Turcos das montanhas” - é assim que os turcos denominam os curdos, negando-lhes uma
identidade e, com isso, legitimando a repressão militar contra as atividades separatistas em território da Turquia. Os curdos são, majoritariamente, muçulmanos sunitas, mas há uma numerosa
minoria de muçulmanos xiitas e existem até mesmo curdos judeus. Não há uma única língua
curda, mas diferentes dialetos derivados de um tronco comum indo-europeu. Não é a religião ou a
língua que confere identidade a esse povo sem Estado, mas a sua história comum e a organização
social clânica que o caracteriza.
No passado, os curdos defenderam a sua autonomia manipulando as rivalidades inter-imperiais. Mas a consolidação dos Estados do Oriente Médio inverteu as coisas, transformando-os em
joguetes dos poderes políticos regionais. Na Guerra Irã-Iraque (1980-88), os aiatolás de Teerã incentivavam o separatismo dos curdos do Iraque, enquanto o ditador de Badgá manipulava os curdos
do Irã. Durante a guerra, Sadam Hussein arrasou povoados curdos no norte do Iraque, utilizando
armas químicas contra populações civis. Desde o final da década de 80, a Síria financia o Partido
dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), facção separatista dos curdos da Turquia.
Vitoriosos na Guerra do Golfo, os americanos desistiram de eliminar o regime de Sadam
Hussein, por falta de alternativas. Washington temia que um vácuo de poder realçasse a posição de
potência regional do Irã e conduzisse à fragmentação do Iraque pela separação da região curda do
norte, com repercussões desastrosas sobre a integridade territorial da Turquia. O ex-presidente
George Bush escolheu a estratégia da “dupla dissuasão”, pela qual Iraque e Irã se anulariam mutuamente. Ao mesmo tempo, estabeleceu zonas de exclusão aérea, no norte e no sul do Iraque, patrulhadas por aviões americanos, britânicos e franceses, a fim de restringir o espaço de manobras
militares de Sadam Hussein. A zona de exclusão aérea do norte, que se estende até o paralelo 36,
funcionaria como santuário para os curdos iraquianos.
A frágil arquitetura americana começou a ruir no santuário curdo. Divididos entre duas
lideranças - uma representada pelo Partido Democrático Curdo (KDP) e outra pela União Patriótica do Curdistão (PUK) - os curdos do Iraque deflagraram uma guerra clânica. Retomando o
padrão da década passada, cada um dos lados associou-se a um dos poderosos vizinhos: a PUK
restabeleceu os laços com o Irã, o KDP jogou-se nos braços de Sadam. Foi esse o pretexto encontrado pelo ditador iraquiano para mover as suas forças pelo interior do santuário curdo, definindo o
conflito a favor do KDP e obrigando a PUK a se refugiar no Irã.
A ofensiva de Sadam desmontou o arranjo do final da Guerra do Golfo. E os perigos continuam a se multiplicar. A Turquia, que há um ano enviou grandes contingentes blindados para
atacar as bases guerrilheiras do PKK instaladas do outro lado da fronteira, no santuário curdo do
norte do Iraque, prepara-se para estabelecer uma zona-tampão entre o seu território e o do Iraque.
Washington já deu o aval para a iniciativa do aliado, que consistirá na ocupação do extremo norte
iraquiano, destinada a varrer de lá os guerrilheiros do PKK. A supressão do colchão curdo protegido do Iraque setentrional aproxima as forças de Sadam das forças turcas e iranianas. A “nação de
refugiados” pode se tornar o vetor de um novo conflito regional em grande escala.
O MAPA DA DISPERSÃO
O
LH
Na África Ocidental,
mais de 1 milhão de pessoas
exiladas se encontram na
Guiné e Costa do Marfim,
por conta dos conflitos
ocorridos na Libéria e
em Serra Leoa.
Guerra entre clãs curdos desmonta arranjo da Guerra do Golfo,
recoloca Sadam no jogo de poder e ameaça incendiar a região
Do relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 1995
Na ex-Iugoslávia
existem pelo menos
3,7 milhões de refugiados,
desde o início das
hostilidades que levaram
à desintegração do País.
Cerca de 2,7 milhões são
apenas da Bósnia.
No México, existem
ainda cerca de
40.000 refugiados
dos conflitos que
ocorreram na
Guatemala.
Nação curda catalisa novo conflito
no Iraque
ME
Boutros-Ghali referiu-se, também,
às ‘‘mudanças radicais no social e no econômico’’. De fato, o neoliberalismo - ambiente no qual se desenvolve a globalização
- implicou, nos países ricos, o
desmantelamento do Estado de bem-estar
social; nos países pobres, o agravamento da
penúria em que vive a maioria da população, agora destituída de um mínimo de assistência antes assegurada pelo Estado. No
plano internacional, o neoliberalismo implicou o aprofundamento da subordinação
do Sul agrário e importador ao Norte rico
e industrializado. Os grandes blocos (com
a exceção do Mercosul) impõem suas normas e condições ao funcionamento da economia. Em contrapartida, os fluxos de capitais, através dos sistemas informatizados,
tornam o Sul completamente vulnerável às
oscilações do jogo especulativo.
O resultado geral é o agravamento
da pobreza - e, com ela, a intolerância e o
antagonismo. A combinação desses elementos produz, não raro, a desintegração do
Estado, e a conseqüente multiplicação dos
conflitos e desmandos. Os refugiados, enfim, fornecem a radiografia do mundo
globalizado. Eles - e não as vitrines brilhantes de Nova York ou as telas reluzentes da
Internet - explicitam o zeitgeist, o espírito
de nossa época.
ER
milhares de palestinos condenados a viver
em miseráveis acampamentos de refugiados na própria Palestina e mundo afora. É
também a marca dos conflitos entre hindus
e islâmicos na Índia e Paquistão, ou entre
Iraque, Turquia e Síria e a minoria curda
espalhada por esses países (v. pág. 7).
Antagonismo é o que se observa, por
exemplo, no conflito entre Rússia e
Chechênia. Iniciado com a invasão da
Chechênia pelo Exército russo, em dezembro de 1994, com o objetivo de derrotar o
separatismo, a guerra se arrasta sem perspectiva realista de solução. Em quase dois
anos, expulsou de sua terra dezenas de
milhares de civis cansados do morticínio,
atemorizados e / ou com a vida destroçada
pela perda de familiares e propriedades.
Pobreza é uma das causas centrais
dos numerosos conflitos tribais na África,
responsáveis por milhões de mortos, feridos e refugiados. Em Ruanda e Burundi,
por exemplo, hutus e tutsis disputam o espólio de um Estado em frangalhos. Um
quadro semelhante, mas com vernizes ideológicos, repete-se em Angola,
Moçambique e outros Estados africanos, a
maioria deles entulhados com os mais modernos armamentos, vendidos pelos Estados Unidos, Rússia, países europeus e Brasil.
RV
MA
‘‘Os refugiados e outras pessoas expulsas de seu território são produto do fracasso quando se trata de resolver os conflitos e suas causas subjacentes: intolerância,
antagonismo e pobreza. As mudanças radicais no econômico e no social agravaram,
em muitos casos, essa mistura explosiva e
deram lugar a um fértil caldo de cultivo
para a violência e violação dos direitos humanos. Em alguns casos, a própria estrutura do Estado se desintegrou e isso provocou novos deslocamentos massivos.’’
A descrição de Boutros BoutrosGhali, secretário-geral da ONU, tem o
mérito da síntese. Quando muitos acreditam que o fenômeno da globalização significou o fim do Estado nacional, a diluição
das fronteiras em um universo razoavelmente harmônico - justamente nesta época é que se agrava a questão dos refugiados.
Boutros-Ghali aponta as causas: intolerância, antagonismo, pobreza.
Intolerância étnica e religiosa é o
que propõe, por exemplo, a plataforma
política do atual pemiê de Israel, Benyamin
Netaniahu, do Likud. ‘‘Bibi’’ venceu as eleições, em junho, com base na promessa de
interromper o processo de devolução dos
territórios de Cisjordânia e Gaza aos palestinos. Com isso, aumentou o desalento e a
propensão ao radicalismo de centenas de
Os movimentos em grande escala de refugiados e de outros emigrantes forçados
converteram-se em uma característica que define o mundo contemporâneo. Na história
recente, poucas vezes houve tantas pessoas em tantas partes do mundo obrigadas a deixar
seus países e comunidades para buscar segurança em outros locais. Nunca antes a questão
do deslocamento de populações em massa atingiu tal grau de prioridade na agenda das
Nações Unidas e de seus Estados membros. E em nenhuma outra época a situação das
pessoas desenraizadas foi mostrada de forma tão plástica a um público tão vasto
AP/AJB
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MUNDO REFUGIADO
OUTUBRO
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No “chifre da África”
existem mais de 1,6 milhões
de refugiados, gerados pelos
conflitos entre países e
principalmente por conta
de conflitos internos, como
aqueles que ocorrem
no Sudão e Somália.
OUTUBRO
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7
8
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
Fronteiras
da globalização
Brasil quer a integração comercial
de toda a América do Sul
Chile e Bolívia assinam tratados de associação, mas não aderem ao Mercosul; Brasil impulsiona estratégia do building-blocks
O ano do alargamento do Mercosul
- essa poderia ser uma manchete de síntese
da evolução do Cone Sul em 1996, se fosse
verdade o que a imprensa brasileira noticiou nos últimos meses. Interpretando de
forma simplista - e errada - os tratados firmados pelo Chile e Bolívia com o
Mercosul, jornais e televisões anunciaram
a adesão dos dois ao bloco sub-regional liderado pelo Brasil e a Argentina.
Isso não aconteceu, pelo menos por
enquanto. Mas foi dado um primeiro passo nessa direção: o Chile e a Bolívia firmaram tratados de associação com o Mercosul,
o que significa que, sem aderir ao bloco,
eles passam a aceitar regras de tarifas comerciais reduzidas no intercâmbio com os
quatro integrantes do Tratado de Assunção
de 1991 (veja o Mapa). O passo adiante
não aponta para o alargamento do Mercosul
por agregações sucessivas, mas para o desenvolvimento de um processo mais complicado, que os diplomatas brasileiros apelidaram de estratégia do building-blocks.
O Chile esnobou o Mercosul até há
pouco. “Adios, Latinoamerica”, chegou a
trombetear uma manchete de El Mercurio,
o principal diário de Santiago, resumindo
uma política voltada para a Bacia do Pacífico e uma estratégia de integração ao Nafta.
As coisas mudaram. A solicitação de adesão à zona de livre comércio liderada pelos
Estados Unidos esbarrou no colapso financeiro mexicano de dezembro de 1994. Escaldados, os parlamentares americanos negaram a tramitação rápida da solicitação no
Congresso e as negociações continuam a se
arrastar. Além disso, a abertura comercial
que se espraia pela América Latina repercutiu sobre o intercâmbio externo chileno,
puxando-o de volta para o subcontinente
(v. o gráfico).
A Bolívia solicitou, em julho de
1992, a adesão gradual ao Mercosul. O
gradualismo boliviano está orientado para
contornar um obstáculo político e diplomático: o país faz parte do Pacto Andino e
o Tratado de Assunção não permite a entrada de integrantes de outras zonas de livre comércio. Mas, no terreno da economia e da geografia, a Bolívia está cada vez
mais colada ao Mercosul. O acordo recente para fornecimento de gás natural e construção de um gasoduto Brasil-Bolívia vale
mais que as filigranas jurídicas que bloque-
iam a adesão imediata. E as perspectivas de
cooperação de todos os países do Cone Sul
tendem a abrir duas saídas oceânicas regulares para a Bolívia, cuja história está
marcada pela perda dos portos de Atacama,
na Guerra do Pacífico (1879-83).
Não é provável que o Chile ingresse plenamente no atual Mercosul. As tarifas comerciais chilenas já são mais baixas,
em média, que a Tarifa Externa Comum
do Mercosul, e Santiago não quer perder
as suas vantagens comerciais no intercâmbio com o Nafta e a Bacia do Pacífico. A
Bolívia não pretende deixar o Pacto Andino
para entrar no Mercosul, e o Chile, com
melhores razões, não pretende desistir do
ingresso no Nafta. O horizonte com o qual
trabalham os diplomatas brasileiros é o da
articulação gradual do Mercosul com os
países e blocos comerciais vizinhos, com
vistas à formação de uma Associação de
Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa).
Essa é a estratégia do buildingblocks. A sua meta consiste em criar, a partir de um grande bloco comercial na América do Sul, a plataforma ideal para negociar a integração pan-americana com a superpotência do norte. É por isso que o Brasil
não tem pressa nas conversações destinadas à formação de uma super zona de livre
comércio das três Américas, que foram
lançadas pelo ex-presidente dos Estados
Unidos, George Bush, em 1990.
ASPECTOS ECONÔMICOS DO MERCOSUL
Destino das exportações chilenas
(US$milhões)
NORDESTE
AMAZÔNIA
4372
PERU
BRASIL
3712
BOLÍVIA
3085
Brasília
2920
B.Horizonte
2409
OCEANO
PACÍFICO
1306
877
565
764
PARAGUAI
CHACO
Assunção
ARGENTINA
386
Córdoba
União Européia
América Latina
1985
1995
Japão
Estados Unidos
Outros
CHILE
Rosário
PAMPA
B.Aires
CENTRO-SUL
S. Paulo
IA
ÂM
R.de Janeiro
Curitiba
OT
OP P.Alegre
ES
M
URUGUAI
Montevidéu
Fonte: The Economist, 24.ago.96, pg.34
OCEANO
ATLÂNTICO
PATAGÔNIA
Grandes metrópoles e
capitais
Cidades importantes
Regiões industriais
Usina de Itaipu
MUNDO no Vestibular
1) Em relação aos blocos econômicos internacionais existentes na atualidade, o Mercosul apresenta algumas peculiaridades em
relação aos países que o compõem. Aponte duas dessas peculiaridades.
2) Pode-se afirma que atualmente tanto o Chile como a Bolívia encontram-se totalmente integrados ao Mercosul? Justifique sua
resposta.
3) O processo de integração territorial interna dos dois mais importantes países do Mercosul ainda não foi totalmente atingido.
Identifique duas importantes regiões (uma de cada país) em que essa integração territorial interna não foi conseguida e dê as
principais características naturais de cada uma delas.
RES POST AS
1) O Mercosul é o único bloco econômico do hemisfério sul que se encontra consolidado na atualidade. Outra peculiaridade é que
ele é composto exclusivamente por países do chamado Terceiro Mundo.
2) Não. Esses dois países já assinaram tratados de associação, mas ainda não aderiram efetivamente ao Mercosul como países
membros do bloco. O Chile, em 1996, passou a ter tarifas reduzidas no comércio com os quatro países do Mercosul. A Bolívia
vem aderindo gradativamente desde 1992, mas ainda não é também um membro efetivo do bloco.
3) As duas principais regiões de Brasil e Argentina ainda não integradas territorialmente ao Mercosul são a Amazônia e a Patagônia,
respectivamente. Ambas apresentam baixíssimas densidades demográficas, mas possuem características naturais bem diferenciadas. Enquanto a Amazônia apresenta-se como o domínio das terras baixas florestadas equatoriais, a Patagônia corresponde a
regiões estépicas frias e secas. A falta de integração dessas duas regiões é em grande parte resultado da distância de cada uma
delas dos núcleos geoeconômicos do Mercosul, especialmente o Sudeste brasileiro e a região pampeana argentina, onde situase Buenos Aires.
OUTUBRO
96
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
O brasileiro adora torcer, escolher
entre dois times, entre o mocinho e o bandido. Mas com o Plano Real, não dá para
agir como torcida de futebol, escolher ser
contra ou a favor. A pintura é mais complexa, e está inacabada.
A primeira – e mais importante –
conquista do plano foi derrubar a inflação.
O bicho-papão, que já chegara a 50% mensais, fechou em 20% para todo o ano de
1995 e deve cair para 15% anuais, até dezembro. Ganhou a parcela mais pobre da
população, que não tinha renda para utilizar aplicações bancárias, capazes de protegêla um pouco da inflação. Segundo a mais
recente Pesquisa Nacional por Amostragem
de Domicílios (PNAD/IBGE), entre 1993
e 1995 o rendimento médio dos brasileiros mais pobres, maiores de dez anos de
idade, subiu de R$ 24 para R$ 48 ao mês.
É muito pouco? Verdade. Mas é o dobro.
Se os 10% mais pobres ficavam em 1993
apenas com 0,7% da renda nacional, hoje
absorvem 1,1%. E os 10% mais ricos, que
engoliam 49,8% do bolo, terminaram 1995
com 28,2%.
O avanço pode parecer pequeno.
Mas foi suficiente para ampliar o número
de brasileiros em condições de consumir.
Em dois anos, a porcentagem de casas com
geladeiras cresceu de 71,7% para 74,8%.
São quatro milhões a mais. Havia, no ano
passado, 15% de domicílios com freezers,
contra 12% em 1993. Os preços de muitos eletrodomésticos, entre eles as geladeiras, baixou, devido à oferta maior de marcas. Efeito da globalização, outro sonho
dourado do Plano Real. Mas a estabilização econômica teve um papel decisivo no
aumento do consumo, que foi ainda mais
expressivo em se tratando de alimentos.
Não se pode, porém, julgar o plano com espírito de torcida. O governo não
conseguiu resolver mazelas antigas do país.
A reforma agrária só caminha quando aumenta a pressão dos movimentos por terra. Ou quando ocorre alguma chacina no
campo, sempre acompanhada pela gritaria
da opinião pública internacional. A impunidade continua reinando absoluta. Nos
últimos dez anos, 881 pessoas morreram
na luta pela terra no Brasil. Só três casos
foram a julgamento e dois assassinos estão
cumprindo pena.
Em dois anos, o plano de estabilização econômica aumentou o consumo popular e encaixou o Brasil na
economia mundial, mas desindustrializou o país e ampliou o desemprego
Outro dado que a PNAD aponta é
que o aumento do consumo não ocorre no
mesmo ritmo da melhoria da infraestrutura
fornecida pelo Estado. Entre 1993 e 1995,
a porcentagem de lares com água encanada
só cresceu de 75% para 76%. O serviço de
esgoto foi de 59% para 60% das casas, um
aumento quase vegetativo. Quer dizer, nessa
fase de enxugamento de gastos públicos (o
que não vale para os políticos aliados), o
Estado não vem fazendo a sua parte para
garantir um novo ciclo de desenvolvimento. Mas o maior custo do Plano Real é o
aumento do desemprego. A PNAD aponta um recuo da taxa de desemprego, de
6,8% para 6,1%, em 1995. Mas o número
de desempregados deve crescer em 1996
porque, nos últimos 12 meses, a indústria
paulista fechou 320 mil postos de trabalho. Para onde vai essa gente toda ? Para o
“mercado informal”, quase sempre, trabalhar sem direitos como o 13° salário ou férias remuneradas. A taxa de trabalhadores
com carteira assinada caiu de 29% para
28,1% em dois anos.
Há quem diga que o quase desaparecimento de setores inteiros da indústria
(autopeças, máquinas e brinquedos), revela a incompetência de muitos empresários
em enfrentar a concorrência de chineses ou
japoneses. Em parte, é certo. Muitos industriais nunca se preocuparam em investir,
modernizar suas fábricas, porque os impostos altos sobre as importações evitavam a
competição internacional. Hoje, se o Brasil deseja firmar-se na economia mundial,
deve permitir o ingresso de produtos estrangeiros, ainda que sob determinadas
condições. O problema é que há setores da
indústria sendo sufocados pelas taxas altas
de juros, que o governo usa para atrair investidores, enxugar a quantidade de dinheiro que circula, aumentar suas reservas em
dólares e assim segurar a inflação e a paridade real/dólar.
O governo argumenta que, com a
estabilidade, as taxas de juros vêm caindo.
É certo. Mas se um sujeito for a um banco
em busca de um empréstimo para comprar
uma máquina, ainda terá que pagar pelo
menos 40% de juros anuais. Melhor então
importar, já que os fabricantes estrangeiros
oferecem financiamentos a 8% ou 10% de
juros ao ano. Isso significa condenar setores importantes da indústria a morrer de
inanição. Setores que seriam decisivos para
que o Brasil, controlada a inflação, arrancasse rumo a uma nova fase de desenvolvi-
mento econômico. Nos últimos meses, o
governo até que vem adotando medidas de
proteção à indústria. Impôs barreiras à importação de certos produtos, como os lápis
e brinquedos chineses, que vinham arrebentando os concorrentes nacionais. Tudo com
muito cuidado, para evitar represálias da
comunidade internacional. Também reduziu impostos para os exportadores.
O jogo de interesses em torno do
Plano Real foi explicitado no período eleitoral. O governo e os partidos que o sustentam querem que os empresários apóiem
seus candidatos e continuem funcionando
como torcida de futebol, para dar uma força ao Plano Real. Só que, desde o início
deste artigo, a idéia é escapar do raciocínio
das torcidas. Fica então a pergunta: passadas as eleições, o governo e seu Plano Real
terão ou não um plano consistente de combate ao desemprego? O Estado vai ou não
ampliar seus gastos com serviços básicos e
assistência social? No lado oposto, serão as
oposições capazes de formular um plano
econômico alternativo ao Real ? Conseguirão convencer-se de que a população considera o controle da inflação uma conquista importantíssima? Coisa para um novo
artigo de balanço, talvez daqui a dois anos.
‘‘Sutil, llegaste a mi como una tentación...’’
O Real foi, em larga medida, inspirado pelo
Plano Cavallo de estabilização econômica,
deflagrado na Argentina em abril de 1991.
Durante cinco anos, o superministro da
Economia Domingo Cavallo foi uma
espécie de símbolo da estabilidade do peso.
Em agosto, porém, a desindustrialização e o
desempregro derrubaram a principal figura
do governo Menem
A manutenção da estabilidade econômica a
qualquer custo tornou-se um objetivo
estratégico de FHC, que pretende disputar a
reeleição nas próximas presidenciais - caso
consiga mudar as atuais regras do jogo
eleitoral; FHC repete, nesse sentido, a
trajetória do presidente argentino Carlos
Menem, reeleito em 1995 graças ao
aparente sucesso do Plano Cavallo
L.Fochetto
Jayme Brener
Da Equipe de Colaboradores
9
Moderno e arcaico caminham
juntos no Plano Real
Luiz Antonio/AJB
Fronteiras
da globalização
OUTUBRO
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Diário de Viagem - Especial
Laís Guaraldo, 31 anos, ilustradora de Mundo,
é palestrista e professora de História da Arte no Colégio Oswald de Andrade, em São Paulo.
Velejando pelo Caribe
“Foi mais do que uma tropical
depression, foi uma tropical storm”. Por
toda a parte a notícia corria: a tempestade estava chegando. Ficamos sabendo
com dois dias de antecedência e ninguém
imagina com que força o vento vai chegar. Sabíamos que normalmente em
Bonaire não há risco de furacões, mas os
antilhanos sempre esperam as tempestades preparados para o que der e vier.
No ano passado, o furacão que passou
por San Martin foi de 350 km/h, afundou todas as embarcações e fez voarem
aviões e catamarãs. Depressões, tempestades e furacões são ciclones, turbilhões
de ar que se distinguem pela velocidade
dos ventos (veja Mundo nº 4, pág. 11).
Esse ano, outro furacão passou
em San Martin, mas era bem mais fraco: só 150 km/h. Quinze dias depois,
começou o vento forte em Bonaire, e
toda a gente correu para a única baía protegida, procurando um lugar seguro. Com
todos os barcos entrando ao mesmo tempo na marina não seria muito fácil colocar
um-barco-ao-lado-do-outro, não fosse a eficiência dos funcionários em amortecer o
movimento dos veleiros com dois dinghys
infláveis, um de cada lado. Enquanto isso,
no antigo pier onde estivemos tranqüilamente ancorados, na frente da ilha, o velho oceano, lindo e vivo, dono do pedaço,
arrebentava as madeiras e instalações elétricas e hidráulicas. Foi um dia de fúria,
mas dia seguinte já estava cristalino novamente. Fomos mergulhar e lá estavam os
peixes de corais, sossegados, como se não
soubessem de nada ou fingindo não saber
o que tinha acontecido.
E Bonaire embaixo d’água era um
infinito turquesa, como todo o tempo essa
cor não sai dos olhos da gente quando
estamos no Caribe. Estranha é a escassez
de peixes oceânicos. Os peixes coloridos dos
corais fazem um desfile de escola de samba, domesticados pela vida fácil de peixe
de reserva, e fica faltando uma vida mais
prateada, com a exceção das barracudas, que
aparecem como capim para olhar nos olhos
da gente, com uma expressão que me faz
desistir do gosto pela caça submarina.
Fui ao Caribe para ajudar meu amigo a levar seu veleiro, que estava em
Curaçao, para outro lugar seguro de furacões. De início, nosso plano era ir para a
Jamaica, Cuba e México, pois o vento e a
corrente ajudariam bastante. Os ventos e a
corrente marítima da Guiana se deslocam
na direção sudeste-noroeste, facilitando o
percurso das Pequenas Antilhas para as
Grandes Antilhas e para o istmo centroamericano (veja o Mapa). Velejar no sentido contrário é muito mais difícil e demo-
rado. Na época colonial, essa brincadeira
da natureza contribuiu para que a
Espanha perdesse o domínio dos arquipélagos das Pequenas Antilhas, cuja defesa a partir das bases no istmo era uma
tarefa militar complexa. Ingleses, franceses, holandeses e piratas aproveitaramse disso para estabelecer as suas soberanias sobre o arco insular do sudeste
caribenho.
Mas não pudemos seguir nosso
plano original. Com a proximidade do
mês de julho, os velejadores mais experientes nos aconselharam a seguir mais
ao sul, para Honduras e Guatemala, pois
era muito menos provável a ocorrência
de furacões. No fim das contas, acabamos tomando rumos diferentes, de forma que eu mudei de veleiro e estava em
Bonaire, bastante preocupada com o
destino do meu antigo barco, o Luz do
Ilustração Laís Guaraldo
OUTUBRO
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11
O CALEIDOSCÓPIO COLONIAL CARIBENHO (SÉC. XVIII)
Is.VIRGENS
OCEANO
ATLÂNTICO
S.CRISTVÃO
E NEVIS
MAR DO
CARIBE
ANTILHAS
HOLANDESAS
Tortuga
HAITI
PE
JAMAICA
ANTÍGUA E
BARBUDA
GUADALUPE
DOMINICA
AN
TI
LH
AS
BAHAMAS
QU
EN
A
GOLFO DO
MÉXICO
I.S.MARTÍN
HAITI
MARTINICA
S. LÚCIA
SÃO VICENTE
E GRANADINAS
BARBADOS
BELIZE
PEQUENAS
ANTILHAS
TRINIDAD
E TOBAGO
GUIANA
SURINAME
GUIANA
FRANCESA
OCEANO
PACÍFICO
América hispânica
Colonização francesa
Colonização britânica
Colonização holandesa
Sol. É que essa tempestade tropical que
passou por nós foi tomando força e
chegou como um furacão na Costa
Rica, bem próximo de onde poderia
estar meu antigo capitão. Só aqui no
Brasil descobri que ele estava na
Jamaica, pois uma baleia tinha batido
no casco dele, obrigando-o a rumar
para Kingston, onde chegou tirando
água em baldes.
Dos velejadores que conheci, a
figura mais estranha foi a de um senhor que viajava sozinho com quatro
cachorros, sendo que um deles tinha
só três pernas. Penalizava toda a marina
aquela figura “cheia de amor” levando
os cachorros para passear todas as tardes. Um amigo sueco arregalava seus
olhos azuis do alto do seu corpo magro e comentava com solenidade: “four
dogs and fifteen legs”. Um outro homem naufragou perto da Martinica e
ficou no dinghy esperando um resgate.
Foi quando passou um cargueiro japonês indo para o Panamá e o homem
gritou para o capitão: “no, gracias, no
me gusta el Panamá”. O mar às vezes
deixa a cabeça da gente meio fluida.
É que na terra tudo é bem diferente (como diz o Aguiar: cheio de
bípedes e automóveis). As Antilhas Holandesas (Bonaire, Curaçao e, até pouco tempo atrás, Aruba) são ilhas secas
e escarafunchadas, mas com um mar
perfeito para o mergulho. Há muito
tempo é extraído de Curaçao muito
fosfato e calcáreo, remanescentes de corais
em decomposição. Os morros ficam com
um aspecto carunchado, por sua vez, reclamam à boca pequena dos impostos que pagam para garantir os benefícios sociais dos
antilhanos; e os antilhanos não reclamam
de nada, acham os holandeses bastante razoáveis e estão sempre sorrindo com seus
dentes dourados. Só não recomendo ao viajante desavisado tirar retrato do beco
rhastafari, em Curaçao, pois corre o risco
de tomar um susto de um rhasta de olhos
esbugalhados com voz baixa e seca: “estás
loca ?”.
Na Venezuela o clima é bastante diferente. A atmosfera de escassez é muito
mais presente. A marina é cheia de cercas,
para separar os barcos da população, que
tem bem mais traços indígenas. A crise econômica é visível e os velejadores aproveitam a desvalorização da moeda para se abastecerem de alimentos. Mas bonito nas viagens é a viagem das palavras. O inglês passa pela boca das pessoas com todos os sotaques do mundo e certas palavras parecem
cheias de nacionalidade, permanecem na
roda mesmo quando falamos em outra língua, como as horas que o venezuelano respondeu: “son dez para las five”.
Às vezes eu olhava para aquela gente que se encontrava na marina no final da
tarde para beber alguma coisa junto e me
perguntava o que é que eles estavam procurando. Será que todo mundo que escolhe viver num veleiro tem o mar como uma
religião ? Velejando, a intensidade do pra-
zer rapidamente se transforma em alta tensão, quando alguma coisa dá errado. O mar
nos presenteia com golfinhos num dia e
ondas enormes com ventos estranhos no
momento seguinte. Uma estafa nas noites
de turno, a soturna presença de navios, a
uma distância abstrata para mim - silenciosa presença de perigo. E um amanhecer
perto da costa, árvores e cidades desconhecidas, mistérios de lugares em que a todo
momento você decide por eles. O trânsito
como condição permanente de vida. Onde
essa gente quer chegar ? - eu me perguntava. Daí eu me lembrei de um trecho boni-
OCEANO
ATLÂNTICO
to de um filósofo francês, Gilles
Deleuze, que talvez responda à minha
pergunta:
“Por que se viaja se não é para
verificar? Verificar uma coisa qualquer,
algo inexprimível, que vem da alma, de
um sonho ou pesadelo. Ainda que seja
para saber se uma cor improvável, um
raio de luz verde ou uma atmosfera púrpura existe mesmo em algum lugar. Ir
ao Japão, para verificar como o vento
de lá desfralda as bandeiras de Ran de
Kurosawa. Sempre o vento, este invisível.” (L’Image temps, Paris, Minuit,
1985).
Ilustração Laís Guaraldo
MAR DO
CARIBE
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ANO
4
■
Nº
6
■
OUTUBRO
a
Tiragem da 1 edição: 42.000 exemplares
1996
&
1
Roy Lichtenstein
TEXTO CULTURA
Carlos Gomes, José de Alencar
e o mito do Brasil indígena
J.M.de Medeiros/Mus.Nac.B.Artes/RJ
OUTUBRO
96
Este ano comemora-se o centenário da morte do compositor Carlos Gomes, um dos maiores mitos brasileiros. A imagem de músico preocupado com o
Brasil, sobretudo a partir da ópera O Guarani (adaptação do romance homônimo de José de Alencar), corresponde à necessidade de se delinear a identidade
nacional tupiniquim. Apesar disso, se fizermos uma viagem além do mito, encontraremos um artista impregnado de elementos estéticos estrangeiros, atendendo, às exigências musicais européias, como atestam várias de suas composições.
Carlos Gomes se inscreve, assim, no contexto descrito pelo poeta modernista Oswald de Andrade em 1924, no Manifesto pau-brasil: o intelectual
brasileiro vive o dilema de estar entre a “floresta” e a “escola”, ou seja, entre o
Brasil pré-colonial e o país colonizado -esta é a base dupla de nossa cultura,
sempre presente. O maestro oscilou, então, entre a tradição verde-amarela e a
novidade importada, como bem exemplifica a ópera O Guarani. O jornalista
João Batista Natali, repórter-especial da Folha de S. Paulo e colaborador do
boletim Mundo, traça para nós um perfil desta importante figura.
Falando em mito, Carlos Gomes, O Guarani e nacionalismo, impossível não retratar também o escritor romântico José de Alencar, outra referência
obrigatória no olimpo dos deuses brasileiros. Como nos mostra o professor de
Literatura José Emílio, o processo de formação de nossas letras literárias invariavelmente se forjou na relação entre o “dado local” e as “formas vindas de fora”.
Muitos foram os autores que buscaram soluções para dar corpo a uma
consciência estética mais próxima da realidade brasileira, na tentativa de formalizar a tal identidade nacional. José de Alencar, por meio da temática indianista,
procurou relatar a “verdade da nação” em sua vasta obra, mas principalmente
no romance Iracema. Nele vislumbramos com todo o vigor a formação da nação, alegorizada no encontro da índia Iracema, filha dos Tabajaras, com o colonizador português Martim: o fruto desse amor, Moacyr, simboliza o primeiro
brasileiro. São heróis míticos do processo de miscigenação que tanto caracteriza
o povo brasileiro.
Págs. 4 e 5
Parabéns aos vencedores
do Concurso de Redação de T&C !!!
Victor Anatoly Ritow Borba, do colégio Sigma de Goiânia, é o vencedor do
concurso nacional de redação promovido este ano por Mundo - Texto & Cultura, com o
trabalho “Matou o pombo-correio, ligou o computador e trancou a oca”. Os demais
vencedores foram: Gabriela Muniz Baneti (A informática enquanto), Fabiana Bigaton
Tonin (Sobre a tecnologia e o humano), Jefferson Ares (O insubstituível ser humano) e
André Maurício Pavan (A comunicação do futuro).
Pág. 2
vestibular
Carlos Gomes
José de Alencar
Iracema, a pura e intocada virgem dos lábios de mel, é a própria
representação da América, na perspectiva romântica
de José de Alencar. Essa percepção foi levada aos palcos europeus
por Carlos Gomes, em óperas como O Guarani.
No século XIX, a literatura indianista brasileira teve um papel fundamental
para formar a idéia de nação, dando continuidade a uma tradição que tem
seus primórdios na Carta de Caminha.
Em edições anteriores de T&C, na seção Redação no Vestibular, a professora Lucília
Romão nos apresentou a modalidade de texto mais cobrada nos vestibulares: a dissertação. Além de contemplar a estrutura deste discurso (introdução, desenvolvimento e conclusão), discorreu sobre o tratamento dado a ele pelas principais bancas examinadoras e
comentou os seus critérios de correção. Apresentamos, agora, outras duas modalidades de
redação: o texto narrativo e o texto persuasivo com interlocutor definido (“carta argumentativa”). Além disso, uma série de propostas de exercícios dialogando com o tema
central do encarte. Mãos na massa e bom exame!!!
Págs. 6 e 7
23ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo
Pág. 3
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2
Conheça agora os vencedores
do Concurso de Redação de
Mundo - T&C
1º lugar
Victor Anatoly Ritow Borba, do colégio Sigma de Goiânia, é o vencedor do concurso
nacional de redação promovido este ano por Mundo - Texto & Cultura. Seu trabalho, intitulado
“Matou o pombo-correio, ligou o computador e trancou a oca ”, publicado em seguida, é
comentado por Lucília Maria Souza Romão, professora e editora da página de Redação no
Vestibular de T&C. Ao Vitor, os nossos cumprimentos pelo seu belo trabalho. Que esta
premiação seja apenas um degrau de uma brilhante carreira como escritor!!!
A Redação de Mundo reitera os seus mais profundos e sinceros agradecimentos a todas
as escolas que se engajaram no concurso (a lista completa dos participantes foi divulgada à pág.
2 de Mundo nº 5). A grande participação de mestres e alunos, bem como o alto nível das
dissertações, são o melhor estímulo para a realização de um concurso semelhante em 1997.
Até lá, então!
“Matou o pombo-correio,
ligou o computador e trancou a oca’’
Quando o imperador Dom Pedro II ouviu pela primeira vez uma voz ao telefone, suas
palavras foram de espanto: “ Meu Deus do céu, esta coisa fala!”. Mal sabia o ingênuo Dom
Pedro que, não muito tempo depois, haveria coisas falando, ouvindo, escrevendo e até pensando. Que se cuidassem os pombos-correio e as fofoqueiras de janela: o planeta estava dando
início à globalização.
Durante o século seguinte, os homens foram entrando em todos os cantos da Terra. A
informação e a comunicação tinham que chegar ao lugar mais inóspito na menor fração de
tempo. “Corram, terráqueos, corram!”- começaram a gritar as máquinas. Televisão, fax, mídia,
software, internet, satélite, parabólica, Nasa, alô, alô, câmbio... alô, alô, câmbio...Alguma interferência ? Parece que, na corrida da modernidade, levamos um tropeção: na grande aldeia
global, o índio trancou a oca. Teria ele matado o pombo-correio e ligado o computador só para
ninguém mais o ver nu?
A grande taba já não é mais a mesma. O bicho-homem adora contradições. Enquanto
o mundo interliga-se cada vez mais , parece que as pessoas estão se isolando umas das outras. O
egoísmo é inerente à humanidade e neste fim de século ele fica mais evidente. Se todos nós
começamos a saber mais uns dos outros , por que então tantas guerras, tantos conflitos raciais,
tantos paradoxos? Em vez de melhorarmos as relações humanas através das comunicação, achamos o meio mais fácil de esconder nossa fragilidade: trancamos a oca.
Com medo de que toda nudez fosse castigada, o nativo ligou o computador e armou
sua parabólica. Tentou contato com a imensidão fria do espaço, vazio tão grande quanto o seu.
Na globalização mundial, a desglobalização pessoal. Gente transformada em ‘bits’. Beijo pelo
celular, abraço pelo fax, sexo digital. Mandamos foguetes, mandamos astronautas; mas, distraídos como sempre, não vimos o bilhete que Drummond fixou no rabo de um cometa: “... só
resta ao homem ( estará equipado?) a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo”.
Victor Anatoly R.Borba
Título: Matou o pombo-correio, ligou
o computador e trancou a oca
Escola: Colégio Sigma
Cidadade: Goiânia (GO)
Prêmio: Uma bike de 21 marchas
3º lugar
Fabiana Bigaton Tonin
Título: Sobre a tecnologia
e o humano
Escola: Curso e Colégio Anglo
Cidade: Piracicaba (SP)
Prêmio: Um disc man
5º lugar
Comentário:
Um texto de tirar o fôlego do leitor: deslumbramento mediante relações intertextuais inteligentes e criativas. Ao mesmo tempo, o bicho miserável do Bandeira, a nudez de Nelson Rodrigues, o
lembrete do “Homem e suas viagens” de Carlos Drummond de Andrade demostram repertório de
fragmentos poéticos com gancho preciso e certeiro. São referências de autoridade explícita , deixando
claro um discurso fruto de leituras e bagagem cultural. Além disso, a referência histórica logo na
introdução torna-se ponto convidativo. O telefone de ontem e o computador de hoje são as duas
pontas do debate, unidas pela mesma noção de espanto.
Há postura definida e crítica adequada ao tema; mais que isso, a linguagem com estilo ágil
e original passa a ser atrativo e ter um papel relevante no ritmo do texto. A pontuação das frases, o
tom dos parágrafos: riquezas únicas.
A coerência interna está clara e visível: fio condutor lógico estabelecido no percurso do texto.
Teia coesiva das melhores, com amarração perfeita do pensamento, sem rupturas.
Um aluno-autor que conhece as técnicas redacionais e consegue superá-las, indo muito além...
Alguém especial na forma de dizer, que conserva um bom acervo de argumentos e transforma o texto
todo num momento singular.
André Maurício Pavan
Título: A comunicação do futuro
Escola: Colégio John Kennedy
Cidade: Pirassununga (SP)
Prêmio: Coleção de Clássicos
Scipione
2º lugar
Gabriela Muniz Baneti
Título: A informática enquanto
Escola: Colégio e Curso Sapiens
Cidade: São Carlos (SP)
Prêmio: Um disc man
4º lugar
Jefferson Ares
Título: O insubstituível ser humano
Escola: Magno
Cidade: São Paulo (SP)
Prêmio: Coleção de Clássicos
Scipione
Menção honrosa:
• Lígia Flávia Antunes
Título: Neurônios de metal?
Escola: Colégio Objetivo
Cidade: Três Lagos (MS)
• Alcione Aparecida Messa
Título: WWW@ Super ação
Escola: Colégio Mater Dei
Cidade: São Paulo (SP)
• Adriane Maira Delicio
Título: Zero e um
Escola: Colégio Luiz de
Queiroz
Cidade: Piracicaba (SP)
• Cícero Strano Moraes
Título: Frankenstein
Escola: Colégio Santo Estevam
Cidade: São Paulo (SP)
• Juliana Carvalho Eliezer
Título: Destino ignorado
Escola: Colégio Mater Dei
Cidade: São Paulo (SP)
Os contemplados com a menção honrosa fizeram jus a um kit de três fitas k-7 editados pela BBC de Londres e cedidos pelo programa de rádio Certas Palavras (rede CBN-SP),
contendo reportagens sobre a transição do socialismo à economia de mercado em 10 países do Leste europeu.
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T&C, agora com 8 páginas:
ajudando a desvendar o Mundo
A partir desta edição, T&C deixa de ser um encarte do boletim Mundo - Geografia e
Política Internacional, e passa a ser um boletim autônomo e independente, de oito páginas. O novo
T&C será publicado seis vezes ao ano, e será integralmente dedicado à crítica da cultura, com ênfase
em reflexões sobre o que há de mais contemporâneo nessa esfera. T&C estará também muito atento
às exigências dos exames vestibulares, sobretudo no que se refere à Língua Portuguesa. Até aí, o novo
boletim será igualzinho ao antigo encarte. A diferença é que teremos mais espaço para desenvolver
os temas propostos e para incluir novas questões - por exemplo, criar espaços de interatividade com
nossos leitores ou explorar o mundo da gramática como fenômeno vivo da língua.
Em outros termos, passando de quatro para oito páginas, desenvolveremos melhor a função “metalingüística” e a “referencial” da linguagem, base de estruturação do boletim. No primeiro
caso, trata-se do “código”versando sobre o próprio “código”, ou seja, é o momento em que a língua
reflete sobre si mesma: espaço para discutir Gramática, Literatura, Redação e Interpretação de
Texto. Pretendemos, assim, fornecer subsídios para professores e alunos enfrentarem questões mais
ousadas, que fogem à rotina do que é normalmente ensinado em muitas escolas Brasil afora.
São questões, por exemplo, que trabalham as fronteiras entre a norma escrita e a língua
falada, a adequação dos vários registros de linguagem aos diversos contextos em que os discursos se
processam; são exercícios de intertextualidade, em que se estabelecem diálogos entre textos de autores pertencentes a períodos literários diversos, buscando notas de semelhança e diferença etc.
No caso da função “referencial”, também chamada de “informativa”, nosso objetivo é ajudar o leitor a educar os seus sentidos para poder fazer a leitura do mundo que o circunda, dentro de
uma perspectiva crítica, lúcida, equilibrada. Aqui estaremos de olhos bem abertos para tudo o que
de significativo estiver acontecendo no universo da cultura, sobretudo a brasileira.
Claro que o processo de formação de repertório cultural é lento, não ocorre da noite para o
dia, e envolve muito mais do que a leitura do boletim. Mas queremos contribuir com a nossa parte
para que o homem, mais ilustrado, exercite de fato a sua cidadania. Como diz o escritor e dramaturgo japonês Mishima, “a partir das palavras, eu descobri o mundo”.
T&C: ajudando a desvendar o mundo.
Bienal mostra
“desmaterialização”
da arte
A 23ª Bienal Internacional de Arte de
São Paulo foi aberta, no dia 5 de outubro, com
um título provocador: A desmaterialização da
arte no final do milênio. Esse título resume uma
problemática amplamente discutida pelos teóricos e críticos: a relação entre a arte e as
tecnologias contemporâneas - o mundo digital
dos computadores. A discussão não é simples.
No começo do século, o crítico alemão
Walter Benjamin já mostrava o impacto que a
tecnologia tinha sobre a arte. Benjamin apontava o fato de que a possibilidade de reproduzir obras de arte através do cinema, da fotografia e técnicas de impressão em série - como a
litogravura - fazia com que a obra perdesse sua
singularidade, sua aura de mistério. O momento único de contemplar um quadro num museu poderia, agora, ser infinitamente reproduzido pela técnica.
Hoje, a discussão já se coloca em outro nível. Não apenas podemos reproduzir as
obras, como podemos interferir nelas, através
de técnicas de digitalização. Podemos, por
exemplo, scanear a reprodução de um quadro
e agir sobre ela na tela do computador. Podemos escrever um ‘‘livro aberto’’, colocando suas
páginas na Internet e propondo que os leitores interfiram no enredo. O mesmo pode ser feito com
esculturas, peças musicais etc.
É claro que, em todos esses casos, estamos
tratando da ‘‘arte virtual’’, isto é, transformada em
impulsos eletrônicos, desmaterializada. Daí o título do evento. Até o dia 8 de dezembro, a Bienal
estara mostrando mais de 500 obras de 75 países.
Para descrever a trajetória evolutiva desse processo
de ‘‘desmaterialização’’, os organizadores trouxeram
para o evento peças precursoras da Arte Moderna
(Goya, do século XVIII), obras de seu fundador
(Picasso, com o quadro As Senhoritas d’Avignon, de
1907, infelizmente não exibida) e de alguns dos
nomes mais significativos do modernismo (Paul
Klee, Edvard Munch, Andy Warhol), até chegar
aos trabalhos contemporâneos interativos.
Por essas razões, vale a pena visitar a Bienal
este ano. Não é só o prazer visual e lúdico de jogar
com as peças interativas. É também a oportunidade de ver contada uma dimensão importante da
história de nosso mundo.
E
D
I
T
O
R
I
A
L
Primeiro, a banda carioca de rap-reggae-rock Planet
Hemp teve uma série de shows proibidos, sob a alegação de
fazer apologia do uso da maconha. Depois, o palhaço nordestino Tiririca teve sua ‘‘música’’ Veja os cabelos dela censurada, sob o pretexto de ser ofensiva à comunidade negra. Mais
recentemente, a Prefeitura de SP ordenou que se colocassem
tarjas pretas nos seios das “garotas” do cartunista Carlos
Zéfiro que apareciam em out-doors de divulgação de um show
da cantora Marisa Monte. Há um denominador comum a todos esses casos: a retomada da prática da censura, que aparentava ter desaparecido junto com a ditadura. A alegação é
sempre a mesma: a “tesoura” se faz necessária para proteger a sociedade de abusos cometidos em nome da liberdade
de expressão, para “ preservar a Ordem Pública”.
A história mostra que devemos fazer muitas reservas à
prática da censura. No mais das vezes, ela comporta critérios
duvidosos e preconceituosos. A Inglaterra vitoriana censurou o escritor Oscar Wilde, condenado por homossexualismo:
em que medida a opção sexual pode invalidar a produção artística? E que prejuízos alguém, por ser homossexual, pode
causar à Ordem Pública? Pinochet perseguiu o poeta Pablo
Neruda por que sua obra era “subversiva’’. Assim, a ditadura
cassou o amor à vida, às pessoas, à liberdade, ao mar - temas
constantes em Neruda. Na União Soviética stalinista, os escritos de Trotski e de outros autores foram banidos, considerados um perigo contra a ordem instituída. Pensar de modo
diferente do oficial é, por acaso, crime? Não é com as diferenças que crescemos e amadurecemos?
A censura quer nos dar um mundo compartimentalizado, vedando-nos certas passagens, proibindo-nos determinadas visões. O Estado se coloca na autoritária posição
paternalista de quem deve escolher por nós. Mas a liberdade
é um aprendizado constante: só podemos aprendê-la (e
apreendê-la) exercitando-a. É aí que conhecemos seus limites, fazendo valer a cidadania. Se a Santa Inquisição tivesse
alcançado seus objetivos, queimando todos os seus “hereges”, possivelmente ainda creríamos ser a Terra quadrada. É
livre quem não sabe que a Terra é redonda?
Quem nasceu para Tiririca, sabemos, não morre poeta.
Tudo bem. A questão da censura nada tem a ver com o julgamento de valores estéticos, mas sim com a qualidade da relação política entre a sociedade civil e o Estado. Para o dramaturgo Dias Gomes, “os males causados pela ausência da censura são infinitamente menores que os trazidos pela sua vigência”. Certo. A sociedade que não sabe se defender por si
só - que precisa de ‘‘pais’’ para determinar o que é o Bem e o
Mal - está grávida de novos ditadores.
E
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D
I
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E
Texto & Cultura é uma publicação de Pangea - Edição e Comercialização de Material Didático LTDA.
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Centenário da morte de Carlos Gomes
‘‘Os abraços, os beijos, beijões, apertos de mão de deixá-la dolorida, perguntas infinitas, flores,
presentes, bailes, ‘soirées’, serenatas, Deus sagrado, não sei quantas coisas ainda... Só faltou que fizessem
uma Semana Santa em honra do bem-vindo. O imperador quer, a todo custo, ouvir ‘O Guarani’ no
teatro e, por isso, estão já em ensaios. (...) Os artistas não são nem Sass nem Villani. E o corpo de
baile? Quatro rãs a pular no lugar de mulheres.’’
O índio e a busca da
identidade na arte brasileira
José Emílio Major Neto
Especial para T&C
(Trecho de uma carta em que Carlos Gomes comenta recepção que teve no Rio e primeira montagem brasileira da ópera O
Guarani. O músico refere-se a Maria Sass e ao tenor Giuseppe Villani, cantores que haviam interpretado Ceci e Peri no
Teatro Scala, de Milão, meses antes da estréia da ópera no Rio. O tom zombeteiro explicita a divisão na alma do artista: sua
obra é um hino de amor a um Brasil idealizado, selvagem e nobre; mas sua consciência revolta-se contra hábitos nacionais
que julga provincianos e incultos)
De orgulho nacional a “Voz do Brasil”
João Batista Natali
Da Equipe de Colaboradores
AJB
O processo de formação da literatura brasileira se
estrutura numa complexa relação entre o “nacional” e o “estrangeiro”, entre o dado local e as formas importadas, que
possuem matrizes sociais, históricas e estéticas diferenciadas da nossa particular realidade. É nesse jogo que o escritor brasileiro busca soluções capazes de materializar uma
consciência estética adequada a uma matéria sócio-histórica específica. Um dos momentos mais importantes desta
trajetória está presente no Romantismo brasileiro e na
temática indianista.
O Romantismo é o marco inicial da consolidação
da sensibilidade moderna, que em tudo é burguesa e urbana. Marca na Europa o processo geral de ascensão e consolidação burguesa. Todos os seus temas e procedimentos formais são respostas a uma nova ordem social imposta pela
revolução industrial e pela revolução francesa. Encontramos, contudo, apreciáveis oscilações nessa sensibilidade, que
vão desde a adesão mais gritante aos valores burgueses, até a
mais radical e sentimental negação destes valores: de um
lado, por exemplo, o romance ingênuo e sentimental, como
a Dama das Camélias, de Alexandre Dumas; de outro, o
romance de aguda crítica social, como Os Miseráveis, de
Victor Hugo.
A partir deste quadro histórico e cultural, fica mais
aguda a observação do esforço intectual dos escritores e poetas brasileiros românticos, no intuito de fundar uma literatura que expressasse a “verdade” da nação. Talvez hoje nos
seja impossível avaliar o que há de esforço criativo e intelectual no projeto literário de um escritor como José de Alencar,
ou de um poeta como Gonçalves Dias.
O Brasil não conheceu o processo de modernização
burguesa, não pelo menos segundo os padrões europeus,
que geraram o Romantismo e suas soluções particulares. No
início do século XIX, a problemática histórica do país passava diretamente pela formação da nação, quer no campo
político, diplomático e institucional, quer no campo do discurso literário. Nesse momento, a literatura desempenhava
um papel fundamental, principalmente na formação das
elites, e na expressão de seus valores particulares, passando a
ser expressão da nação.
Dentro deste panorama se encaixa a literatura
indianista brasileira, principalmente Alencar e Gonçalves
Dias, que alcançaram resultados surpeendentes, como bem
ilustram Iracema, O Guarani, Marabá e I. Juca Pirama, e
que dão continuidade a uma tradição que tem seus
primórdios na Carta de Caminha e ilustres representantes
no Arcadismo, com Basílio da Gama e Sta Rita Durão, respectivamente com o Uraguai e O Caramuru. Segundo o
professor Antônio Cândido, assim podem ser compreendidas:
“Na medida em que toma uma realidade local para
integrá-la na tradição clássica do Ocidente, o indianismo
inicial dos neoclássicos pode ser interpretado como tendência para dar generalidade ao detalhe concreto. Com efeito,
concebido e esteticamente manipulado como se fosse um
tipo especial de pastor arcádico, o índio ia integrar-se no
padrão do homem polido, ia testemunhar a viabilidade de
incluir-se o Brasil na tradição do Ocidente, por meio da
superação de suas particularidades.
O indianismo dos românticos, ao contrário, denota
tendência para particularizar os grandes temas, as grandes
atitudes de que se nutria a literatura ocidental, inserindo-as
na realidade local, tratando-as como próprias de uma tradição brasileira. Assim, o espírito cavaleiresco é enxertado no
bugre, a ética e a cortesia do gentil-homem são trazidas
para interpretar o seu comportamento. A distinção pode
parecer especiosa, mas o seu fundamento se encontra na
atitude claramente diversa de um Basílio da Gama e de um
José de Alencar.”
Sob este aspecto, a figura de Alencar tem uma dimensão apreciável, e ao analisarmos sua obra percebemos o
que há nela de esforço para reciclar, com “verdade”histórica
e nacional, formas e procedimentos estéticos europeus.
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L. Fochetto
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Sucessivas gerações de artistas brasileiros tiveram sua obra marcada pela busca de linguagens e formas que poderiam ser consideradas especificamente brasileiras. Foi o caso,
por exemplo, do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (à dir.), que pesquisou na Amazônia e em outras regiões do Brasil sons, instrumentos e motivos folclóricos que seriam
incorporados à sua produção musical. Tentativa semelhante foi realizada, no campo da Literatura, pelo modernista Mário de Andrade (centro), cuja criação-maior, o índio
Macunaíma, herói sem nenhum caráter, contrastava com a imagem idealizada e romântica de um Peri. Mais recentemente, o maestro Tom Jobim, que se dizia fortemente
influenciado por Villa-Lobos e por Mário de Andrade, retomou o diálogo com uma tradição que busca afirmar esteticamente a identidade nacional brasileira, e que nos anos
60 estimulou o surgimento de vários movimentos de vanguarda, como o Cinema Novo (que teve em Glauber Rocha o seu principal expoente) e a Tropicália (dos baianos
Caetano Veloso e Gilberto Gil).
Um bom exemplo disso é o desdobramento de sua
obra romanesca. Alencar escreveu romance urbano, histórico, regionalista e indianista. Estas últimas duas categorias
são uma das primeiras elaborações efetivas da inteligência
nacional no cenário da literatura internacional. Qual outra
literatura moderna tem uma tradição tão vasta de romances
regionalistas quanto a brasileira? Tradição esta que vai de
Alencar a Guimarães Rosa, passando por Euclides da Cunha e Graciliano Ramos. E o que dizer de romances como
Iracema, O Guarani e o Macunaíma de Mário de Andrade?
Nos romances indianistas, a habilidade e perícia de
Alencar se tornam mais patentes. Uma boa prova disso está
no fato de que romances como Iracema e O guarani são
lidos ainda hoje com grande prazer e interesse. Como não
se “emocionar”com a oscilação entre o lírico e o épico tão
bem formalizada pela prosa poética de Iracema? Como não
se embrenhar no ritmo narrativo envolvente d’O Guarani?
E como não encontrar neles ecos de nossos desejos - mesmo
que imaginários - de grandeza nacional? Mesmo tendo em
vista toda a literatura modernista que subverteu a ingenuidade destes códigos ufanistas.
Em Iracema, mais do que em qualquer outro romance brasileiro, encontramos a alegoria da formação da nação.
O enredo, relativamente simples, se resume no encontro de
Iracema e Martim. Ela, filha dos Tabajaras; ele, guerreiro
português, colonizador e cristão, amigo dos Pitiguaras, por
sua vez inimigos dos Tabajaras. Os dois se encontram em
meio à exuberância tropical da terra brasileira e se apaixonam - apesar da guerra tribal e das diferenças culturais que
os separam. Iracema abandona seu povo e segue Martim.
Os dois se unem num ritual indígena e vão viver próximos
aos Pitiguaras. Com o passar do tempo, cheia de dúvidas e
solidão, Iracema morre, mas deixa para Martim um fruto
de seu amor e de sua dor: Moacyr, o primeiro brasileiro.
Eis aqui o duro impasse no qual Alencar se encontrava. De um lado, atender as espectativas do público leitor
brasileiro, intimamente formado pelo romance europeu. De
outro, produzir um romance que tivesse ao menos uma gota
de “verdade” nacional. Em Iracema, encontramos todos os
ingredientes do romance romântico europeu, ingênuo e sentimental, tão ao gosto da sensibilidade oitocentista: a intriga amorosa, os obstáculos à sua realização , os lances heróicos tipicamente aristocráticos, que a burguesia européia era
ávida em imitar. Por outro lado, há neste romance um ritmo, uma linguagem e um movimento geral que inegavelmente somos obrigados a chamar de brasileiros.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, é telúrica, pura,
intocada, anagrama perfeito do continente recém-descoberto
( Iracema/América). Martim é português, colonizador, branco, cristão, puro, tão puro que, ao ver a bela indígena pela
primeira vez, - justamente quando ela acabava de sair nua
do banho -, pensa na Virgem Maria. Assim, eles são heróis
míticos, perfeitos, origem primeira da nação. E da fusão
destes dois seres tão elevados e sublimes nasce o primeiro
brasileiro e o Brasil, que segundo esta ótica está destinado a
ser uma grande nação, o que atende muito bem aos projetos de um nacionalismo ufanista tão ao gosto das elites em
momentos de sua afirmação política e histórica.
Se este romance não revela nenhuma preocupação
etnográfica mais sólida, já que o índio e o europeu aí materializados mais parecem máscaras vazias, Alencar pesquisou
arduamente os escritores e a literatura informativa do século XVI, além da língua tupi, o que a quantidade apreciável
de notas ao romance comprova. Porém, sob a capa da legitimidade histórica dada pelos relatos do século XVI, o que
se esconde e está filtrado é a dissimulação do processo mais
amplo da formação da nação, que tem na miscigenação racial e no sincretismo cultural seu esteio fundamental.
Nos romances indianistas (com uma boa justificativa histórica), bem como no romance romântico brasileiro
em geral, a grande ausência que revela a fragilidade dos discursos oficiais - quer sejam históricos ou literários - é a ausência do elemento negro e suas fundamentais contribuições à formação da nacionalidade.
Desta forma, numa perspectiva histórica mais ampla, os impasses ideológicos e simbólicos da nação se revelam, e no ritmo poético e sedutor da prosa de Alencar, se
inscreve pelo avesso a estridência da falta. Às vezes um acorde soa melhor pelo vazio que deixa. E é justamente neste
vazio que as gerações subseqüentes, como a “modernista”,
vão inscrever uma visão talvez um pouco mais legítima da
história da nação.
Aqui talvez não seja improcedente citar Oswald de
Andrade, que como poucos soube desafinar o coro dos contentes:
“ BRASIL
O Zé Pereira chegou de caravela
E perguntou pro guarani da mata virgem
_ Sois cristão?
_ Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
_ Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval.”
José Emílio Major Neto é professor de Literatura
no curso Anglo de São Paulo
Uma comparação meio exagerada para situar o personagem: Antonio Carlos Gomes (1836-1896) foi o mais
distante precursor de Ayrton Senna na história brasileira dos mitos e mentalidades. Nenhum deles exercia profissão
própria ao cidadão comum de seu tempo. Foram ambos reconhecidos pelo público estrangeiro e, o que é mais importante, involuntariamente funcionaram como uma prova incandescente de que o Brasil, país de tantos e numerosos
defeitos, poderia, afinal das contas, produzir algo que se preste para consumo globalizado.
A primeira questão que se coloca é a do verdadeiro valor artístico do compositor campineiro. Mito por mito,
qualquer um poderia ter exercido o mesmo papel, mesmo sem conhecimentos musicais profundos, mesmo entendendo
pouco de orquestração ou sendo um medíocre maestro. Pois Carlos Gomes foi um músico em todos os aspectos excepcional.
Possui riqueza melódica em suas cantigas (há 40 delas publicadas), dominava a linguagem complicada da música
de cámera (“Burrico de Pau”, sonata para quinteto de cordas), e, o que era fundamental para um compositor do final do
século XIX, nos legou nove óperas formalmente muitíssimo bem escritas. Os especialistas acreditam que a melhor, entre
elas, seja “Fosca” (1873), e não “O Guarani” (1870), que deu a Carlos Gomes alguma notoriedade póstuma.
Nenhuma de suas óperas foi o produto de uma pesquisa em fontes folclóricas ou harmônicas da música brasileira. O “nacionalismo musical” se tornou verdadeiramente uma bandeira só a partir do modernismo. Em razão disso,
Carlos Gomes foi com freqüência “acusado” de ter sido um compositor bem mais italiano que nacional, o que em parte
procede. Mas nos anos 70 do século XIX, e qualquer boa história da música o menciona, dois únicos modelos orientavam as composicões endereçadas aos teatros líricos: a italiana (na esteira de Verdi) e a alemã (sobretudo Wagner).
Inexistia uma ópera mexicana, outra búlgara e outra ainda inglesa. Por que, então, haveria uma brasileira, sobretudo
num momento em que a afirmação artística nacional nao havia completado seu processo de fermentação?
Em suma, o brasileiro Carlos Gomes foi um grande compositor de música operística italiana, e na Itália suas
obras eram executadas no único grande teatro sobre o qual a mídia da época focalizava suas atenções, o Scala, em Milão.
Foi em razão do sucesso de “O Guarani” (ou “Il Guarany”) naquela casa que outras óperas européias, de Barcelona a São
Petesburgo, a programaram para suas temporadas seguintes. E foi também com “O Guarany” que Carlos Gomes se
tornou um homem muito rico. Perdulário, até. Gastou fortunas em mármore e móveis esculpidos para decorar uma
“villa” que construiu na região da Lombardia.
Nosso “Ayrton Senna” musical precisava, no entanto, de uma cãmara local de ressonância para que seus feitos
fossem reconhecidos na Corte (a Corte era a capital do Império, o Rio de Janeiro). O fato de ser um ferrenho monarquista, protegido de d. Pedro II e da princesa Isabel, certamente facilitou as coisas. Foi com uma bolsa do imperador que
Carlos Gomes partiu para estudar na Europa, em 1863. Já era, então, um músico na moda.
A associação de seu nome à monarquia também o prejudicou, conforme crescia junto a uma parcela das elites
certa ebulição republicana. Ser “amigo do rei” após a Proclamação da República se tornou um mau negócio. Seu sonho
de se tornar diretor da Imperial Academia de Música (depois Conservatório Nacional) foi por água abaixo. No confronto político, compositores republicanos como Alberto Nepomuceno (1864-1920) acabaram levando a melhor.
Três condições estavam reunidas para que Carlos Gomes caísse no esquecimento. A primeira delas estava no fato
de o romantismo italiano, já em seus extertores, dar algumas guinadas estéticas (com Puccini, por exemplo) que levaram
a música do campineiro, por não acompanhá-las, a não ser mais executada. A segunda está na virada política ocorrida no
Brasil com a República. Tudo o que estava ligado à familia Orleans e Bragança passou a cheirar mofo. E a terceira viria,
anos depois, com a Semana de Arte Moderna (1922). Por não cultivar as “raízes legitimamente nacionais”, Carlos Gomes
foi atacado e caiu no ostracismo.
Foi preciso que o Estado Novo (1937-1945) o ressuscitasse como símbolo da autoafirmação cultural, o que ficou
demonstrado pela escolha da “protofonia” (introdução orquestral) de “O Guarani” como prefixo de “A Hora do Brasil”
(hoje “A Voz do Brasil”).
Vejam que todo esse processo deixou de ter muito a ver com o cidadão Antonio Carlos Gomes e sua biografia.
Com o maestro arruinado por seus gastos mundanos excessivos, que precisou aceitar o emprego de diretor do Conservatório de Belém, no Pará (então, um fim de mundo...), morrendo três meses depois, de câncer.
Nada tem a ver, tampouco, com os anos iniciais de sua carreira no Rio (protegido de Francisco Manuel da Silva,
o autor do Hino Nacional Brasileiro), como compositor de duas “Cantata” e como maestro da Ópera Nacional. E nem
com sua origem na Vila de São Carlos (hoje Campinas-SP), filho do maestro da banda de música, e também um precoce
flautista e violinista, bom pianista e dono de uma quantidade de informações musicais dificilmente concebivel para
alguém que morava “naquele mato” distante de São Paulo, bem antes que a elite local se formasse com o dinheiro do
café.
Existem, portanto, duas linhas históricas que convergem para o mesmo personagem. A primeira, a do músico
persistente que abriu as sucessivas portas que lhe apareciam
e superou os sucessivos obstáculos que lhe colocavam na carreira. A segunda está na “leitura” que certas circunstâncias
políticas e culturais acabaram fazendo dele. Um “Ayrton
Senna” bem mais rico culturalmente que o piloto de Fórmula 1, que, um século depois, também se tornou herói nacional.
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Ilustração Laís Guaraldo
“Escrevo porque amanhece e as estrelas lá do céu /
lembram letras no papel”. O escritor paranaense Paulo
Leminski sintetiza a maior característica do discurso poético e narrativo: a metáfora e a transcendência dos objetos-fatos sob o signo da reciclagem criadora. Além das ações,
a reedição das figuras.
Para narrar, é receita certa entrelaçar personagens
num determinado espaço-tempo , detonando fatos e ações
mediante causas e objetivos definidos. A essência é o movimento, transformação. Matéria? O acontecimento enquanto objeto máximo. O episódico alarga o gesto e a
imaginação. Estrelas brilham!
É bem possível manipular elementos de construção para chegar a uma história. As categorias quem?, o
quê?, onde?, quando?, por quê?, como? são etapas vitais.A
personagem é o fermento colocado na massa narrativa, ela
cresce, amplia ou reduz os horizontes, arrebenta-se em
bolhas de ar e assa sentimentos no forno dos conflitos.
Deve ser imaginada e descrita em função do nome, idade,
traços físicos, marcas do comportamento e gênio, linguagem e nível sócio-cultural.
O conjunto de sugestões pode aparecer fragmentado com algumas características super-valorizadas em detrimento de outras. Importante mesmo é revirar a personagem, buscando a particularidade, o ângulo peculiar, o
traço singularizante e o distintivo mágico.
O espaço sinaliza a possibilidade de envolver o leitor, contagiando-o com o clima do local. É o ambiente
capaz de comover, despertar e alavancar ações; exemplos
dessa força levantam-se nas páginas de Euclides da Cunha
e Guimarães Rosa, dentre outros. Não apenas as marcas
externas, dados da paisagem e evidências de época: o movimento do espaço inteiror escorrega espesso por Clarice
Lispector e Caio Fernando Abreu. O ‘de dentro’ é
externado e as ações ocorrem aí, propiciando uma atmosfera profunda, densa. Às vezes, asfixiante!
Enredo é sinônimo de ordem no relato, seqüência
lógica de ações, sucessão de fatos com coerência. A articulação narrativa conta com dados fornecidos pela proposta
do vestibular: cabe ao aluno escrever uma história usando
tais dados. Nesse momento, a adoção do foco narrativo
espera atenção e cuidado. O narrador pode ser um personagem atuante ou um observador discreto: o ponto de vista é o recorte criativo a ser explorado. De onde se vê a
ação? De que universo interior vem a voz que conta? Qual
é o filtro, a ótica que peneira os fatos?
O conflito deve conduzir a um desfecho. Desenlace é “o momento de grande destruição trágica, da morte,
das revelações de identidade, da solução dos mistérios, da
união dos amantes, da descoberta e morte dos vilões etc”,
Lucília Maria Sousa Romão
Estrelas no papel - explorando a narrativa
como diz Afrânio Coutinho na sua Antologia de Literatura. Tal amarração pode ser feita com uma surpresa final,
quebrando a previsibilidade do enredo; ou com uma última célula aberta, que sugere algumas possibilidades. Cabe
ao leitor escolher o ‘seu final’.
Propostas de narração:
Proposta 1) A seguir você tem alguns elementos que devem ser levados em consideração para compor um texto
narrativo de aproximadamente 45 linhas:
■ O texto 1 deve compor o personagem central, um vizinho da antiga casa em que ocorreu o crime.
“ Era também um leitor atento das novidades literárias
que lhe mandava pelo correio seu livreiro de Paris, ou das
que lhe despachava de Barcelona(...) De qualquer forma,
nunca lia pela manhã, e sim depois da sesta durante uma
hora, e à noite antes de dormir...”
(O amor nos tempos do cólera-Gabriel Garcia Márquez)
■ O texto 2 apresenta o espaço em que ocorreu o trágico
assassinato, um dia antes da demolição da casa.
“Vão demolir esta casa, / Mas meu quarto vai ficar /
Não como forma imperfeita / Neste mundo de aparências: / vai ficar na eternidade / com seus livros, com seus
quadros / Intacto, suspenso no ar!” (Manuel Bandeira)
Suponha então que você fosse um jornalista contratado
para escrever sobre o mistérioso crime. Narre em primeira
pessoa todos os acontecimentos e fatos desde o princípio
até a conclusão da matéria.
Proposta 2) Crie uma história com 40 linhas, dando continuidade ao estado emocional e existencial da personagem. Procure intensificar o espaço e as ações interiores,
revirando cenas do passado e mantendo o tom de densidade já iniciado.
“Vagueei longo tempo através das ruas, facetadas de branco , pelo puro gosto de me sentir sozinho sem idéias, anulado de silêncio. Uma cidade fantástica se erguia imaginada, numa geometria árida de superfícies lisas, com faixas de
sombra e luz estiradas, túneis de arcarias desertas, flechas
de torres de chaminés à altura dos astros, ângulos negros de
ruas- imóvel espectro de uma civilização perdida...”
(Aparição- Virgílio Ferreira)
Toques e Técnicas
carta argumentativa
Trata-se de um texto persuasivo com um particularidade: dialogar com um interlocutor específico, que tem uma posição definida sobre certo tema.
O aluno é convidado a concordar com ele ou refutar
a perspectiva apresentada. O texto se comporta com
recursos e técnicas de argumentação muito próximas
da dissertação, contando apenas com uma polarização intensa do contra e a favor. É preciso escolher o
ângulo de análise e depois se dirigir a um diretor de
jornal, autor de novela, político ou organizador de
movimento, tendo os devidos cuidados com a forma.
Não se conversa com uma autoridade em tom de
botequim. Os pronomes de tratamento são vitais e
fazem o papel de estabelecer uma aproximação respeitosa, sem escorregadas na intimidade.
É preciso convencê-lo a mudar sua posição,
através de um conjunto de dados e provas. Propriedade da norma culta, suficiência de comprovações,
postura contundente e racional sem acrobacias emocionais: esses são ingredientes básicos à carta
argumentativa. Para os examinadores da Unicamp,
que conserva a exclusividade nessa modalidade, “não
basta dar ao texto a organização de uma carta, mesmo que a interlocução seja natural e coerentemente
mantida; é necessário argumentar” - indica o fascículo O Vestibular da Unicamp (de Francisco Furlan,
Maria Luíza Abaurre e Maria Bernadete Abaurre).
Resta assinalar os elementos básicos da carta
argumentativa: data (muitas vezes sugerida na proposta do vestibular; atenção!), vocativo, texto
estruturado em parágrafos com forte argumentação,
despedida e iniciais do nome do aluno.
Escreva, por exemplo, uma carta dirigida ao
carnavalesco Joãosinho Trinta, que assinala o projeto
de carnavalizar O Guarani, montando um espetáculo
com 750 pessoas. Procure convencê-lo de que o carnaval não tem parentesco com a ópera, contrariando
o que ele diz: “Sempre observei que o desfile de uma
escola de samba tem a mesma estrutura de uma ópera. No carnaval, o corpo de baile são as passistas, e o
coral, as alas. A proposta é a mesma: um espetáculo
audiovisual.” (Folha de S.Paulo- 16.jul.96)
A carta também pode contemplar um tema
objetivo de cunho social e polêmico. O tema agora é
a condenação de um dos réus pelo massacre da
Candelária . Escreva uma carta dirigida à senadora
Benedita da Silva, convencendo-a de que a impunidade não acaba com um simples julgamento, contrariando o que ela disse à Folha de S.Paulo em
01.mai.96: “O resultado, de certa forma, fez justiça.
Foi surpreendente. O Brasil dá um salto, não será mais
o país da impunidade.”
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Ilustração Laís Guaraldo
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Coletânea 1) Leia os textos e depois escreva uma dissertação com aproximadamente 30 linhas, tendo como tema
o poema Dia de Índio, de José Paulo Paes:
O dia dos que têm / os seus dias contados.
■ Texto 1) “Desde a colonização, os índios foram submetidos a todo tipo de violência: usurpação de suas terras, assassinatos, guerras, escravidão, genocídios e outras formas de agressão que provocaram o extermínio da
maioria (...) Os guaranis, com cerca de 30 mil índios,
apesar de serem uma das maiores populações indígenas
do país, começaram a praticar o suicídio. Os casos mais
trágicos de suicídio dos guaranis passaram a ser
registrados pela imprensa e pelas entidades indígenas com
mais intensidade a partir dos anos 90.”
(Democracia aos pedaços - direitos humanos
no Brasil - Gilberto Dimenstein)
■ Texto 2) “A entrada de mineradoras e garimpeiros
em terras indígenas é um dos maiores dramas dos índios. Estima-se que apenas 2% das jazidas minerais do
país estejam em terras indígenas, que deveriam ser exploradas em último caso, para funcionarem como reserva futura . No entanto, ignorando esse fato, o governo
já concedeu, até 1988, mais de 500 autorizações para a
pesquisa de minérios em áreas indígenas, além de outros
2 mil pedidos já terem sido encaminhados. Mais da metade das mineradoras interessadas são estrangeiras; as outras pertencem ao governo ou a empresários brasileiros.”
(A questão do índio Fernando Portela e Betty Mindlin)
■ Texto 3) “Mas o índio não tem nenhuma importância para os governos do Brasil. São considerados problema, fonte de atritos com fazendeiros que detêm o poder
político, garimpeiros e posseiros que mobilizam apoios
na sociedade. São um obstáculo à exploração predatória
de madeira, de jazidas e da terra. Não são pessoas. São
apenas um número vago, 170 mil, 200 mil, qualquer
um serve, ninguém conta. Melhor que acabassem. Ou
se ‘integrassem’ logo, virassem alcoólatras, bóias-frias,
mendigos, loucos, ladrões, prostitutas.”
(Xingu, uma flecha no coração Washington Novaes)
Lucília Maria Sousa Romão
Mão na massa - propostas de redação
■ Texto 4) “É impossível resumir em poucas páginas o
lugar do índio na História do Brasil. Deixou-se de falar da
dizimação de inúmeras tribos que representou o rush da
borracha no século XX. Um só exemplo foi citado para
ilustrar as ameaças que pesam sobre as tribos indígenas
sobreviventes na Amazônia e no centro-oeste , em nossos
dias, devido à expansão de latifúndios nacionais e estrangeiros que, reiteradamente na nossa história, substituem
homens por bois. Falou-se por alto dos empreendimentos
multinacionais de mineração, de agroindústria e
extrativismo vegetal, e sua infra-estrutura de estradas e
hidroelétricas, que desalojam colonos, lançando-os sobre
as últimas terras que restam aos índios.”
(O índio na História do Brasi l - Berta Ribeiro)
■ Texto 5) “Reportagem desta Folha revelou que os índios brasileiros estão vivendo menos. Entre 93 e 95, a expectativa de vida dos índios caiu 5/6 anos. Não se trata de
acaso. A Funai investiu no ano passado R$ 22 por índio /
ano, enquanto o SUS ( Sistema Único de Saúde) investe
R$ 100. Os povos indígenas que vivem menos são os da
Amazônia. A região enfrenta fortes surtos de malária e hepatite, doenças levadas pelos madeireiros que invadem a
reserva.”
(Editorial da Folha de S.Paulo -10.jun.96)
■ Texto 6) “Secas vidas de cinzas, sem doce nem sal. Vidas duras, de carinhos segadas, de desejos podadas. Sofrido povo de Deus, proibido de si. Enlutados, porque não
morrem.”
(Maíra - Darcy Ribeiro)
Coletânea 2) Estabeleça um paralelo entre os textos e depois escreva uma dissertação sobre: A vocação brasileira de
importar modelos e padrões.
Fragmento 1) “O Brazil não conhece o Brasil”
(Querelas do Brasil - João Bosco)
Fragmento 2) “Trata-se enfim de uma penetração cultural, fruto de um planejamento cuidadosamente elaborado
pelo governo dos USA (mas essencialmente pacífica, no
sentido de não-utilização de força ou material bélico), da
qual nem sempre nos damos conta, mas que cerra nossos
olhos e ouvidos e nos anestesia a razão e os sentidos para
outras formas estrangeiras de arte, literatura, tecnologia ,
lazer etc. Trata-se de uma invasão que fecha amplos espaços para a criatividade e produção cultural mais ligada à
nossa brasilidade(...) Um monopólio que transforma o que
é estrangeiro em algo tão habitual, tão aparentemente natural em nosso meio, que às vezes nem mesmo é reconhecido como importado.”
(A invasão cultural norte-americana Júlia Falivene Alves)
Coletânea 3) Responda a pergunta feita por Rubem Fonseca no livro O selvagem da ópera : “A adstringência de
Carlos ao modelo europeu obriga suas óperas, inclusive as
que começou e abandonou, até mesmo as que são cantadas em português, A noite do castelo e Joana de Flandres,
quase todas, enfim, com exceção de O Guarani
(indianismo) e Lo schiavo (abolicionismo), a terem temas
alheios ao seu verdadeiro mundo: lendas medievais, devaneios orientais, fábulas estrangeiras com sabor exótico atraente aos europeus. Uma pergunta cuja resposta eu não sei:
se Carlos, como Villa-Lobos, por exemplo, tivesse ficado
no Brasil até os 36 anos e estudasse as partituras dos grandes mestres, “mas deixando-se guiar principalmente pelo
instinto”; se aprendesse com os autores populares de
modinhas as criações tipicamente brasileiras, sem esquecer, todavia a admiração por Verdi, como Villa-Lobos
aprendeu com os ‘chorões’ sem esquecer Bach (...) se isso
tivesse ocorrido, a obra de Carlos Gomes seria mais original, e assim mais prestigiada e permanente?”
Coletânea 4) Para escrever sua dissertação com aproximadamente 30 linhas, leve em consideração os fragmentos abaixo, retirando deles subsídios para a discussão sobre
o perfil do índio na literatura brasileira.
Fragmento 1) “A feição deles é serem pardos maneiras
d’avermelhados de bons rostros e bons narizes bem feitos.
Andam nus sem senhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar o rosto
(...) Eles porém contudo andam muito bem curados e
muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como
aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e
melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus são
tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode mais
ser.”
(A Carta - Pero Vaz de Caminha)
Fragmento2) ‘‘Assim, durante um curto instante, a fera e
o selvagem mediram-se mutuamente , com os olhos nos
olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar
o salto (...) O índio, que ao movimento da onça acurvara
ligeiramente os joelhos a apertar o forcado, endireitou-se
de novo; sem deixar a sua posição (...) Estendeu o braço e
fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era,
intimando os cavaleiros que continuassem a sua marcha.”
(O Guarani - José de Alencar)
Fragmento3) “O herói suspirou. Se ouvia o murmurejo
da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de
Macunaíma, era bom ... A cunhatã mais moça batia o
urucungo que a mãe trouxera da África.(...) a filha-da-luz
mais velha afastava os mosquitos borrachudos em quantidade, a terceira chinoca com as pontas das tranças fazia
estremecer de gosto a barriga do herói (...) No outro dia
Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou
pra taba do igarapé Tietê.”
(Macunaíma - Mário de Andrade)
OUTUBRO
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Outubro