MACÁRIO: UMA PEÇA EXPRESSIONISTA? Miguel Heitor Braga Vieira “Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera”. (Álvares de Azevedo, Macário) O título desse trabalho talvez soe provocativo numa primeira mirada, pois se refere a um texto dramático escrito quase na metade exata do século XIX e a uma corrente vanguardista situada no início do século XX. Porém, essa distância cronológica só aumenta o grau de interesse em se verificar de que maneira o poeta brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852) pode ter antecipado em Macário algumas preocupações estéticas do expressionismo europeu. Valemo-nos de uma abordagem comparatista que visa não somente à promoção da obra do poeta romântico através de uma imposição de sentido como “precursor”, algo por vezes sensacionalista e menor, mas àquela que possa alargar sua leitura crítica ao dialogar com idéias que surgiram após um conhecimento do que se propôs a arte expressionista. É de senso lato que o autor brasileiro foi, além de artista, um estudioso da literatura ocidental, conhecedor de suas vertentes e dotado de grande consciência crítica. João Roberto Faria, ao estudar as ideias teatrais no Brasil do século XIX, dedicou um capítulo inteiro à “Utopia dramática de Álvares de Azevedo” (FARIA, 2001, p. 49-53). Nele, o professor salienta a importância que a “Carta sobre a Atualidade do Teatro entre Nós”, de Azevedo, tem como panorama de seu pensamento. A ausência apontada por ele nos palcos brasileiros encenações de escritores como Goethe, Shakespeare, Schiller, entre outros, dá um conhecimento de sua perspectiva cosmopolita e abrangente, que privilegia a formação de atores, a melhoria do repertório e de cenários. Quanto à vivência teatral da época em que foi escrita, o poeta ironiza o gosto do público por farsas e melodramas, saudoso pelos tempos da Comédia: “Verdadeiros blasés, parece que só amamos as impressões fortes: que preferimos estremecer, chorar, do que rir daquelas boas risadas de outrora” (AZEVEDO, 2000, p. 746). O tom é de quase uma manifesto dramático, que o próprio autor não pôde realizar em sua completude pela curta vida que teve. Além dessa carta, é de interesse precípuo o breve texto que antecede a peça Macário, espécie de prólogo intitulado “PUF!”. Nele podemos afirmar que os pensamentos do autor estão dispostos de maneira mais propositiva, pois abre a guarda ao mostrar seu ideário dramático e fazer uma autocrítica sobre o texto que se sucede. Diz: O meu protótipo [de drama] seria alguma coisa entre o teatro inglês, o teatro espanhol e o teatro grego – a força das paixões ardentes de Shakespeare, de Marlowe e o Otway, a imaginação de Calderón de la Barca e Lope de Veja, e a simplicidade de Ésquilo e Eurípedes – alguma coisa como Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa parte dos dramas dele – em Goetz de Berlinchingen, Clavijo, Egmont, no episódio da Margarida de Faust – e a outra na simplicidade ática de sua Iphigenia. Estudá-lo-ia talvez em Schiller, nos dois dramas do Wallenstein, nos Salteadores, no D. Carlos: estudá-lo-ia ainda na Noiva de Messina com seus coros, com sua tendência à regularidade” (AZEVEDO, 2000, p. 507). Como bem notou João Roberto de Faria, é uma citação de “tirar o fôlego” (FARIA, 2001, p. 51). O que pretendia Álvares de Azevedo era algo como a soma de elementos barrocos, clássicos e românticos. Algo difuso para nossa compreensão, mas que já mostra sua inclinação para a originalidade; salta aos olhos, também, a forte influência da literatura alemã sofrida por ele. A busca de estudo, de empreender uma exegese de suas preferências, deve ser levada em conta. Não podemos deixar em nenhum momento de lado que se trata de um estudante e poeta de vinte anos, em sua plena formação artística e dotado de extrema capacidade de realização. Podemos inferir daí que Álvares de Azevedo fosse um escritor em dia com as informações teóricas sobre o período no qual se enquadrava cronológica e estilisticamente ao escrever: o Romantismo. Deixamos de acreditar somente nas informações em que consta uma personalidade boêmia, noturna e mundana pra relevar sua posição de consciência criadora no Brasil de fins dos anos de 1840 e primeiros de 1850. Sabia o que estava realizando, cônscio de suas qualidades e bem situado no período literário que lhe dava gosto. Macário provavelmente foi escrito entre os anos de 1849 e 1850, não se tem ao certo a data de sua produção. É um texto com características teatrais, mas que o próprio autor não conseguiu definir pelo fato de não seguir as regras típicas do gênero, atendo-se a nomeá-lo de “drama, comédia, dialogismo” (AZEVEDO, 2000, p. 509). Importa que sempre foi tratado como um texto dramático, além de ter sido representado nos palcos brasileiros em alguns momentos de sua existência. Nas poucas páginas que dedica a esse texto em seu Panorama do teatro brasileiro, Sábato Magaldi designa-o como uma “tentativa dramática” (1997, p. 118) e ainda observa sua gênese através de uma reflexão baseada na índole romântica: “A desordenada inspiração do poeta precisava de liberdade para expandir-se. E nada melhor do que um sonho, que rompe sem cerimônia as formas cênicas e desconsidera as limitações do espaço” (1997, p. 199). É interessante notar na referência de Magaldi aos vocábulos “liberdade”, “sonho”, os quais irão aparecer quase que com a mesma força do romantismo também na concepção teatral expressionista. Antonio Candido se debruça mais pacientemente sobre a “inspiração confusa” de Álvares de Azevedo no ensaio “A educação pela noite” e assinala sua importância ao dizer: “O Macário é um drama fascinante, feito mais para a leitura do que para a representação, com duas partes diferentes enquanto estrutura e qualidade, sendo a primeira melhor, e uma das mais altas realizações de Álvares de Azevedo” (CANDIDO, 1989, p. 11). Concordamos que seja uma “das mais altas realizações” do poeta brasileiro, mas quanto à assertiva de que são duas partes que o dividem diferentes na qualidade, deixamos em aberto para verificação posterior. O argumento levantado por Candido é o problema da “binomia” como base do pensamento não só literário como crítico do autor de Lira dos vinte anos. Esse “choque dos contrários” (CANDIDO, 1989, p. 10), verdadeiro pressuposto da estética romântica, faz-se presente durante todo o decorrer do Macário, servindo para intensificar o embate dramático entre os personagens e resvalando muitas vezes na negação de estancamento entre os gêneros literários que tão bem serviu ao modo romântico de construir o real. Mas qual é a história do texto? Um enredo simples, dividido em dois episódios, o primeiro “Numa estalagem da estrada” e o segundo “Na Itália”. No primeiro acompanhamos o encontro do personagem homônimo ao título com um desconhecido na referida estalagem de beira de estrada. Lá, numa noite chuvosa e fria, eles se alimentam, bebem, fumam e, sobretudo, conversam sobre assuntos mais diversos: a vida, a morte, o amor, a melancolia, o sexo. Em determinado momento esse desconhecido revela-se ser nada menos do que o próprio Satã, sendo ridicularizado pelo descrente Macário. Sem sono, os dois partem num burro preto de Satã e chegam numa cidade obscura, que pelas referências reconhecemos ser São Paulo. Lá vão para a casa de Satã, bebem, conversam e vão ao cemitério onde Macário adormece e tem sonhos terríveis. O que nos desconcerta na leitura é o retorno brusco ao cenário primeiro da estalagem onde Macário acorda com a mulher esmurrando a porta dizendo que ele dormia até tarde. O encontro com o diabo se reforça como um delírio noturno e com a constatação misteriosa de um trilho queimado de pé de cabra no chão, situação em que termina a primeira parte. No segundo episódio temos a presença de um terceiro personagem importante, Penseroso. Ele é a figura contraposta a Macário. Um personagem tipicamente romântico, idealista, prestes a morrer pelo amor, com discursos líricos sobre a mulher e a vida. Penseroso e Macário mantêm diálogos longos em que podemos identificar prontamente a “binomia” apontada por Antonio Candido: Penseroso, o afirmativo e crente, e Macário, o negativo e cético. Só que há o desequilíbrio com a presença de Satã, o relativista, que dá dinamicidade aos acontecimentos, culminando essa parte com o suicídio de Penseroso. A peça termina com o caminhar dos dois sobreviventes a uma orgia, onde veem pela janela o quadro de uma sala fumacenta, mesas com homens ébrios, cenário que lembra muito o de Noite na taverna, do mesmo autor. Retomamos, então, aqui, a idéia de Candido, quando este considera desiguais as duas partes do texto. Na realidade, não se pode considerar a segunda inferior pela própria natureza de Macário. Em todo momento estamos diante de condições instáveis entre sonho e realidade. Pode ser que seja intencional essa marca de dubiedade para acentuar seu caráter dramático. O crítico identifica a segunda parte de Macário como inferior à primeira considerando a princípio sua composição “desarticulada”, “em dez cenas desconexas, duas das quais sem identificação de lugar” (CANDIDO, 1989, p. 13). Essa desarticulação seria mesmo desarranjo formal se pensarmos no efeito estético de sonho e irrealidade que proporciona, algo próximo de intenções de autores tipicamente expressionistas, guia de nossa leitura presente? Achamos que não. Chegamos ao impasse: como relacionar Macário, uma obra romântica, a uma vanguarda europeia do século XX que é o expressionismo? Partimos do pressuposto em pensar o romantismo na direção tomada por Michael Löwy e Robert Sayre (1995). No capítulo concernente à tentativa de redefinir o que é o romantismo em Revolta e melancolia, os autores enumeram vários tipos de estudos referentes ao fato romântico. O terceiro tipo indicado por eles é aquele que visa “reconhecer a multiplicidade cultural do romantismo e que, por conseguinte, o consideram como uma visão de mundo, uma Weltanschauung que se manifesta sob as mais diversas formas” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 19). Esse tipo de abordagem teria o mérito de visualizar tudo aquilo que caracteriza o que é chamado romantismo ao mesmo tempo em que se percebe sua variedade de influências. O romantismo teria, assim, se refletido em grandes autores do século XX, como Thomas Mann, William Butler Yeats, entre outros, e em correntes artísticas, principalmente no expressionismo e no surrealismo. Segundo os autores, portanto, a visão de mundo romântica permanece nos “aspectos mais inovadores assim como nos mais tradicionais do século XX” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 223-224). Essa multiplicidade de aparições ressoantes do romantismo no século XX vem sob forma de movimentos estéticos frente a condições sociais e econômicas excludentes da modernidade. O romantismo seria um mecanismo de crítica na contramão dessa modernidade em formação. Seria equivocada a abordagem das correntes culturais iconoclastas do século XX apenas sob as designações de “moderno”, “modernismo”, ou ainda mais recentemente em “pósmodernismo”. Eles dizem: “Com efeito, essas designações dizem respeito ao que é ´moderno´ – isto é, novo – na cultura (arte, pensamento), enquanto, para nós, o romantismo constitui antes uma recusa do moderno social” (LÖWY; SAYRE, P.228). O expressionismo é uma das vanguardas europeias surgidas no período pré e pós 1ª Guerra Mundial. Acontecido principalmente na Alemanha entre os anos de 1905-1910, está representado no teatro por nomes como Georg Kaiser, Ernst Toller, Walter Hasenclever. Em Estética teatral, temos: “Ansioso por „exprimir‟ e não reproduzir, o expressionismo, nas suas origens, afirma-se como nostalgia de um aprofundamento da vida” (BORIE et al., 1996, p. 415). Sente-se a busca pelo “homem em estado puro”, algo presente, na pintura, seja nos quadros de antecessores como Van Gogh e Cézanne, seja, na filosofia, nos escritos de Nietzsche e Kierkegaard. Essas afirmações vão ao encontro do pensamento de Löwy e Sayre. De acordo com eles, “entre as novas formas assumidas, no século XX, pela crítica romântica da civilização, alguns movimentos culturais de vanguarda – como o expressionismo e o surrealismo – ocupam posição central” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 230). Contudo, é temerário considerar o expressionismo como um movimento de vanguarda homogêneo. Não há uma doutrina ou estética comum a todos que são considerados expressionistas e sim o que Löwy e Sayre chamam de Stimmung, isto é, atmosfera ou clima que expõem o sentimento utópico, angustiado, desesperado e revoltado dos artistas. Tanto dramaturgos, poetas, escritores quanto pintores e filósofos tratam de negar a realidade objetiva, violentando-a, preocupando-se com a interioridade e dilaceramentos do humano. Gilberto Mendonça Teles (1995) sintetiza bem esse sentimento na introdução aos manifestos expressionistas disponibilizados em Vanguarda européia e modernismo brasileiro: “O artista perdia o controle da expressão, os elementos é que expressavam a si mesmo. Seu mundo interior era obscuro e alógico, assim também devia ser sua expressão” (TELES, 1997, p. 104). Vemos outros pensadores também relacionando o romantismo ao expressionismo. O caráter de busca do essencial do ser humano, através de referências autobiográficas ou confessionais, é levantado por Gerd A. Bornheim, pensando em duas quimeras de ambos os movimentos: a intuição e o primitivo do homem. Ele diz: A alma romântica é uma alma que se confessa sempre, que não consegue esquecer-se. A arte romântica tende a resolver-se em termos de autobiografia. Do expressionismo também se pode dizer que confessa algo, que é autobiográfico – e nesta medida, pode-se falar em filiação romântica do expressionismo. (BORNHEIM, 1992, p. 65) Mas se no romantismo temos a subjetividade do próprio artista sugerindo formas de interpretação do real, no expressionismo surgem personagens fragmentadas servindo de marionetes às condições sociais a que chegou o homem do início do século XX, escravo de suas próprias criações científicas, técnicas e industriais. Já Anatol Rosenfeld direciona seu pensamento crítico para a estrutura das obras dramatúrgicas expressionistas e também para sua fundamentação filosófica. Ao usar peças de Wedekind como exemplo de teatro expressionista, diz: “Formalmente, a obra prepara o expressionismo cênico pela destruição da estrutura „bem feita‟” (ROSENFELD, 1977, p. 111). Essa conclusão do crítico após leitura de textos do dramaturgo alemão faz lembrar a ruptura de gêneros e leis dramáticas iniciada por Victor Hugo no “Prefácio a Cromwell” de 1827. Sob as áreas filosófica e existencial, ele diz: Característica é a atmosfera irreal até à abstração, bem como a tipização das personagens (prenúncio do antipsicologismo e da busca do mito, essenciais ao Expressionismo), a objetivação radical de vivências subjetivas (na poesia logo não haveria mais “uma dor atroz „como‟ um punhal”, mas apenas a presença do “punhal atroz”). A essas antecipações importantes acrescentamse ainda o elemento fantástico da cena do cemitério (em plena fase naturalista), o diálogo lírico, de curva barroca, muitas vezes reduzido a monólogos paralelos, e a deformação grotesca com que é apresentado o mundo adulto dos pais e professores, expoentes do mundo burguês que é cruelmente desmascarado. A distorção caricata e fantasmagórica transforma as personagens de Wedekind logo em marionetes rígidos, logo em animais disfarçados de seres humanos que se agitam regidos por impulsos elementares”. (ROSENFELD, 1977, p. 112) Parece, nesse comentário, que estamos diante de uma leitura de Macário, não fosse a indicação de que é de uma peça de Wedekind. Há a presença do fantástico em Álvares de Azevedo, os diálogos líricos que se aproximam de formas barrocas, em que cada personagem, como no segundo episódios acontece com diálogos entre Penseroso e Macário, parecem dissertar sobre sua concepção de mundo paralelamente, expondo suas concepções existenciais na solidão inescapável da linguagem. Pelo que dissemos até aqui aprece lícito confrontar o Macário com aspectos expressionistas pelo arcabouço do ideário romântico. A recusa a comportamentos estereotipados é princípio romântico e expressionista e a vemos no prólogo da peça, em trecho citado por Antonio Candido: “É difícil marcar o lugar onde pára o homem e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto – onde a paixão se torna ferocidade. É difícil marcar onde deve parar o galope do sangue nas artérias, e a violência da dor no crânio” (CANDIDO, 1989, p. 15). O autor se preocupa, assim como os expressionistas, com o homem em estado puro, com seus impulsos elementares, sem filosofias. Pensemos principalmente nos personagens, suas ações e digressões, lembrando Décio de Almeida Prado: “No teatro, ao contrário [do romance], as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser através delas” (PRADO, 1998, p. 84). Vimos que são três os principais personagens da peça: Macário, Satã e Penseroso. O que os distingue e confere energia à história é que cada um se insere numa categoria distinta daquela clássica Homem-Diabo (cujo exemplo maior é Fausto-Mefistófeles, de Goethe), como bem notou Antonio Candido (1989). Temos a tripartição representativa em Homem Angélico, Homem Diabólico e (redundantemente) Homem Homem; respectivamente: Penseroso, Satã e Macário. Interessante é que no primeiro episódio inexiste o Homem Angélico e no segundo praticamente está ausente o Homem Diabólico. Não temos um provável embate que se faria entre os opostos, apenas o Homem Homem, Macário, perpassa os dois. Inferimos dessa maior presença do Homem Homem que a preocupação seja o homem comum mesmo, que se revela às vezes esperançoso, fiel a seus sentimentos, mas na maior das vezes cético e sarcástico frente ao mundo que se lhe apresenta. Ora, essa contradição tão próxima ao ser humano se mostra na personalidade de Macário de tal forma que em alguns momentos ele chega a ser mais diabólico que o próprio Satã e, em outras, mais angelical que Penseroso. É um tipo de homem comprometido em descobrir suas razões interiores, sua essência, mas que não é um ser “a-histórico”, pois se encontra efetivamente inserido no tempo. Macário em certo momento diz: O mundo hoje é tão devasso como no tempo da chuva de fogo de Sodoma. Falais na indústria, no progresso? As máquinas são muito úteis, concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e mármores – mas a arte degenerou em ofício – e o gênio suicidou-se. (AZEVEDO, 2000, p. 549) Esse descontentamento com o progresso aparente, o espírito inspirador afundando-se no que foi criado pelos seus semelhantes é apontado por Löwy e Sayre ao se lembrarem da introdução de Kurt Pinthus para a coleção de poemas expressionistas Crepúsculo da humanidade, de 1919: “Criticando a alienação da vida moderna, Pinthus observa que a humanidade tornou-se „inteiramente dependente de suas próprias criações‟, de sua ciência, técnica, estatística, comércio e indústria, de uma ordem social estereotipada, de costumes burgueses e convencionais” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 231). Não é isso, em sua proliferação, que Macário, por volta de 1850 já está apontando aqui no Brasil? Essa inquietação surgida pela sensação de uma perda de paraíso está no âmago da visão romântica de mundo e repete-se também no expressionismo. Não é à por menos que vemos o desejo de fuga ao Oriente e o gosto por ruínas tão frequentes como refúgio ao homem desolado. Essas duas situações encontramos na boca de Satã e Macário, respectivamente: “É uma propensão singular a do homem pelas ruínas” e “Sabes... há ocasião em que me dão venetas de viver no Oriente (AZEVEDO, 2000, p. 526 e 528). Temos que considerar ainda o cosmopolitismo que sempre guiou as ideias teóricas de Álvares de Azevedo, às vezes sendo irônico – em sua peça mesmo – ao costume de poetas brasileiros evocarem a exuberância da natureza e sua cor local sem conhecê-la a fundo. Aquele defeito apontado por Antonio Candido, de que os dois episódios teriam um abismo de qualidade entre si, perde mais uma vez sua força ao pensarmos que servem exatamente como duas amostras das facetas humanas: uma o homem acompanhado de Satã e se revelando alheio a ele e outra ao lado de um ser idealizado, angelical, mas também lhe sendo díspar. Esse homem, romântico, portador das maiores dúvidas e contradições é também o homem representado no expressionismo. Por vezes a descrença no aparato filosófico construído pela humanidade ressoa no Macário, tal qual no expressionismo, na sua busca exasperada de autoconhecimento sem as lentes impostas pela sociedade: é o desejo de integração total à revelia de sua constante fragmentação e alienação, pelo perdido real e absoluto. É um sentimento de permanente ilusão que o leva a dizer num quase grito existencialista: É uma cousa singular esta vida. Sabes que às vezes eu quereria ser uma daquelas estrelas para ver de camarote essa Comédia que se chama o Universo? Essa Comédia onde tudo que há mais estúpido é o homem que se crê espertalhão? Vês aquele boi que rumina ali deitado sonolento na relva? Talvez seja um filósofo profundo que ri de nós (...) Eis o que é a filosofia do homem! Há cinco mil anos que ele se abisma em si, e pergunta-se quem é, donde veio, aonde vai, e o que tem mais juízo é aquele moribundo que crê e ignora! (AZEVEDO, 2000, p. 528) Pelo que dissemos acima parece admissível concluir agora a aproximação de Macário às ideias préexpressionistas, ou ainda da vanguarda propriamente dita e formalizada nas primeiras décadas do século XX. Contudo, torna-se imperioso constatar que tão somente a designação dessa peça como precursora não leva a lugar algum. O que defendemos aqui é que o romantismo tomado como período literário tão somente é redutor e que se aliaria, para nós, mais a uma visão de mundo e a uma sensibilidade que se inicia já no século XVIII na Europa e perpetra a história da literatura desde então. A leitura da herança romântica pelos expressionistas é seletiva, como a das demais vanguardas do século XX, o que reforça seu caráter crítico inserido na modernidade. Dessa forma podemos, sim, antever em Macário a cristalização de posicionamentos que se repetirão em estéticas de arte posteriores como o simbolismo, nas vanguardas semeadas no crepúsculo do século XIX e designadas de futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo e outros “ismos”. Assim, ao pavimentar (ou despavimentar) o caminho de textos românticos como de o Macário para além de uma localização fixa e redutora na história literária, estamos alargando sua recepção para nossas leituras contemporâneas. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Álvares. Macário. Rio de Janeiro: Artium, 1998. _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética teatral: textos de Platão a Brecht. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. BORNHEIM, Gerd A. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1992. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo E. S. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998. DUBE, Wolf-Dieter. O expressionismo. São Paulo: Verbo/EDUSP, 1976. FARIA, João Roberto de. Idéias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2001. LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995. MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo, Global, 1997. ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1977. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1997.