verve verve Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP 11 2007 VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº11 ( abril 2007 - ). - São Paulo: o Programa, 2007 Semestral 1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadores: Teresinha Bernardo e Paulo-Edgar Almeida Resende. Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Bruno Andreotti, Edson Lopes Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Fábio Lacerda, Gabriel Prestes Espiga, Guilherme C. Corrêa, Gustavo Ferreira Simões, Gustavo Ramus, Lúcia Soares da Silva, Márcio Ferreira Araújo. Jr., Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Nildo Avelino, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago Souza Santos. Conselho Editorial Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Margareth Rago (Unicamp), Roberto Freire (Soma), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ), Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti (PUC-SP), Heleusa F. Câmara (UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam (ICCrim), Paulo-Edgar Almeida Resende (PUC-SP), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia). ISSN 1676-9090 verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal. poesias de julian beck, Theantric: Julian Beck’s last notebooks. New York: The Living Theatre, 1992. Tradução de Nildo Avelino da edição italiana. no encerramento, poesia de thiago r. SU M Á R I O Subsídios para a história do movimento social no Brasil Pedro Catallo 11 O princípio do Estado Mikhail Bakunin 50 O anarquista profissional (o catecismo revolucionário) Sergei Nietcháiev 78 A repressão ao anarquismo na Rússia soviética Grupo de anarquistas russos exilados na Alemanha 95 Minha outra desilusão na Rússia Emma Goldman 109 Pequeno manual anarquista individualista Émile Armand 123 Neno Vasco, Emma Goldman, A revolução mexicana de 1910 e a tese de Pietro Ferrua Edgar Rodrigues 132 Sofisma é imprescindível à Democracia, ou como mentir apenas dizendo verdades, ou ainda “Sorria! você está sendo filmado!” Rogério Nascimento 156 Por uma militância divertida O inimigo do rei, um jornal anarquista Gustavo Simões 168 Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem experimental [como desfazer uma educação ambiental] Ana Godoy 183 Transgressão e esgotamento: aguda indiferença, suficientemente desinteressada e escrupulosa Alexandre de Oliveira Henz 202 Arte: máquina de guerra Beatriz Scigliano Carneiro 218 O único e sua propriedade (parte 2) John Henry Mackay 236 RESENHAS Foucault, fulgurações da diferença Salete Oliveira 273 Experiências e liberações Bruno Andreotti 277 Um sacrifício para o condutor político Edson Passetti 281 Um livro para usar, brincar e jogar Acácio Augusto 288 Roberto Freire: anarquia aqui e agora José Maria Carvalho Ferreira 293 verve 11 : um e um. uns... um depoimento do teatrólogo pedro catallo contando um pouco da história social pouco conhecida. um contundente e atual escrito interrompido de bakunin atravessando o islamismo. um oportunista anarquista profissional chamado nietcháiev é trazido para discussões. uma revolução russa que não soube lidar com diferenças é mapeada e colocada a nu por um documento vigoroso e uma análise de emma goldman. um pouco do anarco-individualismo, pelo manifesto de émile armand. uma face séria da revolução, um abalo no sofisma e uma remexida no inimigo do rei, por edgar rodrigues, rogério nascimento e gustavo simões, vão compondo uma cartografia que nos remete a umas experimentações com ana godoy, uns efeitos de cinema por alexandre henz e máquinas de guerra-arte com beatriz carneiro. até chegar o único e a sua propriedade, segunda parte do longo capítulo do histórico livro do poeta john henry mackay, pouco conhecido dos anarquistas no Brasil e contando uma história a ser conhecida. umas resenhas entre tantas possíveis comentam libertarismos em foucault, deleuze, kadaré, colson e um tesão de roberto freire. verve 11 anda com umas poesias do encenador; experimentador artístico; anarquista; apaixonado; preso torturado pela ditadura militar no Brasil nos anos 1970, julian beck. e traz mais um thiago r... anda com você e com quem é uns. 11 2007 transformar o ânimo como pode a revolução significar a sujeição de alguém, como pode a liberdade significar o domínio sobre o ex-rei da parte dos súditos? tais relações são demasiado tristes para o novo mundo. após a revolução nada mais de punição. mas estamos falando de uma transformação no espírito, no ânimo. a economia é o córtex, a política é a epiderme. (junho 1983) 10 verve Subsídios para a história do movimento social... subsídios para a história do movimento social no brasil pedro catallo* O meu primeiro contato com as idéias libertárias foi por intermédio da União dos Artífices em Calçados e Classes Anexas de São Paulo, em outubro de 1921, precisamente com a idade de 21 anos. Por essa ocasião os sapateiros estavam radiantes porque haviam vencido um boicote aplicado contra um industrial que se mostrou recalcitrante em atender um pedido de aumento da mãode-obra, e eu fui levado de roldão por esse acontecimento para dentro do sindicato. Confesso que fiquei deslumbrado com a primeira assembléia que assisti, pois apesar de ter vindo da Argentina no ano de 1917, como emigrante, onde a luta social era bastante acen- * Pedro Catallo (1901-1969), sapateiro, anarquista, dirigiu os jornais O Libertário e Dealbar, foi um dos articuladores da reabertura do Centro de Cultura Social em 1945, escreveu as peças teatrais Como rola uma vida e O coração é um labirinto. Sobre Pedro Catalo, consultar Edgar Rodrigues. Os companheiros. Florianópolis: Editora Insular, 1998, pp. 37-50. “Subsídios para a história do movimento social no Brasil” é um depoimento de circulação entre os anarquistas. verve, 11: 11-48, 2007 11 11 2007 tuada, eu desconhecia completamente o que fosse um sindicato e a questão social. Talvez isso se deva ao fato de que criado em Santa Fé, longe de Buenos Aires e de Rosário, onde o proletariado, forçosamente, devia ser muito mais esclarecido, e também porque a maioria dos meus anos escolares os passei num colégio de padres franciscanos e, consequentemente, também sob sua influência conservadora. Naquele mesmo ano de 1921, verificou-se na classe dos trabalhadores em calçados um acontecimento marcante, que não deixa lugar a dúvidas quanto à força dos sindicatos operários quando bem orientados. O Centro dos Industriais em Calçados, organização patronal criada para combater as atividades da União dos Artífices em Calçados, por motivo de um pedido de aumento de 600 reis na mãode-obra de cada par de sapatos Luiz XV, resolveu declarar o lock-out. Foi assim que no dia 9 de dezembro daquele ano, todos os estabelecimentos filiados ao Centro dos Industriais, em número mais ou menos de 20 a 25, fecharam suas portas. Essa greve patronal, ou seja, lock-out, durou de 18 a 25 dias, e quando os patrões decidiram reabrir suas oficinas os operários negaram-se a trabalhar sem que lhes fossem pagos os dias que estiveram parados e mais os 600 reis de aumento por par. Foi mais uma estrepitosa vitória que serviu de estímulo para que os trabalhadores acorressem ao sindicato. Os patrões não tiveram outra alternativa senão aceitar as condições impostas pelos operários, caso contrário suas oficinas continuariam paralisadas. Aquela primeira noite que pisei numa assembléia da União dos Artífices em Calçados e Classes Anexas foi memorável para mim, porque fiquei profundamente impressionado com a palavra eloqüente, ardorosa e convincente de dois oradores, que ficaram solidamente impressos em meus sentimentos, ainda virgem em matéria de política. 12 verve Subsídios para a história do movimento social... Um deles, Ricardo Cipolla, dono de uma voz troante e de um verbo envolvente, poético e persuasivo, prendia pela força de seus argumentos e pela beleza da retórica verbal. Praticamente a ele devo o fato de ter abraçado a luta social e de me ter decidido pelas idéias anarquistas. O outro, Antonino Domingues, de nacionalidade espanhola, era um homem inteligente, de físico fino e delicado que jamais faria supor tratar-se de um sapateiro. Sua palavra, com forte acento galego, porém clara, pausada e compreensível, era enrobustecida por um profundo conhecimento da questão social, era o que se pode chamar de um militante anarquista completo. Esses dois homens descortinaram para mim um mundo completamente desconhecido; o mundo da luta social com o seu alto significado de justiça e fraternidade. Infelizmente não pude gozar da amizade de Ricardo Cipolla, porque pouco tempo depois de eu entrar para o sindicato ele fora traiçoeiramente assassinado, num festival nosso, na noite de 1º de janeiro de 1922, por um indivíduo chamado Indalécio Iglésia, que se havia insinuado por entre os grupos anarquistas, e de quem, alguns anos mais tarde, soube-se que era confidente policial. O enterro de Ricardo Cipolla foi algo de impressionante pelo grande comparecimento do operariado de São Paulo, que por aquela ocasião estava mais ou menos bem organizado. Cipolla não perdia oportunidade para intervir em qualquer acontecimento em que pudesse falar e fazer conhecer as idéias anarquistas. Foi assim que, em certa ocasião, um menino de menor idade, uns doze anos talvez, que trabalhava na Fábrica da Aniagem Paulista, situada na rua da Mooca, na turma que ia até às dez horas da noite, vencido pelo sono e pelo cansaço, adormeceu por entre os fardos de aniagem. Era hábito naquela fábrica, depois que os operários da turma que trabalhava até as dez da noite houvessem saído, soltar a matilha de cães 13 11 2007 policiais que acompanhavam o guarda na ronda durante a noite. Aqueles cachorros, uma vez soltos, partiam como feras famintas percorrendo e farejando todos os recantos da fábrica. Nenhum dos integrantes daquela turma noturna apercebeu-se da falta do menino e ele lá ficara no mais profundo sono. O que aconteceu ao pobre menino, que teve a infelicidade de adormecer por entre aqueles fardos de aniagem, é fácil imaginá-lo: foi completamente estraçalhado, rasgado, por aquela alcatéia de lobos ferozes encarregados de vigiar a fábrica. Quando o guarda noturno chegou onde se consumava a orgia dos cachorros, o desventurado menino era um horrível amontoado de retalhos de tenra carne humana. Foi uma tragédia que consternou dramaticamente toda a população de São Paulo, que então se compunha de mais ou menos 600 mil habitantes. O enterro desse infeliz menino foi a pé, e o acompanhamento se compunha de milhares de trabalhadores de todas as profissões, que em sinal de luto externavam o seu impressionante protesto. Quando o pequeno caixão estava prestes a descer o túmulo, ouviu-se a voz potente, segura e incisiva, de Ricardo Cipolla que, numa oração fúnebre e brilhante ao mesmo tempo, demonstrava aos presentes os males duma sociedade imperfeita e injusta, que permitia o trabalho noturno a crianças de apenas doze anos. Assim era Ricardo Cipolla, um militante anarquista, corajoso, convicto, inteligente e um grande orador. Não havia transcorrido talvez um mês daquele trágico acontecimento, quando outro menino teve a desventurada sorte do anterior, na mesma fábrica e na mesma turma noturna. Só depois disso é que os donos daquela tétrica fábrica resolveram retirar os cachorros, preferindo continuar a exploração de menores. Em 1923, a União dos Artífices em Calçados decretou uma greve geral com o fim de melhorar as condições dos 14 verve Subsídios para a história do movimento social... sapateiros e, como sempre, encontrou forte resistência por parte de um patronato composto em sua maioria por elementos italianos, francamente reacionários, que para cá vieram com o único fito de enriquecer e, para tanto, todos os meios lhes pareciam bons. Aglutinados no Centro dos Industriais (naquele tempo não existia a Federação das Indústrias), inconformados e obstinadamente contrários ao predomínio que então exercia a União dos Artífices em Calçados, cuja obra de orientação e esclarecimento e de conscientização nos meios operários dificultava a exploração e os manejos patronais, arquitetavam toda sorte de artimanhas para desbaratar o nosso florescente sindicato. Em grande parte das fábricas e oficinas de calçados de São Paulo, os trabalhadores estavam firmemente organizados e tinham, em cada local de trabalho, um delegado, cuja função era zelar pelo bom andamento da organização e atender as reclamações dos patrões, assim como transmitir a estes os reclamos dos operários. Uma das principais incumbências que tinha o delegado, era impedir que trabalhassem na casa operários que não fossem associados da União dos Artífices em Calçados. Essa medida visava manter a casa bem organizada e impedir que o patronato tomasse força. O sindicato mantinha organizado um Centro de Colocação, que se incumbia de receber por meio dos delegados, os pedidos de mão-de-obra por parte dos patrões e registrar os trabalhadores em disponibilidade. Alguns patrões achavam cômoda essa situação, porque o sindicato era responsável pelos maus profissionais. Mas outros, aqueles de índole reacionária, não suportavam em suas fábricas e oficinas esse controle sindical. “Em minha casa mando eu”, diziam, e os conflitos feriam-se continuamente, o que, até certo ponto, servia para adestrar os trabalhadores na luta sindical. 15 11 2007 A polícia tinha sempre papel saliente nos conflitos. Um trio policial que se celebrizou pela perseguição sistemática, insidiosa e discricionária, e que recebia para esse fim boa remuneração dos industriais, era composto por Oreste Lascala; Gentile e Antonio, o barbeirinho, como era chamado porque havia sido barbeiro. Esses três indivíduos possuíam em grau máximo todo o sadismo indispensável a um truculento policial. Era o tempo em que imperava o domínio feudal do P.R.P. (Partido Republicano Paulista), encabeçado por Washington Luiz, cuja passagem como chefe de polícia de São Paulo ficou marcada por sua atuação reacionária e pela frase que o celebrizou como feroz inimigo dos trabalhadores: “a questão social resolvese a patas de cavalos”. A União dos Artífices em Calçados realizava semanalmente, todas as segundas-feiras à noite, assembléias gerais, freqüentadas assiduamente por grande número de operários já habituados a essas assembléias. O número de militantes ativos e atuantes desse sindicato era grande, destacando-se um jovem de bela aparência, de regular inteligência e de atuação marcante: Afonso Festa. Outro militante dedicado, honesto e atuante era João Peres, pai do nosso atual companheiro Ideal Peres. Para se ter uma idéia do número de militantes jovens que atuavam dentro da União dos Artífices em Calçados, basta citar que tínhamos formado um grupo chamado Legião dos Amigos da Plebe, para angariar recursos para esse jornal, que se compunha de mais de 50 pessoas, todos sapateiros e todos jovens. Cada assembléia semanal era quase sempre precedida de conferências feitas por militantes convidados. Essa obra de ilustração e de renovação mental que o sindicato realizava começou a produzir seus frutos e, consequentemente, a acentuar a luta entre patrões e operários. Na profissão dos sapateiros preponderava o elemento italiano, que trouxe de sua terra um hábito 16 verve Subsídios para a história do movimento social... que consistia em festejar todas as segundas-feiras o seu Patrono: São Crispim. Em decorrência desse costume fortemente arraigado nos sapateiros italianos, as oficinas de calçado Luiz XV, onde sempre se gozou de uma relativa liberdade em virtude do trabalho ser pago por peça, transformava-se naquele dia em casa de jogos de carteados e bebidas. Não raras vezes aconteciam brigas causadas pelo estado de embriaguez daqueles que se excediam na bebida. Quando a União dos Artífices em Calçados começou a estender sua influência nos meios operários e a organizar fábricas e oficinas de trabalho, foi sistematicamente suprimido e substituído pelo folheto, livros e discussões em torno da questão social. Essa obra de ilustração dos nossos sindicatos, que visava disseminar a cultura entre os trabalhadores, foi confirmada pelo relatório de um delegado de polícia da cidade de Santos, quando disse: à medida que crescia o número de sindicatos operários diminuía a intensidade dos crimes naquela cidade. Pouco tempo depois da greve dos sapateiros, no mesmo ano de 1923, os trabalhadores em fábricas de tecidos puseram-se também em greve geral. Naquela época, em São Paulo, a indústria de tecidos era a que maior número de operários comportava. Com a greve dos têxteis encontra-se séria resistência por parte dos patrões, colocando, destarte, os operários tecelões em sérias dificuldades de subsistência. Os sapateiros, reunidos em assembléia geral, resolveram solidarizar-se com os tecelões em greve, prontificando-se, cada família de sapateiro, a receber em seu lar o número de filhos dos tecelões que pudesse atender, para que os seus pais pudessem melhor enfrentar o patronato e vencer a greve. Essa maravilhosa manifestação de solidariedade não chegou a se materializar, 17 11 2007 porque poucos dias depois, inesperadamente, a greve teve fim. Pelo que pude averiguar naquela época, essa singular manifestação de solidariedade somente havia sido praticada em duas oportunidades: na Itália, em Milão, e na Espanha, por ocasião da greve de “las minas del Río Tinto”. Desconheço as épocas de tais acontecimentos. Para a noite de sábado, 5 de julho de 1924, a União dos Artífices em Calçados tinha preparado um grande festival artístico-dançante que se efetuaria no tradicional salão das “Classes Laboriosas” ainda existente na rua Roberto Simons, antiga rua do Carmo. Como naquele tempo era permitida a kermesse, a comissão do festival havia recolhido, numa carroça, um grande número de doações e presentes, que depois foram devidamente numerados para serem sorteados na kermesse, no decorrer do festival. Naquele mesmo dia, de madrugada, São Paulo despertou debaixo de um cerrado fogo de canhões. Eram as forças do general Isidoro Dias Lopes, que bombardeavam os pontos estratégicos da capital, inclusive o palácio do governo, do qual agora não me lembro o nome. O governador, a força pública, os soldados legalistas (assim eram chamados os soldados fiéis aos situacionistas) e a polícia, fugiram espavoridos, abandonaram misteriosamente a capital de São Paulo, que foi totalmente ocupada pelas forças revolucionárias de Isidoro. Isidoro Dias Lopes foi traído covardemente por alguns generais que se comprometeram a acompanhá-lo e que, uma vez iniciada a revolução, mantiveram-se fiéis ao reacionário Presidente Artur Bernardes. Poucos dias se passaram e o exército, que se mantivera ao lado do governador de São Paulo e do presidente da república, fez o cerco à rebelde capital, onde flamejava a bandeira da revolução, e começou um criminoso bombardeio, do qual as vítimas principais eram gente do povo, que manifes- 18 verve Subsídios para a história do movimento social... tou abertamente a simpatia pelas forças revolucionárias. Os tiros dos canhões legalistas não precisavam de mira; bastava despejá-los sobre a população, que tivera a ousadia de manifestar sua simpatia para um movimento militar que lhe despertara uma certa esperança. O governador e o presidente da república sabiam-no, e por isso a ordem era arrasar a capital. A população vivia aterrorizada pelo bombardeio que não poupava ninguém, e em todos os bairros havia vítimas inocentes a lamentar. Um amigo meu, de profissão forneiro, perdeu sua mulher, atingida quando lavava roupa. A revolução de 24, como ficou conhecida, trazia francamente um traço de revolta contra as injustiças sociais, e por essa razão todos os potentados, donos de fábricas, donos de grandes armazéns, donos de moinhos e grandes atacadistas, fugiram precipitadamente e amedrontadamente, temendo por uma vingança popular. Bastou que um soldado de Isidoro arrebentasse as portas de um armazém, para que o saqueio começasse, se generalizasse e se prolongasse até que as forças revolucionárias dominaram a capital. Por semanas inteiras viam-se multidões de gente carregando de tudo, desde farinha e outros comestíveis, até casimira, remédios, panelas, pratos e louças de todo tipo, ferramentas e até taças de privadas. O saqueio era favorecido pelos soldados da revolução, que desde os primeiros momentos ganharam a simpatia do povo paulista e se tornaram seus amigos. Em qualquer casa que esses soldados pedissem comida, café ou outros favores de emergência eram atendidos com simpatia e entusiasmo. Por essa razão o bombardeio sobre a capital de São Paulo, fazia-se indiscriminadamente e criminosamente. A ocupação de São Paulo pelas forças de Isidoro, durou mais ou menos uns três meses, e se não foi vitorio19 11 2007 sa deveu-se, como já dissemos, à traição de generais que não cumpriram a palavra empenhada. Entre esses generais traidores estava o general Potiguara, o qual lhe valeu um atentado que o deixara bastante deformado. Poucos dias depois de sufocada a revolução de 1924, o general Potiguara recebeu em sua casa um pacote que parecia um rico presente. Talvez ele tomasse isso como retribuição pela traição que havia cometido. Abriu com sofreguidão o insinuante pacote, e a explosão que se deu provocou-lhe ferimentos tão graves que ficou deformado. O rosto, um braço e não me lembro que outras partes do corpo lhe foram atingidas; o que bem me lembro é que foi um trabalho muito bem feito, que o marcou com o estigma de sua própria traição, e o melhor de tudo é que nunca se soube quem fez tão justiceira vingança. Aquela revolução que devia gerar outras que se deram posteriormente, trouxe como figuras de destaque, em primeiro lugar, o general Isidoro Dias Lopes, cuja lembrança ficou indelével nas pessoas daquela geração. Miguel Costa, que então era capitão, e cuja simpatia alcançou profundamente o povo paulistano. Luiz Carlos Prestes que se tornou lendário, e que foi acabar no emaranhado comunista. O tenente Cabanas, o coronel Cordeiro de Faria e outros que a minha cansada memória não lembra. Os anarquistas de São Paulo, durante esse período revolucionário, reuniam-se diariamente, procurando um meio de participar desse ato sem comprometer o ideal. Resolveu-se, então, fazer ao general Isidoro Dias Lopes a seguinte proposta: o general forneceria armas aos anarquistas que formariam um batalhão de civis para lutar contra o governo central, porém, autônomos, sem a disciplina e a ingerência militar. Está claro que o general não aceitou a proposta anarquista. Depois disso os anarquistas decidiram publicar um manifesto no jornal A Plebe, definindo sua posição ante 20 verve Subsídios para a história do movimento social... a luta política que estava se desenrolando. Esse manifesto foi assinado por um grande número de militantes libertários. Depois que a revolução foi sufocada e as tropas de Isidoro fizeram a retirada estratégica pelo interior adentro, a capital paulistana, que apresentava aspectos de uma cidade totalmente bombardeada, foi retomando sua vida normal, limpando as ruas, removendo escombros, reconstruindo casas, desenterrando móveis e restos de mortos desaparecidos. Os fujões voltaram com sede de vingança indisfarçada, o que fez com que a figura do general Isidoro Dias Lopes se configurasse como um símbolo e uma esperança popular, personificada na pessoa de um pobre demente de índole pacífica, de mediana estatura e de uns 40 anos, que, com o peito recoberto de tampinhas de cervejas e algumas medalhar sem significação, cruzou as ruas do bairro do Brás, por anos a fio, gritando a plenos pulmões: viva Isidoro! Viva Isidoro! Sempre acolhido com grande simpatia pelos moradores daquele bairro. Nem bem a famigerada polícia de São Paulo, conseguiu se reorganizar, começou desesperadamente a caça aos militantes anarquistas que haviam assinado o manifesto publicado em A Plebe. A maioria deles conseguiu se safar, escondendo-se alguns, fugindo outros, outros ainda mudando de estados, e a polícia desnorteada e louca à procura dos signatários do manifesto. Alguns não tiveram tempo de se esconder, e caíram nas malhas dos raivosos “tiras” que procuravam a desforra dos militantes libertários. Longe, porém, estavam de saber o tétrico destino que a polícia de São Paulo lhes havia preparado. Nicolau Paradas, Nino Martins e Pedro Mota, que então era o Diretor de A Plebe, e mais alguns cujos nomes escapam-me infelizmente da memória, foram os militantes libertários de São Paulo que tive- 21 11 2007 ram a desventura de cair nas mãos da polícia, que sem perda de tempo encaminhou-se para o Rio de Janeiro, onde o navio Campos, que havia sido transformado em navio-prisão, os esperava junto a outros milhares de presos que seriam atirados nas regiões inóspitas do Oiapoque, lá nas Guianas francesas. Foi a bordo desse navio-prisão que todos os presos condenados a morrer nas matas selvagens da Clevelândia começaram a receber as primeiras torturas que os preparavam para a morte certa. Os faziam correr ao redor do tombadilho a golpes de chibatas, e os que caíssem apanhavam dobradamente. Segundo soubemos mais tarde, Pedro Mota, em conseqüência dos martírios infligidos no maldito navio, morreu tão logo foram desembarcados nas selvas do Oiapoque, onde os próprios companheiros cavaram fossa para enterrá-lo. Conheci-o pessoalmente; era um nortista de meia estatura, inteligente e um orador bastante regular. Quando foi preso era o diretor do nosso jornal A Plebe. Esse massacre, esse extermínio de homens inteligentes, entre os quais havia um bom número de militantes anarquistas e outros que nada tinham a ver com a revolução de 1924, deveu-se ao então reacionário presidente da república, Artur Bernardes, que por esse crime ficou conhecido como o presidente Clevelândia; e, em certa ocasião, recebeu uma tremenda vaia com gritos de “Clevelândia, Clevelândia!”, acompanhada de uma descarga de batatinhas atiradas pelos estudantes. São Paulo paulatinamente retomou o seu ritmo dinâmico de cidade industrial e a vida foi voltando à normalidade. Os sindicatos operários foram todos varejados pela enfurecida polícia paulista, que destroçava tudo: móveis, livros, utensílios, quadros, portas, janelas, tudo, enfim, que fosse passível de ser destruído. A 22 verve Subsídios para a história do movimento social... União dos Artífices em Calçado foi a mais atingida, porque era onde havia maior número de militantes anarquistas e, portanto, era sempre a mais visada. Nas três salas que ocupava na rua Barão de Paranapiacaba, tudo foi destruído, e até um busto grande de Karl Marx, que era uma bela obra de gesso doada por um simpatizante daquele pensador, levou algumas marteladas. A maioria dos prêmios destinados à kermesse, que enchiam uma das salas, foi destruída, os melhores foram roubados pelos policiais, inclusive uns queijos muito bons, aos quais se referiam os policiais L´ascala, Gentile e Barbeirinho, quando depois nos prendiam em greves e comícios — “como estava bom aquele queijo”, diziam com o maior cinismo que se possa imaginar. Fazia vários anos que o movimento anarquista internacional havia empreendido uma forte campanha com a finalidade de salvar da cadeira elétrica a Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, de cuja inocência os anarquistas de todo o mundo estavam plenamente convencidos. Essa campanha vinha repercutindo também nos meios libertários do Brasil, através de jornais, boletins e revistas que recebíamos do exterior. Foi assim que, lá pelos começos de 1926, numa memorável assembléia geral dos sapateiros — que então se realizavam todas as segundas-feiras no salão Itália Fausta, nome esse em homenagem a uma artista que assim se chamava e que era filha da senhora que se encarregava de alugálo, e que ainda existe na rua Florêncio de Abreu, com outro nome —, decidiu-se empreender, também no Brasil, essa campanha que já polarizava atenção em todas as partes do mundo. Depois de algumas discussões preliminares nomeou-se o “Comitê de Agitação pró Liberdade de Sacco e Vanzetti”, que havia de dirigir e organizar toda a propaganda que fosse necessária para o bom êxito da campanha. Por aclamação da assembléia, esse comitê ficou constituído por quatro companheiros, que são 23 11 2007 os seguintes: João Peres, José Ramón, Pascual Martinez e Pedro Catallo. Desses quatro companheiros o único que ainda vive sou eu. João Peres morreu no Rio de Janeiro, José Ramón no Rio Grande do Sul e Pascual Martinez faleceu dias passados, em Buenos Aires. É fácil compreender que quatro companheiros não poderiam realizar sozinhos a intensa campanha que se fez em São Paulo e no resto do Brasil. Mas é que ao redor desse comitê gravitavam dezenas de grupos anarquistas que secundavam com aguerrido entusiasmo todas as iniciativas e todos os empreendimentos que dele dimanassem. Além disso, os grupos anarquistas tomavam iniciativas próprias que se fundiam com a obra que realizava o Comitê. A campanha não demorou a tomar notáveis proporções de penetração no seio da população de São Paulo, na qual, como dissemos no começo desta narrativa, predominava o elemento italiano. Todas as semanas realizávamos pelo menos dois comícios, um em recinto fechado e outro, aos domingos, em praça pública. Durante a semana fazíamos comícios nos salões de bairros e aos domingos no Largo da Concórdia, onde havia um coreto que se prestava muito bem para isso. Oradores havia-os bastante, e não me será possível, depois de 42 anos, lembrar-me de todos eles. Todavia lembro-me bem de alguns, porque eram persistentes e pela afinidade ideológica. Afonso Festa, João Penteado, Edgar Leurenroth, Domingos Passos, um dentista que não lembro o nome e Plínio Gomes de Melo, que depois dos anos 1930 se identificou como comunista. Domingos Passos era um militante anarquista do Rio de Janeiro, que também sofreu a deportação para o Oiapoque por ocasião da revolução de Isidoro de 1924. Passos foi um dos raros deportados que conseguiu fugir daquele inferno, graças ao seu espírito de luta, à sua decisão e à sua resistência física. Pôde realizar essa façanha porque a vigilância não era rigorosa, uma vez que se sabia que 24 verve Subsídios para a história do movimento social... todo fugitivo que se aventurasse pelas matas morreria de fome, de sede e geralmente comido pelas feras. Teve de atravessar rios a nado, alimentar-se de ervas silvestres e comer a casca de uma árvore conhecida na região para combater a terrível febre palustre ali adquirida, e que graçava na região da Clevelândia. Na campanha de Sacco e Vanzetti, de todos nós, Domingos Passos foi o militante mais perseguido e mais sacrificado pela polícia. Quando foi deportado para o Oiapoque já havia percorrido a maioria dos estados do Brasil, e em todos eles conhecia as prisões. Numa de suas prisões no Rio Grande do Sul, foi-lhe aplicado o sistema da “lei de fuga”, muito conhecido nos países de fala castelhana, e que consiste em dar ao preso uma aparente oportunidade para fugir e matá-lo quando este o tentar. Passos e outros presos perceberam a cilada e a fizeram gorar. Quando Domingos Passos chegou a São Paulo, fugido das terríveis regiões inóspitas da Clevelândia, a campanha de Sacco e Vanzetti estava em franco andamento. Trazia ainda metida no corpo a terrível febre palustre, adquirida, como já dissemos, no Oiapoque maldito, e que, senão diariamente, ainda se manifestava com certa violência. Apesar disso integrou-se totalmente na campanha, participando ativamente de todas as reuniões clandestinas e dos comícios públicos. Muitas vezes teve de abandonar apressadamente as nossas reuniões, tremendo e ardendo em febre, para ir acamar-se em sua casa até a crise da palustre passar. Passos era um mestiço oriundo de índios, um autodidata de respeitável cultura geral e, sobretudo, um fogoso e eloqüente orador. No último comício público em que participou, no Largo da Concórdia, falou por mais de uma hora e foi festivamente abraçado por médicos, advogados e intelectuais que estavam ouvindo-o ao pé do coreto. A contribuição de Domingos Passos para nossa campanha de Sacco e Vanzetti foi de extraordinário valor. 25 11 2007 Em cada reunião pública em que ele participava o número de assistentes, simpatizantes e novos amigos que granjeava aumentava consideravelmente. Isso provocou as iras da polícia, que começou a persegui-lo sistematicamente. Um saliente promotor público, Hibrain Nobre, que já havia sido delegado de polícia em Santos, e que se havia notabilizado por seu espírito de truculência e de perseguidor de operários, deixou aquela Magistratura para dedicar-se decididamente a reprimir a vitoriosa campanha que nós estávamos realizando. Auxiliado nessa inglória tarefa por um auxiliar seu, um tal Geraldo, e pelos policiais especializados em perseguir operários, cujos nomes não podemos esquecer, Lascala, Gentile, Barbeirinho e Gomes, tramavam toda sorte de infâmia, inclusive assalto a domicílio. Em cada comício havia rodadas de militantes presos que dias depois eram postos em liberdade, visto que nada existia contra eles. Quem, porém, nunca se salvava era Domingos Passos, cujas prisões iam-se amiudando e prolongando os dias de encarceramento. A campanha já tinha atingido seus objetivos com a publicação semanal de boletins, distribuídos e colados nas paredes de todos os bairros de São Paulo, fotografias de Sacco e Vanzetti por todos os lados, comícios e conferências, telegramas de protesto para os consulados americanos e para o próprio governo ianque. Faltavam poucos dias para a consumação da maior infâmia jurídica praticada pela jurisprudência norte-americana, com a eletrocussão de Sacco e Vanzetti, quando eu e Amor Salguero fomos presos pela primeira vez. Amor Salguero era um excelente companheiro, filho de um anarquista espanhol que morreu aqui ainda em conseqüência duma tremenda surra que lhe deu a guarda civil espanhola, quando era empacotador de Tierra y Libertad, na Espanha. 26 verve Subsídios para a história do movimento social... Quando entramos no Gabinete de Investigação — que então situava-se na rua dos Gusmões, e que era também cadeia, pois tinha no andar térreo, escuro como um sepulcro, duas fileiras de xadrezes, uma por cima da outra, com aproximadamente 30 pequenos cubículos —, lá estavam presos Domingos Passos e José Ramón, este último um militante espanhol que compunha também o Comitê Sacco e Vanzetti. Depois de alguns dias puseram-nos os quatro juntos e assim pudemos aprender com Domingos Passos como lavar-nos um pouco e como lavar lenços, meias e cuecas, na taça da privada. Os cubículos da rua dos Gusmões eram pequenos demais para o número de gente presa. Em outras ocasiões estive preso em cubículos onde, para dormir, tínhamos que fazer rodízio. Dormia-se no chão feito de cimento permanentemente úmido. Enquanto 5 dormiam determinadas horas, 4 permaneciam de pé, esperando sua vez. Quase sempre, por castigo, separavam-nos dos outros companheiros e mesclavam-nos com ladrões, vigaristas, assassinos e mendigos, sendo estes últimos sempre indesejáveis, porque nos enchiam de piolhos. Já disse que os cubículos eram pequenos, e ademais tinham a taça da privada dentro, onde nós fazíamos as nossas necessidades. Para dar a descarga da caixa era preciso chamar o faxineiro que vinha quando bem entendia para puxar a alavanca que ficada do lado de fora do xadrez. Domingos Passos havia adquirido tamanho conhecimento em suas andanças pelas prisões, que sabia provocar a descarga da taça da privada sem auxílio do faxineiro. Para tanto afundava todo o volume das suas nádegas para dentro da taça e com um movimento brusco e rápido comprimia o ar que ia descolar a alavanca que estava fora do cubículo e funcionava a caixa admiravelmente. Havia roubado do faxineiro um pedaço de sabão e um pano que servia para tampar o fundo da taça e, dessa maneira, podíamos colher água para lavar-nos um pouco, e lavar as rou- 27 11 2007 pas leves que depois grudávamos nas paredes do xadrez de onde se desprendiam somente quando estavam secas. Aprendemos com Passos como descarregar a caixa, e assim lavávamos todos os dias o rosto, lenços, meias e até os pés. Domingos Passos suportava a prisão com verdadeiro estoicismo e com espírito inquebrantável. Dizia que se lá estava, era porque havia escolhido essa forma de lutar e não tinha porque se queixar. Alguém o chamou de “o Bakunin brasileiro”; eu creio que lhe caía muito bem essa comparação. Na noite de 22 de agosto de 1927, se daria a execução dos dois inocentes militantes anarquistas; na noite anterior declaramos a greve geral para todo o Brasil. Não sabemos com segurança como se processou essa greve em outros lugares do país, mas para honra dos trabalhadores paulistas daquela época devemos dizer que o atendimento ao nosso apelo foi muito além das nossas expectativas. O proletariado de São Paulo paralisou a maior parte das indústrias, esperando o que seria a infausta notícia que se constituiu numa das maiores vergonhas para a jurisprudência norte-americana. Gente que nunca pensou em ser presa o foi, naquele dia fatídico que antecedeu a noite em que foram sacrificados esses dois mártires anarquistas. O comportamento do proletariado e do povo de São Paulo naquela memorável campanha é uma página histórica que deve ser divulgada e conhecida pelas novas gerações desse sindicalismo barato do Ministério do Trabalho, que acredita piamente que o sindicalismo no Brasil nasceu com ele. Depois da execução de Sacco e Vanzetti retomamos o ritmo normal de nossas atividades sindicais e libertárias: assembléias, conferências, greves e, como sempre, prisões. Em 1928, trabalhava eu em uma oficina de calçados Luiz XV, sindicalmente bem organizada. Éramos quase 28 verve Subsídios para a história do movimento social... todos companheiros anarquistas, e aqueles que não o eram simpatizavam conosco. Foi nessa oficina, situada na rua Xavantes, que por iniciativa e sugestão de Afonso Festa fundamos um grupo de teatro amador. Trabalhava conosco um veterano amador de teatro, Chrisrelli, e a ele foi confiada a direção do grupo. A peça escolhida para a estréia desse grupo foi uma peça em idioma italiano, de autoria do grande poeta e pensador anarquista Pietro Gori. A peça tem por título I Senza Petris (Os Sem Pátria), e é uma eloqüente defesa dos soldados garibaldinos que lutaram por uma nova Itália na qual depois não puderam viver porque os novos dirigentes resolveram os problemas deles, particulares, e o povo continuou passando fome e sem ter onde morar, e os soldados garibaldinos, de camisa vermelha que ainda conservavam do tempo de Garibaldi, e de calças brancas, reuniram-se no largo da Concórdia, comemorando aquela data que foi uma esperança de todos os italianos. Possivelmente uns 20 ou poucos mais, todos velhinhos, alguns que mal podiam andar, cruzavam as ruas do Braz sob os aplausos do bairro onde eram quase todos italianos. O nosso grupo chamava-se Grupo Teatral da União dos Artífices em Calçados, e foi constituído para trabalhar em benefício de nosso sindicato. O primeiro espetáculo, com I Senza Petris, foi realizado no amplo salão da Federação Espanhola, que era uma sociedade recreativa espanhola e ficava na rua do Gasômetro. O salão ficou totalmente tomado, dado que, como já disse, a colônia italiana predominava em São Paulo. A segunda peça que levamos era um original de Gigi Damiani, que não conheci pessoalmente porque foi deportado no ano de 1919, juntamente com outros militantes e, parece-me também, com Marques da Costa. A peça era anti-clerical, e chamavase O Milagre. Nesse espetáculo Afonso Festa não participou porque já havia sido deportado para Itália. Quem participou foi a companheira dele, Victória Guerrero, que em 29 11 2007 seu tempo de solteira também militava no campo libertário. Gigi Damiani tinha outras peças também de grande valor social: Militarismo e Miséria, foi uma peça de grande sucesso nos meios operários e foi representada várias vezes por um grupo que existia anterior ao nosso com o nome de Grupo Teatro Social. Dos integrantes desse grupo conheci pessoalmente dois: Marino Spagnolo e Garibaldi Biocalti. Este último era irmão de um nosso companheiro, Hugo Biocalti, vidreiro já falecido. Do mesmo Gigi Damiani, eu traduzi para o português uma peça muito forte, que levava por nome Viva Rambolot, também de assuntos sociais, e que foi inúmeras vezes representada por nosso grupo, já então composto de novos companheiros e que eu dirigia. Desde muito jovem gostei sempre de teatro e raramente perdia uma ópera, opereta ou drama, que era o grande teatro da época da minha juventude. Por essa razão nunca mais deixei o teatro, desde a fundação daquele grupo de 1928. No ano de 1928 fundamos, também em São Paulo, um grupo teatral de língua espanhola, que se chamava Grupo Teatral Aurora. Era composto quase totalmente por anarquistas e levávamos somente peças sociais. De minha parte sentia-me muito bem entre o elemento espanhol, por ter sido criado na Argentina e dominar bastante bem o idioma castelhano. De uma feita levamos uma peça, quilométrica, social, onde aparecia também a figura de Tolstoi, e da qual não lembro quem era o autor. A peça chamava-se La Libertad Caída. Lembro-me que na noite do espetáculo ficaram na rua mais de duzentas famílias. O salão regurgitava de gente, e os donos do prédio ficaram com medo de que viesse abaixo. Quando pretendemos dar um novo espetáculo e os donos se inteiraram que era para o Grupo Aurora, negaram-me a alugá-lo, lembrando da noite de La Libertad Caída. Esse grupo de teatro teve pouca duração, mas ainda assim demos outros espetáculos, com peças como Los Malos Pastores, de Otávio Mirbeau, também com grande sucesso. 30 verve Subsídios para a história do movimento social... Naquele tempo não era preciso tirar alvará para dar espetáculo e nem a peça passava pela censura. Por isso, o teatro social linha livre trânsito. A polícia de São Paulo não descansava na perseguição, e procurava por todos os meios cercar nossa propaganda e a vida dos nossos sindicatos. Numa dessas investidas policiais fui preso novamente, junto com o Pascual Martinez, que foi outro membro do Comitê Sacco e Vanzetti, falecido recentemente em Buenos Aires, de onde veio e para onde voltou em 1929. Quando entramos na prisão, já estavam presos havia dias Domingos Passos e Afonso Festa. Esses dois companheiros eram elementos de projeção no movimento, e por essa razão a mente diabólica do delegado da ordem política, Hibrain Nobre, já lhes tinha o destino reservado. Não pudemos avistar-nos com Festa e com Passos, porque eles estavam presos na “bastilha do Cambuci”, da qual me ocuparei mais adiante. Minha prisão e a de Martinez durou uns quinze dias, nos fétidos cubículos dos Gusmões, comendo arroz cozido com sebo, em pratos de lata enferrujada e dormindo, como sempre, no cimento úmido. Festa e Passos continuaram presos e de nada valeram os nossos esforços jurídicos, hábeas corpus, requerimentos etc., para libertá-los. Nem roupa e nem comida permitiam que lhe levássemos. Aliás, esse era um castigo costumeiro que a polícia usava contra nós e, algumas vezes, quando o gabinete de investigações era na rua 7 de Abril, a comida que as companheiras levavam era devorada pelos policiais, que depois devolviam os pratos como se a comida houvesse sido aproveitada pelos nossos companheiros presos. Era delegado nessa época o reacionário Bandeira de Mello; que não se perca pelo nome. Festa e João Peres burlaram a polícia inúmeras vezes. Quando a agitação era forte em São Paulo, e a polícia obstinava-se em procurá-los, eles fugiam para o Rio de Janeiro, 31 11 2007 onde ficavam algum tempo até as coisas serenarem. Numa das vezes que fui preso, o policial Gentile, que estava foribundo pelas peças que seguidamente lhe pregavam o Festa e João Peres, me disse: “pode avisar o Festa que na próxima vez que o agarrarmos ele vai para Itália”. É interessante esclarecer que naquele tempo havia uma série de regalias republicanas que mais tarde as próprias repúblicas aboliram. Por exemplo: o princípio federalista era respeitado no Brasil. Um preso que conseguisse passar de um Estado para outro não poderia ser preso, a não ser pela polícia daquele Estado e por faltas cometidas no mesmo Estado. Por esse motivo, simpaticamente federalista, é que o Festa e o Peres puderam zombar da polícia paulista inúmeras vezes. Mas Afonso Festa havia voltado e a promessa feita pelo “tira” Gentile estava de pé. Não houve recursos jurídicos que nós não empregássemos, não houve influência de pessoa importante que nós não movimentássemos para libertar Afonso Festa, mas tudo foi em vão. Festa foi deportado para a Itália. Recordo-me que houve um acordo entre ele e sua companheira, Victória Guerrero: “na hora da última despedida na estação, nem uma lágrima, nem uma demonstração de fraqueza”. Essa decisão foi tomada por ambos para não aumentar a alegria e o “triunfo” dos policiais ali presentes. E foram fortes os dois, cumpriram admiravelmente o que se prometeram. A prisão que vitimou quase mortalmente a Domingos Passos, deu-se da seguinte maneira: numa noite, estávamos reunidos em minha casa à rua Ricardo Gonçalves (por acaso o nome da rua era em homenagem ao grande poeta Ricardo Gonçalves, que foi anarquista e companheiro de Edgard Leurenroth) sete ou oito militantes, com o fim de mandar um ofício, como era praxe, à polícia, anuncian32 verve Subsídios para a história do movimento social... do-lhe 48 horas antes o lugar e a hora onde realizaríamos um comício em praça pública; não recordo muito bem o motivo, mas parece-me que era a contestação da eletrocussão dos dois anarquistas Sacco e Vanzetti. Esse ofício devia ser assinado por um responsável. Essa era uma lei também legitimamente republicana, que naquele tempo ainda se respeitava. Por isso os comícios públicos não podiam ser proibidos, embora, depois de terminados, levassem os promotores presos. Na reunião daquela noite em minha casa encontrava-se entre nós também Domingos Passos, que havia saído da cadeia apenas três dias antes. O ofício trouxe-o datilografado Festa, e passava de mão em mão para que cada companheiro lesse e visse se estava de acordo. O ofício chegou às mãos de Domingos Passos, que o leu também e quando o devolveu já o havia assinado. Houve protestos de nossa parte, pois aquela assinatura significava um desafio à polícia por ter ele saído havia apenas três dias da prisão. De nada valeram nossos protestos; alegou que um devia assinar e esse podia ser ele. Longe estávamos nós de supor o que o espírito diabólico do delegado Hibrain Nobre estava tramando contra nosso bom companheiro Domingos Passos. Passos foi preso na noite anterior à realização do comício, ao entrar em sua casa. A “bastilha do Cambuci” era um posto policial que ficava no bairro do Cambuci, que era temido até pelos ladrões mais contumazes, afeitos aos rigores do cárcere. Tinha cubículos de toda espécie e tamanhos, que só podiam ter sido concebidos pela mente morbosa de algum neurótico desmedidamente sádico. Quando a revolução vitoriosa de 1930 propiciou ao povo de São Paulo a oportunidade de poder invadir aquele tétrico presídio, só então é que se pôde avaliar quanto de verdade havia nos depoimentos dos presos e nas versões dissimuladas e murmuradas da vizinhança. Havia cubículos que lhe chamavam “cofres”, que tinham realmente o aspecto de cofre. Tinham talvez uns dois metros de comprimento por um metro de largura, 33 11 2007 sem respiração alguma, pintados por dentro inteiramente de piche, com canos d´água todos furados com chuveiro ao redor das paredes, para molhar os presos de vez em quando como castigo. Havia outros maiores que não eram pintados com piche, mas também com canos d´água furados para molhar os presos, em cima e ao redor das paredes. Havia ainda, uma escada caracol de ferro, eletrificada, onde faziam subir os presos para aplicar-lhes choques elétricos, apanhando-os desprevenidos, pois ninguém podia imaginar que aquela escada fosse eletrificada. Dos gritos dos presos queixavam-se a vizinhança, e foi assim que se pôde começar a descobrir o que era a terrível “bastilha do Cambuci”. Havia também xadrezes mais ou menos de dois metros quadrados, sem janelas, completamente escuros e hermeticamente fechados, sem possibilidades de ouvir ruídos, onde se dizia que alguns presos haviam enlouquecido. Foi precisamente em um desses cubículos que Domingos Passos foi recluso por mais de três meses, por ordem do morboso e sádico delegado de polícia Hibrain Nobre. Merecia figurar aqui o homem que era o que determinava os castigos naquela bastilha, para que não se perdesse pelo nome, mas, infelizmente não lembro. Só posso dizer que com o advento da revolução de 1930 teve de fugir, porque era procurado pelo povo que queria fazer justiça com as próprias mãos. Quando dali foi retirado Passos, para ser atirado nas matas virgens de algum lugar que sempre ignoramos, estava com o corpo completamente chagado e as roupas em fiapos. Depois de algum tempo recebemos uma carta dele que nos dizia que a muito custo havia conseguido chegar a Sengés. A carta dava o endereço de um hotel. Mandamos para lá um emissário insuspeito da polícia, levando dinheiro e roupa. Cabe aqui dizer que a polícia, tendo o famigerado policial Lascala à frente, vigiava sempre nossos passos e nossos movimentos. Quando nosso emissário voltou, soubemos que quando Passos conseguiu 34 verve Subsídios para a história do movimento social... aproximar-se daquela povoação causou espanto. O próprio Domingos Passos disse a nosso enviado que seu aspecto era assustador. Procurou convencer o dono do hotel de que ele era um homem de bem, que não era nada daquilo que aparentava. Mas o dono do hotel de nada queria saber, e a muito custo cedeu-lhe um barraco de madeira todo furado que estava abandonado ali por perto. Quando chegou nosso emissário, com roupas e dinheiro, o dono do hotel mudou completamente de idéia a respeito do nosso companheiro Passos. Depois disso fizemos algumas outras remessas de dinheiro e pela ausência de notícias e temendo complicar a vida de Domingos, fomos perdendo totalmente o contato com ele. Compreendemos que o nosso companheiro pretendia ficar algum tempo no anonimato. Nunca mais soubemos nada dele. Assim terminou a vida de um grande militante que alguém, com bastante justiça, chamou de “o Bakunin brasileiro”. Depois de Artur Bernardes, o presidente Clevelândia, de tétrica memória, quem assumiu a presidência da república foi o outro homem reconhecidamente reacionário, Washington Luiz. Esse cidadão só sabia governar com estado de sítio permanente, pois o ambiente em todo o Brasil era de efervescência revolucionária. A revolução dos 10 de Copacabana, em 1922, e a revolução de Isidoro, em 1924, deixaram profundas raízes. Naquela época muitos meninos foram batizados com o nome de Isidoro em homenagem ao grande general revolucionário Isidoro Dias Lopes. Foi assim que, em 1930, aconteceu no Brasil a revolução mais simpática de toda sua história. A nação inteira sentiu-se fervorosamente sacudida pela brilhante vitória das forças revolucionárias, que traziam em sua vanguarda homens que representavam uma promissora esperança para o Brasil. Não merecem que se lhes cite os nomes, porque não souberam conduzir essa grandiosa re- 35 11 2007 volução para seus verdadeiros destinos. Eu fui testemunha ocular do grande regozijo do povo paulistano, que se soltou em festa em todas as ruas e bairros dessa metrópole. Vi pessoas que se abraçavam em plenas ruas com lágrimas de alegria nos olhos. Aqui vale a pena repetir as palavras da grande Luiza Michel, quando se referiu à Comuna de Paris: “mas o Estado é amaldiçoado, e por isso sou anarquista”. A alegria espocava livre e espontânea na população brasileira, a queda do Perrepismo (Partido Republicano Paulista) era desejada pelo Brasil inteiro. Nós os anarquistas de São Paulo, nos encontrávamos algo desarticulados, devido à perseguição policial largamente favorecida pelo estado de sítio mantido permanentemente pelo homem que disse que “a questão social resolve-se a patas de cavalo”, Washington Luiz, quando era chefe de polícia em São Paulo. Vitoriosa, como já disse, a revolução, não foi difícil reorganizar-nos, porque estávamos quase todos organizados em grupos por afinidades e por bairros. Imediatamente procuramos reorganizar os sindicatos, e logo a seguir decidimos reorganizar também a Federação Operária de São Paulo, da qual foi fundador Edgard Leuenroth, parece-me em 1906 ou 1913, não tenho muita certeza. A essa altura, os comunistas que vinham fazendo toda espécie de sabotagem contra os sindicatos orientados por nós já desde o ano de 1924, caluniando-nos, promovendo algazarra e toda a sorte de desordens nas reuniões e assembléias, matando gente como foi o caso do Antonino, e tentativa de morte na mesma noite contra o professor José Oiticica, cuja bala a ele destinada matou um gráfico que era comunista como eles, procuravam, por todos os meios, predominar para apossar-se dos sindicatos e da Federação. O número de militantes anarquistas naquele tempo ainda era notável, e conseguíamos, sem muito esforço, sobrepujar as investidas comunistas. 36 verve Subsídios para a história do movimento social... Gostaria de relembrar os nomes de todos aqueles companheiros, para que pelo menos ficassem registrados seus nomes quando se fala da história social no Brasil: Francisco Cisnei, Hermínio Marques, Arsênio Palácio, Felipe Gil de Souza Passos, João Navarro, João Bacchetto, Garcia, Nicola Festa, Nicola D´Albenzio, Amor Salguero, Justino Salguero, Liberto Salguero, João Peres, Lourenço Pirozzelli, Luis Páparo, Adelino de Pinho, João Penteado, Francisco Rodrigues, e como poderei lembrar o nome de centenas de bravos militantes que se batiam ardorosamente em favor do anarco-sindicalismo? Rodolfo Felipe, Osvaldo Salgueiro, que militavam na “A Plebe”. Diego Sanchez, os irmãos Panzarini, os irmão Neves que foram deportados para Portugal, João Aguilar, Emílio Martins, Cristovam Alba, Antonio Oruzo, Agustinho Soto, e quantos e quantos outros bravos rapazes que eu gostaria lembrar o nome e que lutavam lado a lado conosco, e que levavam, como nós levávamos, uma esperança grande como o mundo posta dentro do coração. Adelino de Pinho, que não sei se já veio feito anarquista de Portugal ou se fez aqui é, porque ainda vive, um autodidata que se dedicou, aqui no Brasil, nos anos anteriores a 1930, a alfabetizar meninos e adultos. Teve várias escolas, e podem-se contar aos milhares as crianças que ele ensinara a ler. Era esse seu único meio de vida, combater o analfabetismo, que com certeza, naquela época, devia ser de 90 por cento no Brasil. Quando saía nosso jornal, A Plebe, era ele quem fazia a revisão. Escrevia bem e fazia conferências quando solicitado. Depois da revolução de 1930, quando o Estado brasileiro começou a controlar rigidamente todas as iniciativas particulares, e quando o Estado, contrariando o verdadeiro espírito democrático pelo qual se havia feito a revolução, começou a controlar a vida particular de cada cidadão, Adelino de Pinho foi proibido de lecionar ou manter escola. Ao invés do Brasil re- 37 11 2007 conhecer a extraordinária obra de alfabetização realizada por esse homem, por iniciativa própria, e quando havia escolas apenas para bem pouca gente, e quando era difícil encontrar entre o povo proletário alguém que soubesse ler, Adelino de Pinho não mais pôde lecionar e teve a sua vida enormemente complicada. Ainda nestes dias, em que estou escrevendo estas lembranças, foi trazido de carro por um seu genro, para fazer-me uma visita. Ao me ver ficou de tal forma emocionado que temi que lhe acontecesse alguma coisa, chorava com as mãos postas no coração. Almoçou comigo, bastante lúcido e com 84 anos. Um companheiro que não quero deixar esquecido nestas minhas lembranças chamava-se Martin García, de nacionalidade espanhola. Era um homem de uma capacidade intelectual verdadeiramente impressionante, tinha uma vasta cultura geral e conhecia o anarquismo profundamente. O grande mal que sofria esse companheiro era o alcoolismo, pelo qual estava completamente dominado. Não costumava falar em público, a não ser em pequenas reuniões, e sua palavra era ouvida com o máximo respeito. Escrevia com verdadeiro conhecimento de causa; alguns dos seus trabalhos podem ser encontrados em A Plebe, na fase de 1932. Saiba-se que estava lá por Taipús, em Santos, e com certeza já morreu. Outro companheiro que quero mencionar com inteiro agrado, e que faleceu lá pelo ano de 1936 ou 1937, com a idade de 61 anos, é Florentino de Carvalho, ou Primitivo Soares, que era seu verdadeiro nome. Segundo me foi referido por João Peres, que o conheceu muito melhor e antes do que eu, certo dia, vendo uma vitrina de livraria, sentiu-se atraído pelo título de um livro: A conquista do pão, de Kropotkin. Comprou-o, leu-o, abandonou a força pública e se fez um dos grandes conferencistas do movimento anarquista brasileiro. Era um expositor de rara capacidade, sua 38 verve Subsídios para a história do movimento social... linguagem era polida e acadêmica. Escreveu dois livros: Da escravidão à liberdade e A guerra civil em São Paulo, ademais de farta colaboração em nossos jornais. Era um homem de meia estatura, adoentado e franzino; foi muito maltratado pela polícia. Fundou várias escolas, era esse seu meio de vida, algumas com nome de “Escola Moderna”; de uma dessas escolas alguns alunos resultaram excelentes companheiros, como: Liberto Lemos, Jaime e Francisco Cuberos e outros que nunca mais vi. Eu ouvia suas conferências com verdadeiro encanto, seja pela linguagem bonita que empregava, seja pela profundidade com que tratava os assuntos. Sustentou várias controvérsias públicas; eu assisti a uma delas, no salão Itália Fausta, onde Florentino falou duas horas seguidas. Quando terminou, o professor que havia aceitado a controvérsia disse que estava maravilhado com o conhecimento de Florentino e que não tinha nada absolutamente a dizer. Não tenho muita certeza, mas parece-me que foi no Rio Grande do Sul onde sustentou uma controvérsia com Maurício Lacerda, pai desse nacionalista que não sabe o que quer, Carlos Lacerda. Maurício Lacerda, ao terminar a controvérsia, disse: “Florentino de Carvalho é um sociólogo”. Percorreu alguns países. De uma feita foi deportado juntamente com Francisco Aroca e outros companheiros espanhóis e italianos. Nenhum país quis recebê-lo e depois de 6 meses de odisséia pelos portos da Europa e América, foram novamente desembarcados no Brasil e depois libertados. A revolução de 1930 trouxe algum desafogo de liberdade, e os militares revolucionários eram de fácil acesso. Por essa época Florentino de Carvalho se encontrava preso na Ilha de “Martin Garcia”, a mando do governo argentino. Por intermédio de alguns daqueles militares, foi possível libertar Florentino da ilha e trazê-lo novamente para cá, onde ficou até seu falecimento. 39 11 2007 Chegou aqui em São Paulo por volta de 1926 ou 1927, vindo de Buenos Aires, um companheiro que se vestia sempre com a maior simplicidade. Chamava-se Diego Gimenez; não tinha grande cultura, mas conhecia muito bem o anarquismo e era, ao mesmo tempo, portador de um romantismo sublime, e decidido na ação. Não tinha profissão, mas gostava imensamente de trabalho do campo. Morava com um irmão em Santana, nesta Capital; em certa ocasião resolveu apossar-se de um terreno que era da Prefeitura, mas que estava abandonado. Armou-se de uma enxada e outras ferramentas e começou a cavoucar aquele terreno que estava coberto de mato. O terreno ficava na “Ponte Pequena”, no bairro de Santana e, como ele era ali conhecido, quando o viram trabalhar um terreno que era da Prefeitura, chamaram-no de louco. Ele não se importava; continuou sua tarefa; a medida que amanhava um pedaço de terra já arranjava semente para plantá-la. Depois de algum tempo de sacrifício e dedicação, que só sonhador como Diego Gimenez podia fazer, aquela plantação começou a mostrar os primeiros rebentos verdes. Nas horas mortas da noite, Diego procurava as grandes construções, e delas tirava onde morar. Numa das últimas incursões, quando já o barraco estava quase completo, um dos empreiteiros da construção onde Diego havia surrupiado tábuas, descobriu seu paradeiro e teve que despregar as tábuas e entregá-las a seu dono. Mas ele não desanimou, e acabou construindo o barraco com dois compartimentos. Alguns companheiros dormiram e comeram naquele barraco de Diego. De dia trabalhava a terra e fazia alguns “biscatinhos” para arranjar algum dinheirinho para comprar a semente e para outras prementes necessidades, e de noite dormia no barraco. Freqüentava nossas reuniões e recitava poesias nos nossos festivais. Era um convicto militante anarquista. 40 verve Subsídios para a história do movimento social... Logo no primeiro ano de sacrifício naquele terreno, começaram a aparecer os tomates, milho, verduras, batatinhas e outras hortaliças. A meninada do bairro começou a dar as costumeiras incursões, prejudicando a plantação. Diego Gimenez ficou de atalaia, e quando os meninos fizeram a investida ele os chamou, levou-os para dentro do terreno, mostrou-lhes toda a plantação e lhes disse: “quando tudo isto estiver maduro, podem vir buscar, que eu dou de graça”. Foi isso suficiente para que os meninos se interessassem pela plantação, e quando um menino tentava maltratar alguma planta, eles mesmos se incubiam de corrigir o destruidor. Chegou por fim a época de estar tudo em ponto de colher, então os meninos ou suas mães iam ao terreno do Diego para comprar verduras, tomates, milho verde em suma, do que houvesse, Diego a todas servia sem nada cobrar. Que resultado teve esse comportamento? O resultado foi aquele que Diego sonhava para toda a humanidade. As donas de casa iam buscar a verdura e mandavam em troca a comida já feita para Diego. Um domingo de manhã fui visitá-lo, e na hora do almoço fui testemunha ocular; vi uma das vizinhas chegar com uma suculenta macarronada. Lavavam-lhe a roupa e davamlhe comida, em troca das verduras e hortaliças que Diego lhes fornecia. Em dias alternados, enchia as cestas e saía para vender um pouco de verdura, para arranjar algum dinheirinho para comprar alguma coisa que lhe fizesse falta. Quando havia conseguido o dinheirinho que precisava para a barba, o cabelo e outras necessidades, distribuía grátis a verdura que lhe restava na cesta. No bairro de Santana, crianças e adultos queriam e respeitavam Diego Gimenez. 41 11 2007 Passados que foram uns oito anos, Diego achou que tinha direitos adquiridos sobre o terreno da prefeitura, e lá se foi ele como um Quixote a reclamar a legitimidade do terreno. A prefeitura ignorava a existência daquele imóvel, mas tão logo souberam das intenções de nosso companheiro, cercaram o terreno e impuseram a Diego uma pequena taxa de aluguel, para que constasse que ele era apenas um inquilino da prefeitura. Sobre Diego Gimenez, anarquista romântico e de ação ao mesmo tempo, ainda falaremos adiante. Quero encerrar esta referência dizendo que todos os cachorros perdidos e famintos daquela zona encontravam abrigo e comida no barraco dele. Já disse que reorganizamos a velha Federação Operária de São Paulo, com a participação da União os Artífices em Calçado, União dos Trabalhadores Metalúrgicos, vidreiros, padeiros, ladrilheiros, canteiros, garçons, construção civil, vendedores ambulantes e União dos Trabalhadores Gráficos, que estava completamente dominada pelos comunistas, que compareciam aos plenários da Federação Operária unicamente para tumultuar e sabotar tudo o que ali se fizesse. Havia um poderoso sindicato, a União dos Trabalhadores em Fábrica de Tecidos, cujos militantes preponderantes, José Righeti, Tozi, e os Irmãos Castelani, o mantiveram afastado da Federação Operária, alegando que os sindicatos só deviam tratar de assuntos econômicos. Esses elementos foram os responsáveis diretos para que a União dos Trabalhadores em Fábricas de Tecido não aderisse à Federação Operária. Preferiram que os comunistas se apossassem dela, como de fato aconteceu. Em 1931, a Federação Operária fez realizar um congresso, parece-me com o nome de 3ª Conferência Operária de São Paulo, não me recordo bem por quê razão. Essa conferência ou congresso teve uma extraordinária repercussão, e evidenciou também a grande força anarco-sindicalista que existia em todo o estado de São 42 verve Subsídios para a história do movimento social... Paulo. Lamento não ter nenhum documento com que possa provar insofismavelmente o número de delegações que estiveram presentes, inclusive do interior do estado. Os comunistas tinham apenas a representação dos gráficos e um grupo nominal minoritário; arranjado de última hora, com a finalidade de que participasse do congresso também, o conhecido e eloqüente militante Aristides Lobo, naquela época trotskista, porque havia sido expulso do partido comunista por rebeldia, que depois tornou-se nosso grande amigo, e que acaba de falecer, precisamente nestes dias do mês de novembro 1968. Todas as teses do comunismo anárquico e de ação direta contidas no temário do congresso, foram aprovadas pela grande maioria, pois, como disse, os comunistas eram uma reduzida minoria. A fabricação em série de comunistas russófilos veio alguns anos depois. Lá pelo mês de março de 1932, a União dos Artífices em Calçados, em assembléia geral, resolveu fazer um pedido de aumento de salário e de certa melhoria de higiene nos locais de trabalho, a todo o patronato da indústria do calçado. Para isso mandou imprimir umas tabelas, discriminando as reivindicações, e marcando o dia 1º de maio para a greve geral, caso o patronato se negasse a aceitar as condições pretendidas. Essas tabelas foram entregues em mãos a todos os estabelecimentos da indústria de couro. O patronato, por sua vez, também tomou suas precauções para resistir à greve anunciada pelos sapateiros. Chegou por fim o dia 1º de maio, e a grande maioria dos patrões resolveu resistir, porque estavam informados de que se estava preparando um movimento armado contrarevolucionário perrepista, para combater a revolução de 1930 que os havia apeado do poder. Como se sabe, a figura draconiana de Washington Luiz teve de abandonar o país, acompanhado até o porto pelo cardeal, que não lembro quem era nesse tempo. 43 11 2007 Alugamos o teatro Olímpia, na avenida Rangel Pestana, que era o maior teatro de São Paulo, e ali, com uma massa de gente comprimida, que se calculou em 7 mil pessoas no dia 2 de maio, declaramos a greve geral com um entusiasmo nunca visto. Foi um espetáculo que nunca mais saiu da memória. Há muitos moços de hoje que falam com uma certa displicência dos velhos militantes; queria tê-los tido ao meu lado naquela ocasião. Houve sapateiros que faziam uso da palavra e não chegavam a terminar embargados pela emoção. Não parecia uma assembléia, parecia uma mastodôntico congresso, tal o número de oradores e tal a firmeza de conhecimentos que possuíam aqueles militantes. Do palco onde eu estava parecia-me estar diante de ondas de mar; era essa a impressão que dava aquela multidão em seus movimentos e gestos. Declarada que foi a greve geral, partimos a pé para parar algumas fábricas que ainda não haviam aderido ao movimento. O caso Sacco e Vanzetti, um episódio imorredouro da luta sindical em São Paulo A campanha em favor dos anarquistas italianos Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, injustamente condenados à cadeira elétrica pela truculenta justiça norteamericana que os incriminara num assassinato que não cometeram, já havia tomado grandes proporções em todo o mundo, devido o movimento sindical em quase todos os países era dirigido e liderado por elementos anarquistas mais conhecidos por anarco-sindicalistas. Em São Paulo, antes dos anos de 1924, a agitação em prol daqueles militantes libertários que jaziam nas prisões de Massachussets havia vários anos, fazia-se muito inconstante e sem planificação. A partir daquela data esse movimento de agitação que tomaria significativa 44 verve Subsídios para a história do movimento social... projeção nos meios populares de São Paulo, passou a ser feito com regularidade e persistência. [...]1 Edgard Leuenroth foi outro dos homens que arrebatavam os concorrentes dos comícios naquela histórica campanha. Possuidor de uma voz açambargante, própria do militante agitador, esgrimindo um fraseado castiço, polido, elevado, dono de um raciocínio sempre oportuno e fulminante — ainda agora, mesmo em idade avançada conserva traços dessas qualidades —, emprestou toda sua coragem e sua dedicação a esse empreendimento humano. Conhecendo o fim que lhe esperava depois de cada comício, comparecia a eles sempre prevenido de roupa suficiente para suportar a umidade das celas, dado que sua saúde fora sempre sensível à umidade e ao frio. Como ficou dito, o número de militantes libertários era grande, e a campanha de agitação não sofria solução de continuidade, mesmo apesar da ferrenha perseguição policial que comparecia aos comícios com atitudes valentonas e com a incumbência de impedi-los e prender os ativos participantes. No que se refere à polícia, cabe uma nota aparte, porque sua ação obstinada e repressiva valorizou sobremaneira o desgarre e a valentia dos anarquistas nessa manifestação de solidariedade a Sacco e Vanzetti. Com a finalidade única de pôr um paradeiro àquela campanha que crescia diariamente em intensidade e extensão, um promotor público, Hibrain Nobre, (que não se perca pelo nome de “Nobre”), que como delegado de polícia já se havia destacado em Santos, como ferrenho e reacionário perseguidor de operários, ofereceu seus “operosos” serviços à polícia de São Paulo, assumindo, espontaneamente, a incumbência de acabar com aquele movimento. Velhos militantes conhecidos pelos polici- 45 11 2007 ais, que não tinham nenhuma intenção de imiscuir-se naquele poderoso movimento de opinião pública, foram chamados a comparecer a seu gabinete, para ameaçálos de prisão ou deportá-los, se estrangeiros. Diante dessas velhacas atitudes policiais, cada orador que participasse dos comícios conhecia de antemão a sorte que lhe esperava depois de cada ato público. Entretanto, o entusiasmo e o arrojo daquela geração, que emergia cheia de esperanças, superava a repressão sistemática e insidiosa da polícia, e os panfletos de manifestos penetravam em todos os recantos de São Paulo. Semanalmente, depois das 10 horas da noite, saiam turmas de jovens libertários a empapelar paredes com os manifestos de propaganda e convocações de atos públicos. Esse trabalho, algo perigoso porque sofria a perseguição sempre sistemática dos policiais, prolongava-se até altas horas das madrugadas. Sempre havia prisões, e quando os guardas não conseguiam prender, atiravam, pois tinham ordens para isso. Felizmente a mocidade libertária tinha boas pernas e nunca tivemos feridos a lamentar. Chegou finalmente a noite da fatídica data de 26 de agosto de 1927, quando aqueles dois íntegros e resolutos militantes anarquistas foram levados para a cadeira elétrica. Os protestos se ergueram universalmente, e de todas as partes partiam moções de repúdio à justiça norte-americana. Aí é que pudemos constatar a profundidade que a nossa campanha havia atingido no seio da população. A greve geral em São Paulo, a favor de Sacco e Vanzetti, foi um fato autêntico, positivo, irretorquível. Em todos os setores da atividade industrial, a paralisação atingiu notáveis proporções de insofismável solidari- 46 verve Subsídios para a história do movimento social... edade humana. Pessoas as mais pacatas externavam seu protesto cruzando os braços e negando-se a trabalhar naquele dia. A polícia não tinha mãos a medir para a repressão e as cadeias regurgitavam de pessoas presas. Pessoas que não pediam pão, não pleiteavam aumento de salários, prestavam apenas sua solidariedade a dois homens inocentes que estavam prestes a serem imolados pela terrível máquina jurídica de um grande país, que, pela segunda vez, manchava sua história com vergonhosos erros judiciais. Repetia-se com Sacco e Vanzetti, diante do mundo consternado, a mesma tragédia dos mártires de Chicago, de 1887. As mesmas impudicas maquinações! Não compreendemos por que os modernos escribas que se abalançam a escrever as “histórias sociais do Brasil” possam omitir, de caso pensado, páginas imorredouras e brilhantes como essas que pertencem ao proletariado paulista, de muito antes de aparecer no Brasil o sindicalismo amarelo do Ministério do Trabalho. Um dia, a verdadeira história do movimento social do Brasil aparecerá na plenitude límpida, clara e verdadeira. São Paulo, outubro de 1965 Notas N.E. O Depoimento, por vezes, traz repetições que foram suprimidas nesta edição. 1 47 11 2007 RESUMO Breve história das lutas e resistências do anarquismo paulista entre os anos de 1920 ao final dos anos 1960, na qual são dados relevos às agitações das associações anarquistas União dos Artífices em Calçados e Classes Anexas de São Paulo e Comitê pró-Sacco e Vanzetti, à forte repressão policial contra essas agitações e a uma antologia de vidas anarquistas. Palavras-chaves: anarquistas, anarco-sindicalismo, repressão policial. ABSTRACT The article presents a brief history of struggles and resistances of anarchism in Sao Paulo from the 1920’s to late 1960’s, with special attention to the agitations of the anarchist associations Union of Shoemakers and Related Classes of São Paulo and the ProSacco and Vanzetti Committee, to the vicious police repression against those agitations and to an anthology of anarchists’ lives. Keywords: anarchists, anarcho-syndicalism, police repression. Indicado para publicação em 06 de março de 2006. 48 verve mudanças 1, 1982 as idéias mudaram; o modo de pensar não. 49 11 2007 o princípio do estado1 mikhail bakunin* No fundo, a conquista não é só a origem, mas também é o fim supremo de todos os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, monárquicos ou aristocráticos, democráticos e socialistas também, supondo que o ideal dos socialistas alemães, o de um grande Estado comunista, seja realizado algum dia. Que a conquista foi o ponto de partida de todos os Estados, antigos e modernos, isso não poderá ser questionado por ninguém, já que cada página da história universal assim o prova suficientemente. Ninguém negará também que os grandes Estados atuais têm por objeto, mais ou menos confesso, a conquista. Mas os Estados médios, e sobretudo os pequenos, será dito, não * Anarquista russo. Participou da revolução de 1848. Em 1868, funda a Aliança da Democracia Socialista, e em 1860 ingressa na Primeira Internacional, de onde os anarquistas foram expulsos em 1872, como resultado do confronto entre Bakunin e Marx. No mesmo ano funda a Federação do Jura. Morre na Suiça, aos 62 anos, em 1876. 50 verve, 11: 50-77, 2007 verve O princípio do Estado pensam mais do que em se defender, e seria ridículo de sua parte sonhar com a conquista. O quanto ridículo que se quiser, mas, entretanto, é o sonho desses Estados, como o sonho do menor camponês proprietário é arredondar suas terras em detrimento do vizinho. Arredondar, crescer, conquistar a qualquer preço e sempre, é uma tendência fatalmente inerente a todo Estado, qualquer que seja sua extensão, sua debilidade ou sua força, porque é uma necessidade de sua natureza. O que é o Estado senão a organização do poder? Está na natureza de todo poder a impossibilidade de suportar um superior ou um igual, pois o poder não tem outro objeto além da dominação, e a dominação só é real quando está submetido a ela tudo o que a obstaculiza. Nenhum poder tolera outro a não ser quando está obrigado a fazê-lo, isto é, quando se sente impotente para destruí-lo ou derrubálo. O simples fato de um poder igual é uma negação de seu princípio e uma ameaça perpétua contra sua existência, porque é uma manifestação e uma prova de sua impotência. Por conseguinte, entre todos os Estados que existem um ao lado do outro, a guerra é permanente e a paz tão só uma trégua. Está na natureza do Estado se apresentar, tanto em relação a si mesmo como frente a seus súditos, como o objeto absoluto. Servir a sua prosperidade, a sua grandeza e a seu poder, essa é a virtude suprema do patriotismo. O Estado não reconhece outra virtude. Tudo o que lhe serve é bom e tudo o que é contrário a seus interesses é declarado criminoso. Tal é a moral dos Estados. Por isso, a moral política foi sempre em todo momento, não só estranha, mas absolutamente contrária à moral humana. Essa contradição é uma conseqüência forçada de seu princípio: sendo o Estado uma parte, coloca-se e se impõe como o todo, ignora o direito de quanto, não sendo 51 11 2007 ele, encontra-se fora dele, e quando pode, sem perigo, o violenta. O Estado é a negação da humanidade. Existem um direito humano e uma moral humana absolutos? Na atualidade, e vendo o que acontece e se faz na Europa hoje, somos forçados a nos colocar essa pergunta. Primeiramente: existe o absoluto, e não é tudo relativo neste mundo? A respeito da moral e do direito, o que se chamava ontem direito não o é mais hoje, e o que parece moral na China pode não ser considerado tal na Europa. Desse ponto de vista, cada país, cada época, só deveriam ser julgados do ponto de vista das opiniões contemporâneas e locais, e então não haveria nem direito humano universal nem moral humana absoluta. Desse modo, depois de ter sonhado uma coisa e outra, depois de termos sido metafísicos ou cristãos, hoje positivistas, deveríamos renunciar a esse sonho magnífico para voltar a cair nas estreitezas morais da Antigüidade, que ignoram inclusive o nome da humanidade, até o ponto de que todos os deuses foram deuses exclusivamente nacionais e acessíveis só aos cultos privilegiados. Mas hoje, que o céu tornou-se um deserto e que todos os deuses, inclusive, naturalmente, o Jeová dos judeus, encontram-se destronados, hoje isso seria ainda pouco: voltaríamos a cair no materialismo crasso e brutal de Bismarck, de Thiers e de Frederico II, segundo os quais Deus está sempre do lado dos grandes batalhões, como disse excelentemente o último. O único objeto digno de culto, o princípio de toda moral, de todo direito, seria a força; essa é a verdadeira religião do Estado. Nada disso! Por mais ateus que sejamos, e precisamente porque somos ateus, reconhecemos uma mo- 52 verve O princípio do Estado ral humana e um direito humano absolutos. Só que se trata de entender a significação dessa palavra, absoluto. O absoluto universal, que contempla a totalidade infinita dos mundos e dos seres, não o concebemos, porque não só somos incapazes de percebê-lo com nossos sentidos, como também não podemos sequer imaginá-lo. Toda tentativa desse gênero nos levaria de novo ao vazio, tão amado dos metafísicos, da abstração absoluta. O absoluto de que falamos é um absoluto muito relativo, e em particular relativo exclusivamente para a espécie humana. Ela está longe de ser eterna: nascida sobre a terra, morrerá com ela, talvez antes dela, deixando o lugar, segundo o sistema de Darwin, para uma espécie mais poderosa, mais completa e mais perfeita. Mas enquanto existe, tem um princípio que lhe é inerente, e que faz que seja precisamente o que é: é esse princípio o que constitui, em relação a ela, o absoluto. Vejamos qual é esse princípio. De todos os seres vivos sobre esta terra, o homem é ao mesmo tempo o mais social e o mais individualista. É, sem contradição, também o mais inteligente. Há, talvez, animais que são mais sociais do que ele, por exemplo as abelhas ou as formigas; mas, ao contrário, são tão pouco individualistas que os indivíduos que pertencem a essas espécies estão absolutamente absorvidos por elas, e como que aniquilados em sua sociedade; são tudo para a coletividade e nada, ou quase nada, para si próprios. Parece que existe uma lei natural, segundo a qual quanto mais elevada é uma espécie de animais na escala dos seres, por sua organização mais completa, tanto mais latitude, liberdade e individualidade deixa a cada um. Os animais ferozes, que ocupam incontestavelmente a hierarquia mais elevada, são individualistas em grau supremo. O homem, animal feroz por excelência, é o mais individualista de todos. Mas, ao mesmo tempo, e este 53 11 2007 é um de seus traços distintivos, é eminente, instintiva e fatalmente socialista. Isto é de tal modo certo que inclusive sua inteligência, que o torna tão superior a todos os seres vivos e que o constitui, de certa maneira, no amo de todos, só pode se desenvolver e chegar à consciência de si mesma em sociedade, e pelo concurso de toda a coletividade. E, de fato, sabemos bem que é impossível pensar sem palavras: à margem ou antes da palavra pôde muito bem haver representações ou imagens das coisas, mas não houve pensamentos. O pensamento vive e se desenvolve somente com a palavra. Pensar é, então, falar mentalmente consigo mesmo. Mas toda conversação supõe ao menos duas pessoas, uma são vocês, quem é a outra? É todo o mundo humano que vocês conhecem. O homem, enquanto indivíduo animal, como os animais das outras espécies, desde o início e desde que começa a respirar, tem o sentimento imediato de sua existência individual; mas só adquire a consciência reflexiva de si, consciência que constitui propriamente sua personalidade, por meio da inteligência e, por conseguinte, somente na sociedade. A personalidade mais íntima de vocês, a consciência que têm de vocês mesmos em seu foro íntimo, é de certa maneira o reflexo de sua própria imagem, refletida e enviada de novo como por outros tantos espelhos pela consciência tanto coletiva como individual dos seres humanos que compõem seu mundo social. Cada homem que vocês conhecem e com o qual se encontram em relações, sejam diretas ou indiretas, determina mais ou menos seu ser mais íntimo, contribui a torná-los o que são, a constituir sua personalidade. Por conseguinte, se vocês estão rodeados de escravos, ainda que sejam o amo, não deixam de ser um escravo, pois a consciência dos escravos só pode enviar a vocês sua 54 verve O princípio do Estado própria imagem aviltada. A imbecilidade de todos os imbeciliza, enquanto que a inteligência de todos os ilumina, eleva-os; os vícios de seu meio social são seus vícios, e não poderiam ser homens realmente livres sem estar rodeados de homens igualmente livres, pois a existência de um único escravo basta para diminuir sua liberdade. Na imortal declaração dos direitos do homem, feita pela Convenção Nacional, encontramos claramente expressada essa verdade sublime, que a escravidão de um único ser humano é a escravidão de todos. Esses direitos contêm toda a moral humana, precisamente o que chamamos moral absoluta, absoluta sem dúvida em relação unicamente à humanidade, não em relação ao resto dos seres, e menos ainda em relação à totalidade infinita dos mundos, que nos é eternamente desconhecida. A encontramos em germe mais ou menos em todos os sistemas de moral que foram produzidos na História, e dos quais foi de certa maneira como a luz latente, luz que por demais só se manifestou, com muita freqüência, por reflexos tão incertos quanto imperfeitos. Tudo o que vemos de absolutamente verdadeiro, isto é, de humano, é devido somente a ela. E como haveria de ser de outra maneira, se todos os sistemas de moral que se desenvolveram sucessivamente no passado, assim como os outros desenvolvimentos do homem, inclusive os desenvolvimentos teológicos e metafísicos, não tiveram jamais outra fonte que a natureza humana, não foram mais do que suas manifestações mais ou menos imperfeitas? Mas essa lei moral que chamamos absoluta, o que é, senão a expressão mais pura, mais completa, mais adequada, como diriam os metafísicos, dessa mesma natureza humana, essencialmente socialista e individualista ao mesmo tempo? 55 11 2007 O principal defeito dos sistemas de moral ensinados no passado é terem sido exclusivamente socialistas ou exclusivamente individualistas. Assim, a moral cívica, tal como nos foi transmitida pelos gregos e pelos romanos, foi uma moral exclusivamente socialista, no sentido de que sacrifica sempre a individualidade para a coletividade: sem falar das miríades de escravos que constituem a base da civilização antiga, que apenas eram levados em consideração como coisas, a própria individualidade do cidadão grego ou romano foi sempre patrioticamente imolada em benefício da coletividade constituída em Estado. Quando os cidadãos, cansados dessa imolação permanente, quiseram poupar-se do sacrifício, as repúblicas gregas primeiro, depois as romanas, desmoronaram. O despertar do individualismo ocasionou a morte da Antiguidade. Esse individualismo encontrou sua mais pura e completa expressão nas religiões monoteístas, no judaísmo, no maometismo e no cristianismo acima de tudo. O Jeová dos judeus se dirige ainda à coletividade, ao menos sob certas relações, já que tem um povo eleito, mas contém já todos os germes da moral exclusivamente individualista. Devia ser assim: os deuses da antiguidade grega e romana não foram, em última análise, mais do que símbolos, os representantes supremos da coletividade dividida, do Estado. Ao adorá-los, adorava-se o Estado, e toda a moral que foi ensinada em seu nome não pôde, por conseguinte, ter outro objeto que a salvação, a grandeza e a glória do Estado. O Deus dos judeus, déspota invejoso, egoísta e vaidoso como só ele, cuidou-se bem, não de identificar, mas só de misturar sua terrível pessoa com a coletividade de seu povo eleito, eleito para lhe servir de tapete predileto no melhor dos casos, mas não para que se 56 verve O princípio do Estado atrevesse a se levantar até ele. Entre ele e seu povo houve sempre um abismo. Assim, só admitindo ele mesmo como objeto de adoração, não podia suportar o culto ao Estado. Por conseguinte, dos judeus, tanto coletiva como individualmente, não exigiu nunca mais do que sacrifícios para si, jamais para a coletividade ou para a grandeza e a glória do Estado. De resto, os mandamentos de Jeová, tal como nos foram transmitidos pelo Decálogo, dirigem-se quase exclusivamente ao indivíduo: só constituem exceção aqueles cuja execução supera as forças do indivíduo e exige o concurso de todos; por exemplo: a ordem tão singularmente humana que incita os judeus a extirpar até o último, inclusive as mulheres e as crianças, todos os pagãos que encontrarem na terra prometida, ordem verdadeiramente digna do Pai de nossa Santíssima Trindade cristã, que se distingue, como se sabe, por seu amor exuberante por esta pobre espécie humana. Todos os outros mandamentos dirigem-se ao indivíduo: não matarás (excetuados os casos muitos freqüentes em que eu mesmo o ordene a você, deveria ter agregado); não roubarás nem a propriedade nem a mulher alheia (sendo considerada esta última como uma propriedade também); respeitarás teus pais. Mas, sobretudo, a mim adorarás, o Deus invejoso, egoísta, vaidoso e terrível, e se não quiseres incorrer em minha cólera, cantarás louvores e te prosternarás eternamente diante de mim. No maometismo não existe nem sombra do coletivismo nacional e restrito que domina nas religiões antigas e do qual se encontra sempre alguns frágeis restos até no culto judaico. O Alcorão não conhece povo eleito; todos os crentes, de qualquer nação ou comunidade à qual pertençam, são individualmente, não coletivamente, eleitos de Deus. Assim, os califas, suces- 57 11 2007 sores de Maomé, somente se chamarão chefes dos crentes. Mas nenhuma religião impulsionou tão longe o culto do individualismo como a religião cristã. Diante das ameaças do inferno e as promessas absolutamente individuais do paraíso, acompanhadas dessa terrível declaração de que dentre muitos chamados só haverá pouquíssimos eleitos, a religião cristã provocou uma desordem, um salve-se quem puder geral; uma espécie de corrida de apostas em que cada um só era estimulado por uma preocupação única: a de salvar sua própria alminha. Concebe-se que uma tal religião tenha podido e devido dar o golpe de graça à civilização antiga, fundada exclusivamente no culto à coletividade, à pátria, ao Estado, e dissolver todos seus organismos, principalmente em uma época em que já morria de velhice. O individualismo é um dissolvente tão poderoso! Vemos a prova disso no mundo burguês atual. No nosso modo de ver, isto é, segundo o ponto de vista da moral humana, todas as religiões monoteístas, mas sobretudo a religião cristã, como a mais completa e a mais conseqüente de todas, são profunda, essencial e principalmente imorais: ao criar seu Deus, proclamaram a decadência de todos os homens, cuja solidariedade só admitiram no pecado; e ao estabelecer o princípio da salvação exclusivamente individual, renegaram e destruíram, tanto como puderam fazê-lo, a coletividade humana, ou seja, o princípio da humanidade. Não é estranho que se tenha atribuído ao cristianismo a honra de ter criado a idéia da humanidade, da qual, ao contrário, foi o negador mais completo e mais absoluto. Sob um aspecto pôde reivindicar essa honra, mas somente sob um: contribui de uma maneira negativa, cooperando potentemente, com a destruição das coletividades restritas e parciais da Antigüidade, apressando a decadência 58 verve O princípio do Estado natural das pátrias e das cidades que, tendo-se divinizado em seus deuses, formavam um obstáculo para a constituição da humanidade; mas é absolutamente falso dizer que o cristianismo tenha tido jamais o pensamento de constituir a humanidade, ou que só tenha compreendido, sequer pressentido, o que chamamos hoje de solidariedade dos homens, nem a humanidade, que é uma idéia completamente moderna, entrevista pelo Renascimento, mas não concebida e enunciada de uma maneira clara e precisa até o século XVIII. O cristianismo não tem absolutamente nada que fazer com a humanidade, pelo simples motivo que seu objeto único é a divindade, e uma exclui a outra. A idéia da humanidade repousa na solidariedade fatal, natural, de todos os homens. Mas o cristianismo, já o dissemos, só reconhece essa solidariedade no pecado, e a rejeita absolutamente na salvação, no reino desse Deus que sobre muitos chamados só faz graça a pouquíssimos eleitos, e que em sua justiça adorável, impulsionado sem dúvida por esse amor infinito que o distingue, antes inclusive de que os homens tivessem nascido sobre esta terra, tinha condenado a imensa maioria aos sofrimentos eternos do inferno, e isso para castigá-los por um pecado cometido, não por eles mesmos, mas por seus antepassados, que estiveram obrigados a cometê-lo: o pecado de infringir uma negação à presença divina. Tal é a lógica saudável e a base de toda moral cristã. O que o cristianismo tem a fazer com a lógica e a moral humana? Em vão se esforçarão por nos provar que o cristianismo reconhece a solidariedade dos homens, citando fórmulas do Evangelho que parecem predizer o advento de um dia em que só haverá um único pastor e um único rebanho; em que será mostrada a nós a Igreja católica romana, que tende incessantemente para a 59 11 2007 realização desse fim pela submissão do mundo inteiro ao governo do papa. A transformação de toda a humanidade em um rebanho, assim como a realização, felizmente impossível, dessa monarquia universal e divina, não têm absolutamente nenhuma relação com o princípio da solidariedade humana, que é o único que constitui o que chamamos de humanidade. Não existe nem sombra dessa solidariedade na sociedade tal como a sonham os cristãos, e na qual não se é nada pela graça dos homens, mas tudo pela graça de Deus, verdadeiro rebanho de carneiros desagregados e que não têm e nem devem ter nenhuma relação imediata e natural entre si, até o ponto que lhes é proibido se unirem para a reprodução da espécie sem a permissão ou a benção de seu pastor, pois só o sacerdote tem direito a casá-los em nome desse Deus que forma o único traço de uma união legítima entre eles: separados fora dele, os cristãos não se unem, e só podem se unir nele. Fora dessa sanção divina, todas as relações humanas, mesmo os laços da família, são alcançadas pela maldição geral que afeta a criação; são reprovados a ternura dos pais, dos esposos, dos filhos, a amizade fundada na simpatia e na estima recíprocas, o amor e o respeito dos homens, a paixão do verdadeiro, do justo e do bom, a da liberdade, e a maior de todas, a que implica todas as outras, a paixão da humanidade; tudo isso está maldito e só poderia ser reabilitado pela graça de Deus. As relações de homem a homem devem ser santificadas pela intervenção divina; mas essa intervenção as desnaturaliza, as desmoraliza, as destrói. O divino mata o humano e todo o culto cristão só consiste propriamente nessa imolação perpétua do humano em nome da divindade. Que não se objete que o cristianismo ordena aos filhos amarem seus pais, aos pais amarem seus filhos, aos esposos se afeiçoarem mutuamente. Sim, ordena isso, mas 60 verve O princípio do Estado apenas lhes permite amar imediata, naturalmente e por si próprios em Deus e por Deus; só admite todas essas relações atuais sob a condição de que Deus se encontre como terceiro, e esse terrível terceiro mata as uniões. O amor divino aniquila o amor humano. O cristianismo ordena, é verdade, amar nosso próximo tanto como a nós mesmos, mas nos ordena, ao mesmo tempo, amar Deus mais do que a nós mesmos e, por conseguinte, também mais do que ao próximo, isto é, sacrificar a ele o próximo por nossa salvação, porque, no final das contas, o cristão só adora Deus pela salvação de sua alma. Aceitando Deus, tudo isso é rigorosamente conseqüente: Deus é o infinito, o absoluto, o eterno, o onipotente; o homem é o finito, o impotente. Em comparação com Deus, sob todos os aspectos, não é nada. Só o divino é justo, verdadeiro, venturoso e bom, e tudo o que é humano no homem deve ser por isso mesmo declarado falso, iníquo, detestável e miserável. O contato da divindade com essa pobre humanidade deve devorar, pois, necessariamente, consumir, aniquilar tudo o que resta de humano nos homens. A intervenção divina nos assuntos humanos não deixou nunca de produzir efeitos excessivamente desastrosos. Perverte todas as relações dos homens entre si e substitui sua solidariedade natural pela prática hipócrita e doentia das comunidades religiosas, nas quais, sob as aparências da caridade, cada um pensa só na salvação de sua alma, fazendo assim, com o pretexto do amor divino, egoísmo humano excessivamente refinado, cheio de ternura para si e de indiferença, de malevolência e até de crueldade para o próximo. Isso explica a aliança íntima que existiu sempre entre o carrasco e o sacerdote, aliança francamente confessa pelo célebre campeão do ultramontanismo, senhor De Maistre, cuja escrita eloqüente, depois de ter divinizado o papa, não dei- 61 11 2007 xou de reabilitar o carrasco; um era, de fato, o complemento do outro. Mas não é só na Igreja católica onde existe e se produz essa ternura excessiva para com o carrasco. Os ministros sinceramente religiosos e crentes dos diferentes cultos protestantes, não protestaram unanimemente em nossos dias contra a abolição da pena de morte? Não cabe dúvida que o amor divino mata o amor aos homens nos corações que estão penetrados dele; também não cabe dúvida que todos os cultos religiosos em geral, mas entre eles o cristianismo sobretudo, não tiveram jamais outro objeto que o sacrifício dos homens aos deuses. E entre todas as divindades de que nos fala a História, existe uma só que tenha feito verter tantas lágrimas e sangue como esse bom Deus dos cristãos, ou que tenha pervertido a tal ponto as inteligências, os corações e todas as relações dos homens entre si? Sob essa influência doentia, o espírito eclipsou-se e a busca ardente da verdade transformou-se em um culto complacente à mentira; a dignidade humana desonrouse, o homem [uma palavra ilegível no original] tornava-se traidor, a bondade cruel, a justiça iníqua e o respeito humano transformaram-se em um desprezo crescente para os homens; o instinto da liberdade acabou no estabelecimento da servidão, e o da igualdade na sanção dos privilégios mais monstruosos. A caridade, ao se fazer delatora e perseguidora, ordenou a matança dos heréticos e as orgias sangrentas da Inquisição; o homem religioso chamou-se jesuíta, devoto ou pietista — renunciando à humanidade encaminhou-se para a santidade —, e o santo, sob as aparências de uma humanidade mais [uma palavra ilegível no original], tornou-se hipócrita, e com a caridade ocultou o orgulho e o egoísmo imensos de um eu humano absolutamente isolado que chama a si mesmo seu Deus. Porque não devemos nos enganar: aquilo 62 verve O princípio do Estado que o homem religioso busca acima de tudo, e acredita encontrar na divindade que ama, é a si mesmo, mas glorificado, investido pela onipotência e imortalizado. Ele também retirou dela, muito freqüentemente, pretextos e instrumentos para subjugar e para explorar o mundo humano. É esta, pois, a primeira palavra do culto cristão: é a exaltação do egoísmo que, ao romper toda solidariedade social, ama a si mesmo em seu Deus e se impõe à massa ignorante dos homens em nome desse Deus, isto é, em nome de seu eu humano, consciente e inconscientemente exaltado e divinizado por si mesmo. Por isso, os homens religiosos são ordinariamente tão ferozes: ao defender seu Deus, tomam partido por seu egoísmo, por seu orgulho e por sua vaidade. De tudo isso resulta que o cristianismo é a negação mais decisiva e mais completa de toda solidariedade entre os homens, isto é, da sociedade e, por conseguinte, também da moral, já que, fora da sociedade — penso tê-lo demonstrado — não restam mais do que relações religiosas do homem isolado com seu Deus, isto é, consigo mesmo. Os metafísicos modernos, a partir do século XVII, trataram de restabelecer a moral, fundando-a, não em Deus, mas no homem. Por desgraça, obedecendo às tendências de seu século, tomaram por ponto de partida, não o homem social, vivo e real, que é o duplo produto da natureza e da sociedade, mas o eu abstrato do indivíduo, à margem de todos seus laços naturais e sociais, aquele mesmo a quem o egoísmo cristão divinizou e a quem todas as Igrejas, tanto católicas como protestantes, adoram como seu Deus. Como nasceu o Deus único dos monoteístas? Pela eliminação necessária de todos os seres reais e vivos. 63 11 2007 Para explicar o que entendemos por isso, é necessário dizer algumas coisas sobre a religião. Não gostaríamos de falar sobre ela, mas na atualidade é impossível tratar questões políticas e sociais sem tocar na questão religiosa. Pretendeu-se equivocadamente que o sentimento religioso apenas fosse próprio aos homens: encontram-se perfeitamente todos os elementos fundadores no reino animal, e entre esses elementos o principal é o medo. “O temor a Deus — dizem os teólogos — é o começo da sabedoria.” Pois bem, não se encontra esse temor excessivamente desenvolvido em todos os animais, e não estão todos os animais constantemente amedrontados? Todos experimentam um terror instintivo diante da onipotência que os produz, os cria, os nutre, é verdade, mas que ao mesmo tempo os esmaga, os encobre por todas partes, que ameaça sua existência a cada instante e que termina sempre por matá-los. Como os animais das outras espécies não têm esse poder de abstração e de generalização de que só o homem está dotado, não representam para si mesmos a totalidade dos seres que nós chamamos natureza, mas a sentem e a temem. Esse é o verdadeiro começo do sentimento religioso. Não falta neles sequer a adoração. Sem falar do estremecimento de alegria que experimentam todos os seres vivos ao se levantar o sol, nem de seus gemidos diante da aproximação de uma dessas catástrofes naturais terríveis que os destroem por milhares, não é necessário mais do que considerar, por exemplo, a atitude do cachorro na presença de seu amo. Não está por completo nela a do homem diante de Deus? Também não começou o homem pela generalização dos fenômenos naturais, e apenas chegou à concepção 64 verve O princípio do Estado da natureza como ser único depois de muitos séculos de desenvolvimento moral. O homem primitivo, o selvagem, pouco diferente do gorila, compartilhou, sem dúvida, por longo tempo todas as sensações e as representações instintivas do gorila; e só foi depois de muito que começou a fazê-las objeto de suas reflexões, primeiro necessariamente infantis, a lhes dar um nome e por isso mesmo a fixá-las em seu espírito nascente. Foi assim que tomou corpo o sentimento religioso que tinha em comum com os animais das outras espécies; como se transformou em uma representação permanente e no começo de uma idéia, a da existência oculta de um ser superior e muito mais poderoso do que ele, e geralmente muito cruel e muito malfeitor, do ser que lhe causou medo, em uma palavra, de seu Deus. Tal foi o primeiro Deus, de tal modo rudimentar, é verdade, que o selvagem que o procura por todo lugar para conjurá-lo acredita encontrá-lo às vezes em um pedaço de madeira, em um pano, em um osso ou em uma pedra: essa foi a época do fetichismo, de que encontramos ainda vestígios no catolicismo. Foram necessários ainda séculos, sem dúvida, para que o homem selvagem passasse do culto dos fetiches inanimados ao dos fetiches vivos, ao dos feiticeiros. Chega a ele por uma longa série de experiências e pelo procedimento da eliminação: não encontrando a potência temível que queria conjurar nos fetiches, procura-a no homem-deus, o feiticeiro. Mais tarde e sempre por esse mesmo procedimento de eliminação e fazendo abstração do feiticeiro, de quem por fim a experiência lhe demonstrou a impotência, o selvagem adorou sucessivamente todos os fenômenos mais grandiosos e terríveis da natureza: a tempestade, o trovão, o vento e, continuando assim, de eliminação 65 11 2007 em eliminação, ascendeu finalmente ao culto do Sol e dos planetas. Parece que a honra de ter criado esse culto pertence aos povos pagãos. Isso era já um grande progresso. Quanto mais o homem distanciava-se da divindade, isto é, da potência que causa medo, mais respeitável e grandiosa ela parecia. Apenas era necessário dar um único grande passo para o estabelecimento definitivo do mundo religioso, e esse foi o da adoração de uma divindade invisível. Até esse salto mortal da adoração do visível para a adoração do invisível, os animais das outras espécies teriam podido, com rigor, acompanhar seu irmão mais novo, o homem, em todas suas experiências teológicas. Porque eles também adoram de seu jeito os fenômenos da natureza. Não sabemos o que podem experimentar em relação a outros planetas; mas estamos seguros de que a Lua e, sobretudo, o Sol exercem sobre eles uma influência muito sensível. Mas a divindade invisível só pôde ser inventada pelo homem. Mas o próprio homem, por qual procedimento pôde descobrir esse ser invisível, cuja existência real nenhum de seus sentidos, nem sua visão, puderam lhe ajudar a comprovar, e por meio de qual artifício pôde reconhecer sua natureza e suas qualidades? Qual é, enfim, esse ser suposto absoluto que o homem acreditou encontrar por cima e além de todas as coisas? O procedimento foi essa operação bem conhecida do espírito que chamamos abstração ou eliminação, e o resultado final dessa operação não pode ser mais do que o abstrato absoluto, o nada. E é precisamente esse nada o que o homem adora como seu Deus. Elevando-se por seu espírito sobre todas as coisas reais, até de seu próprio corpo, fazendo abstração de tudo o que é sensível ou sequer visível, inclusive o firma- 66 verve O princípio do Estado mento com todas as estrelas, o homem encontra-se frente ao vazio absoluto, ao nada indeterminado, infinito, sem nenhum conteúdo, sem nenhum limite. Nesse vazio, o espírito do homem que o produziu por meio da eliminação de todas as coisas, apenas pôde encontrar, necessariamente, a si mesmo em estado de potência de abstração; vendo tudo destruído e não tendo já nada para eliminar, volta a cair sobre si em uma inação absoluta; e, considerando-se, nessa completa inação, um ser diferente de si, apresenta-se como seu próprio Deus e se adora. Deus não é, pois, outra coisa que o eu humano absolutamente vazio por força da abstração ou da eliminação de tudo o que é real e vivo. Precisamente dessa maneira o concebeu Buda, que, de todos os reveladores religiosos, foi certamente o mais profundo, o mais sincero e o mais verdadeiro. Só que Buda não sabia e não podia saber que era o próprio espírito humano que tinha criado esse Deus-nada. Apenas no final do século XVIII a humanidade começou a reparar nisso, e só no século XIX, graças aos estudos muito mais profundos sobre a natureza e sobre as operações do espírito humano, chegou a percebê-lo completamente. Quando o espírito humano criou Deus, procedeu com a mais completa ingenuidade e, sem o saber, pôde adorar-se em seu Deus-nada. Não podia, porém, deter-se diante desse nada que tinha feito ele mesmo, devia preenchê-lo a qualquer preço e fazê-lo voltar à terra, à realidade vivente. Chegou a esse fim sempre com a mesma ingenuidade e pelo procedimento mais natural, mais simples. Depois de ter divinizado seu próprio eu nesse estado de abstração ou de vazio absoluto, ajoelhou-se diante dele, o adorou e o proclamou causa e autor de todas as coisas; esse foi o começo da teologia. 67 11 2007 Deus, o nada absoluto, foi proclamado o único ser vivo, poderoso e real, e o mundo vivente, e, por conseqüência necessária, a natureza, todas as coisas efetivamente reais e viventes, ao serem comparadas com esse Deus, foram declaradas nulas. É próprio da teologia fazer do nada o real e do real o nada. Procedendo sempre com a mesma ingenuidade e sem ter a menor consciência do que fazia, o homem se utilizou de um meio muito engenhoso e ao mesmo tempo muito natural para preencher o espantoso vazio de sua divindade: atribuiu-lhe simplesmente, exagerando-as sempre até proporções monstruosas, todas as ações, todas as forças, todas as qualidades e propriedades, boas ou más, benéficas ou maléficas, que encontrou tanto na natureza como na sociedade. Foi assim como a terra, entregue ao saque, empobreceu em proveito do céu, que enriqueceu com seus despojos. Resultou disso que quanto mais o céu enriqueceu — a morada da divindade —, mais miserável se fez a terra; e bastava com que uma coisa fosse adorada no céu para que tudo que fosse contrário a essa coisa se encontrasse realizado neste baixo mundo. Isso é o que se chama de ficções religiosas; a cada uma dessas ficções corresponde, sabe-se perfeitamente, alguma realidade monstruosa; assim, o amor celeste não teve nunca outro efeito que o ódio terrestre, a bondade divina só produziu o mal, e a liberdade de Deus significa a escravidão aqui embaixo. Veremos de imediato que o mesmo acontece com todas as ficções políticas e jurídicas, pois tanto umas quanto as outras são, por outra parte, conseqüências ou transformações da ficção religiosa. A divindade assumiu de repente esse caráter absolutamente maléfico. Nas religiões panteístas do Oriente, no culto dos brâmanes e no dos sacerdotes do Egito, tanto como nas crenças fenícias e sírias, apresenta-se já sob 68 verve O princípio do Estado um aspecto bastante terrível. O Oriente foi em todo tempo e o é ainda hoje, em certa medida pelo menos, a pátria da divindade despótica, esmagadora e feroz, negação do espírito da humanidade. Essa é também a pátria dos escravos, dos monarcas absolutos e das castas. Na Grécia, a divindade se humaniza — sua unidade misteriosa, reconhecida no Oriente apenas pelos sacerdotes, seu caráter atroz e sombrio, são relegados ao fundo da mitologia helênica —, ao panteísmo sucede o politeísmo. O Olimpo, imagem da federação das cidades gregas, é uma espécie de república governada muito fragilmente pelo pai dos deuses, Júpiter, que obedece, ele também, os decretos do destino. O destino é impessoal; é a própria fatalidade, a força irresistível das coisas, diante da qual tudo deve se curvar, homens e deuses. De resto, entre os deuses, criados pelos poetas, nenhum é absoluto; cada um representa só um aspecto, uma parte, seja do homem, seja da natureza em geral, sem deixar, porém, de serem por isso seres concretos e vivos. Completam-se mutuamente e formam um conjunto muito vivo, muito gracioso e acima de tudo muito humano. Nada de sombrio nessa religião, cuja teologia foi inventada pelos poetas, somando cada um livremente algum deus ou alguma deusa nova, segundo as necessidades das cidades gregas, cada uma das quais se orgulhava de sua divindade tutelar, representante de seu espírito coletivo. Essa foi a religião, não dos indivíduos, mas da coletividade dos cidadãos de tantas pátrias restringidas e [a primeira parte de uma palavra ilegível] ...mente livres, associadas por outra parte entre si, mais ou menos por uma espécie de federação imperfeitamente organizada e muito [uma palavra ilegível]. De todos os cultos religiosos que nos mostra a História, esse foi, seguramente, o menos teológico, o menos sério, 69 11 2007 o menos divino, e por isso o menos malfeitor, o que menos obstaculizou o desenvolvimento da sociedade humana. Somente a pluralidade dos deuses mais ou menos iguais em potência era uma garantia contra o absolutismo; perseguido por uns, podia-se buscar a proteção dos outros, e o mal causado por um deus encontrava sua compensação no bem produzido por outro. Não existia, pois, na mitologia grega, essa contradição lógica e moralmente monstruosa, do bem e o mal, da beleza e a fealdade, da bondade e a maldade, do amor e o ódio concentrados em uma única e mesma pessoa, como acontece fatalmente no Deus do monoteísmo. Encontramos essa monstruosidade ativa por completo no Deus dos judeus e dos cristãos. Era uma conseqüência necessária da unidade divina; e, de fato, uma vez admitida essa unidade, como explicar a coexistência do bem e do mal? Os antigos persas tinham imaginado pelo menos dois deuses: um, o da luz e do bem, Ormuzd, o outro, do mal e das trevas, Ahrimam; era natural, então, que combatessem, como combatem o bem e o mal, e triunfam sucessivamente na natureza e na sociedade. Mas, como explicar que um único e mesmo Deus, onipotente, todo verdade, amor e beleza, pudesse dar nascimento ao mal, ao ódio, à fealdade e à mentira? Para resolver essa contradição, os teólogos judeus e cristãos recorreram às invenções mais repulsivas e mais insensatas. Primeiramente, atribuíram todo o mal a Satanás. Mas Satanás, de onde procede? É, como Ahrimam, o igual de Deus? De maneira nenhuma; como o resto da criação, é obra de Deus. Por conseguinte, esse Deus foi o que engendrou o mal. Não, respondem os teólogos; Satanás foi primeiro um anjo de luz e desde sua revolta contra Deus tornou-se anjo das trevas. Mas se a revolta é um mal — o que está muito sujeito a cautela, e nós acreditamos, ao contrário, que é um bem, pois sem 70 verve O princípio do Estado ela não haveria existido nunca emancipação social —, se constitui um crime, quem criou a possibilidade desse mal? Deus, sem dúvida, responderão ainda os mesmos teólogos; mas apenas fez o mal para deixar aos anjos e aos homens o livre arbítrio. E o que é esse livre arbítrio? É a faculdade de escolher entre o bem e o mal, e de decidir espontaneamente, seja por um seja por outro. Mas para que os anjos e os homens pudessem escolher o mal, para que pudessem se decidir pelo mal, é necessário que o mal tenha existido independentemente deles, e quem pôde lhe dar essa existência, senão Deus? Também pretendem os teólogos que, depois da queda de Satanás, que precedeu à do homem, Deus, sem dúvida esclarecido pela experiência, não querendo que outros anjos seguissem o exemplo de Satanás, os privou do livre arbítrio, deixando-lhes apenas a faculdade do bem, de sorte que por decorrência são forçosamente virtuosos e não imaginam outra felicidade que a de servir eternamente como criados a esse terrível senhor. Mas parece que Deus não foi suficientemente esclarecido por sua primeira experiência, já que, depois da queda de Satanás, criou o homem e, por cegueira ou maldade, não deixou de lhe conceder esse dom fatal do livre arbítrio, que perverteu Satanás e devia perverter o homem também. A queda do homem, tanto como a de Satanás, era fatal, já que havia sido determinada desde a eternidade na presciência divina. De resto, sem remontar tão longe, nos permitiremos observar que a simples experiência de um honesto pai de família deveria ter impedido o bom Deus de submeter esses desgraçados primeiros homens à famosa tentação. O mais simples pai de família sabe muito bem que basta que se impeça uma criança de mexer em alguma coisa para que um instinto de curiosidade invencível a force absolutamente a fazê-lo. Portanto, se ama seus 71 11 2007 filhos e se é realmente justo e bom, os poupará dessa prova tão inútil quanto cruel. Deus não teve nem essa razão nem essa bondade, nem essa [uma palavra ilegível], e mesmo sabendo de antemão que Adão e Eva deviam sucumbir à tentação, assim que se cometeu o pecado, eis que se deixa levar por um furor verdadeiramente divino. Não se contentou em maldizer os desgraçados desobedientes, maldisse toda sua descendência até o final dos séculos, condenando aos tormentos do inferno a milhares de homens que eram evidentemente inocentes, já que sequer tinham nascido quando se cometeu o pecado. Não se contentou em maldizer os homens, maldisse com eles toda a natureza, sua própria criação, que tinha encontrado tão bem feita. Se um pai de família tivesse atuado dessa maneira, não teria sido declarado louco de pedra? Como se atreveram os teólogos a atribuir a seu Deus o que teriam considerado absurdo, cruel [uma palavra ilegível], anormal de parte de um homem? Ah, é que tiveram necessidade desse absurdo! Do contrário, como poderiam explicar a existência do mal neste mundo que deveria ter saído perfeito de mãos de um operário tão perfeito, deste mundo criado pelo próprio Deus? Mas, uma vez admitida a queda, todas as dificuldades se igualam e se explicam. Assim o pretendem ao menos. A natureza, primeiro perfeita, torna-se de repente imperfeita, toda a máquina se deteriora; à harmonia primitiva sucede o choque desordenado das forças; a paz que reinava no início entre todas as espécies de animais, cede lugar a essa carnificina espantosa, à devoração mútua; e o homem, o rei da natureza, a supera em ferocidade. A terra se torna um vale de sangue e de lágrimas, e a lei de Darwin — a luta impiedosa pela existência — triunfa na natureza e na sociedade. O mal transborda sobre o bem, Satanás afoga Deus. 72 verve O princípio do Estado E semelhante inabilidade, uma fábula tão ridícula, repulsiva, monstruosa, pôde ser seriamente repetida por grandes doutores em teologia durante mais de quinze séculos, o que estou dizendo? Ainda o é; mais do que isso, o é oficialmente, obrigatoriamente ensinada em todas as escolas da Europa. O que se deve pensar, então, depois de tudo isso, da espécie humana? E não têm mil vezes razão os que pretendem que traímos, ainda hoje, nosso próximo parentesco com o gorila? Mas o espírito [uma palavra ilegível] dos teólogos cristãos não se detém nisso. Na queda do homem e em suas conseqüências desastrosas, tanto por sua natureza como por si mesmo, adoraram a manifestação da justiça divina. Depois lembraram que Deus, não só era a justiça, mas também o amor absoluto e, para conciliar um com o outro, eis o que inventaram. Depois de ter deixado essa pobre humanidade durante milhares de anos sob o golpe de sua terrível maldição, que teve por conseqüência a condenação de uns quantos milhões de seres humanos à tortura eterna, sentiu despertar o amor em seu seio, e o que fez? Tirou do inferno os infelizes torturados? Não, de maneira nenhuma; isso teria sido contrário a sua eterna justiça. Mas tinha um filho único; como e por que o tinha, é um dos mistérios profundos que os teólogos, que lhe deram esse filho, declaram impenetrável, o que é um jeito naturalmente cômodo para sair do assunto e resolver todas as dificuldades. Portanto, esse pai cheio de amor, em sua suprema sabedoria, decide enviar seu filho único à terra, a fim de que se faça matar pelos homens, para salvar, não as gerações passadas, sequer as do porvir, mas, entre as últimas, como o declara o próprio Evangelho e como o repetem a cada dia tanto a Igreja católica como os protestantes, só um número muito pequeno de eleitos. 73 11 2007 E agora a corrida está aberta; é, como dissemos acima, uma espécie de corrida de apostas, um salve-se quem puder, pela salvação da alma. Aqui, os católicos e os protestantes se dividem: os primeiros pretendem que não se entre no paraíso a não ser com a permissão especial do Santo Padre, o papa; os protestantes afirmam, por sua vez, que a graça direta e imediata do bom Deus é a única que abre as portas. Essa grave disputa continua ainda hoje; nós não entraremos nela. Resumamos em poucas palavras a doutrina cristã. Há um Deus, ser absoluto, eterno, infinito, onipotente; é a onisciência, a verdade, a justiça, a beleza e a felicidade, o amor e o bem absolutos. Nele tudo é infinitamente grande, fora dele está o nada. É, no final das contas, o Ser supremo, o Ser único. Mas acontece aqui que do nada — que por isso mesmo parece ter tido uma existência à parte, fora dele, o que implica uma contradição e um absurdo, já que se Deus existe em todas partes e preenche com seu ser o espaço infinito, nada, nem o próprio nada, pode existir fora dele, o que faz acreditar que o nada de que nos fala a Bíblia estivesse em Deus, isto é, que o próprio ser divino fosse o nada —, Deus criou o mundo. Aqui se coloca por si mesma uma questão. A criação foi realizada desde a eternidade, ou bem em um momento dado da eternidade? No primeiro caso, é eterna como o próprio Deus e não pode ter sido criada nem por Deus nem por ninguém; porque a idéia da criação implica a precedência do criador à criatura. Como todas as idéias teológicas, a idéia da criação é uma idéia por completo humana, tomada na prática da humana sociedade. Assim, o relojoeiro cria um relógio, o arquiteto uma casa, etc. Em todos esses casos, o produtor existe ao criar o produto, fora do produto, e é isso que constitui essencialmente a 74 verve O princípio do Estado imperfeição, o caráter relativo e, por assim dizer, dependente tanto do produtor como do produto. Mas a teologia, como faz, diga-se de passagem, sempre, tomou essa idéia e esse fato completamente humanos da produção e, aplicando-os a seu Deus, estendendo-os até o infinito e retirando-os por isso mesmo de suas proporções naturais, formou uma fantasia tão monstruosa quanto absurda. Por conseguinte, se a criação é eterna não é criação. O mundo não foi criado por Deus, portanto tem uma existência e um desenvolvimento independentes dele. A eternidade do mundo é a negação de Deus, pois Deus era essencialmente o Deus criador. O mundo, porém, não é eterno; houve uma época na eternidade em que não existia. Em conseqüência, transcorreu toda uma eternidade durante a qual Deus absoluto, onipotente, infinito, não foi um Deus criador, ou o foi em potência, não de fato. Por que não o foi? Por capricho de sua parte, ou porque tinha a necessidade de se desenvolver para chegar com isso à potência efetiva criadora? Esses são mistérios insondáveis, dizem os teólogos. São absurdos imaginados por vocês mesmos, nós respondemos. Vocês começam por inventar o absurdo, e depois o impõem a nós como um mistério divino, insondável e tanto mais profundo quanto mais absurdo é. É sempre o mesmo procedimento: Credo quia absurdum. Outra questão: a criação, tal como saiu das mãos de Deus, foi perfeita? Se não o foi, não podia ser criação de Deus, porque o operário — é o próprio Evangelho que o diz — é julgado segundo o grau de perfeição de sua obra. Uma criação imperfeita suporia necessariamente um criador imperfeito. Portanto, a criação foi perfeita. 75 11 2007 Mas se o foi, não pôde ter sido criada por alguém, porque a idéia da criação absoluta exclui toda idéia de dependência ou de relação. Fora dela não poderia existir nada. Se o mundo é perfeito, Deus não pode existir. A criação — responderão os teólogos — foi seguramente perfeita, mas só em relação a tudo que a natureza ou os homens podem produzir, não em relação a Deus. Foi perfeita, sem dúvida, mas não perfeita como Deus. Responderemos de novo que a idéia de perfeição não admite graus, como não os admitem nem a idéia do infinito nem a do absoluto. Não pode se tratar de mais ou menos. A perfeição é uma. Portanto, se a criação foi menos perfeita que o criador, foi imperfeita. E então voltaremos a dizer que Deus, criador de um mundo imperfeito, não é mais do que um criador imperfeito, o que equivaleria à negação de Deus. Observa-se que, de todas as maneiras, a existência de Deus é incompatível com a do mundo. Se existe o mundo, Deus não pode existir. Passemos a outra coisa. Esse Deus perfeito cria um mundo mais ou menos imperfeito. Cria-o em um momento dado da eternidade, por capricho e, sem dúvida, para combater o tédio de sua majestosa solidão. De outro modo, para que o teria criado? Mistérios insondáveis, gritarão os teólogos. Besteiras insuportáveis, nós responderemos. Mas a própria Bíblia nos explica os motivos da criação. Deus é um ser essencialmente vaidoso, criou o céu e a terra para ser adorado e louvado por eles. Outros pretendem que a criação foi o efeito de seu amor infinito. Por quem? Por um mundo, por seres que não existiam, o que existia no começo unicamente em sua idéia, isto é, sempre para ele? [O final deste manuscrito, se foi escrito, não foi encontrado] 76 verve O princípio do Estado Tradução do espanhol por Natalia Montebello. Notas Texto extraído de: Mikhail Bakunin. Obras completas, tomo 4. Tradução de Diego Abad de Santillán. Madrid, Las Ediciones de la Piqueta, 1979. Escrito em 1871. 1 RESUMO Entre o socialismo e o individualismo extremos, governos e religiões prolongam a oposição que aniquila sistematicamente a liberdade de cada um. Mas é com as religiões monoteístas que o culto ao individualismo terá por efeito a negação da humanidade. Confronta-se cristianismo e islamismo. Palavras-chave: cristianismo, Estado, humanidade. ABSTRACT Between extreme socialism and extreme individualism, governments and religions extend the opposition that systematically tears down one’s liberty. But with the monotheist religions, the cult of individualism would generate the denial of humanity. Christianity and Islamism are confronted. Keywords: Christianity, state, humanity. Indicado para publicação em 15 de agosto de 2005. 77 11 2007 o anarquista profissional (o catecismo revolucionário de sergei nietcháiev) O Catecismo revolucionário de Sergei Nietcháiev, redigido na década de 1860, é um escrito muitas vezes associado ao anarquismo e expressa um autoritário ponto de interseção com o revolucionarismo comunista. Sergei Nietcháiev não expressa somente a existência do anarquista profissional, aquele que combate restrições à liberdade e não obstante admite os padrões austeros dos cientistas. Ele é a constatação do risco da tirania, da permanência do fanatismo e da hipotética seriedade dos intelectuais que falam em nome de, que se dizem portadores de uma consciência verdadeira e que pretendem conduzir pessoas, grupos, classes ou massas à liberdade. Nu-Sol verve, 11: 78-94, 2007 78 verve O anarquista profissional the professional anarchist (the sergey nechayev’s revolutionary catechism) The Sergei Nietcháiev’s Revolutionary Catechism, written in 1868, is associated, several times, with the anarchist movement, and shows an authoritarian point of contact with the communist revolucionarism. Sergei Nietcháiev does not merely express the existence of a professional anarchism – the one who fight the limitations of liberty, but also accepts the austere scientific standards. He is an expression of the danger of tyranny, of the remaining of fanaticism and the hypothetical gravity of the intellectuals who speak in the name of and present themselves as owners of a true conscience; the ones who aim to conduct people, groups, classes or masses towards liberty. Nu-Sol 79 11 2007 the revolutionary catechism sergey nechayev The duties of the revolutionary toward himself 1. The revolutionary is a doomed man. He has no personal interests, no business affairs, no emotions, no attachments, no property, and no name. Everything in him is wholly absorbed in the single thought and the single passion for revolution. 2. The revolutionary knows that in the very depths of his being, not only in words but also in deeds, he has broken all the bonds which tie him to the social order and the civilized world with all its laws, moralities, and customs, and with all its generally accepted conventions. He is their implacable enemy, and if he continues to live with them it is only in order to destroy them more speedily. 3. The revolutionary de spises all doctrines and refuses to accept the mundane sciences, leaving them for future generations. He knows only one science: the science of destruction. For this reason, but only for this reason, he will study mechanics, physics, chemistry, and perhaps medicine. But all day and all night he studies the vital science of human beings, their characteristics and circumstances, and all the phenomena of the present social order. The object is perpetually the same: the surest and quickest way of destroying the whole filthy order. 80 verve O anarquista profissional o catecismo revolucionário1 sergei nietcháiev Os deveres do revolucionário consigo mesmo 1. O revolucionário é um homem condenado. Ele não possui interesse pessoal algum, nenhum negócio, nenhuma emoção, nenhum vínculo, nenhuma propriedade e nenhum nome. Tudo nele é completamente absorvido num único pensamento e numa única paixão pela revolução. 2. O revolucionário sabe que nas profundezas do seu ser, não apenas em palavras, mas em ações, ele rompeu com todas as amarras que o atavam à ordem social e ao mundo civilizado, com todas as suas leis, moralidades e costumes, e também com todas as suas convenções socialmente aceitas. Ele é seu inimigo implacável, e se ele continua a viver entre eles é apenas para destruí-los mais rapidamente. 3. O revolucionário despreza todas as doutrinas e se recusa a aceitar as ciências mundanas,2 deixando-as às gerações futuras. Ele conhece uma ciência apenas: a ciência da destruição. Por isso, e apenas isso, ele estudará mecânica, física, química e, talvez, medicina. Mas todos os dias e todas as noites ele estuda as ciências vitais do ser humano, suas características e circunstâncias, e todos os fenômenos da ordem social presente. O objetivo é eternamente o mesmo: o modo mais certo e rápido de destruir toda a ordem abjeta. 81 11 2007 4. The revolutionary despises public opinion. He despises and hates the existing social morality in all its manifestations. For him, morality is everything which contributes to the triumph of the revolution. Immoral and criminal is everything that stands in its way. 5. The revolutionary is a dedicated man, merciless toward the State and toward the educated classes; and he can expect no mercy from them. Between him and them there exists, declared or concealed, a relentless and irreconcilable war to the death. He must accustom himself to torture. 6. Tyrannical toward himself, he must be tyrannical toward others. All the gentle and enervating sentiments of kinship, love, friendship, gratitude, and even honor, must be suppressed in him and give place to the cold and single-minded passion for revolution. For him, there exists only one pleasure, one consolation, one reward, one satisfaction – the success of the revolution. Night and day he must have but one thought, one aim – merciless destruction. Striving cold-bloodedly and indefatigably toward this end, he must be prepared to destroy himself and to destroy with his own hands everything that stands in the path of the revolution. 7. The nature of the true revolutionary excludes all sentimentality, romanticism, infatuation, and exaltation. All private hatred and revenge must also be excluded. Revolutionary passion, practiced at every moment of the day until it becomes a habit, is to be employed with cold calculation. At all times, and in all places, the revolutionary must obey not his personal impulses, but only those which serve the cause of the revolution. 82 verve O anarquista profissional 4. O revolucionário despreza a opinião pública. Ele despreza e odeia a moralidade social existente em todas as suas manifestações. Para ele, moralidade é tudo aquilo que contribui para o triunfo da revolução. Imoral e criminoso é tudo aquilo que se coloca em seu caminho. 5. O revolucionário é um homem dedicado, implacável contra o Estado e contra as classes educadas; não espera qualquer compaixão por parte deles. Há entre eles uma guerra mortal irreconciliável, declarada ou silenciosa. O revolucionário deve acostumar-se à tortura. 6. Tirânico consigo mesmo, ele deve também ser tirânico com os demais. Os sentimentos nobres e pacificadores de afinidade, amor, amizade, gratidão e até mesmo honra devem ser suprimidos, cedendo lugar à fria e obstinada paixão pela revolução. Para ele, existe apenas um prazer, um consolo, uma recompensa, uma satisfação — o sucesso da revolução. Dia e noite ele deve ter apenas um pensamento, um objetivo — a destruição implacável. Determinado de maneira incansável e a sangue-frio a alcançar esse objetivo, ele deve estar preparado para destruir a si mesmo e a destruir com suas próprias mãos tudo aquilo que se coloca no caminho da revolução. 7. A natureza do verdadeiro revolucionário exclui qualquer sentimentalidade, romantismo, paixão e exaltação. Todo ódio e vingança privados devem ser também excluídos. Paixão revolucionária, praticada a cada momento até que se torne um hábito, deve ser aplicada meticulosamente. Em todos os momentos, em todos os lugares, o revolucionário deve obedecer, não aos seus próprios impulsos, mas apenas aos que servem à causa da revolução. 83 11 2007 The relations of the revolutionary toward his comrades 8. The revolutionary can have no friendship or attachment, except for those who have proved by their actions that they, like him, are dedicated to revolution. The degree of friendship, devotion and obligation toward such a comrade is determined solely by the degree of his usefulness to the cause of total revolutionary destruction. 9. It is superfluous to speak of solidarity among revolutionaries. The whole strength of revolutionary work lies in this. Comrades who possess the same revolutionary passion and understanding should, as much as possible, deliberate all important matters together and come to unanimous conclusions. When the plan is finally decided upon, then the revolutionary must rely solely on himself. In carrying out acts of destruction, each one should act alone, never running to another for advice and assistance, except when these are necessary for the furtherance of the plan. 10. All revolutionaries should have under them second- or third-degree revolutionaries – i.e., comrades who are not completely initiated. these should be regarded as part of the common revolutionary capital placed at his disposal. This capital should, of course, be spent as economically as possible in order to derive from it the greatest possible profit. The real revolutionary should regard himself as capital consecrated to the triumph of the revolution; however, he may not personally and alone dispose of that capital without the unanimous consent of the fully initiated comrades. 11. When a comrade is in danger and the question arises whether he should be saved or not saved, the decision must not be arrived at on the basis of sentiment, but solely in the interests of the revolutionary cause. Therefore, it is necessary to weigh carefully the usefulness of the comrade against the expenditure of revolutionary forces necessary to save him, and the decision must be made accordingly. 84 verve O anarquista profissional As relações do revolucionário com seus companheiros 8. O revolucionário não pode ter amizade ou vínculos, a não ser com aqueles que provaram por suas ações ser dedicados à revolução. O grau de amizade, devoção e obrigação a um companheiro é determinado apenas pelo seu grau de utilidade à causa da destruição revolucionária total. 9. É supérfluo falar em solidariedade entre revolucionários. Toda a força do trabalho revolucionário está assentada nisso. Os companheiros que possuem a mesma paixão e entendimento revolucionários devem, o máximo possível, deliberar conjuntamente todas as questões importantes e chegar a conclusões unânimes. Quando o plano estiver definido, o revolucionário deve depender apenas de si mesmo. Ao realizar atos de destruição, cada um deve agir sozinho, nunca recorrendo a outros para conselho ou assistência, exceto quando necessários à consecução do plano. 10. Todos os revolucionários devem ter abaixo de si companheiros de segundo ou terceiro grau. Ou seja, companheiros que não são completamente iniciados, que devem ser considerados parte de um capital comum colocado à sua disposição. Esse capital deve, sem dúvida alguma, ser gasto de maneira econômica, para que se possa extrair dele o maior benefício possível. O real revolucionário deve se considerar como capital sacramentado para o triunfo da revolução. No entanto, ele não deve dispor por si só desse capital, sem o consentimento unânime dos companheiros já iniciados. 11. Quando um companheiro está em perigo e se coloca a questão sobre se ele deve ser salvo ou não, a decisão não deve ser tomada a partir de sentimentos, mas unicamente a partir dos interesses da causa revolucionária. Portanto, é necessário considerar cuidadosamente a sua utilidade diante do dispêndio de forças revolucionárias necessárias para salvá-lo, para, assim, tomar uma decisão. 85 11 2007 The relations of the revolutionary toward society 12. The new member, having given proof of his loyalty not by words but by deeds, can be received into the society only by the unanimous agreement of all the members. 13. The revolutionary enters the world of the State, of the privileged classes, of the so-called civilization, and he lives in this world only for the purpose of bringing about its speedy and total destruction. He is not a revolutionary if he has any sympathy for this world. He should not hesitate to destroy any position, any place, or any man in this world. He must hate everyone and everything in it with an equal hatred. All the worse for him if he has any relations with parents, friends, or lovers; he is no longer a revolutionary if he is swayed by these relationships. 14. Aiming at implacable revolution, the revolutionary may and frequently must live within society will pretending to be completely different from what he really is, for he must penetrate everywhere, into all the higher and middle-classes, into the houses of commerce, the churches, and the palaces of the aristocracy, and into the worlds of the bureaucracy and literature and the military, and also into the Third Division and the Winter Palace of the Czar. 15. This filthy social order can be split up into several categories. The first category comprises those who must be condemned to death without delay. Comrades should compile a list of those to be condemned according to the relative gravity of their crimes; and the executions should be carried out according to the prepared order. 86 verve O anarquista profissional As relações do revolucionário com a sociedade 12. O novo membro, tendo dado provas de sua lealdade, não por palavras, mas por ações, pode ser admitido à Confraria somente com a concordância unânime de todos os seus membros. 13. O revolucionário entra no mundo do Estado, das classes privilegiadas, da denominada civilização, e vive nesse mundo apenas para provocar sua rápida e total destruição. Ele não é um revolucionário se carrega qualquer simpatia por esse mundo. Ele não deve hesitar em destruir qualquer posição, qualquer lugar, ou qualquer homem nesse mundo. Ele deve odiar todos e tudo com o mesmo ódio. Pior para ele se tiver qualquer relação com pais, amigos ou amantes. Ele não é mais um revolucionário se for influenciado por essas relações. 14. Almejando a revolução implacável, o revolucionário pode, e frequentemente deve, viver no interior da sociedade, fingindo ser alguém diferente de quem ele realmente é. Ele deve se enfiar em todo canto, nas classes alta e média, no comércio, igrejas, aristocracia; deve adentrar no mundo da burocracia, literatura e exército, bem como na Terceira Divisão e no Palácio de Inverno do Czar. 15. A abjeta sociedade pode ser dividida em diversas categorias. A primeira compreende aqueles que devem ser condenados à morte imediatamente. Os companheiros devem compilar uma lista com os que devem ser condenados de acordo com a gravidade relativa de seus crimes. As execuções devem ser conduzidas de acordo com a ordem definida. 87 11 2007 16. When a list of those who are condemned is made, and the order of execution is prepared, no private sense of outrage should be considered, nor is it necessary to pay attention to the hatred provoked by these people among the comrades or the people. Hatred and the sense of outrage may even be useful insofar as they incite the masses to revolt. It is necessary to be guided only by the relative usefulness of these executions for the sake of revolution. Above all, those who are especially inimical to the revolutionary organization must be destroyed; their violent and sudden deaths will produce the utmost panic in the government, depriving it of its will to action by removing the cleverest and most energetic supporters. 17. The second group comprises those who will be spared for the time being in order that, by a series of monstrous acts, they may drive the people into inevitable revolt. 18. The third category consists of a great many brutes in high positions, distinguished neither by their cleverness nor their energy, while enjoying riches, influence, power, and high positions by virtue of their rank. These must be exploited in every possible way; they must be implicated and embroiled in our affairs, their dirty secrets must be ferreted out, and they must be transformed into slaves. Their power, influence, and connections, their wealth and their energy, will form an inexhaustible treasure and a precious help in all our undertakings. 19. The fourth category comprises ambitious officeholders and liberals of various shades of opinion. The revolutionary must pretend to collaborate with them, blindly following them, while at the same time, prying out their secrets until they are completely in his power. They must be so compromised that there is no way out for them, and then they can be used to create disorder in the State. 88 verve O anarquista profissional 16. Quando a lista dos condenados estiver feita, e a ordem de execução preparada, nenhum sentimento pessoal de indignação deve ser considerado, bem como não se deve dar atenção ao ódio provocado por essas pessoas entre os companheiros ou entre o povo. Ódio e indignação podem até ser úteis na medida em que incitam as massas à revolta. É necessário guiar-se apenas pela utilidade relativa dessas execuções para o propósito da revolução. Acima de tudo, aqueles que são especialmente inimigos da organização revolucionária devem ser destruídos; sua morte súbita e violenta irá produzir enorme terror3 no governo, destituindo-o de seu desejo de agir ao remover os mais inteligentes e energéticos apoiadores. 17. O segundo grupo é composto por aqueles que serão poupados por enquanto, para que, diante de uma série de atos monstruosos, possam conduzir o povo à inevitável revolta. 18. A terceira categoria é composta por um grande número de criaturas em altos postos, destacados não por sua inteligência nem por sua energia, mas que, no entanto, desfrutam de riqueza, influência, poder, e altos postos como conseqüência de sua posição hierárquica. Eles devem ser explorados de todas as maneiras possíveis; devem ser implicados e envolvidos em nossas ações; seus segredos imundos devem ser descobertos e eles devem ser transformados em escravos. Seu poder, influência e conexões, sua riqueza e sua energia, conformarão um tesouro inesgotável e uma ajuda preciosa a todas as nossas empreitadas. 19. A quarta categoria compreende executivos ambiciosos e liberais de diversa gama de opiniões. O revolucionário deve fingir colaborar com ele, seguindo-os cegamente, mas ao mesmo tempo extraindo seus segredos até que eles estejam completamente sob seu poder. Eles devem estar a tal ponto envolvidos de maneira que não haja saída para eles, e assim possam ser utilizados para desestabilizar o Estado. 89 11 2007 20. The fifth category consists of those doctrinaires, conspirators, and revolutionists who cut a great figure on paper or in their cliques. They must be constantly driven on to make compromising declarations: as a result, the majority of them will be destroyed, while a minority will become genuine revolutionaries. 21. The sixth category is especially important: women. They can be divided into three main groups. First, those frivolous, thoughtless, and vapid women, whom we shall use as we use the third and fourth category of men. Second, women who are ardent, capable, and devoted, but whom do not belong to us because they have not yet achieved a passionless and austere revolutionary understanding; these must be used like the men of the fifth category. Finally, there are the women who are completely on our side – i.e., those who are wholly dedicated and who have accepted our program in its entirety. We should regard these women as the most valuable or our treasures; without their help, we would never succeed. The attitude of the society toward the people 22. The Society has no aim other than the complete liberation and happiness of the masses – i.e., of the people who live by manual labor. Convinced that their emancipation and the achievement of this happiness can only come about as a result of an all-destroying popular revolt, the Society will use all its resources and energy toward increasing and intensifying the evils and miseries of the people until at last their patience is exhausted and they are driven to a general uprising. 90 verve O anarquista profissional 20. A quinta categoria é composta por doutrinários, conspiradores e revolucionários que possuem grande reputação no papel ou em seu grupo. Eles devem ser constantemente levados a fazer declarações comprometedoras e, conseqüentemente, a maioria deles será destruída, enquanto se formará uma minoria de revolucionários genuínos. 21. A sexta categoria é especialmente importante: as mulheres. Elas podem ser divididas em três grupos principais. Primeiro, as mulheres frívolas, ignorantes e insípidas, que devemos usar como usamos a terceira e quarta categorias de homens. Segundo, as mulheres ardentes, capazes e devotas, que não nos pertencem pois não adquiriram ainda um entendimento revolucionário frio e austero; elas devem ser usadas como os homens da quinta categoria. Finalmente, há as mulheres que estão completamente do nosso lado — ou seja, aquelas inteiramente dedicadas e que aceitaram o nosso programa em sua totalidade. Devemos considerar essas mulheres o nosso mais valioso tesouro; sem sua ajuda nós nunca venceríamos. A atitude da confraria4 em relação ao povo 22. A Confraria não tem objetivo algum senão a completa liberação e felicidade das massas — ou seja, das pessoas que vivem do trabalho manual. Convencidos de que sua emancipação e a conquista de sua felicidade podem apenas ser realizadas como resultado de uma destruidora revolta popular, a Confraria utilizará todos os seus recursos e energia para aumentar e intensificar as crueldades e sofrimentos do povo até que finalmente sua paciência tenha-se exaurido e eles sejam conduzidos a um levante geral. 91 11 2007 23. By a revolution, the Society does not mean an orderly revolt according to the classic western model – a revolt which always stops short of attacking the rights of property and the traditional social systems of so-called civilization and morality. Until now, such a revolution has always limited itself to the overthrow of one political form in order to replace it by another, thereby attempting to bring about a so-called revolutionary state. The only form of revolution beneficial to the people is one which destroys the entire State to the roots and exterminated all the state traditions, institutions, and classes in Russia. 24. With this end in view, the Society therefore refuses to impose any new organization from above. Any future organization will doubtless work its way through the movement and life of the people; but this is a matter for future generations to decide. Our task is terrible, total, universal, and merciless destruction. 25. Therefore, in drawing closer to the people, we must above all make common cause with those elements of the masses which, since the foundation of the state of Muscovy, have never ceased to protest, not only in words but in deeds, against everything directly or indirectly connected with the state: against the nobility, the bureaucracy, the clergy, the traders, and the parasitic kulaks. We must unite with the adventurous tribes of brigands, who are the only genuine revolutionaries in Russia. 26. To weld the people into one single unconquerable and all-destructive force – this is our aim, our conspiracy, and our task. 92 verve O anarquista profissional 23. A Confraria não entende por revolução uma revolta ordenada de acordo com o clássico modelo ocidental — uma revolta que sempre cessa antes de abalar os direitos à propriedade e os sistemas sociais tradicionais da denominada civilização e moralidade. Até agora, tal revolução sempre se limitou a derrubar uma forma política para substituir por outra, assim buscando constituir o denominado estado revolucionário. A única forma de revolução benéfica ao povo é aquela que destrói todo o Estado até suas raízes e extermina a tradição estatal, instituições e classes na Rússia. 24. Com essa finalidade em mente, a Confraria recusa impor qualquer nova organização pelo alto. Qualquer organização futura será constituída, sem dúvida, a partir do movimento e vida do povo; mas essa é uma questão para as gerações futuras decidirem. Nossa tarefa é a terrível, total, universal e implacável destruição. 25. Portanto, ao se aproximar do povo, devemos acima de tudo nos integrar aos elementos das massas que, desde a fundação do Estado moscovita, nunca cessaram em protestar, não apenas com palavras, mas com ações, contra tudo direta ou indiretamente conectado com o Estado: contra a nobreza, a burocracia, o clero, os comerciantes e os parasitas kulaks. Devemos nos unir às aventurosas tribos de assaltantes, que são os únicos legítimos revolucionários na Rússia. 26. Unir o povo em uma única força, inconquistável e destruidora, — esse é o nosso objetivo, nossa conspiração e nossa tarefa. Tradução do inglês por Andre Degenszajn e confrontada com a versão em francês por Beatriz Scigliano. 93 11 2007 Notas Texto original em inglês extraído de The Revolutionary Catechism, de Sergey Nechayev. Disponível em http://www.spunk.org/texts/places/russia/ sp000116.txt. Na edição francesa, o texto aparece com o título “Le catéchism du révolutionnaire” [O catecismo do revolucionário]. Optamos por manter a tradução a partir do inglês pois, se um revolucionário precisar de um catecismo é porque todo catecismo é revolucionário. 1 2 O niilismo russo vincula as ciências humanas às ciências mundanas por valorizar as ciências físicas. A esse respeito, consultar também os romances Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, e Os demônios, de Fiodor Dostoiévsk. 3 Optamos por acompanhar a versão em francês, que em lugar de “pânico” utiliza o termo “terror”. Em francês, o subtítulo é “Attitude de la confrérie envers le peuple”; optamos pelo termo “confraria”, nomeação vinculada a catecismo. 4 Indicado para publicação em 12 de agosto de 2003. . 94 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... a repressão ao anarquismo na rússia soviética1 anarquistas russos exilados na alemanha Os anarquistas russos surpreenderam-se ao constatar, em 1917, que os bolchevistas, seus adversários de sempre, voltaram a se reencontrar com eles para pregar palavras de ordem libertárias como “todo o poder aos sovietes” ou “a terra aos camponeses, a fábrica ao operário”. Daí a luta comum. O primeiro divórcio ocorreu em outubro, na criação do “governo soviético”. Quando anunciado no II Congresso dos Sovietes, em outubro de 1917, Efim Yartchouk, delegado anarquista de Kronstadt, exclamou: “Que governo? Nós não necessitamos de nenhum governo!”, e ainda, quando do anúncio do “soviete dos comissários do povo”: “Que soviete dos comissários? Que invenção é esta? Todo o poder deve ir aos comissários locais!...”.2 A continuação não fez senão aumentar essa divergência, que se transformou em um fosso quando houve o ataque das tropas tchekistas3 contra as comunas e os clubes anarquistas de Moscou, Petrogrado e outras cidades, em abril de 1918, depois de um verdadeiro abismo criado em severve, 11: 95-108, 2007 95 11 2007 qüência a numerosas repressões governamentais exercidas contra os libertários de todas as tendências. Enquanto isso, os dissimulados do novo poder dividiam muito o movimento anarquista russo. Certos anarquistas, e não os menores nem os menos experientes, colaboraram com as autoridades oficiais, chegando a se aliarem à tcheka: Alexandre Gay, que sempre foi seguro e inabalável em suas convicções, dirigiu a tcheka em uma cidade do Cáucaso; um certo Samsonov, anarquista emigrado aos Estados Unidos, antes de 1917, retornou para se ocupar mais tarde da “seção dos anarquistas” da tcheka, provavelmente em função de sua competência sobre o assunto. Esse fenômeno é traduzido quantitativamente pela presença, em 1922, de 633 ex-anarquistas no seio do partido comunista russo.4 Contudo, um bom número de libertários continuou conseqüente com suas convicções e foi objeto de contínuas perseguições do poder. Mostraremos dois exemplos significativos dessa repressão. I. S. Bleikhman, operário funileiro tornado anarquista quando emigrou, volta para a Rússia à época do czar. É preso e deportado para a Sibéria. Libertado pela Revolução de Fevereiro, torna-se muito popular entre os operários de Petrogrado e os marinheiros de Kronstadt. É eleito ao soviete de Petrogrado e sua atividade lhe vale a perseguição de Kérensky. Ele de fato desempenha, com Efim Yartchouk, um eminente papel nas jornadas insurrecionais de julho de 1917. Depois de outubro ele é constantemente perseguido pelos bolchevistas, que o prendem em 1918 e o deportam para um campo de concentração, forçando-o a trabalhos humilhantes e penosos na lama e com a água até a cintura. Uma vez que já havia adoecido na prisão czarista, sua saúde agora se arruína e morre em 1921. “Porque teríamos necessidade de dinheiro — dizia I. S. Bleikhman — toda Petrogrado está nas mãos dos 96 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... operários; todos os apartamentos, todas as lojas de roupas, todas as usinas e fábricas, as tecelagens, as lojas de comida, tudo está nas mãos das organizações sociais. A classe operária não necessita de dinheiro.”5 Essa era uma língua que o novo poder não podia nem entender, nem tolerar. O outro exemplo vem da feroz repressão submetida ao movimento makhnovista na Ucrânia, movimento insurrecional de camponeses pobres de tendência libertária, defendendo os sovietes livres e a livre organização das comunas autônomas. Em uma obra publicada há alguns anos na França com o título Memórias de um bolchevistaleninista,6 o autor relata: “Os bandos de Makhno se abasteciam impunemente de armas nas cidades e vilas da região de Ekaterinoslav. Era impossível descobrir os esconderijos desses bandidos e de seus chefes. Os camponeses ricos simpatizavam com eles e os escondiam; o restante da população estava aterrorizado e não ousava revelar que eles os escondiam em suas casas. Nosso comando e os soldados rasos estavam impacientes. Sob a iniciativa de nossos soldados, os órgãos locais da tcheka com os destacamentos da seção especial se lançaram ao trabalho. Um belo dia, eles detiveram e prenderam uma centena de reféns escolhidos entre a população abastada, comerciantes, kulaks,7 padres etc. Após o interrogatório, foram levados ao pátio da prisão, e se exigiu que eles revelassem quem eram os chefes do bando, escondidos em algum lugar: em suas casas, em suas granjas e em outros esconderijos. Os reféns foram avisados de que se se recusassem a colaborar, vinte e cinco deles seriam fuzilados ali mesmo, como responsáveis por assassinatos e pilhagens. 97 11 2007 Os reféns se calaram. Os vinte e cinco primeiros, por ordem alfabética, foram conduzidos a vinte passos e fuzilados diante dos outros. No segundo dia a mesma coisa se repetiu. Os reféns silenciaram outra vez e, de novo, vinte e cinco foram fuzilados perante os olhos daqueles que sobraram. No terceiro dia, a mesma cena. Quando, no quarto dia, os vinte e cinco reféns restantes foram levados ao pátio, disseram para eles que a coragem de seus amigos fuzilados certamente seria digna de louvor se tivessem permitido que pessoas boas e honestas pudessem escapar às perseguições, mas que eles escondiam os assassinos de soldados inocentes do exército vermelho, que vieram libertar o povo ucraniano dos proprietários fundiários czaristas e dos generais que espezinhavam os libertos do povo russo e ucraniano. Os reféns pediram um dia para pensar. No dia seguinte a essa discussão, os reféns tiveram medo e deram os nomes dos chefes do bando de Makhno e de seus esconderijos na região. Verificou-se que esses chefes eram agentes de Makhno infiltrados nos órgãos do poder soviético e na direção local do partido: particularmente o presidente do soviete da cidade, o secretário do comitê da cidade do partido, que tinha reunido em torno de si os inimigos do poder soviético.”8 Qualquer comentário se torna supérfluo. Assinalamos simplesmente que esse gênero de operação reproduziuse em uma escala muito maior, com o propósito de acossar e exterminar os que estavam aliados por três vezes ao exército vermelho para combater e vencer os brancos. Alexandre Skirda As perseguições aos anarquistas pelo poder soviético começaram de determinada forma na primavera de 1918. 98 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... As causas fundamentais e gerais dessas perseguições foram suficientemente esclarecidas acima, e nos deteremos, portanto, apenas brevemente em seu histórico. O crescimento rápido do sucesso do movimento anarquista irritava e assustava já havia algum tempo o partido comunista, que acabava de se instalar no poder. Não se sentindo suficientemente dono da situação e não tendo ainda conquistado completamente as massas, o novo poder não se decidia a passar para a ofensiva. Foi apenas após o tratado de Brest-Litovsk que sentiu o terreno firme e viu a possibilidade de agir com muitas chances de sucesso. Levando-se em consideração que a revolução corria um perigo mortal e que necessitava de uma pausa para poder criar um exército revolucionário, o poder comunista conseguiu aterrorizar as massas, apoderar-se da vontade delas e submetê-las a sua própria, quando firmou o tratado Brest-Litovsk, em despeito de seus desejos claramente expressos de não assinar a paz com o imperialismo alemão e continuar a resistência revolucionária, única capaz de fazer triunfar a revolução. O tratado Brest-Litovsk foi assim imposto ao povo trabalhador pelo poder comunista. Este pôde, dessa maneira, pela primeira vez, após uma longa e obstinada resistência dos operários e camponeses, submeter grandes massas laboriosas e constrangê-las à passividade. Isto foi apenas um primeiro passo, o mais difícil. Tendo tomado a iniciativa da ação e transgredido impunemente a vontade das massas, o poder pôde sufocar a revolução. Em seguida foi-lhe fácil continuar nesse caminho, aterrorizando e submetendo mais e mais as massas, aumentando sua pressão sobre elas, para logo reduzir a revolução aos limites de sua ditadura. 99 11 2007 Os anarquistas protestaram energicamente contra o tratado de Brest-Litovsk e a limitação das perspectivas revolucionárias, que desvirtuava o próprio sentido da revolução. O poder então resolveu desfechar um primeiro golpe decisivo aos anarquistas, aproveitando-se da passividade adquirida pelas massas e dispondo já de uma certa força militar organizada. Sob uma ordem vinda de cima, a imprensa comunista começou a dirigir dia após dia uma campanha recheada de acusações mentirosas e de calúnias contra os anarquistas. Um preparo sólido do terreno acontecia igualmente nas usinas, nas assembléias, nas unidades militares etc. As disposições das massas também eram testadas na mesma ocasião. Pôde-se prever que o poder poderia contar com suas tropas e que as massas permaneceriam mais ou menos passivas. Finalmente, na noite de 12 de abril de 1918, sob um pretexto absurdo e completamente inventado, as organizações anarquistas de Moscou foram atacadas, particularmente a Federação dos Grupos Anarquistas de Moscou. Esse ataque serviu de sinal aos posteriores proferidos contra as organizações anarquistas de toda a Rússia. Depois de ter preparado seu golpe e conduzido ele mesmo uma agitação infringida nos regimentos contra os “anarco-bandidos”, Trotsky pôde proferir com satisfação sua famosa declaração: “Enfim o poder soviético varre o anarquismo da Rússia com uma vassoura de ferro”. Entretanto, o poder ainda não tinha declarado ser a idéia de anarquismo fora da lei: as liberdades de palavra, de imprensa e de pensamento ainda não estavam definitivamente suprimidas. Ainda era possível existir por todo lado uma certa atividade libertária. Os movimentos de protesto dos operários e camponeses contra os procedimentos terroristas, esboçados em 100 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... 1918 e empregados contra eles pelo poder comunista, cresceram em 1919 e 1920. O poder, mais e mais cínico e despótico, respondeu com uma repressão obstinada e crescente, não parando frente a nada. Os anarquistas, naturalmente, estavam de corpo e alma do lado das massas traídas e oprimidas que lutavam contra seus novos mestres. Eles exigiam, com os operários e suas organizações profissionais, o direito destes conduzirem diretamente a produção. Com os camponeses exigiam o direito de autoadministração e de manterem relações diretas com os operários. Com uns e outros exigiram a restituição de tudo que os trabalhadores haviam conquistado pela revolução e que o poder comunista lhes roubara: a restauração de uma ordem soviética livre, o restabelecimento das liberdades civis para as correntes revolucionárias... Em uma palavra: exigiam a restituição das conquistas de Outubro ao próprio povo, por meio das organizações de operários e camponeses. Evidentemente, assim desvendavam a política criminosa do poder. Nisso residia a base da atividade revolucionária dos anarquistas e foi somente isso que serviu de fundamento para a declaração de uma guerra de morte ao anarquismo, e para declará-lo fora da lei. Após o primeiro grande ataque aos anarquistas na primavera de 1918, as perseguições sucederam-se em uma cadeia ininterrupta, em toda a Rússia, durante os anos seguintes, caracterizando-se cada vez mais como desenfreadas e sem pudor. Assim, ao final do mesmo ano de 1918, numerosas organizações anarquistas do interior foram outra vez atacadas. Das organizações que conseguiram se manter intactas, as autoridades tiraram toda possibilidade de ação. 101 11 2007 Em 1919, ao mesmo tempo em que as perseguições contra os anarquistas na Rússia continuavam a todo vapor, começaram as repressões sistemáticas aos anarquistas da Ucrânia. Cidade após cidade, vilarejo após vilarejo, seus grupos eram liquidados, seus militantes presos, os jornais proibidos e as conferências suprimidas. Durante o verão do mesmo ano, após a famosa ordem nº. 1824 de Trotsky, que declarou fora da lei o movimento makhnovista, anarquistas foram detidos e fuzilados ao mesmo tempo que os makhnovistas. E assim por diante... Convém notar que na maioria dos casos os ataques às organizações anarquistas eram acompanhados de atos de extrema selvageria por parte dos tchekistas e de soldados vermelhos iludidos, loucos de raiva e de ódio: agressões brutais a camaradas detidos, destruição da literatura apreendida, demolição dos locais etc. Fora essas repressões constantes e cotidianas, o poder comunista organizava de tempos em tempos ataques em grande escala aos anarquistas, semelhantes ao da primavera de 1918. Assim, no verão de 1920, aconteceu a destruição geral, na Ucrânia, das organizações anarquistas do Nabat.9 No final de novembro de 1920, o poder comunista, obrigado a concluir, um pouco antes, um tratado de aliança com Makhno e a parar com as perseguições antianarquistas, retomou com toda a força sua repressão, fazendo deter em Kharkov a todos os anarquistas que vinham para participar de um congresso legal, e simultaneamente prendendo todos os anarquistas da Ucrânia, organizando uma verdadeira perseguição em meio a emboscadas e buscas, detendo até mesmo adolescentes de quatorze a dezesseis anos e tomando como reféns pais, mulheres e filhos. Para justificar esse comportamento, o poder antecipou seu rompimento com Makhno e inventou um “fantástico complô anarquista” contra o poder soviético.10 102 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... Em março de 1921, durante as jornadas insurrecionais de Kronstadt, o poder procedia outra vez a detenções maciças de anarquistas (e de anarco-sindicalistas), e os acossou de novo por toda a Rússia. Todo movimento de massas — seja uma greve, uma manifestação de camponeses ou até um movimento de descontentamento entre soldados ou marinheiros — produzia um efeito imediato sobre a sorte dos anarquistas. Doravante, prendia-se qualquer um que cometesse o erro de partilhar idéias libertárias ou de ser parente ou conhecido de anarquistas. O simples fato de ter idéias anarquistas e de divulgá-las abertamente era com freqüência o suficiente para alguém ser preso. Em 1919 e 1921, as organizações de juventude libertárias foram desmanteladas. A operação de 1921 foi provocada pelo desejo de destruir na raiz a aspiração da juventude ao conhecimento dos fundamentos do ensino libertário. No inverno de 1921, as organizações de anarquistas universalistas de Moscou são atacadas. Na primavera de 1922, ocorrem novas detenções em massa de anarquistas em toda a Rússia. Nossa lista de repressões está longe de se completar. É possível afirmar, sem nenhum exagero, que durante esses últimos anos toda a Rússia revolucionária foi presa ou assassinada, e teve os anarquistas em primeiro lugar. Nessas condições, a partir de 1919, foi-lhes impossível desenvolver a menor atividade: suas reuniões, conferências e congressos não puderam ocorrer. Sua imprensa foi sufocada. Toda tomada de posição pública tornou-se mesmo impensável. De fato, o anarquismo, as idéias libertárias e a palavra livre foram declaradas fora da lei após 1919.11 103 11 2007 Uma tal infâmia não poderia produzir-se sem provocar vivos protestos pessoais da parte de algumas individualidades fortes. Perto do final de 1919, Casimir Kovalévitch, operário das oficinas das ferrovias de Moscou, anarquista muito popular em seu bairro, lançou uma bomba em uma assembléia de dirigentes comunistas, em Moscou, na travessa Léontiev, com a ajuda de alguns camaradas.12 Esse ato de protesto contra a ditadura bolchevista não provocou nenhuma tomada de consciência no partido dirigente. Bem ao contrário, ele começou a perseguir os anarquistas e todos os revolucionários em geral com mais obstinação ainda, recorrendo aos mais escandalosos meios de fraude e de inquisição. Se atualmente subsiste, na Rússia, uma atividade anarquista clandestina, e se essa atividade pode levar a atos de terror anti-governamental, convém entender que esses atos sempre aconteceram e inevitavelmente serão produzidos ali onde reinam o arbítrio e um monstruoso terror comandado do alto, ali onde todo pensamento é sufocado, toda palavra é proscrita e ali onde todo outro meio de luta é impossível. Os horrores cometidos na Rússia começam, enfim, a saltar aos olhos dos que chegam ao país e se tornam pouco a pouco conhecidos além de suas fronteiras. Isto porque o poder comunista recorre a toda sorte de meios a fim de criar uma justificativa aos seus crimes. Ele não pára diante dos meios mais infames como, por exemplo, as “ciladas”. Uma dessas ciladas tem como protagonistas Leon Tcherny e Fanya Baron.13 No verão de 1921, um grupo de delegados anarquistas estrangeiros, vindos para o Congresso da Internacional Sindical Vermelha, interpelou o governo soviético sobre os anarquistas russos presos na Taganka,14 que faziam greve de fome para exigir sua liberação assim como a de 104 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... todos os anarquistas presos. Como os delegados insistiam sobre a liberação destes anarquistas, Trotsky e outros representantes do poder lhes responderam: “São bandidos!” Mesmo se o poder foi obrigado a soltar finalmente esses anarquistas e de expulsá-los para o estrangeiro, montou todo um caso para justificar frente aos operários estrangeiros sua tática terrorista a respeito deles, um processo baseado em uma cilada da tcheka, sobre delitos de direito comum relativos à fabricação de dinheiro falso, e que terminou por fuzilar dois dos mais honestos camaradas: Leon Tcherny e Fanya Baron. Revelou-se que não somente os camaradas fuzilados eram inocentes desses delitos de direito comum, mas ainda que a idéia de imprimir dinheiro falso veio da tcheka de Moscou. Dois de seus agentes — Steiner (Kamenny) e um motorista tchekista — entraram em contato com os falsificadores e depois se infiltraram em um grupo anarquista, incitando-os a fazer dinheiro falso e a organizar expropriações. Tudo isso desenvolveu-se com a concordância da tcheka que, em seguida, graças a essa cilada, exigiu a vida dos libertários, manchando suas memórias.15 Tradução do francês por Dorothea Voegeli Passetti. Notas Traduzido do russo para o francês por Alexandre Skirda. Publicado em Berlim, em 1923. 1 2 S. N. Kanev. Oktiabrskaya revoliutsia I Krakh anarkhisma [A Revolução de Outubro e a derrocada do anarquismo]. Moscou, 1974, p. 103. Conforme Jacques Baynac, “em dois anos o câncer policial tomou conta da revolução. Apenas dois meses após o golpe de Estado bolchevista de 1917, foi promulgado o decreto — mantido secreto durante sete anos — que criou a Vetcheka (abreviação de Vserossiskaïa Tchesvytchainaia Komissia — Comissão Extraordinária Pan-russa). O mal progrediu tão rapidamente que, no se- 3 105 11 2007 gundo aniversário da tomada do poder, o Pravda diagnosticou que ‘todo o poder aos soviets’ transformou-se em ‘todo o poder aos tchekas’. Uma década mais tarde, a doença tomou conta de tudo. Em 16 de dezembro de 1927, mais uma vez no Pravda, o historiador Pokrovsky escreveu que a polícia secreta conserva a ‘essência da revolução proletária’, e que o terror é uma ‘conseqüência inevitável’.” Jacques Baynac (org. en collaboration avec Alexandre Skirda et Charles Urjewicz). La terreur sous Lénine. Paris, Le Sagittaire, 1975. (NT) 4 Idem, p. 383. O mesmo fenômeno vale para as outras organizações operárias e revolucionárias; bundistas mencheviques, socialistas-revolucionários de esquerda e outros. (Os bundistas formaram movimentos revolucionários judeus, criados no final do século XIX na Europa Oriental. NT) 5 Ibidem, pp. 261-262. 6 Paris, 1970. Kulak é um termo soviético, identificando uma classe social de proprietários rurais russos e ucranianos, donos de fazendas que usavam trabalho assalariado em suas terras. Posteriormente, durante a coletivização stalinista de 1928 a 1932, os kulaks foram desapropriados em benefício dos kolkozes (cooperativas agrícolas), levando a deportações, prisões e à morte de 5 milhões de camponeses. (NT) 7 8 Op. cit., pp. 38-39. 9 Nabat foi um grupo anarquista ucraniano ligado aos makhnovistas, que também mantinha uma publicação com o mesmo nome. (NT) Necessitando da cooperação do exército insurrecional revolucionário dos makhnovitas para lutar contra Wrangel, o poder bolchevista firmou um acordo com Makhno no início de outubro de 1920, acordo no qual uma cláusula estipulava que os anarquistas teriam liberdade e o direito de manter uma atividade militante livre. Após a vitória contra Wrangel, o poder comunista atacou Makhno traiçoeiramente e ao mesmo tempo voltou-se, mais uma vez, contra o movimento anarquista da Ucrânia. Assinalamos a seguinte circunstância característica: alguns dias antes dessa nova repressão, uma vez que a escapatória de Wrangel parecia ser certa, a estação central da rádio de Moscou telegrafou a todas as estações de província a ordem governamental de desligar seus aparelhos, salvo para as estações centrais de Kharkov e da Criméia, que deveriam receber um telegrama secreto urgente. Um simpatizante anarquista, empregado em uma estação de província, não executou a ordem de desligamento. Interceptou o seguinte telegrama: “Estabelecer os efetivos dos anarquistas na Ucrânia, em particular na região makhnovista. Lênin.” Alguns dias depois, quase na véspera da repressão, chegou um segundo telegrama nas mesmas condições: “Exercer uma vigilância reforçada sobre todos os anarquistas e preparar os documentos, se possível de caráter de direito comum, utilizáveis para acusar. Manter os documentos e as ordens em segredo. Divulgar por toda parte 10 106 verve A repressão ao anarquismo na Rússia... as instruções necessárias.” Algumas horas mais tarde seguiu o terceiro e último telegrama, desta vez lacônico. “Deter todos os anarquistas e acusá-los.” Todos os telegramas eram endereçados ao presidente do soviete dos comissários do povo da Ucrânia, Rakovsky, assim como ao nome de outros representantes civis e militares do poder da Ucrânia. Após o terceiro telegrama, um dos camaradas, tendo conhecimento dos fatos, partiu a Krakhov para avisar os anarquistas locais sobre a ação que se preparava. Mas chegou tarde demais: a ação já havia ocorrido. Esse foi o chamado “complô” dos anarquistas ucranianos contra o poder soviético. O Barão Piotr Nikolayevich Wrangel foi o último general a comandar o Exército Branco contra as forças comunistas. Após o armistício da Rússia com a Polônia, em outubro de 1920, os soviéticos conseguiram juntar mais forças, fazendo com que ele recuasse para a Criméia e, em novembro, se retirasse com suas tropas para Constantinopla, dando fim à Guerra Civil Russa (NT). 11 Não podemos, nesta obra, ocuparmo-nos do exame de todas as razões que permitiram ao poder comunista destruir com certa facilidade (com exceção da Ucrânia) um movimento anarquista russo bastante forte. Isso nos distanciaria muito de nosso propósito. Limitamo-nos, pois, a dar aqui um breve esclarecimento do momento decisivo da paz de Brest-Litovsk e de suas conseqüências. A questão como um todo representa um tema particular, ao qual pretendemos consagrar um estudo específico. 12 Pode-se encontrar detalhes deste acontecimento assim como a identidade de seus participantes no famoso Livro vermelho da Tcheka, rapidamente retirado de circulação pelo próprio poder, pois, entre outros motivos, segundo as palavras do próprio Lênin, “Fala-se demasiadas verdades a propósito destes anarquistas”. 13 Sobre Fanya Baron ver adiante o artigo de Emma Goldman (NE). Taganka, é uma prisão localizada em um bairro com o mesmo nome, no centro de Moscou (NT). 14 15 Segue uma lista de 182 nomes de anarquistas vítimas da tcheka. (NE da tradução francesa de 1975). 107 11 2007 RESUMO A perseguição aos anarquistas russos e ucranianos, pelo governo comunista, após 1917, enuncia os efeitos da revolução que, lutando contra uma ordem, a redimensionava como governo sobre todos. Os anarquistas silenciados na Rússia, pelas perseguições, conspirações e ciladas, ou traídos na Ucrânia, afirmam, na época dos acontecimentos, uma vontade libertária que não se cala diante do autoritarismo, mesmo que revolucionário. Palavras-chave: Rússia, anarquismo, makhnovismo. ABSTRACT The persecution of Russian and Ukrainian anarchists by the communist government, after 1917, announces the effects of a revolution that, while fighting one sort of order, established itself as a government over all. The silenced anarchists in Russia (by persecutions, conspiracies and traps), or the ones betrayed in Ukraine, supported, in the very moment of the events, a libertarian will that does not cease when facing authoritarianism, even when revolutionary. Keywords: Russia, anarchism, makhnovism. Indicado para publicação em 12 de junho de 2006. 108 verve Minha outra desilusão na Rússia minha outra desilusão na rússia emma goldman* A perseguição aos anarquistas Em um país possuído e completamente controlado pelo Estado, como na Rússia, é quase impossível se viver sem a “misericórdia” do governo. No entanto, eu estava determinada a tentar. Não aceitaria nada, nem mesmo rações de pão, das mãos tingidas com o sangue dos bravos marinheiros do Kronstadt. Felizmente, eu tinha algumas roupas que um amigo americano me dera; elas poderiam ser trocadas por mantimentos. Eu também havia recebido algum dinheiro de minha própria gente nos Estados Unidos. Isso me permitiria viver por algum tempo. Em Moscou consegui um pequeno quarto, anteriormente ocupado pela filha de Piotr Kropotkin. A partir *Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidos com a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se uma militante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman o que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o uso de contraceptivos. verve, 11: 109-122, 2007 109 11 2007 daquele dia eu vivi como milhares de outros russos, carregando água, cortando madeira, lavando e cozinhando, tudo no meu pequeno quarto. Mas eu me sentia mais livre e melhor por isso. A nova política econômica transformou Moscou em um vasto mercado. O comércio se tornou a nova religião. Lojas e armazéns brotavam da noite para o dia, misteriosamente a Rússia estava amontoada de guloseimas que não tinha visto há anos. Grandes quantidades de manteigas, queijo, e carne foram colocadas à venda; confeitos, frutas raras, e doces de toda variedade estavam à venda. No edifício Politburo uma das maiores confeitarias foi aberta. Homens, mulheres, e crianças com faces contraídas e olhos famintos paravam, olhando fixamente pelas janelas e discutindo o grande milagre: o que ontem era considerado uma odiosa ofensa, estava agora ostentado na frente deles de uma maneira aberta e legal. Eu ouvi por acaso um soldado Vermelho dizer: “É para isso que fizemos a revolução? Para isso que nossos companheiros tiveram que morrer?” O slogan, “Roube os ladrões”, havia se transformado agora em “Respeite os ladrões”, e mais uma vez foi proclamada a santidade da propriedade privada. A Rússia estava assim gradualmente ressuscitando as condições sociais que a grande revolução viera para destruir. Mas o retorno ao capitalismo de maneira alguma mudou a atitude dos bolchevistas em relação aos elementos de esquerda. Idéias e práticas burguesas deveriam ser encorajadas para desenvolver a vida industrial da Rússia, mas as tendências revolucionárias estavam sendo suprimidas como antes. Relacionado ao Kronstadt, um ataque geral aos anarquistas ocorreu em Petrogrado e Moscou. As prisões se abarrotaram dessas vítimas. Quase todo anarquista conhecido tinha sido preso; e as livrarias anarquistas e 110 verve Minha outra desilusão na Rússia as gráficas do Golos Truda foram fechadas pela tcheka em ambas as cidades. Os anarquistas ucranianos, presos na véspera da conferência de Kharkov (apesar da imunidade garantida pelo bolchevista sob o acordo de Makhno), foram trazidos para Moscou e colocados na Butyrki; a masmorra de Romanov estava novamente servindo aos velhos propósitos, até mesmo confinando alguns dos revolucionários que ali haviam sido encarcerados anteriormente. Logo se soube que os políticos na Butyrki foram brutalmente atacados pela tcheka e secretamente deportados para lugares desconhecidos. Moscou estava muito agitada por essa ressurreição dos piores métodos de encarceramento do czarismo. Uma interpelação sobre o ocorrido foi feita no Soviete Supremo, a indignação dos deputados foi tão grande que os representantes da tcheka foram expulsos das tribunas aos gritos. Diversos grupos anarquistas de Moscou enviaram um vigoroso protesto às autoridades, cujo documento eu cito em parte: “As organizações anarco-sindicalistas abaixo assinadas, após terem cuidadosamente considerado a situação que se desenvolveu recentemente conectada à perseguição aos anarquistas em Moscou, Petrogrado, Kharkov e outras cidades da Rússia e Ucrânia, incluindo a supressão à força de organizações, clubes, publicações anarquistas etc, por meio desta manifesta seu protesto decisivo e enérgico contra esse despótico esmagamento, não apenas de todas as atividades de agitação e propagandistas, mas inclusive de todo o trabalho puramente cultural das organizações anarquistas.” A sistemática caçada aos anarquistas em geral, e aos anarco-sindicalistas em particular, com o resultado de que cada prisão e cadeia na Rússia soviética está lotada de companheiros, coincidiu totalmente em tempo e espírito com o discurso de Lênin no Décimo Congresso 111 11 2007 do Partido Comunista Russo. Naquela ocasião, Lênin anunciou que a mais impiedosa guerra deveria ser declarada contra o que ele denominou “elementos anarquistas pequeno-burgueses” os quais, de acordo com ele, estariam crescendo até mesmo dentro do próprio partido comunista em razão das “tendências anarco-sindicalistas de oposição trabalhista”. No mesmo dia em que Lênin fez as declarações acima citadas, diversos anarquistas foram presos por todo o país, sem o menor motivo ou explicação. Nenhuma acusação foi proferida contra nenhum dos companheiros aprisionados, apesar de terem alguns deles já sido condenados a longas sentenças sem ser escutados ou julgados, à revelia. As condições dessas prisões são excepcionalmente vis e brutais. Assim, um dos presos, o companheiro Maximov, após vários protestos em vão contra as condições inacreditavelmente anti-higiênicas nas quais ele estava forçado a viver, foi levado ao único meio de protesto que lhe restava — a greve de fome. Outro companheiro, Yarchuk, libertado após uma detenção de seis dias, foi logo preso novamente sem que quaisquer acusações tivessem sido proferidas contra ele em ambas as ocasiões. De acordo com uma informação confiável recebida por nós, alguns dos presos anarquistas estão sendo enviados às prisões de Samara, longe de casa e dos amigos, privados portanto de qualquer assistência solidária mínima que poderiam receber se estivessem mais perto de casa. Diversos outros companheiros foram forçados pelas terríveis condições de seus confinamentos a declarar greve de fome. Um deles, após jejuar por 12 dias, ficou gravemente doente. Até mesmo violência física é praticada sobre os nossos companheiros presos. A declaração dos anarquistas da prisão de Butyrki em Moscou, de 16 maio, assinada por trinta e oito companheiros e enviada ao Comitê 112 verve Minha outra desilusão na Rússia Executivo da Comissão Extraordinária de Todas as Rússias, contém, entre outras coisas, a seguinte declaração: “Em 15 de março, o companheiro T. Kashirin foi brutalmente atacado e espancado na prisão do Departamento Especial da Comissão Extraordinária pelo vosso agente Mago e assistentes, na presença de Dookiss, carcereiro da prisão.” Além das prisões indiscriminadas e da violência física contra nossos companheiros, o governo está promovendo uma guerra sistemática contra o nosso trabalho educacional. Fechou muitos de nossos clubes, bem como o escritório de Moscou da editora da organização anarco-sindicalista Golos Truda. Uma caçada humana similar ocorreu em Petrogrado em 15 de março. Numerosos anarquistas foram presos sem motivo, a gráfica da Golos Truda foi fechada e seus trabalhadores presos. Nenhuma acusação foi proferida contra os companheiros presos que, ainda se encontram todos na prisão. As insuportáveis táticas despóticas do governo em relação aos anarquistas são inquestionavelmente resultados da política geral do Estado bolchevista no controle exclusivo do partido comunista em relação aos anarquismos, ao sindicalismo e a seus defensores. Esse estado de coisa está nos forçando a elevar nossas vozes em alto protesto contra o terror imposto e a supressão brutal do movimento anarquista pelo governo bolchevista. Aqui na Rússia nossa voz é fraca. É sufocada. A política do regime do Partido Comunista está designada a destruir absolutamente qualquer possibilidade ou esforço de atividade ou propaganda anarquista. Os anarquistas russos são assim forçados a condições de completa greve de fome moral, pois o governo está nos privando da possibilidade de efetivar mesmo aqueles planos e projetos que ele próprio prometeu auxiliar apenas recentemente. 113 11 2007 Compreendendo mais do que nunca a verdade do nosso ideal anarquista e a necessidade imperativa de sua aplicação à vida, nós estamos convencidos que o proletariado revolucionário de todo o mundo está conosco. Após a Revolução de Fevereiro, os anarquistas russos retornaram à Rússia vindos de vários recantos, para se dedicarem à atividade revolucionária. O bolchevista havia adotado o slogan anarquista, “as fábricas para os trabalhadores e a terra para os camponeses”, e por isso ganharam a simpatia dos anarquistas. Estes viram nos bolchevistas os porta vozes da emancipação social e econômica, e juntaram suas forças a eles. Durante o período de outubro, os anarquistas trabalharam de mãos dadas com os comunistas e lutaram com eles lado a lado em defesa da revolução. Então veio o tratado de Brest Litovsk, que muitos anarquistas consideraram uma traição à revolução. Esse foi o primeiro sinal de que as coisas não estavam bem com os bolchevistas. Mas a Rússia ainda estava exposta à intervenção externa e os anarquistas perceberam que deveriam continuar juntos para lutar contra o inimigo comum. Em abril de 1918, veio outro golpe. Por ordem de Trotsky, os quartéis generais anarquistas em Moscou foram atacados pela artilharia, alguns anarquistas ficaram feridos, um grande número foi preso e todas as atividades anarquistas foram “liquidadas”. Esta afronta completamente inesperada serviu para afastar ainda mais os anarquistas do Partido dominante. Ainda assim, a maioria deles continuou com o bolchevista: eles acharam que, apesar da perseguição interna, virar-se contra o regime existente seria trabalhar em prol das forças contra-revolucionárias. Os anarquistas participaram em todo esforço social, educacional e econômico; trabalharam até em departamentos militares para ajudar a Rússia. Nas guardas vermelhas, nos regimentos 114 verve Minha outra desilusão na Rússia voluntários e, mais tarde, no Exército Vermelho; como organizadores e administradores de fábricas e estabelecimentos; como chefe de repartições de combustível; como professores — em toda parte os anarquistas tiveram posições difíceis e de responsabilidade. De suas fileiras vieram alguns dos homens mais capazes que trabalharam nas relações externas com Tchicherin e Kharakan, nos vários departamentos de imprensa, como representantes diplomáticos bolchevistas no Turkestão, Bokhara e na República do Extremo Oriente.1 Os anarquistas trabalharam com e para o bolchevismo por toda a Rússia crentes que estavam avançando na causa da revolução. Mas a devoção e o zelo dos anarquistas de modo algum deteve os comunistas da inflexível perseguição ao movimento anarquista. A peculiar situação geral e a confusão de idéias criadas dentro dos círculos revolucionários pelo experimento bolchevista dividiram as forças anarquistas da Rússia em várias facções, destarte, enfraquecendo o seu efeito sobre o curso da revolução. Havia muitos grupos, cada um se esforçando separadamente e em vão contra a formidável máquina que eles mesmos ajudaram a criar. No denso nevoeiro político, muitos perderam o senso de direção: não conseguiam distinguir entre o bolchevismo e a revolução. Em desespero alguns anarquistas foram empurrados para atividades clandestinas, assim como haviam feito durante o regime dos czares. Mas tal trabalho era mais difícil e perigoso sob os novos mandantes, e isso também abriu a porta para maquinações sinistras de provocadores. As organizações anarquistas mais maduras, como a Nabat, na Ucrânia, Golos Truda em Petrogrado e Moscou, e o grupo Voylni Trud — as duas últimas de tendência anarco-sindicalista, continuaram seus trabalhos abertamente da melhor maneira que puderam. 115 11 2007 Infelizmente, como era inevitável sob tais circunstâncias, alguns espíritos malignos se infiltraram nas linhas anarquistas — restos desterrados pela maré revolucionária. Eles eram tipos para quem a revolução significava apenas destruição, ocasionalmente até para vantagens pessoais. Eles engajaram-se em propósitos sombrios e, quando presos e com suas vidas ameaçadas, freqüentemente se tornavam traidores e se aliavam à tcheka. Particularmente em Kharkov e Odessa grassavam essas ervas daninhas. Os anarquistas em sua maioria eram os primeiros a se opor a esse elemento. O bolchevista, sempre ansioso em assegurar os serviços de anarquistas traidores, sistematicamente pervertia os fatos. Ele difamava, perseguia e caçava o movimento anarquista enquanto tal. Foi essa traição e despotismo comunista que resultou no lançamento de uma bomba no interior da Secção do Partido Comunista de Moscou, em setembro de 1919. Foi um ato de protesto com a colaboração de membros de várias tendências políticas. As organizações anarquistas Golos Truda e Voylni Trud de Moscou publicamente expressaram sua condenação a tais métodos, mas o governo revidou com represália a todos os anarquistas. Ainda assim, a despeito de suas experiências amargas e martirizantes sob o regime bolchevista, a maior parte dos anarquistas se apegava tenazmente à mão que os agredia. Foi necessário o ultraje contra Kronstadt para acordálos do feitiço hipnótico da superstição bolchevista. O poder corrompe, e os anarquistas não são exceção. Na verdade deve ser admitido que um certo elemento anarquista desmoralizou-se por causa dele; evidentemente a grande maioria manteve sua integridade. Nem a perseguição bolchevista, nem a freqüente tentativa de suborno de uma boa posição com todos seus privilégios especiais, conseguiram alienar a grande massa de anarquistas de seus ideais. Como resultado, eles eram constantemente atormentados e encarcerados. A sua existência nas pri116 verve Minha outra desilusão na Rússia sões era uma tortura contínua: na maior parte delas ainda vigorava o velho regime e apenas a luta coletiva dos presos políticos ocasionalmente conseguia forçar reformas e melhorias. Desse modo, foram necessários repetidos “distúrbios” e greves de fome na Butyrki antes das autoridades serem forçadas a fazer alguma concessão. Os políticos conseguiram estabelecer uma espécie de universidade, organizavam palestras e recebiam visitas e suprimentos. No entanto a tcheka olhou com desagrado tais “liberdades”. Subitamente, sem aviso prévio, pôs-se um fim ao tratamento decente; a Butyrki foi invadida e os prisioneiros, em número superior a 400 e pertencentes a várias alas revolucionárias, foram retirados à força de suas celas e transferidos para outras instituições penais. Uma mensagem recebida naquele tempo de uma das vítimas, datada de 27 de abril, dizia: “Campo de concentração, Ryazan. Na noite de 25 de abril, fomos atacados pelos soldados vermelhos e tchequistas armados, fomos ordenados a nos vestir e a ficarmos prontos para deixar Butyrki. Alguns dos políticos, temendo serem levados para uma execução, se recusaram a ir e foram terrivelmente espancados. Especialmente as mulheres foram maltratadas, algumas delas foram arrastadas pelos cabelos escada abaixo. Muitas sofreram sérios ferimentos. Eu mesma fui tão espancada que o meu corpo todo parecia uma grande ferida. Fomos levados à força em nossas roupas de dormir e jogados em vagões. Os companheiros do nosso grupo não sabiam nada sobre o paradeiro do resto dos políticos, incluindo menchevistas, revolucionários sociais, anarquistas, e anarco-sindicalistas. Dez de nós, entre eles Fanya Baron, foram trazidos para cá. As condições nessa prisão são insuportáveis. Nenhum exercício, ar fresco; a comida é escassa e estragada; todos os lugares terrivelmente sujos, percevejos e piolhos. Nós 117 11 2007 pretendemos declarar greve de fome por melhor tratamento. Disseram-nos para ficarmos prontos com as nossas coisas. Eles vão nos levar embora de novo. Não sabemos para aonde. [Assinado] T.” Tão logo as circunstâncias do ataque de Butyrki ficaram conhecidas, os estudantes da Universidade de Moscou formaram uma reunião de protesto e transmitiram resoluções denunciando o ultraje. Por causa disso os líderes estudantis foram presos e a universidade fechada. Os estudantes não residentes foram obrigados a deixar Moscou em três dias sob o pretexto de falta de ração. Os estudantes voluntariamente abriram mão de seu payok2, mas o governo insistiu que eles deixassem a capital. Mais tarde, quando a universidade foi reaberta, Preobrazhensky, o Reitor, advertiu os estudantes a refrear qualquer expressão política sob a pena de serem expulsos da universidade. Alguns dos estudantes presos foram exilados, entre eles muitos jovens, pelo único crime de serem membros de um círculo cujo objetivo era estudar os trabalhos de Kropotkin e outros autores anarquistas. Os métodos do czar foram ressuscitados pelos seus herdeiros ao trono na Rússia bolchevista. Após a morte de Piotr Kropotkin, seus amigos e companheiros decidiram fundar o museu Kropotkin em comemoração ao grande professor anarquista e em apoio a suas idéias e ideais. Eu voltei a Moscou para ajudar na organização do memorial proposto, mas em pouco tempo o comitê do museu havia concluído que, por hora, o projeto não poderia ser realizado. Estando tudo sob o monopólio do Estado, nada poderia ser feito sem solicitação às autoridades. Aceitar o auxílio do governo seria uma traição deliberada ao espírito de Kropotkin, que por toda sua vida consistentemente recusou a assistência do Estado. Uma vez, quando Kropotkin estava doente e necessitado, 118 verve Minha outra desilusão na Rússia o governo bolchevista ofereceu-lhe uma grande soma pelo direito de publicar seus trabalhos. Kropotkin recusou. Ele foi compelido a aceitar rações e assistência médica quando doente, mas jamais aprovaria a publicação de seus trabalhos pelo Estado, nem aceitaria qualquer outro auxílio deste. O Comitê do Museu Kropotkin tomou a mesma atitude. Aceitou do Soviet de Moscou a casa onde Kropotkin nasceu, que deveria ser transformada no Museu Kropotkin, mas não pediria nada mais ao governo. A casa naquela época estava ocupada por uma organização militar; levaria meses para esvaziá-la e então nenhum recurso estaria disponível para reformá-la. Alguns dos membros do Comitê acharam que não havia lugar para o museu Kropotkin na Rússia bolchevista, na medida em que o despotismo estava desenfreado e as prisões cheias de dissidentes políticos. Enquanto eu fazia uma breve visita a Petrogrado, o apartamento de Moscou no qual eu tinha um quarto fora invadido pela tcheka. Eu soube que a armadilha costumeira foi armada e todos que visitaram o local durante a zassada3 foram presos. Eu visitei Ravitch para protestar contra tal procedimento dizendo que se o objetivo era me colocar sob custódia eu estaria preparada para isso. Ravitch não tinha ouvido falar nada sobre o assunto, mas prometeu entrar em contato com Moscou. Poucos dias depois, fui informada que os tchekistas foram retirados do apartamento e que meus amigos presos estavam para serem libertados. Quando retornei ao meu quarto algum tempo depois, muitos deles haviam sido soltos. Ao mesmo tempo, um número considerável de anarquistas foi preso em várias partes da capital e não se conseguia saber nenhuma notícia sobre o seu destino ou a causa das prisões. Várias semanas depois, em 30 de agosto, o Moscou Izvestia publicou o relatório oficial do Veh-Tcheka sobre o “banditismo anarquista”, anunciando que dez anarquistas foram fuzilados como “bandidos” sem serem ouvidos ou julgados. 119 11 2007 Tornou-se a política estabelecida pelo governo bolchevista mascarar seu bárbaro procedimento contra os anarquistas com a invariável acusação de banditismo. Essa acusação foi feita praticamente contra todos os anarquistas encarcerados e muitas vezes até mesmo contra simpatizantes do movimento. Um método bastante conveniente para se livrar de uma pessoa indesejável: graças a ele, qualquer um poderia ser secretamente executado e enterrado. Entre as dez vítimas estavam dois dos anarquistas russos mais conhecidos, cujo idealismo e a devoção vitalícia à causa da humanidade haviam resistido ao teste dos encarceramentos e exílio czaristas, e da perseguição e sofrimento em outros países. Eram Fanya Baron, que havia escapado da prisão de Ryazan alguns meses antes, e Lev Tcherny que havia passado muitos anos de sua vida em katorga4 e exilado sob o antigo regime. O bolchevismo não teve coragem de dizer que fuzilara Lev Tcherny; na lista dos executados ele aparecia como “Turchaninoff,” que — embora fosse seu verdadeiro nome — não era familiar até mesmos aos amigos mais próximos. Tcherny era conhecido por toda a Rússia como um talentoso poeta e escritor. Em 1907, publicou um trabalho original sobre “Anarquismo associativo”, e desde que retornou da Sibéria, em 1917, gozou de ampla popularidade entre os trabalhadores de Moscou como um conferencista e fundador da “Federação de Trabalhadores Cerebrais”. Ele foi um homem de grandes talentos, sensível e compassível em todos os seus relacionamentos. Ninguém poderia estar mais distante do banditismo. A mãe de Tcherny havia aparecido várias vezes no Ossoby Otdel (Departamento Especial da tcheka) para saber sobre o destino de seu filho. A cada visita lhe diziam para retornar no dia seguinte, quando então ela teria permissão para vê-lo. Como foi comprovado posteriormente, 120 verve Minha outra desilusão na Rússia Tcherny já havia sido fuzilado quando essas promessas foram feitas. Após sua morte, as autoridades se recusaram a entregar o corpo para que parentes ou amigos o enterrassem. Havia rumores persistentes que a tcheka não pretendia executar Tcherny, mas que ele tinha morrido sob tortura. Fanya Baron era o tipo da mulher russa completamente dedicada à causa da humanidade. Quando esteve na América, ela ofereceu todo o seu tempo livre e boa parte de seus magros ganhos em uma fábrica para implementar a propaganda anarquista. Anos depois, quando eu a encontrei em Kharkov, seu zelo e dedicação haviam se intensificado devido à perseguição que ela e seus companheiros enfrentaram desde o retorno à Rússia. Ela possuía uma coragem irrestrita e um espírito generoso. Poderia executar a tarefa mais difícil e se privar do último pedaço de pão com graça e absoluta abnegação. Sob angustiantes condições de viagem, Fanya atravessou a Ucrânia para difundir o Nabat, organizar trabalhadores e camponeses, ou levar ajuda e socorro aos seus companheiros aprisionados. Ela foi uma das vítimas do ataque a Butyrki, quando foi puxada pelos cabelos e severamente espancada. Depois de sua fuga da prisão de Ryazan, ela andou a pé até Moscou, aonde chegou em trapos e sem um centavo. Foi a sua condição desesperadora que a levou a procurar abrigo junto a seu cunhado, em cuja casa ela foi descoberta pela tcheka. Essa mulher de grande coração, que serviu à revolução social por toda a vida, foi morta pelo povo que simulou ser a guarda avançada da revolução. Não contente com o crime de matar Fanya Baron, o governo soviético colocou o estigma de banditismo na memória de suas vítimas mortas. Tradução do inglês por Anamaria Salles 121 11 2007 Notas 1 Sibéria Oriental, na época um território independente. (N.E.) 2 Ração alimentar (N.E.) Bloqueio de residência. A polícia se escondia na casa de algum suspeito e prendia todos que ali aparecessem (N.E.) 3 4 Campo de trabalho forçado em áreas remotas, especialmente na Sibéria. (N.E.) RESUMO Relato de Emma Goldman acerca da violenta repressão aos anarquistas russos pela polícia do governo bolchevista na Revolução Russa. Palavras-chave: anarquismo, revolução russa, repressão policial. ABSTRACT Emma Goldman’s report on the violent repression of Russian anarchists by the police of the bolchevists in Russian Revolution. Keywords: anarchism, Russian revolution, policial repression. Indicado para publicação em 22 de maio de 2006. 122 verve Pequeno manual anarquista individualista pequeno manual anarquista individualista1 émile armand* I Ser anarquista é negar a autoridade e rejeitar seu corolário econômico: a exploração. E isso em todos os domínios em que a atividade humana se exerça. O anarquista quer viver sem deuses nem mestres; sem patrões nem diretores; ilegal, sem leis nem preconceitos; amoral, sem obrigações e sem moral coletiva. Ele quer viver livremente, viver sua concepção pessoal da vida. Em seu foro íntimo, ele é sempre um anti-social, um refratário, alguém de fora, um a margem, um inadaptado. E ainda que seja obrigado a viver numa sociedade cuja constituição é re- *Pseudônimo do individualista anarquista francês Ernest Lucien Juin. Nasceu em 26 de março de 1872, editou diversos periódicos, entre os quais: L’ère nouvelle (1901-1911), Hors du troupeau (1911), Par-delà la mêlée (1916), L’en Dehors (1922), e L’unique (1945). Morreu em 19 de fevereiro de 1963 aos 90 anos de idade. verve, 11: 123-130, 2007 123 11 2007 pugnante a seu temperamento, é como estrangeiro que nela acampa. Quando consente ao meio as concessões indispensáveis — sempre tendo como segunda intenção retomá-las — para não arriscar ou sacrificar de maneira idiota ou inútil sua vida, é por considerá-las armas de defesa pessoal na luta pela existência. O anarquista quer viver sua vida, moral, intelectual, economicamente, preocupando-se o menos possível com o resto do mundo, exploradores ou explorados; sem querer dominar nem explorar o outro, mas pronto a reagir com todos os seus meios contra quem vier intervir em sua vida ou proibí-lo de expressar seu pensamento pela pluma ou fala. O anarquista tem por inimigo o Estado e todas suas instituições que tendem a manter ou a perpetuar o domínio sobre o ser individual. Nenhuma possibilidade de conciliação entre o anarquista e uma forma qualquer de sociedade baseada na autoridade, quer ela emane de um autocrata, de uma aristocracia ou de uma democracia. Nenhum campo de entendimento entre o anarquista e qualquer meio regulamentado pelas decisões de uma maioria ou os desejos de uma elite. O anarquista combate da mesma forma o ensino fornecido pelo Estado e aquele dispensado pela Igreja. Ele é o adversário dos Monopólios e dos privilégios, sejam eles de ordem intelectual, moral ou econômica. Em suma, ele é o antagonista irreconciliável de qualquer regime, de qualquer sistema de vida social, de qualquer estado de coisas implicado na dominação do homem ou do meio sobre o indivíduo, e a exploração do indivíduo pelo homem ou o meio. A obra do anarquista é acima de tudo uma obra de crítica. O anarquista vai semeando a revolta contra aquilo que oprime, entrava, opõe-se à livre expansão do ser individual. Ele deve se desvencilhar das mentes das idéias préconcebidas, libertar os temperamentos aprisionados pelo medo, suscitar mentalidades livres da preocupação com 124 verve Pequeno manual anarquista individualista “o que vão dizer?” e com as convenções sociais; depois, o anarquista estimulará quem quiser seguir a seu lado a se rebelar praticamente contra o determinismo do meio social, a se afirmar individualmente, a esculpir sua estátua interior, a se tornar, tanto quanto possível, independente do ambiente moral, intelectual, econômico. Ele impulsionará o ignorante a se instruir, o passivo a reagir, o fraco a se fortalecer, o oprimido a se reerguer. Incitará os mal dotados e os menos capazes a extraírem de si próprios todos os recursos possíveis e não a repousarem sobre um outro. Um abismo separa o anarquismo do socialismo sob seus diferentes aspectos, inclusive o sindicalismo. O anarquista coloca na base de todas suas concepções de vida: o fato individual. E é por isso que ele se denomina de bom grado anarquista-individualista. Ele não acredita que os males dos quais os homens sofrem provêm exclusivamente do capitalismo ou da propriedade privada. Pensa que eles se devem sobretudo à mentalidade defeituosa dos homens, tomados em bloco. Os mestres só existem porque existem escravos, e deuses subsistem apenas porque os fiéis se ajoelham. O anarquista individualista desinteressa-se de uma revolução violenta que vise uma transformação do modo de distribuição dos produtos no sentido coletivista ou comunista, o que não traria muita mudança na mentalidade geral e não provocaria em nada a emancipação do ser individual. No regime comunista, este seria tão subordinado quanto atualmente aos caprichos do Meio: estaria tão pobre, tão miserável quanto agora; em vez de se curvar ao jugo da pequena minoria capitalista atual seria dominado pelo conjunto econômico. Nada lhe pertenceria propriamente. Seria um produtor, um consumidor, um contribuinte ou usuário do patrimônio comum, nunca um autônomo. 125 11 2007 II O anarquista-individualista se diferencia do anarquista comunista por considerar (excluindo-se a propriedade dos objetos de prazer que formam um prolongamento da personalidade) a propriedade do meio de produção e a livre disposição do produto como a garantia essencial da autonomia da pessoa. É evidente que essa propriedade se limita à possibilidade de fazer valer (individualmente, por casais, por agrupamento familiar, etc.) a extensão de solo ou o instrumental de produção indispensável às necessidades da unidade social; com a reserva, para o proprietário, de não fazer arrendamentos a outros e de não recorrer, para sua valorização, a ninguém a seu serviço. O anarquista-individualista tampouco concorda em viver a qualquer preço como o individualista e como explorador, ou viver sob regulamentação, desde que seu prato de sopa esteja assegurado, a vestimenta acertada, a casa garantida. O anarquista individualista, aliás, não clama por qualquer sistema que controlaria o futuro. Ele afirma situar-se em estado de legítima defesa em relação a qualquer ambiente social (Estado, sociedade, meio, agrupamento) que admitir, aceitar, perpetuar, sancionar ou tornar possível: a) a subordinação ao meio do ser individual, o que o coloca em estado de inferioridade manifesta, já este que não consegue tratar o conjunto de igual para igual, de potência para potência. b) a obrigação (em qualquer âmbito) da ajuda mútua, da solidariedade, da associação; c) a privação da possessão individual e inalienável do meio de produção e da disposição total e irrestrita do produto; 126 verve Pequeno manual anarquista individualista d) a exploração de quem quer que seja por seus semelhantes, que o faça trabalhar por sua conta e lucro; e) o assenhoramento, ou seja, a possibilidade para um indivíduo, um casal, um agrupamento familiar, de possuir mais do que for necessário para sua manutenção normal; f) o monopólio do Estado ou de qualquer forma executiva que o substitua, ou seja, sua intervenção no papel centralizador, administrador, diretor, organizador, nas relações entre os indivíduos, independentemente do domínio em que isso ocorra; g) os juros, a usura, o ágio, a especulação, a herança, etc., etc. III O anarquista-individualista faz “propaganda” para selecionar os temperamentos anarquistas-individualistas que se ignoram, para determinar pelo menos um ambiente intelectual favorável à sua eclosão. Entre anarquistasindividualistas as relações são estabelecidas na base da “reciprocidade”. A “camaradagem” é essencialmente de ordem individual, nunca imposta. É um “camarada” aquele cuja convivência lhe agrada individualmente, quem faz um esforço apreciável para se sentir viver, quem participa de sua propaganda de crítica educativa e de seleção das pessoas; quem respeita o modo de existência de cada um, não impedindo o desenvolvimento de quem caminha com ele ou daqueles que o tocam de mais perto. O anarquista-individualista nunca é escravo de uma fórmula-tipo ou de um texto consagrado. Ele só aceita opiniões. Propõe apenas teses. Ele não se impõe um ponto de chegada. Caso adote um método de vida quanto a um ponto determinado, é para que este lhe garanta mais liberdade, mais felicidade, mais bem-estar, e não sacrifíci127 11 2007 os. E ele o modifica e transforma quando percebe que continuar sendo-lhe fiel diminuiria sua autonomia. Ele não quer deixar-se dominar por princípios estabelecidos a priori: é a posteriori, a partir das experiências, que funda sua regra de conduta, jamais definitiva, sempre sujeita às modificações e às transformações eventualmente sugeridas pelo registro de novas experiências, pela necessidade de aquisição de novas armas na sua luta contra o meio. Sem tampouco tornar o a priori um absoluto. O anarquista-individualista só presta contas a si próprio de suas ações e gestos. O anarquista-individualista não considera a associação senão como um expediente, um último recurso. Assim, ele só quer se associar em caso de urgência, mas sempre voluntariamente. E ele não deseja fazer contratos, em geral, senão a curto prazo, estando sempre subentendido que qualquer contrato pode ser rescindido caso prejudique um dos contratantes. O anarquista-individualista não prescreve uma moral sexual determinada. Cabe a cada um determinar sua vida sexual ou afetiva ou sentimental, o que vale tanto para um quanto para o outro sexo. O essencial é que nas relações íntimas entre anarquistas de sexo diferente, não intervenha nem violência, nem coerção. Ele pensa que a independência econômica e a possibilidade de ser mãe por sua própria vontade são as condições iniciais para a emancipação da mulher. O anarquista–individualista quer viver, quer poder apreciar a vida individualmente, a vida considerada em todas as suas manifestações. Mantendo-se, entretanto, mestre de sua vontade, considerando como servidores colocados à disposição de seu “eu” seus conhecimentos, suas capacidades, seus sentidos, os múltiplos órgãos de percepção de seu corpo. Ele não é um medroso, e não se 128 verve Pequeno manual anarquista individualista rebaixa. Sabe muito bem que quem se deixa conduzir por suas paixões ou dominar por suas tendências é um escravo. Ele quer conservar “o controle de si” para se lançar às aventuras em relação às quais lhe convêm a busca independente e o livre exame. Ele irá preconizar de bom grado uma vida simples, a renúncia às necessidades factuais, servis, inúteis; a evasão das grandes aglomerações humanas; uma alimentação racional e a higiene corporal. O anarquista-individualista irá se interessar pelas associações formadas por certos camaradas visando se desprender da obsessão de um Meio pelo qual sente repugnância. A recusa do serviço militar e do pagamento de impostos terá toda sua simpatia; as uniões livres ou plurais a título de protesto contra a moral corrente; o ilegalismo enquanto ruptura violenta (e sob certas reservas) de um contrato econômico imposto pela força; a abstenção de qualquer ação, de qualquer labor, de qualquer função implicando na manutenção ou consolidação do regime intelectual, ético, ou econômico imposto; a troca de produtos de primeira necessidade entre anarquistas-individualistas possuindo instrumentos de produção necessários fora de qualquer intermediário capitalista, são atos de revolta que convêm essencialmente ao caráter do anarquismo-individualista. Tradução do francês por Martha Gambini. Notas Ensaio escrito em 1911 e publicado em Enciclopédia anarquista (1925-1934), obra em quatro volumes dirigida por Sébastien Faure. 1 129 11 2007 RESUMO O anarquista individualista dimensiona a ética que interrompe a continuidade da autoridade, resulte ela do Estado, das relações econômicas ou de quaisquer associações fundadas na obrigação. O anarquismo individualista está eqüidistante da autocracia e da democracia, assim como do intervencionismo econômico, monopolista ou comunista. O ensaio descreve uma liberdade que é sempre invenção individual, portanto alheia aos finalismos revolucionários. Palavras-chave: anarquista individualista, Estado, liberdade. ABSTRACT The individualist anarchist presents an ethics that discontinues the authority that comes from the state, from economic relations or from any kind of association based on obligation. The individualist anarchism is equidistant from autocracy and democracy, as well as from economic interventionism (monopolistic or communist). The essay describes liberty always as an individual invention, therefore not related to revolutionary finalisms. Keyword: individualist anarchist, state, liberty. Indicado para publicação em 14 de março de 2005. 130 verve marxismo/anarquia, junho de 1985 o marxismo baseia sua análise do trabalho e da forma que assume sobre uma classe, de uma forma de trabalho criada pelo capitalismo... os trabalhadores estão no estado em que estão não devido ao trabalho que fazem, mas devido ao capital. tudo está baseado sobre o ter — ou encontrar — um trabalho, medo de perdê-lo, sobre ser remunerado, e sobre a esperança de um aumento. o capital torna possível a um percentual da população (a população que trabalha) manter-se satisfeita com uma casinha, o necessário para comer e uma cultura ignorante para sorver pelo resto da vida, um sentido mítico de bem-estar. a anarquia pressupõe outros modos de produzir e de viver. hoje a anarquia diz respeito à redenção. 131 11 2007 neno vasco, emma goldman, a revolução mexicana de 1910 e a tese de pietro ferrua edgar rodrigues* A Revolução Mexicana, como mais tarde outras revoluções, apaixonara os homens de idéias e os liberais da época, para muito além das fronteiras do país asteca. A solidariedade internacional não se fez esperar. O movimento eclode com a invasão da Baixa Califórnia, não só para libertá-lo da tirania porfirista, mas também para fundar ali uma sociedade livre. Ricardo Flores Magón fez um chamado ao proletariado norte-americano e ao movimento ácrata internacional. Para lá correram os sindicalistas da Industrial Workers of World, militantes libertários de todas as procedências, incluindo-se espanhóis, alemães, russos, ingleses, americanos e italianos, como Giuseppe Garibaldi, neto do famoso lutador. * Vivendo no Rio de Janeiro, Edgar Rodrigues é um dos mais importantes arquivistas do movimento anarquista no Brasil e em Portugal. Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em mais de quarenta livros e cerca de mil artigos. verve, 11: 132-155, 2007 132 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... Neno Vasco,1 anarquista, radicado em São Paulo, destacada figura de projeção mundial no campo das idéias, responde ao chamamento aderindo àquele movimento. Solidário com a emancipação social que se pretendia levar a cabo, Neno Vasco aceitara a incumbência de ser o coletor e depositário dos recursos financeiros e o delegado, no Brasil, dos revolucionários libertários mexicanos. Então responsável por A Terra Livre, com redação em São Paulo, Neno Vasco vivia “cercado” de três preocupações adversas em 1910: a doença de sua companheira, divergências de fundo nativista, originadas em polêmicas com acadêmicos e outros, e a vigilância das autoridades por ser anarquista, escrever em oposição aos políticos que o consideravam “um agitador estrangeiro”. No ano de 1910 explodiu a Revolução Mexicana. A revolução democrática em Lisboa começou e terminou no dia 5 de outubro do mesmo ano. O restabelecimento da liberdade de reunião, associação e de imprensa em Portugal, e as dificuldades que vinha enfrentando em São Paulo, fez Neno Vasco se decidir pelo retorno a Lisboa em 1911. Antes, porém, passou sua delegação de representante dos revolucionários mexicanos ao seu companheiro e amigo Edgard Leuenroth, então dirigindo o semanário anti-clerical A Lanterna. Com data de 16 de julho de 1911, uma carta de sua autoria, dirigida a Edgard Leuenroth fala de seu “(...) receio de fazer tolice no envio de dinheiro para o México. Preso Magón — diz Neno — foi substituído por um representante que fala de Deus e Pátria! Que devo fazer? Espero informações de Paris.” Como decorrência das preocupações de Neno Vasco, chegou-lhe de New York carta de Emma Goldman, com 133 11 2007 data de 28 de novembro de 1911: “Meu muito bom camarada, tenho em meu poder sua carta e também o dinheiro enviado (95 dólares), os quais serão remetidos aos nossos camaradas mexicanos. Você não pode imaginar o que significará para eles. Não somente por causa do dinheiro, o que eles necessitam muito, mas, também, por causa da solidariedade que os camaradas do Brasil e Portugal têm demonstrado. Realmente o inimigo está desesperado ao verificar a união de várias nações com o mesmo propósito. Por favor, transmita aos camaradas do Brasil e Portugal minhas saudações cordiais. Diga-lhes que desejo um dia ir ao encontro deles se puder.”2 Neno Vasco já em Portugal, depositário de “certa importância de dinheiro”, mantinha intensa correspondência com o seu substituto em São Paulo, Edgard Leuenroth, e com Los Angeles, na pessoa de Manuel G. Garza. Isto ocorreria após a prisão de Ricardo Flores Magón, em 1911, quem mantinha diretamente ligações com Neno, com o qual trocava idéias. Talentoso, de ampla visão, organizador apurado, versado nos problemas sociais, históricos e lingüísticos, Neno Vasco, apesar de sua modéstia, teve uma vasta e útil participação intelectual nos primeiros tempos da Revolução Mexicana. De março de 1912 data uma carta de Manuel G. Garza, do grupo de solidariedade internacional situado em Los Angeles, na qual trata com Neno “do fomento da Revolução Mexicana e das idéias que norteavam aquele movimento”. Em 1913, o almanaque A Aurora, do Porto, por influência de Neno solidarizava-se com o lema mexicano 134 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... “tierra y libertad”, brado do proletariado asteca, o primeiro a fazer uma revolução profundamente social, apesar dos inconfessáveis interesses políticos que viriam a desviar a revolução de seus verdadeiros caminhos. Queiram ou não os literatos, o povo, esse herói anônimo que ninguém incluiu na história, teve a bravura e a coragem de socavar a tirania porfirista e levantarse em luta armada por um Novo México, que abriria suas portas ao escritor humanista libertário polonês, que se escondia por trás do “lendário” pseudônimo de Bruno Traven,3 e ainda deu abrigo a Leon Trotsky,4 bolchevista, condenado à morte por Stalin, e recebeu também espanhóis, que ao final da Guerra Civil, foram aportar no México, não como imigrantes que iam levar o seu braço jovem para produzir riquezas materiais, mas como apátridas que carregavam suas culturas e suas idéias revolucionárias.5 Antecedentes da revolução mexicana O México recebeu, em 1540, sementes da Utopia de Tomas Morus, lançadas ao solo, entre o povo, por don Vasco Omeroga. Muitos anos depois, em 6 de dezembro de 1810, sofria os efeitos sociais, econômicos e políticos do decreto-lei que acabou com a escravatura, de autoria do cura Hidalgo, que 14 dias depois, publicava o primeiro jornal independente, intitulado El Despertador Americano. O mundo sofria então um forte fluxo de idéias libertárias. Os gritos da Revolução Francesa e da Comuna de Paris repercutiam no México, e toda a América do Norte era sacudida pelos movimentos operários que provocariam a tragédia de Chicago, na qual cinco militantes do proletariado foram enforcados e três con- 135 11 2007 denados a diversas penas, por pleitear a jornada de 8 horas de trabalho diário. Na Europa, sucediam-se os Congressos da Primeira Internacional dos Trabalhadores, lançando as bases de um sindicalismo revolucionário. O proletariado mexicano, embora oprimido pela tirania do general Porfirio Díaz havia 30 anos, não ignorou esses movimentos e essas idéias. Assim é que no ano de 1900, o então estudante Ricardo Flores Magón, iniciava seus ataques à tirania porfirista no El Democrata, jornal que por conveniências políticas foi tirado de circulação. Levado pelas mesmas razões e pela fé em um mundo novo, diferente, o jovem Ricardo e seu irmão, Jesús Flores Magón, lançaram-se à publicação do periódico libertário Regeneración, ainda no ano de 1900. Segundo alguns historiadores, Francisco Madeiro6 lá pelos anos de 1905, ajudaria financeiramente o defensor dos oprimidos, do proletariado mexicano, portavoz dos humildes, com o “objetivo de regenerar a Pátria e despertar os mexicanos na nobre indignação contra os tiranos”. Solidariedade que pouco depois seria cortada por medo dos rumos e das idéias que Magón defendia, de igualdade social. À campanha de emancipação social do Regeneración viria a se juntar El hijo del Ahuizote, editado por Daniel Cabrere no ano de 1902, com ajuda de Henrique e Jesús Flores Magón. Dias depois, publica-se também La Reforma Social, órgão livre-pensador, sob a direção de Lauro Aguirre. Esse movimento inquietou o ditador Díaz que aprova, em 9 de junho de 1903, uma lei proibindo aos irmãos Magón de publicar jornais. Apesar disso, em 1o de junho de 1907, aparece em Los Angeles o periódico Revolución, e de novo Ricardo Flores Magón se faz ouvir desde o exílio, 136 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... ao lado do poeta ácrata Praxedis G. Guerrero, que viria a morrer em combate com as tropas porfiristas no dia 30 de dezembro de 1910, em Chi-Huana. Nesse tumultuado ano de 1905, em 28 de setembro, sob os efeitos do intenso movimento libertador, funda-se a Junta Organizadora do Partido Liberal, com o lema “reforma, libertad y justicia”, tendo como principais elementos orientadores Ricardo Flores Magón e o jovem poeta libertário, Praxedis G. Guerrero.7 Germinava a Revolução Mexicana nos cérebros e nas consciências dos libertários e do povo. Em 1o de julho de 1907, aparece o programa da Junta, redigido por Ricardo Flores Magón e Juan Sarabia: era um desafio, um pesadelo para o ditador Porfirio Díaz, que desesperado com o movimento organizado por Ricardo, oferece 20.000 dólares aos esbirros americanos que prendessem e entregassem a figura mais insigne do organismo que estava socavando o seu poder: a Junta Organizadora do Partido Liberal Mexicano. Em atenção ao ditador mexicano, o governo norteamericano manda prender Flores Magón, mas, ao invés de entregá-lo, condena-o a 18 meses de prisão, “por conspirar contra países vizinhos”, e o encarcera no Arizona. Todavia, em Río Blanco, Juan Olivares e José Neyra, fundam o periódico de combate Revolução Social, que inferniza a vida de Porfirio Díaz, e este aproveita a greve de 1907 para repetir a tragédia de 1906, de Cananea, e mata, entre outros trabalhadores grevistas, os fundadores do jornal. Francisco Madeiro, no exílio desde 1904, preocupase com o programa do Partido Liberal Mexicano, do grupo Regeneración, considerando-o “cheio de expressões libertárias, avançadas demais por já prever a desapropriação das terras, a jornada de oito horas de trabalho e 137 11 2007 um salário mínimo”, e envia carta ao seu correspondente nos Estados Unidos, Crecencio Márquez Villareal, que se encarrega de mostrar a Magón as discordâncias de Madeiro quanto ao “programa” que “substitui o eleitoralismo pela verdadeira revolução social”. Não podendo fazer valer seus pontos de vista, Madeiro externa sua discordância para os libertários, por meio de Prisciliano G. Silva, denunciados no jornal Regeneración, após a negativa de emprestar sua solidariedade à “intentona liberal de Las Vacas y Viesca”, em 1908, uma vez que sua ajuda financeira a muito fora cortada. Madeiro muda seus rumos, suas opiniões sobre os liberais, às portas de 1910. Político astuto percebe que a situação estava madura e pensou que poderia capitalizar para si os anos de propaganda e de lutas clandestinas feitas, desde o exílio, pelos liberais. Eclode a Revolução sem que Madeiro se definisse, e a adesão de alguns “liberais” a sua causa, entre eles Antonio Villareal, Lázaro Gutierrez de Lara, o General Leyra e Juan Sarabia, e o próprio irmão de Ricardo, Jesús Flores Magón, a quem Madeiro torna ministro, cuja adesão só acontece mais tarde. Todavia, logo que ganha forças, inicia um verdadeiro ato de traição, começando por perseguir os mais esclarecidos homens do Partido Liberal, que o não reconheciam como presidente provisório. E quando o chefe liberal Gabino Cano, ao conduzir 14 feridos liberais pela fronteira, para os Estados Unidos, prepara-lhe uma cilada para desarmar Prisciliano G. Silva e seus homens, prende-os.8 Por essa ocasião, Ricardo Flores Magón, desde as páginas de Regeneración, de 25 de fevereiro de 1911, denuncia: “Francisco I. Madeiro é traidor à causa da liberdade: está distribuindo no inte- 138 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... rior do México um manifesto fazendo crer que o Partido Liberal e ele lutam pela mesma causa, apresentando-se como presidente provisório, e a mim, Ricardo Flores Magón, como vice-presidente mexicano. Vosso ‘presidente provisório’, como quer mesmo que lhe chamem, começou a dar golpes na liberdade. Que sucederá quando de ‘provisório’ passar a efetivo? Preciso recordar-vos que neste momento, no acampamento de Francisco I. Madeiro se encontra prisioneiro um nobre ancião que não cometeu outro crime que não seja o de lutar pelo vosso bem-estar?” Madeiro preferiu confabular com Porfirio Díaz a chegar a acordos “honrados” com os homens do Partido Liberal, conforme asseverava Prisciliano. Para Madeiro, “o General Díaz não era um tirano: era algo rígido, mas um tirano, não!” Isso demonstra que Francisco Madeiro, burguês de “cartola e casaca”, pretendia o lugar de Díaz, mas sem a Revolução Popular, Social e Agrária. Ele mesmo, o demonstraria no pouco tempo de seu governo, suprimindo La Casa Del Obrero Mundial — organismo proletário, que em setembro de 1914 se instalaria no hoje Palácio dos Azulejos, na esquina das ruas Madeiro e San Juan de Letrán, antigo convento dos Jesuítas —, expulsando do país os propagandistas estrangeiros, entre os quais o socialista libertário espanhol, Juan Francisco Monceleano, enquanto colocava fora da lei todas as organizações operárias — as mesmas de que se havia valido para chegar ao governo, ou melhor dizendo, às organizações que cavaram a queda de Porfirio Díaz — que desencadearam a Revolução Mexicana. Alegando idéias moderadas, aliou-se aos militares de Díaz, e assim cavou sua ruína, foi vítima de suas próprias contradições, matando a verdadeira Revolução. 139 11 2007 A partir de 1914 Nas revoluções populares, sempre aparecem os caudilhos para empalmá-las. A revolução mexicana não fugiria a essa dinâmica de interesses. O jornal Regeneración, em sua terceira fase — a partir de 3 de setembro de 1910, com Anselmo L. Figuera como diretor e, como redatores, além dos irmãos Magón, Gutierrez de Lara e Antonio I. Villareal — reitera as idéias do seu fundador, reproduzindo o manifesto de Ricardo, dirigido “aos proletários”, onde se lia: “Derramar sangue para levar ao poder outro bandido, que oprime o povo, é um crime, e isso será o que sucederá se tomares as armas sem outro objetivo que não seja o de derrubar a Díaz, para pôr em seu lugar um novo governante...” Nesse manifesto é substituído o lema liberal de “reforma, libertad y justicia” pelo que abraçara tempos depois o próprio Emiliano Zapata: “tierra y libertad”. O caminho estava traçado para Ricardo Flores Magón, seu irmão Henrique, Librado Rivera e seus companheiros que jamais se desviaram dele. Prossegue a propaganda dos grupos de vanguarda, e logo em 1912, aparece outro órgão marcadamente revolucionário, Luz. Outro grupo é a União dos Canteiros, entidade operária, fundadora da escola racionalista na Cidade do México junto ao grupo que publica o jornal Luz, desfalcado com a expulsão de seu redator, Juan Francisco Moncalcano, por ordem de Madeiro. Apesar de todas as traições, 1912 fora o ano das grandes iniciativas de valor social. Em 17 de setembro, funda-se a Biblioteca da Casa do Operário, que se tornaria definitivamente a central operária do país, em torno da qual se agrupam os sindicatos dos carpinteiros, dos alfaiates, união dos canteiros, dos sapateiros e a Confederação das 140 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... Artes Gráficas; e publicam-se El Sindicalista e Emancipación Obrera. E, por fim, funda-se a Confederación General Obrera de la Región Mexicana, que torna pública sua declaração de princípios, marcados pelas idéias de emancipação social. Da Casa do Operário, sai a iniciativa da reforma agrária, proposta de Gerardo Murillo, ao Dr. Atler, da revolução constitucionalista, que seria executada por Venustiano Carranza, já iniciada em outras regiões por Emiliano Zapata. Orizaba recebe material para possibilitar a continuação do periódico Revolución Social. Nessa data, nasce também o Corpo Sanitário Ácrata, cujas enfermeiras usavam avental negro e blusa vermelha. Casas do povo ácratas fundar-se-iam em Córdoba, Jalapa, San Andrés, Tuxtla, Tlacaotalpan, Puerto México, Oaxaca, Tapachinla, Tehuantepec, Mérida, Puebla, Querétaro, Pachuca, Chihualma, Sonora, Colima, Ciudad Victoria, Saltillo, Nuevo Laredo, Doña Cecilia, Tampico, León, Morelia, Banderilla, Tezintlán, Árbol Grande e, por fim, em 13 de outubro de 1915, a Escola Racionalista, e publicava-se o jornal Aríete. Em 1914, quando já havia triunfado a Guerra Civil, o governo firmava-se sem cumprir o mais importante para os iniciadores da Revolução: fazer a reforma social, limpando os vermes, ratos, da política porfirista, o que leva o proletariado à greve e o conselho de guerra condena à morte Ernesto Velasco, para lhe comutar a pena, ao mesmo tempo em que fechava a Casa do Operário Mundial. Só em 1919, Luiz N. Morones formaria outra, sem as velhas tradições de independência, de dinamismo, como sua antecessora. Evidencia-se a queda: a Revolução ia perdendo o seu verdadeiro sentido. Expulsam-se os homens de idéias, e sucedem-se os golpes políticos. Assim mesmo, ainda em 1921, sob influência do manifesto de Orizaba, fundar141 11 2007 se-ia a Confederación General Del Trabajo, com a participação especial de Buenaventura Durruti, mais tarde famoso revolucionário anarquista espanhol, morto durante a Guerra Civil de 1936-39. Declinam da “democracia” os governantes, tornando-se drásticos. Ricardo Flores Magón é condenado, em novembro de 1918, nos Estados Unidos — onde já havia sofrido 83 meses de cárcere —, a 20 anos de prisão, juntamente com seu fiel companheiro, Librado Rivera, que conseguira sobreviver e regressar ao México. Em 20 de novembro de 1922, Ricardo Flores Magón aparece morto em sua cela, na prisão de Leavenworth, Kansas. “A data de 20 de novembro não é só aniversário de revolução política e social do México, é também o aniversário da morte do mais destacado militante ácrata, que iniciou a revolução contra a tirania porfirista, Ricardo Flores Magón”. Com essas palavras, Regeneración — em novembro de 1958, sob a direção de Salvador Vasquez e Felipe Quintas — iniciava as comemorações do 48º aniversário da Revolução Mexicana. A Revolução que não floresceu, por culpa dos políticos e seus inconfessados interesses. Para se entender a histórica revolução mexicana O México foi colônia da Espanha, e em todos os países sujeitos à opressão dos colonizadores seus povos sofreram mutações e mesmo mutilações na sua evolução econômica, política e física. Desde sua “descoberta” até a independência, decorreram muitos anos de vivência, sob os efeitos de um malabarismo político retrógrado, um jogo de interesses de toda ordem, sempre em prejuízo da população nativa. 142 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... Livre dos espanhóis, o México, com seu “governo próprio”, viveu ainda por muitos anos traumatizado pelo estigma da fome e de brutais condicionamentos, sob os efeitos dos interesses políticos e econômicos transmitidos de gerações para gerações pelos colonizadores. O povo mexicano livre não sabia usar a liberdade, tal como tem acontecido, e continua acontecendo, nos países que “ganham a independência” dos colonizadores, pelo menos durante meio século ou mais. Mil motivos havia, portanto, para que o mexicano nato fosse submisso e revoltado ao mesmo tempo. Esse fenômeno ocorre com todos os países que sofreram o peso das tiranias do colonialismo imperialista. A opressão gerou a revolta, e o revoltado não era um idealista; e sem ideais no cérebro, e com a espingarda na mão, as revoluções jamais restauraram a liberdade. Um povo liberto do cativeiro embrutecedor é passivo, revoltado e cai facilmente na ditadura. Isso já ocorreu na Rússia, quando derrubou a dinastia dos Czares e caiu no stalinismo; na Alemanha, que se livrou dos domínios de um “imperialismo prussiano” e caiu no nazismo; com Cuba, que liquidou as ditaduras de Machado e de Batista e caiu na de Fidel Castro; e em quantos mais novos países aconteceu isso? O México entrou na história dos países independentes impregnado de doenças políticas, religiosas, culturais e psíquicas, que só o tempo e uma higienização mental, apoiada na cultura, no bem-estar social e na liberdade duradoura, podiam curar... O General Porfirio Díaz era um dos abortos desse estado psico-social; uma espécie de “paizinho”, da laia do czar da velha Rússia. Subira ao poder em 1876, para reinar no México, sobre um povo imaturo politicamente, com baixíssimo nível econômico e social e sem tradições culturais marcantes, imerso no mais drástico agrarismo latifundiário e medieval. 98% das terras pertenciam a 2% 143 11 2007 da população, isto é, aos homens que sustentavam todos os governos, à elite capitalista. Porfirio Díaz não ascendeu ao poder para melhorar o México, para administrar bem as riquezas do solo e distribuí-las entre quem trabalha, entre quem produz; subiu ao poder para ser útil a si e a uns poucos, aliás, a regra dos governantes. Com poucas variações. O candidato democrata Francisco I. Madeiro não tinha melhores intenções: pretendia, como bom filho da burguesia, perpetuar a submissão do povo. E o México ainda tinha sobre seu povo uma outra desgraça, além da deixada pelos colonizadores: ser vizinho da América do Norte. O escritor espanhol Victor García, no seu livro México, Panamá y Océano Pacífico, declara que “a maior calamidade do México é ter um vizinho como o que tem na divisa esquerda do Rio Grande. Deste mesmo Rio Grande, que foi genuinamente mexicano, no solo, nas divisas, senão em toda sua bacia. Como mexicanos foram os férteis e riquíssimos Estados da Califórnia, Arizona, Nuevo México e Texas. O México foi sempre terra de saques para os nortenhos. Com a guerra de 1846-48, ficaram com 60% do território mexicano; com os dólares continuam carregando os tesouros arqueológicos das culturas pré-cortesianas, como já tivemos oportunidade de ver quem fora cônsul dos Estados Unidos no México, Edward Thompson, que saqueara Cenote de Chichen Itzá e toda a zona Maia de Yucatán. Não contentes com isso, se imiscuem com os problemas sociais internos de maneira descarada e provocativa, como quando desembarcaram em Vera Cruz, em 1914, semeando mortes e humilhando de novo o povo asteca. Com a greve de Cananea a provocação do Tio Sam alcançou graus inconcebíveis. Cerca de quinhentos ameri- 144 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... canos invadiram Sonora, armados até os dentes e caçaram os mexicanos como cães onde quer que estivessem. Os mineiros haviam declarado greve para reclamar cinco pesos a mais e as oito horas de trabalho na ‘Green Consolidate Mínimo Company’. O resultado foi um massacre horrível e o encarceramento dos sobreviventes nas masmorras da fortaleza de San Juan de Ulúa.” 9 Sob os efeitos destas e de outras desgraças, padeceu o povo mexicano, camponês em sua maioria, analfabeto ou de pouco saber, anestesiado ao longo de muitas gerações por um feudalismo cruel, impiedoso, bestial, que tudo faria para impedir que penetrassem modestos raios liberais até o povo asteca, a liberdade individual, a liberdade e o bem-estar individual e coletivo. Ao raiar o século XX, o mexicano, com raríssimas exceções, estava condicionado ao regime de contenção política, artística, libertária, que impedia pela força o direito de associação, de liberdade de pensar em voz alta por muitos anos, e foi aí, nesse estreito labirinto do tradicionalismo escravocrata, de “autoridades-irracionais”, coartoras, repressoras, autoritárias, com Porfirio Díaz havia mais de 30 anos comandando e tripudiando do povo asteca, que eclodiu a Revolução Mexicana. Políticos da revolução mexicana de 1910 Francisco I. Madeiro, burguês liberal, ambicionava a presidência da “república” e, pelo atrevimento de se candidatar nas “eleições” realizadas para ver se Porfirio Díaz ficava ou continuava, foi preso até que se concretizasse a “vitória” eleitoreira, refugiando-se depois nos Estados Unidos, de onde regressaria à Cidade do México, em julho de 1911, isto é, nove meses após eclodir a Revolução. 145 11 2007 Liderando os políticos do “centro” e usando os “liberais”, Madeiro nomeara-se “presidente provisório”. A seu lado viera lutar o “bandido” Pancho Villa, então refugiado nas montanhas, que pela audácia e pela bravura chega a dominar uma parte do território mexicano, desejando pôr em prática as seguintes idéias: “Quando se estabelecer a Nova República, não mais haverá exércitos no México. Os exércitos são os maiores apoios da tirania. Não pode haver ditador sem seu exército. Poremos o exército a trabalhar. Serão estabelecidas em toda a República, colônias militares, formadas por veteranos da revolução. O Estado lhes dará posse de terras agrícolas, e criará grandes empresas industriais para dar-lhes trabalho. Trabalharão duro três dias na semana, porque o trabalho honrado é mais importante do que lutar, e só um trabalho assim produz bons cidadãos. Nos outros dias receberão instrução militar, e por sua vez instruirão todo o povo, ensinando-o a lutar. Então, se a Pátria for invadida, tomando-se apenas o telefone do Palácio Nacional na Cidade do México, em meio dia se levantará todo o povo mexicano em seus campos e fábricas, bem armados, equipados e organizados para defender seus filhos e seus lares. Minha ambição é viver minha vida em uma dessas colônias militares, cercado de meus queridos companheiros, que sofreram tanto e tão profundamente ao meu lado. Quero que o governo estabeleça uma fábrica de curtume, onde possamos fazer boas selas e freios, pois sei como fazê-los; o resto do tempo desejo trabalhar na minha granjazinha, criando gado e semeando milho. Seria magnífico ajudar a fazer do México um lugar feliz.”10 Esse homem rústico combateu heroicamente ao lado de Madeiro, para não mais ver “matar nossos pais 146 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... e irmãos como ele mesmo afirma, assim como nos tiraram nossas pequenas terras, e nos venderam a todos como escravos. Como nos negavam lugares nas escolas para instruir-nos (...)”. Revolta-se ao ser detido e conduzido à penitenciária da capital por ordem de Alfonso Madeiro. Quando consegue a liberdade, vai lutar com seus homens, para esmagar aquele a quem se aliaria voluntariamente, em nome de algo que não sabia como pôr em prática, mas que desejava ver realizado. Outro herói de poucas leituras, despido de ambições políticas partidárias, Emiliano Zapata, não foi um “opositor que contava com forças regulares, tais como o presidente provisório, para alistar”; fora, isso sim, um modesto revolucionário, que “edificara” sua concepção entre os camponeses no sítio de Áquila, próximo à cidade Cuernavaca, onde eclodira o movimento revolucionário mexicano Zapatista. É por demais conhecido o célebre grito zapatista magonista, de 25 de maio de 1911: “tierra y libertad”. Zapata fora um socialista com afinidades libertárias, e ligado aos irmãos Magón, anarquistas mexicanos de muita influência e ativa participação na verdadeira Revolução Mexicana. Não se pode fazer um paralelo de idéias entre as ambições políticas de Francisco Madeiro e o idealismo revolucionário de Emiliano Zapata. Houve quem chegasse, anos depois, a comparar Zapata com o revolucionário Nestor Makhno, camponês anarquista russo, que lutara bravamente com o seu exército de camponeses na Ucrânia, ou Madeiro com Lênin, que tal como Madeiro perambulava pelo exílio, só chegando ao seu país depois de derrubado o ditador pela revolução popular. Sobre as idéias de Madeiro e seus correligionários, Zapata explicava: 147 11 2007 “Isso de liberdade de imprensa para os que não sabem escrever; liberdade de votar para os que não conhecem os candidatos; correta administração da justiça para os que jamais ocupam um advogado, todas essas belezas democráticas, todas essas grandes palavras com que nossos belos mestres e pais se deleitaram, perderam o seu mágico atrativo e a sua significação para o povo. O povo viu que com eleições ou sem eleições, que com sufrágio efetivo ou sem ele, com ditadura porfirista ou com democracia, com imprensa amordaçada ou com liberdade de imprensa, sempre, e de todas as formas, ele continua ruminando suas amarguras, devorando suas humilhações infindáveis, e por isso teme, com razão de sobra, que os libertadores de hoje sejam iguais aos caudilhos de ontem.”11 O que Zapata pretendia e fazia, sempre que aparecia oportunidade, era restaurar a “liberdade econômica para os camponeses, e promover a expropriação das terras, distribuindo-as e cultivando-as.”12 Refletindo sobre os documentos que pude consultar e, mais do que isso, obras, textos e correspondência de Emma Goldman, Diego A. de Santillán, Victor García e outros escritores, somado com jornais e revistas libertárias, como A Terra Livre, de São Paulo, e A Aurora, do Porto, e as cartas de Neno Vasco, entre outras de militantes ácratas da época, ficou-me a convicção de que a revolução libertária no México não avançou mais por escassez de militantes conscientes, rumos afinados e falta de solidariedade do proletariado internacional, em tempo hábil, para derrubar as forças políticas, antes que estas se unissem dentro e fora do México, na defesa do capitalismo. A rapidez que se precisava para surpreender o sistema burguês, e a morosidade no funcionamento, no dia seguinte à revolução, para que o povo não sofresse falta 148 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... do essencial à vida da população, ajudaram o capitalismo a demonstrar sua força e união até a vitória, cedendo alguma coisa aos revolucionários, sem mudar o sistema da desigualdade política e social. Na tese de 163 páginas de Pietro Ferrua, divulgada por Edizioni La Ficcola, de 1976, com o título Gli anarchici nella Revolucione Messicana, também se vislumbram desencontros de idealistas: além de insuficientes, em número, para um empreendimento de tamanha magnitude, faltara-lhes direcionamento coeso, recursos significativos para mudar rapidamente o sistema e fazer “a nova sociedade” funcionar no dia seguinte à revolução, melhor e mais equânime do que o capitalismo autoritário, explorador, enganador, corruptor, terrorista! Como conclusão Qualquer que seja a feição que lhe queiram dar os historiadores oficiais, e os que andam na contramão da história — verdade investigada, conferida, provada cientificamente —, não poderão escamotear que a Revolução Mexicana teve uma origem de revolta contra os poderosos escravocratas, e rasgos de coletivismo, de idéias emancipadoras de igualdade libertária, social, cultural e humana. Aos nomes de Praxedis Guerreiro, Ricardo Flores Magón e dezenas de revolucionários pioneiros das idéias libertárias na revolução de 1910, juntam-se a estadia no México de Jean Moncaleano, foragido da Espanha por se manifestar contra a execução de Francisco Ferrer, via Estados Unidos e Cuba. Empenhado na publicação de Pluma Roja, com Jacinto Huitron, Luiz Mendez, Ciro Z. Esquiel, Pioquito Roldón e Eloy Armenta formou a Sociedade Anarquista Luz, editou o jornal Luz, fundou a Escola Moderna e ainda integrou os Batallones Rojos. 149 11 2007 Na mesma linha de educação anarquista, o jornal Aríete, em fevereiro de 1915, exaltava e apoiava a obra da Escola Moderna fundada por Moncaleano e seus companheiros. Em uma seqüência de informações históricas, a imprensa registrou a Escola da Razão e do Socialismo, fundada em Chalco pelo ácrata grego refugiado no México desde 1869 Rhodal Kanaty, lançando sementes que germinaram e produziram camponeses rebeldes conscientes. O livro Las Moscas, de Mariano Aguela, de 1918, e Breve Historia de México, de Vasconcelos, falam da Rebelião Cristera, no governo de Plutarco Silva Calles, em 1924: mesmo com a Liga Nacional de Defensa de la Libertad Religiosa, os anarquistas continuavam sua propaganda depois da revolução. O proletariado filiado à C.G.T., em 1929, celebrou seu 7º Congresso. El Pueblo, cinco anos mais tarde, apareceu para combater as práticas religiosas. Finda a Revolução Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, os anarquistas do México, em 1945, começaram refazendo suas organizações, e logo em 10 de janeiro de 1946, realizam seu 1º Congresso. Solidaridad, periódico anarquista publicado em Cuba, publica “Debates do 3º Congresso dos anarquistas mexicanos”, subscrito por Agustín Souchy. Novo congresso teve lugar de 20 a 22 de julho de 1950, com a participação de espanhóis exilados. Já havia reaparecido o Regeneración, como órgão da Federação Anarquista Mexicana. No ano de 1955, o Regeneración publica “A Verdadeira História da Revolução Mexicana”, de autoria de Jacinto Huitron. 150 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... Atas no arquivo do autor, 12 páginas e intróito da Federação Anarquista Mexicana, registram: existência da Federação Ibérica de Juventudes Libertárias — Seção de México, “Decisões do 8º Congresso da FAM”, “Estudo do Fenômeno Social de Cuba e suas Repercussões no Continente” e uma relação de militantes mexicanos e espanhóis exilados — Emilia J. Munõz Srio, Alicia Peres Salazar, Domingos Rojas, Jacinto Huitron, Julia Carrillo, Enrigueta Caurin, as esposas de Rojas e de Alcón, Arjona Castillo, Juan Ramón Alvarez Perez, Casto Moscú, delegado Cubano, Agustín Confalonieri, Marcos Alcón, Salvador Vásguez, Rodolfo Aguirre Rofles, Florêncio Torres Muñoz, Evaristo Contreras, Felipe Quintas, Fidel Arredondo Ramos, Tomás Aguirre, Jesús Polencia, Rosalio Alcón, Omar Degnes, Benjamin Cano Ruiz, Vicente Alba, E. Castrejón, José Beas, Estevan Leal, Muñoz Cota, Áurea Torres Cuadrado. Esses e outros anarquistas são responsáveis pelos exemplos das experiências libertárias, e deram respaldo à edificação da estátua de Ferrer. O novo México que emergiu da Revolução de 1910 está longe de atender aos anseios dos pioneiros libertários, mas também não voltou ao passado retrógrado. Os artífices dessa obra de transformação foram muitos e ainda nos deixaram reivindicações em 14 itens: 1) A emancipação dos seres humanos ou liberação como seres autônomos livres em suas decisões, lúcidas, críticas e responsáveis; 2) A igualdade social econômica e política de todas as pessoas, qualquer que seja sua idade, sexo ou cor, cuja conseqüência é o fim das classes sociais, das divisões entre os normais e os deficientes ou desajustados mentais; 3) A Liberdade de criação, única garantia real contra a uniformização, tal como se vê na China maoísta 151 11 2007 ou em nossa sociedade de consumo de massa infantilizada; 4) A Justiça, a Igualdade e a Liberdade como três princípios incompatíveis com a existência de instituições repressivas, tanto judiciais como militares; 5) A educação libertária e permanente, que permitirá o desenvolvimento mais completo do indivíduo e não a sua adaptação submissa ao sistema produtivo de hoje. A condição é a igualdade, desde o nascimento dos meios de desenvolvimento, quer dizer, da educação e instrução em todos os campos da ciência, da indústria e das artes; 6) A organização social sobre a base da livre federação dos produtores e consumidores, em autogestão. A democracia direta, não eleitoral nem parlamentar, e sim municipal e federalista. Nada de cheques em branco — votos —, e sim a coordenação dos assuntos sociais por gente delegada, eleita por mandatos muito preciosos e revogáveis a todo o momento; 7) Uma economia dirigida à satisfação das necessidades e não em benefício próprio. É o consumo que deve orientar a produção, e não o contrário; 8) A posse coletiva e individual de todos os meios de produção e distribuição, de forma que exclua qualquer possibilidade de viver explorando o trabalho dos demais; 9) Abolição do trabalho assalariado de todas as instituições estatais e outras que permitam manutenção da exploração do ser humano pelos seus semelhantes. O trabalho assalariado é um processo pelo qual quem quer deter os meios de produção e consumo pretende compensar aqueles que só podem alugar a força de trabalho. Aboli-lo é romper essa relação entre exploradores e explorados; 152 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... 10) A distribuição igualitária das tarefas de interesse geral, a ausência de divisões entre trabalhadores manuais e intelectuais; 11) A ecologia não só para preservar nosso ar puro, mas também para promover o desenvolvimento da nossa Humanidade, baseada na igualdade de vida; 12) A livre união das pessoas e das populações deve ser segundo suas conveniências e afinidades; 13) Liberdade plena de expressão; 14) A livre circulação de indivíduos, a abolição das fronteiras, com a instauração de uma nova cidadania. O hábito de instalar-se, de viver em uma comunidade, permite a participação completa nas formas de decisão concernentes ao conjunto da vida política, social, econômica e cultural. Eis como pensavam e como escreviam os idealistas mexicanos às portas do século XXI. Notas Pseudônimo do Dr. Gregório Nanianzeno Moreira de Queirroz Vasconcelos, nascido em Panafiel, Portugal, em 9 de maio de 1878, e falecido em São Romão de Coronado, em setembro de 1920. 1 Por ser bastante extensa a carta de Emma Goldman, limito-me a inserir a parte que se refere à Revolução Mexicana e à solidariedade. O original em inglês encontra-se no meu arquivo. 2 Bruno Traven, romancista internacional, com alguns dos seus livros editados mais de 40 vezes, era, na verdade, Herman Albert Otto Maksiminan Faige, natural de Swibodzen, a 100 km da cidade polonesa de Poznam. Faleceu no México, entre os índios, onde vivia. 3 Leon Trotsky perdeu o poder na União Soviética em disputa com Stalin. Pensando que escapava da morte, fugiu para França. Ali conheceu o estudante português de Artes Plásticas e anarquista, Cristiano de Carvalho, natural de Matosinhos, Portugal. Durante a Segunda Guerra Mundial, Trotsky fugiu da França e foi bater na porta do anarquista Cristiano de Carvalho, em Matosinhos, 4 153 11 2007 pedindo ajuda. O anarquista matosinense, embora vivendo sob a ditadura de Salazar, conseguiu para Leon Trotsky uma passagem, e embarcou-o no porto de Leixões, rumo ao México. Apesar da ajuda anarquista, o bolchevista Trotsky, foi assassinado no México, pela KGB, por intermédio de um agente de Stalin, Ramón Mercador Del Río, que após cumprir a pena de prisão no México, foi ajudar Fidel Castro a prender e matar anticomunistas. Acabou deixando sua carcaça em Cuba. 5 Os exilados da Revolução Espanhola, no México, nunca precisaram esconder seu anarquismo. Publicaram na capital o jornal e a revista Tierra y Libertad, sustentaram um excelente grupo editor de obras anarquistas, inclusive a Enciclopédia Anarquista, em castelhano, em dois volumes, e realizaram congressos, debatendo abertamente idéias ácratas. 6 Cf. Stanley R. Rosa. Francisco Madeiro – Apostle of Mexican Democracy, p. 42, e, Charles Curtis Cumberland. Mexican Revolution – Genesis under Madeiro, p. 44. 7 Práxedes G. Guerreiro, poeta, filho de família rica mexicana, renunciou à sua fortuna, doou suas terras aos camponeses e foi juntar-se aos humildes, no começo da revolução de 1910, foi ferido em combate, e morreu em 30 de dezembro de 1910. 8 Cf. Pietro Ferrua, in revista Reconstruir. Argentina, julho/agosto de 1971. Victor García. México, Panamá y Océano Pacífico. Ciudad de México, Editores Mexicanos Unidos, 1969, pp. 47-48. 9 Cf. Johnn Reed. México Rebelde. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1968. 10 11 Manifesto de Emiliano Zapata, agosto de 1914. 12 Cf. Pietro Ferrua, op. cit., 1971. 154 verve Neno Vasco, Emma Goldman, revolução mexicana de 1910... RESUMO O artigo busca fazer uma leitura da Revolução Mexicana sob a perspectiva libertária, dando especial atenção às vivências e experiências de alguns anarquistas, bem como do papel da imprensa libertária, em seus desdobramentos. Andando na contramão da história, tenta mostrar o começo de revolta que foi engolido pela Revolução. Palavras-chave: Anarquismo, Revolução Mexicana, Luta ABSTRACT The article aims to present an outlook on the Mexican Revolution under a libertarian perspective, with special attention to the relationships and the experiences of some anarchists, as well the role of libertarian press and its developments. Going against history’s flow, the author shows the beginning of a revolt that was absorbed by the Revolution. Keywords: anarchism, Mexican Revolution, struggle Recebido para publicação em 17 de julho de 2006 e confirmado em 14 de agosto de 2006. 155 11 2007 sofisma é imprescindível à democracia ou como mentir apenas dizendo verdades ou ainda “sorria! você está sendo filmado!” rogério nascimento* “Igualdade de todos perante a lei!” “Igualdade de direitos e deveres!” “Democracia inaugura um estado de sociedade com base na lei e no direito”. Estas máximas são profundamente capciosas. Da maneira como os democratas as apresentam, enquanto enunciadoras de igualdade entre as pessoas, são verdadeiros indicadores de como os exercícios da arte de sofismar lhes são necessários. Necessários para distrair e entreter os desavisados. Isto porque, focalizando o entendimento destes pensamentos estritamente sobre aspectos próprios aos móveis e efeitos da lei, há um outro dinamis- * Rogério Nascimento é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e professor de Antropologia na Universidade Federal de Campina Grande. Publicou Florentino de Carvalho, pensamento social de um anarquista, Rio de Janeiro: Achiamé, 2000. Participou do coletivo editorial do jornal Atentado com estudantes do curso de Ciências Sociais da UFCG entre 2000 e 2001. É integrante do Nu-Sol. verve, 11: 156-167, 2007 156 verve Sofisma é imprescindível à democracia... mo particular escamoteado e que se refere às questões relativas ao tipo de sociabilidade estabelecida. Portanto, a verdade da lei expressa nestes axiomas anuncia uma igualdade relativa ao código, à norma, ao mesmo tempo em que desconversa sobre a manutenção das desigualdades, assimetrias e hierarquias na dimensão das relações intersubjetivas. Refletir sobre estas questões é importante para um entendimento sobre certas especificidades dos processos a que muitas vezes nos querem arrastar, procurando fascinar com o brilho de um material que não passa de ouro de tolo. As mudanças nas mentalidades provocadas pelo iluminismo, renascimento, materialismo filosófico e revoluções burguesas tendiam à recusa do domínio e da exploração como forma de pautar as relações sociais. A penetração na sociedade dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade foram significativas para o fim da sociedade medieval. O poderio eclesial legitimando a realeza e a nobreza e dando maior solidez à dominação e exploração, sofrera expressivos golpes no curso de alguns séculos. A inscrição do homem na ordem zoológica como resultado dos estudos de naturalistas como Charles Darwin em meados do século XIX, com sua queda do pedestal teológico, foi importante no processo de questionamento e abolição da ordem teocêntrica. Não mais servidão nem prosternação. O ideal de liberdade e igualdade havia contagiado segmentos das sociedades, fazendo a ruína das aristocracias européias. Desde o século XIX, num contexto de divulgação e estabelecimento dos ideais de liberdade e de igualdade, as democracias ardilosamente reinstalam aristocracias sob novas modalidades. Neste sentido, as máximas democráticas acima destacadas soam como as que encontramos na contemporaneidade, estampadas em letras garrafais, em quase todos os estabelecimentos comer157 11 2007 ciais, públicos, educacionais, anunciando “Sorria! Você está sendo filmado!”. Apesar da solicitação explícita clamando pelo nosso sorriso e de uma efetiva filmagem em andamento, sabemos não se tratar de oração de sorriso nem de posar como celebridade diante das câmeras. Trata-se antes de um método de intenso controle e suspeição. Procura-se naturalizar este método, apresentado-o de maneira simpática ao pôr em evidência detalhes de segundo plano implicados no procedimento. Todos são suspeitos, portanto perigosos, até prova em contrário. Procura-se mais sutilmente amenizar este sentido de maior relevância para um conhecimento acerca das formas societárias instaladas, e ao mesmo tempo se busca envolver e empolgar o “cidadão” no controle, domínio, exploração, repressão e vigilância de quase todos mas, sobretudo, de si mesmo. O “cidadão” sob vibração da democracia é aquele que ‘participa’ de maneira entusiasmada, implementando e aprimorando, em seu cotidiano mediato e imediato, dinamismos voltados para o alargamento, aprofundamento e intensificação de seu próprio assujeitamento Convenhamos, as frases acima apresentadas são algumas das mais significativas máximas da organização política democrática. Liberais à esquerda, à direita, ao centro e de todos os quadrantes anunciam estas palavras em uníssono, como certezas inabaláveis, postulados sagrados e verdades inquestionáveis. Vangloriamse nestas qualidades o efeito de santificação da democracia. Nesta, proclamam não mais a soberania de um ou a de alguns. O privilégio e o despotismo da Idade Média teriam passado à história. Constituiriam tristes recordações de tempos pretéritos, cujo fim teria acontecido com o estabelecimento de um aclamado “regime de soberania popular.” 158 verve Sofisma é imprescindível à democracia... Socialistas estatistas se colocam enquanto críticos severos da democracia. Acreditam simplesmente que assinalar o caráter classista burguês do Estado na democracia basta para superá-la. No fim das contas, laboram no aprimoramento da máquina estatal, também instalando uma nova aristocracia no lugar da antiga. Basta olhar para a história recente dos denominados “Estados Populares”, ou “socialistas”, para ver arruinar toda argumentação favorável aos postulados do socialismo estatista. Entretanto, para o momento não apresento ponderações tensionando e problematizando o socialismo marxista. Pretendo aqui assinalar algumas particularidades da democracia representativa, esta que, depois do fim da chamada “guerra fria”, é considerada, pela esmagadora maioria dos estudiosos e pensadores contemporâneos, como a única forma societária possível.1 Dizem que na democracia a igualdade perante a lei é a forma de fazer valer os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade. Estes princípios, orientadores da revolução francesa e característicos da sociedade moderna, seriam garantidos pela letra da lei, pela magistratura e pela força de Estado. Sob estas condições, os integrantes das sociedades modernas são designados pela palavra “cidadão” em substituição ao antigo termo “súdito” ou “vassalo”. No entendimento dos defensores e adesistas das concepções democratas, “cidadania” opõe-se ao estado de sociedade baseado na separação entre deveres e direitos, como acontece nas sociedades absolutistas. Nestas, grosso modo, ao soberano apenas diz respeito a parte relativa a direitos e benesses, enquanto que recairia ao súdito toda a parte relativa a deveres e obrigações. Por quê razão isto se daria deste modo? Simplesmente porque a sumidade do “ser supremo” assim o desejou. Pronto. Está tudo explicado. Um pretenso “di- 159 11 2007 reito divino” estaria na base de todo um panorama social, assegurando a hierarquia e a exploração como dinamismos absorventes na sociabilidade humana. Contudo, é interessante questionar do que se trata quando os democratas proclamam esta “igualdade de todos perante a lei”. Será igualdade de condições? Efetiva igualdade entre as pessoas? O sofisma se instala por entre afirmações aparentemente igualitárias. É assim que na lei apenas existe uma declaração relativa à própria lei, anuviando uma desejada igualdade pessoalizada. Não há absolutamente igualdade noutro plano. A vida social deve ser mantida tendo como base o desempenho pessoal atrelado às relativas funções. É desta maneira que permanece existindo as desigualdades intelectual, social, econômica e política. Ser igual perante a lei significa apenas a continuidade das relações assimétricas e hierarquizadas estendidas a todos e que a lei tratará cada qual no seu devido lugar. Ao trabalhador cabe, do mesmo modo que ao patronato e aos demais segmentos da classe dirigente, ‘igualmente’ direitos e deveres. A fim de aclarar o sofisma democrático não será enfadonho lembrar que a mesma disposição legalitária se dava na antiga servidão como também no regime de escravidão. Ao senhor feudal como ao senhor de escravos a lei impunha obrigações, regulamentando o manejo das suas ‘peças’. Desta maneira, o dono de escravo tinha, por exemplo, o direito de lhe infligir castigos aos seus escravos, mas não podia abusar deste direito e se exceder na aplicação de penalidades. Estes limites ao senhor de escravos, expostos no texto da lei, regulamentavam a ação do escravocrata, constituindo nos direitos do escravo. Desta maneira haveria, relativo ao escravo, a possibilidade deste reivindicar direitos. Em outras palavras, seria um dever do soberano 160 verve Sofisma é imprescindível à democracia... procurar fazer valer seus próprios direitos, assim como ao súdito caberia o direito de exigir a possibilidade de executar, com condições minimamente garantidas, todos os seus deveres. Mas este tipo de colocação esconde ardis, desviando o foco da questão. Estas observações servem apenas para tornar manifesta intencionalidades sofistas, fazendo emergir, por entre as curvas escorregadias dos discursos, falas e estudos enredados no princípio de autoridade, a funcionalidade dos governos, sobretudo a democracia representativa, como embustes, falácias. Ainda mais, tais ponderações são válidas na medida em que apresentam o soberano e o súdito não enquanto entidades autônomas e auto-referentes, mas antes enredados num complexo jogo de relações. Nem um é estritamente o terrível algoz ativo, nem o outro é apenas uma vítima impotente e passiva. Ambos encontram-se misturados, contagiados, implicados e pressupostos no outro. Assim, neste caso não há igualdade de um em relação ao outro. Desde que seja dentro da lei, pode haver uma efetiva desigualdade entre as pessoas. E a finalidade da lei consiste em garantir a manutenção desta disposição.2 Mas em compensação, a lei observa friamente os que transgridem as normas instituídas para um comportamento social adequado às conveniências estabelecidas. Este é o consolo oferecido aos descontentes e insatisfeitos: revanche, desforra, ressentimento. E o que é dito em democracia relativo às liberdades do “cidadão” toma idêntico arranjo. Ao regulamentar a liberdade de todos e de cada um, a lei finda por negar seu autêntico exercício. Em alguns casos esta intervenção toma os contornos de um procedimento ubuesco.3 É ridículo, é mesmo hilário como no Brasil é apresentado, em todo ano eleitoral, um dos direitos ditos fundamentais do ‘cidadão’: votar e ser votado. Aqui cabe um questiona161 11 2007 mento: como é possível um ‘direito’ ser ao mesmo tempo um ‘dever’? É um completo disparate! Pensemos um pouco mais sobre esta questão. Todo cidadão e cidadã a partir da maioridade ‘deve’ exercer o ‘direito’ de eleger seus representantes políticos. Caso alguém transgrida esta obrigação, deixando de exercitar este seu ‘direito’ — que é também um ‘dever’ cívico — será multado ou poderá até mesmo ser preso. Na condição de presidiário, por não ter cumprido com este seu ‘dever’, poderá ter todos os seus ‘direitos’ políticos suspensos. Perder os direitos políticos por não ter cumprido com o dever de votar! Não é simplesmente patético? Se eu tenho ‘direito’, apenas a mim caberia a decisão de usufruir ou não das prerrogativas deste direito. O fato de decidir não usar algum ‘direito’ que me cabe não deveria ser usado contra mim. Este dado nos dá o que pensar sobre a democracia e suas implicações para as nossas vidas. Quero deixar claro que não sugiro o voto facultativo como forma de solucionar estes impasses. Não se trata de procurar reformar, melhorar, aprimorar a democracia. Mesmo porque voto obrigatório ou facultativo não altera a manutenção da aristocracia sob democracia e os procedimentos ardilosos necessariamente postos em atividade a fim de escamotear uma abordagem conseqüente deste seu efeito sobre a sociabilidade humana na contemporaneidade. E quanto à liberdade de pensamento, de ir e vir, de expressão e de crença de que tanto se orgulham os democratas? Aqui novamente emerge a habitual arte do sofisma. Pois em democracia tudo é condicionado e universalizado. Admite-se a liberdade, mas sempre desde que. Pode-se pensar o que quiser, mas este pensamento tem que estar domesticado, reinstalando o mesmo. 162 verve Sofisma é imprescindível à democracia... Pode-se também expressar individualmente as idéias, mas os meios de comunicação social necessários são concessões estatais e o Estado os concede apenas aos de sua confraria ou àqueles que, quando muito, querem mudanças para que tudo permaneça parecido com o idêntico. Pode-se ir para onde quiser, mas é preciso o passaporte dos órgãos estatais, é preciso pedir visto de permanência e possuir recursos financeiros suficientes. Por fim, pode-se crer no que quiser, desde que não viole a sacralidade da propriedade privada, da família nuclear e do poder centralizado no Estado. Além do mais o Estado procura impor ao ‘cidadão’ o exercício repetido e despojado de genuflexões. Em cada gabinete governamental o genuflexório, mesmo que não esteja efetivamente materializado, está presente através dos procedimentos. Para cada audiência, pelo menos uma sessão de ‘beija-mão’, reverências e contrição. E lá se porta o ‘cidadão’ na descompostura de uma ritualística de submissão, lambendo botas, pedindo a benção e reverenciando o anel sacerdotal. Se não seguir à risca o protocolo, os procedimentos estabelecidos, não conseguirá adentrar o santuário da política. Nenhuma chance de ser escutado a fim de poder melhor emitir desejos, este que é o ideal do governado. Afinal de contas, para que serve o representante do povo, senão providenciar a satisfação da chamada ‘vontade geral’? Sob a democracia, o pensamento, o ir-e-vir, a expressão e as crenças têm que ser previstas em lei. As sentenças sempre encaminham ora um não podes ora um tu deves. Mesmo porque proibir e obrigar é a única linguagem inteligível à razão de Estado, sob qualquer forma que este tome. Inclusive na democrática. Para os recalcitrantes, resistentes e irredutíveis destina-se o braço armado, as prisões, as multas, as sanções. A propósito, ‘imposto’, ‘compulsório’, ‘cumpra-se’, ‘diretório’, 163 11 2007 ‘comando’, ‘normas’, ‘código’, não são algumas das palavras basilares do vocabulário estatal? Todos estes termos denunciam seu caráter autoritário, violento, totalitário e despótico, ainda que com gradações diferenciadas entre suas diversas modalidades. Apesar disto seus defensores pretendem apresentar o Estado democrático como uma instituição estabelecida em contraposição ao domínio medieval. Mas logo ele que é antropocêntrico, eurocêntrico, falocêntrico, etnocêntrico, belicoso e cristão! Na verdade o terror e o totalitarismo de Estado sucedeu, aprofundou e distendeu o da Igreja na Idade Média. A inauguração da chamada modernidade não significou uma ruptura com o poderio eclesial medieval. A história recente do conturbado século XX está à mão para comprovar esta afirmação.4 O Estado moderno preservou intacto do medievo as inclinações catequistas, messiânicas e salvacionistas como indício de suas proveniências. O panorama internacional contemporâneo nos oferece elementos suficientes a fim de melhor verificarmos estas suas qualidades. O governo dos EUA, em constantes e recorrentes rompantes de puritanismo, justifica suas intervenções violentas em diversos países do mundo tendo como argumento principal a busca por uma redenção do conjunto da população local. As medidas são verossimilhantes aos procedimentos das antigas cruzadas e inquisição. Entretanto, cada qual com seu fundamentalismo, fanatismo, obscurantismo e obsessão, ainda que atribuindo a um ‘outro’ o lócus de excentricidade e, no limite, da inumanidade. Se ficarmos enredados nos referenciais estabelecidos pelas sociedades autodenominadas modernas não conseguiremos discernir os contornos de seus próprios extremismos.5 Há nestas, na insistente imposição da democracia representativa em todo o mundo, um fundamentalismo estatal pulsando; um fanatismo pelo progres164 verve Sofisma é imprescindível à democracia... so na mania pela intensificação da complexidade tecnológica e difusão do industrialismo por todo o planeta; obscurantismo cientificista ao dar primazia a uma racionalidade empiricista e cartesiana dentre as diversas formas de mentalidades expressas em diferentes culturas; e, por fim, obsessões por normalidade abrigadas em concepções universalistas e centralistas. Por fim, “Sorria! Você está sendo filmado!” pode muito bem ser compreendido enquanto expressão síntese da democracia. É verdade o pedido do sorriso dirigido a todos enquanto buscas em nos tornar disponíveis, conquistando nosso consentimento em relação a processos de vigilância sobre todos e sobre cada um. É verdadeira também a existência de câmeras escondidas mesmo inexistentes. Mas sobre o que está acontecendo nestes contextos estas verdades mentem, sendo necessário procurar noutras relações o objeto desta mentira. Assim, da mesma forma como todos entendem o enunciado “Sorria! Você está sendo filmado!” para além do expressamente anunciado, há que se procurar ampliar as relações, pressupostos e desdobramentos dos postulados democráticos a fim de não ser capturado nas armadilhas de seus sofismas. Ou então lembremos do constante sorriso de “V”6 de Alan Moore, e de como seus versos, capa e performances abrigavam poderosas armas. Notas 1 Diversos autores elaboraram uma análise anarquista do socialismo marxista. Ver, entre outros, Rudolf Rocker. As idéias absolutistas no Socialismo. São Paulo, Sargitário, 1946. Tradução de Nicolau Bruno. Mikhail Bakunin. Escrito contra Marx. São Paulo, Imaginário, Nu-Sol, SOMA, 2001. Tradução de Plínio Augusto Coêlho. Maurice Jopieux (et. alli). Os anarquistas julgam Marx. São Paulo, Imaginário, 2001. Tradução de Plínio Augusto Coêlho. Varlan Tcherkesoff. Erros e Contradições do Marxismo. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1964. 165 11 2007 2 Clastres apresenta a lei entre as sociedades indígenas como forma de garantir a igualdade entre os seus integrantes. Contrariamente, nas sociedades modernas a lei garante a desigualdade entre as pessoas. Ver Pierre Clastres. “Da tortura nas Sociedades Primitivas” in A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, pp. 123-131. Tradução de Theo Santiago. Michel Foucault. Os anormais. São Paulo, Martins Fontes, 2001. Tradução de Eduardo Brandão. 3 4 Muito interessante neste sentido é o livro de Gaston Leval analisando a presença do Estado ao longo da história. Ver Gaston Leval. El Estado en la Historia. Madrid, Espanha, CNT-AIT, Cali, Colombia: Asociación Artistica “La Cuchilla”, 1978. Ver Fredric W. Turner. O Espírito Ocidental contra a Natureza – mitos, história e as terras selvagens. Rio de Janeiro, Campus, 1990. Tradução de José Augusto Drummond. 5 6 Ver Alan Moore e David Lloyd. V de Vingança. São Paulo, Via Lettera, 2002. 2 v. 166 verve Sofisma é imprescindível à democracia... RESUMO O sofisma é um expediente amplamente utilizado pelos defensores da democracia. A fim de dissimular as relações assimétricas e hierarquizadas estabelecidas sob o estado de direito, democratas de todas vertentes recorrem aos recursos da arte de sofismar. Liberdade e igualdade são negadas não de uma forma direta, mas através de processos instauradores de sociabilidades verticalizadas. Neste sentido, há continuidade, sob democracia, com a sociedade aristocrática da Idade Média. Palavras Chave: Sofisma; sociedade democrática; liberdade. ABSTRACT The sophism is a recourse widely used by the defenders of democracy. In order to dissimulate the asymmetric and hierarchical relations established under the rule of law, democrats of all kind utilize the art of sophism. Liberty and equality are not straightly denied, but through processes that establish vertically kinds of sociability. In that sense, there is a continuation, under democracy, of the medieval aristocratic society. Keywords: sophism, democratic society, liberty. Indicado para a publicação em 02 de outubro de 2006 e confirmado em 05 de março de 2007. 167 11 2007 por uma militância divertida: o inimigo do rei, um jornal anarquista1 gustavo simões* O jornal O Inimigo do Rei emerge em 1977 realizado por estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Não tardou para que já na primeira edição impressa, em folha sulfite tamanho A4, chamasse a atenção de coletivos, grupos e associações libertárias, principalmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Tamanha foi sua presença que, no carnaval do ano seguinte, passou a ser distribuído para essas regiões, provocando, promovendo e discutindo experimentações entre jovens do litoral ao sertão do país. O Inimigo do Rei foi resultado da prática política de estudantes que se articularam em torno do grupo Fantasma da Liberdade, como o filme de Luis Buñuel. Segundo Ricardo Líper, integrante do núcleo inicial do jornal, o grupo “(...) * Estudante de Ciências Sociais na PUC/SP e integrante do Nu-Sol. verve, 11: 168-181, 2007 168 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. surgiu como uma chapa para concorrer ao Diretório de Filosofia. Fizemos um pequeno jornal da nossa chapa com a imagem de uma bunda com uma tocha (...). E o nome O Fantasma da Liberdade, em plena ditadura, caiu muito bem, porque a liberdade no Brasil nessa época era um fantasma.”2 É com a formação desse grupo que os jovens baianos entram em contato com militantes anarquistas de outros estados e, em 1977, inventam O Inimigo do Rei, que mesmo com circulação irregular, existiu por onze anos. Duas décadas após seu término, aos poucos, começaram a aparecer estudos e reflexões sistemáticas sobre o jornal. Autor da dissertação de mestrado Imprensa alternativa e anarquismo: O Inimigo do Rei, Waldir Paganotto3 atribui o surgimento do jornal a uma dissidência do movimento estudantil, controlado pela esquerda de tradição marxista, após o renascimento ainda ilegal da UNE, em 1974. Segundo Nildo Avelino,4 O Inimigo do Rei é reflexo da irrupção de liberdades sufocadas durante toda a década de 1970, e que reapareceram ruidosas por meio de grupos antipsiquiátricos, ecologistas, feministas, de liberação sexual, anarquistas... Para José Carlos Orsi Morel,5 ex-secretário e integrante do histórico Centro de Cultura Social de São Paulo, o jornal foi um marco para os anarquismos no Brasil, pois trouxe a vitalidade dos jovens para a prática libertária. Pulando o muro da universidade para entrar no sindicato A primeira edição do jornal, lançada em outubro de 1977, ainda em papel A4 e com somente dez páginas, emerge no embate de estudantes da Universidade Federal da Bahia com o autoritarismo de esquerda dos intelectuais, professores e alunos. A maior parte dos artigos 169 11 2007 reflete a tensão dentro da universidade, entre os próprios estudantes, e a edição conclui com a proposta de uma Federação Libertária Estudantil. No intervalo de sete meses aparece o segundo número do Inimigo do Rei. Em formato tablóide, o jornal ultrapassa os muros da universidade e passa a tratar de temas mais variados: a luta das mulheres por liberação, o anarquismo a partir da frase de Louise Michel, ao dizer que “(...) não podemos matar as idéias a tiros de canhão nem tampouco algemá-las”,6 a resenha do livro de Roberto Freire Viva eu viva tu, viva o rabo do tatu, como também de matéria especial sobre maio de 1968, na qual Ricardo Líper afirma que esse acontecimento “(...) o primeiro grande sintoma público de massa de que o pensamento socialista começava a retomar seu caminho original. As bandeiras negras do anarquismo tremularam na França e o sentimento antiautoritário do socialismo espalhou-se. Foram criticados abertamente os PCs [...], o engano já foi percebido... O caminho já está aberto. Bakunin deu o primeiro grito de perigo. Nem todos ainda perceberam isto”.7 Mas é somente a partir da terceira edição, em setembro de 1978, que O Inimigo do Rei apresentou-se de fato para os leitores. Diferente das edições anteriores, o número três do periódico, contendo vinte páginas, traz no box do expediente os nomes das pessoas que o produziram em ordem de sorteio, seguido das autorias dos artigos publicados. São inauguradas sessões que farão parte da trajetória do jornal como a contra-capa com ilustrações Bobo da Corte, as sessões Cartas e Biblioteca, além de um espaço dedicado especialmente à problematização e divulgação de experiências autogestionárias. No início de 1979, O Inimigo do Rei assume o sindicalismo e o anarquismo como práticas de luta. A capa rubro-negra da quarta edição anuncia a luta dos jornalistas baianos por organização, divulga entrevista com o dirigente 170 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. anarco-sindicalista Juan Gómez Casas e matérias sobre o grupo Mujeres Libres,8 fundado por mulheres anarquistas na Revolução Espanhola. Mas é no artigo não assinado “Sindicalismo e Terrorismo individual”, no qual o desconhecido autor critica os anarquistas franceses Émile Henry e Ravachol — que fizeram parte dos desdobramentos da Comuna de Paris e cujas ações ficaram conhecidas como terrorismo anarquista associado à propaganda pela ação9 —, que fica explícita a tendência do Inimigo do Rei. “Ravachol, Émile Henry e muitas outras figuras dos fins do século XIX apenas serviram de reflexo dos profundos sentimentos de inquietação e revolta com a sociedade industrial (...). Suas ações não revelaram atos revolucionários, mas iconoclastia (...). Destruir a cabeça econômica não é deitar por terra cabeças políticas — já disseram.”10 Eu também quero sair Com regularidade bimestral a partir da quarta edição, o periódico divulga uma nota que será uma de suas marcas, explicitando a única exigência para publicação de artigos: que os jornalistas também fossem os jornaleiros. Propunha abolir a distinção entre trabalho intelectual e braçal e estimular a autogestão. A periodicidade resultante do fortalecimento do Inimigo do Rei como jornal autogestionário não foi atingida com tranqüilidade. Entre as dificuldades enfrentadas em plena ditadura, Antônio Carlos Pacheco, um dos editores, recorda o preço pago por algumas matérias. “Depois que colocamos o cardeal D. Avellar Brandão se masturbando com uma cruz, as gráficas não quiseram mais imprimir o jornal aqui em Salvador. Pra não dizer que estavam nos censurando, cobravam muito mais do que a gente podia pagar (...). Acabamos imprimindo o jornal na gráfica da Gazeta Mercantil no Rio de Janeiro. Mandávamos os originais por ônibus para o Ideal Peres levá-los até a gráfica.”11 171 11 2007 A periodicidade do Inimigo do Rei também permitiu à equipe de jornalistas e jornaleiros tratarem de temas que não diziam respeito somente à militância política nos sindicatos, como, por exemplo, o movimento iniciado na sexta edição sobre a anistia. Criticando a divisão feita por outros jornais e militantes marxistas entre presos políticos e comuns, O Inimigo do Rei, segundo Waldir Paganotto, adotou postura heterodoxa, pois pediu a anistia ampla, incluindo no processo os presos comuns. A sétima edição do jornal foi lançada com foto na capa de um homem com os braços para fora das grades, com destaque para a frase “Eu também quero sair” e, na décima edição, Antônio Carlos Pacheco questiona que a imprensa de esquerda fizera o maior alarido pelo último preso político no Ceará e calara diante das cadeias superlotadas do Brasil. Para Waldir Paganotto fica evidente nas matérias do Inimigo do Rei sobre a anistia que o jornal adota posição diferenciada de outros veículos de comunicação independentes ou alternativos. Entretanto, os artigos visam somente a dissolução da divisão arbitrária entre presos políticos e presos comuns. Após o esfriamento das discussões, o periódico deixará de problematizar a prisão, mostrando que seu alvo era insistir no fim da distinção entre presos comuns e políticos, que alimentava a esquerda institucional. Como anarquistas, não faziam a distinção: a prisão é para quem ameaça a propriedade com ações e idéias. O jornal beleza pura, o fino que satisfaz Sem abandonar o anarco-sindicalismo, o periódico, para além da anistia, avança nas discussões sobre a liberação do sexo. Completando dois anos de existência em fevereiro de 1980, propõe na capa “Prática sexual ampla, geral e irrestrita”, esculhambando explicitamente a política de abertura proposta pelo governo Ernesto Geisel. O deboche 172 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. incomodou os próprios libertários, provocando uma resposta de Edgar Rodrigues, colaborador assíduo do jornal, que, com o pseudônimo de F. Silva, afirma que “Homossexualismo sim, mas frente à propaganda do anarquismo não!”12 Mesmo contando com boa parte do espaço no jornal, a busca por experiências de liberdade com textos mais divertidos distanciaram os anarquistas interessados nas lutas sindicais. Em seu número treze o jornal publica matéria especial sobre a maconha, com o título “Você pode fumar um baseado (desde que não seja do PDS ou Trotskista)”. O despojamento das matérias dessa edição passa a confrontar o autoritarismo da esquerda, e não somente aquele relativo às formas e instituições autoritárias implementadas nos países socialistas: a rigidez da conduta do “militante esquerdista” passou também a ser problematizada. Os temas e a maneira como eram abordados acabavam gerando discussões entre os próprios coletivos que editavam o Inimigo do Rei. “A gente discutia pelo correio todos os temas previamente. Quando o pessoal viu os temas e a capa com ‘Prática sexual ampla, geral e irrestrita’ encomendaram pouquíssimos exemplares. A do baseado piorou. Ninguém naquela época, nenhum dos movimentos sociais, falava em liberação da maconha (...). Alguns anarquistas achavam que essas discussões não cabiam naquele momento. Diziam que É. Armand já tinha falado sobre isso há mais de cem anos mas que tinha uma ditadura que oprimia a classe operária. Nós respondemos que era uma questão importante e que continuaríamos a tocar no assunto (...)”, comenta Antônio Carlos Pacheco.13 No número seguinte, sem a periodicidade habitual e com apenas doze páginas, o jornal demonstra sinais de esgotamento, mas sem perder o humor. “De lá pra cá o papa foi baleado e, para a alegria dos fiéis — boa parte 173 11 2007 morrendo de fome — ele está fora de risco. Novamente a história comprova a veracidade da sabedoria popular; Lennon é baleado e morre; Reagan é baleado e vive; por fim o velho João Paulo é baleado e sobrevive... vaso feio não quebra (...). Sem a ânsia guerreira da esquerda autoritária, temos o mais magro mas cada vez mais bonito. O jornal beleza pura...O fino que satisfaz!”14 É a partir do décimo quinto número que O Inimigo do Rei demonstra perda de fôlego. A edição conta com frases bem humoradas sobre as eleições como “parlamentar é prálamentar” e matéria sobre o anarquista Roberto das Neves. Mas na contracapa, caracterizada até então por charges e fotos, é publicada uma longa carta que alude às dificuldades enfrentadas pelo periódico anarquista, vinculando-as à prática libertária. O Inimigo do Rei não era o único periódico a enfrentar esse processo. As últimas edições Desde o início da década de 1980 entrou em declínio a luta pela potencialização de liberdades que eclodiu em maio de 1968 e marcou os anos 1970. Cada vez mais estimuladas pelo ideal democrático, as minorias que antes surpreendiam, deslocaram suas práticas de luta para a reivindicação de direitos, pretendendo compor a nova maioria. Como afirma Edson Passetti, “(...) diante da inventividade não tardou o refluxo conservador. A medida de todas as coisas passou a ser democracia (...) não mais rebeldias, mas integrações democráticas via ampliação de pletora de direitos.” 15 Nos números seguintes, com matérias mais curtas e informativas, desenhos e estética zine adotada dos punks que passaram a participar de sua produção, O Inimigo do Rei passou a ser editado também pelo 174 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. coletivo de Porto Alegre. Entre as principais matérias destacam-se a repercussão do encontro “Inimigos do Rei”, realizado em Florianópolis, e de textos problematizando a obrigatoriedade do voto e a posição anarquista pela abstenção, lançando mão do voto nulo apenas como estratégia.16 Em 1984, o periódico interrompe suas atividades por três anos, alegando dificuldades econômicas de manter um jornal autogestionário no Brasil. Após esse período de ruptura, ocorreram deslocamentos importantes para o anarquismo no país, sendo o principal deles a reabertura do Centro de Cultura Social,17 em 17 de abril de 1985, no bairro do Brás, em São Paulo. O lançamento das últimas edições do jornal, é retomado em 1987, com matéria especial sobre o lançamento do livro de Roberto Freire, Sem Tesão Não Há Solução, ocorreu, segundo Paganotto, devido ao esforço e encontro dos punks com os anarquistas do Centro de Cultura Social de São Paulo. A saída apontada para os trabalhadores nessas últimas cinco edições enfatiza a necessidade de uma revolução: “(...) o anarquismo nada mais é do que a forma até agora mais acabada de consciência de como se fazer uma revolução que seja socialista de fato (...)”,18 e a militância sindical volta a obter preponderância, destacando-se alguns artigos como o assinado por Baqueiro, que esboçam a tentativa de reativação da Confederação Operária Brasileira, COB: “O operário está verificando a necessidade de agir diretamente, buscando as saídas, como procuravam os trabalhadores brasileiros das duas primeiras décadas do século, através de federações que agiam sem pactos com partidos ou com governo, numa luta que convergia nacionalmente para a Confederação Operária.”19 175 11 2007 Após o lançamento de quatro edições em 1987, em março do ano seguinte é publicado o último número do Inimigo do Rei. O ocaso do jornal fica marcado pelas matérias punks, sobre o pluralismo sindical e críticas à postura centralizadora e autoritária da Central Única dos Trabalhadores, CUT. Por uma militância divertida Em sua dissertação de mestrado, Waldir Paganotto atribui importância maior a fatores exteriores ao jornal para explicar sua irregularidade nas últimas edições e seu encerramento, em 1988. Afirma que desde sua emergência, a imprensa alternativa encontravase em decadência, reagindo ao incêndio de bancas de revista por parte de grupos de direita, e perdendo sua função principal de contestação ao regime militar com a chegada da “abertura política”. O autor soma a isso à desmobilização do movimento estudantil, no começo da década de 1980 — marcada pelo aparecimento dos yuppies e desaparecimento dos hippies. Para Leonardo Carvalho Pinto,20 em recente artigo em História do Anarquismo no Brasil, baseado em seu trabalho de conclusão de curso na Universidade da Bahia, O Inimigo do Rei instaura uma cisão entre os anarquistas “históricos” que, segundo ele, eram defensores de um discurso e abordagens tradicionais, mais ou menos nos moldes do anarquismo que vigorou no movimento operário até o advento do Estado Novo, e os chamados “modernos”. Para ele, a principal causa dessa polarização, ocorreu devido à inovação da linguagem utilizada pelo coletivo editorial e à introdução de novos temas incorporados da contracultura. Todavia, após realizado o mapeamento do jornal que levei adiante, tal conclusão pode ter sido apressada, 176 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. pois o anarquismo e a perspectiva de uma revolução libertária predominou na maior parte dos artigos publicados. A crítica ao Estado e à soberania, nos textos que abordavam tanto a questão sindical quanto a liberação do sexo, atacavam suas falsidades, imoralidades ou repressões. Os embates travados pelos integrantes do Inimigo do Rei não diferem tanto dos realizados pelos libertários no século XIX; eles somente atualizaram a crítica aos costumes, incorporando novas maneiras de ver as práticas na atualidade, como o sexo e as drogas. Saul Newman problematiza esse “pensamento de Estado” que também foi utilizado pelos anarquistas no combate à autoridade centralizada e à soberania. “Devemos aprender a pensar além do paradigma do Estado. A ação revolucionária falhou no passado, pois se manteve aprisionada por esse paradigma. Mesmo as filosofias revolucionárias como o anarquismo, que têm como objetivo a destruição do poder de Estado, mantiveram-se aprisionadas a concepções essencialistas e maniqueístas (...). Talvez a própria idéia de revolução deva ser abandonada. Talvez a política deva ser a de escapar de estruturas e identidades essencialistas.”21 Albert Camus, em resposta aos existencialistas que colocavam a revolução como o inevitável progresso da revolta, afirmou que “(...) a contradição, na realidade, é mais restrita. O revolucionário é ao mesmo tempo revoltado ou então não é mais revolucionário, mas sim policial e funcionário que se volta contra a revolta. Mas, se ele é revoltado, acaba por insurgir contra a revolução.”22 É possível que o afastamento de alguns anarquistas na produção libertária tenha ocorrido mais pelo fato de O Inimigo do Rei trazer à tona temas que até hoje são tabus para muitos militantes, como a libera- 177 11 2007 ção das drogas e a liberação do sexo, do que a emergência de um anarquismo “moderno”. A maior inovação do Inimigo do Rei — e talvez isto tenha contribuído para o distanciamento de alguns libertários — foi a incorporação de um outro jeito de lutar, ao estilo que Michel Foucault propõe em “Uma introdução à vida não fascista”: “Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas de representação) que possui uma forma revolucionária”.23 O jornal resgata velhas práticas libertárias e incorpora novos temas que emergiram a partir das contestações às autoridades na década de 1960 e 1970. Provoca os anarquistas por sua “(...) coragem e destemor e não pelos meros indicadores etários de seus criadores e leitores.”24 Como as experimentações de liberdade, O Inimigo do Rei não aspirou à eternidade. Há quem procure ainda hoje as causas e indícios de seu encerramento, em 1988. Para Ricardo Líper, um dos jornalistas e jornaleiros do Inimigo do Rei, “(...) o que ocorreu foi falta de tesão de fazer o jornal. Não foi falta de tesão com anarquismo, mas falta de tesão em fazer o jornal. Eu gostaria de dizer que a Santa Teresinha apareceu e converteu a gente. Isso levaria os intelectuais à glória. Mas não foi nenhum motivo secreto o que aconteceu. Faltou tesão”.25 Notas Este artigo apresenta os resultados da pesquisa de iniciação científica “Inimigo do Rei: Problematizações sobre o jornal O Inimigo do Rei e experimentações libertárias”; apresentada em outubro de 2006, ao Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP e à Comissão de Pesquisa e Extensão da PUC-SP, financiada pelo CNPq e premiada com menção honrosa de iniciação científica do Departamento de Política em 2006. 1 178 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. Entrevista concedida por Ricardo Líper, no dia 6 de outubro de 2006, durante o Seminário Nacional de Pedagogia Libertária, realizado no FACED-UFBA, em Salvador. 2 Waldir Paganotto. Imprensa alternativa e Anarquismo: O Inimigo do Rei. Dissertação de Mestrado em História. Assis, Unesp, 1997. 3 Nildo Avelino. Anarquistas: ética e antologia de existências. Rio de Janeiro, Achiamé, 2004. 4 5 José Carlos Orsi Morel. “Centro de Cultura Social, uma prática anarquista”, in Verve. São Paulo, Nu-Sol, maio/2005, vol.7, pp.209-23. 6 O Inimigo do Rei, 2. maio/1978. 7 Idem. A este respeito ver Margareth Rago.“Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade na revolução espanhola”, in Verve. São Paulo, Nu-Sol, maio/2005, vol.7, pp.132-51. 8 Sobre a propaganda pela ação, ver em especial Andre Degenszajn. Terrorismos e Terroristas. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo, PUC/SP, 2006. 9 10 O Inimigo do Rei, 4. fevereiro-março/1979. Entrevista concedida por Antônio Carlos Pacheco, em 6 de outubro de 2006, durante a realização do Seminário Nacional de Pedagogia Libertária realizado na FACED-UFBA. 11 O Inimigo do Rei, 11. maio-agosto/1980. Edgar Rodrigues assume a autoria do artigo no seu livro O Ressurgir do Anarquismo (1962-1980), no qual conclui: “O registro de livros anarquistas e fins, salvo um ou outro trabalho mais doutrinário, foi um dos pontos positivos do Inimigo do Rei. Não obstante a feição libertária, os seus redatores ocuparam espaços preciosos com o homossexualismo e alguns dos seus colaboradores elegeram-no como bandeira de luta ‘enfeiando’ os propósitos dos anarquistas.” Edgard Rodrigues. O ressurgir do Anarquismo (1962-1980). Rio de Janeiro, Achiamé, 1993, p. 183. 12 13 Entrevista concedida por Antônio Carlos Pacheco, citada na nota 11. 14 O Inimigo do Rei, 14. Edson Passetti. “De conversa em conversa: Parrésia anarquista”, in Revista letralivre. Rio de Janeiro, Achiamé, 2006, vol.11, p.15. 15 Um artigo sobre as eleições e a abstenção dos anarquistas escrito por Aurélio Vellame e Celene, integrantes do coletivo do Inimigo do Rei de Salvador, está na internet, disponibilizado no site do Nu-Sol, www.nu-sol.org 16 179 11 2007 Ver Nildo Avelino, op. cit., 2004. O livro mostra com minúcia a reabertura do Centro de Cultura Social em 1985, articulando-a com a emergência do Inimigo do Rei em outubro de 1977. 17 18 O Inimigo do Rei, 1. maio/1987. 19 Idem. Leonardo Carvalho Pinto. “Inimigo do Rei: um jornal anarquista”, in Rafael Borges Deminicis & Daniel Aarão Reis (orgs). História do Anarquismo no Brasil. Rio de Janeiro, MauadX, 2006, pp.133-145. 20 21 Saul Newman. “Guerra ao Estado: o anarquismo de Stirner e Deleuze”, in Verve. São Paulo, Nu-Sol, outubro./2005, vol.8, pp.13-40. Albert Camus. O Homem Revoltado.Rio de Janeiro, Record, 2003, p. 285. Tradução de Valerie Rumjanek. 22 Michel Foucault. “Uma introdução à vida não fascista”, in Cadernos da Subjetividade. São Paulo, Núcleo de Estudos e Pesquisas do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, vol1, n1, 1993, p. 200. Tradução de Fernando José Fagundes Ribeiro. 23 24 O Inimigo do Rei, 3. setembro-outubro/1978. 25 Entrevista concedida por Ricardo Líper, op. cit. 180 verve Por uma militância divertida. O inimigo do Rei. RESUMO Emerge em 1977, no Brasil, mais precisamente na Universidade Federal da Bahia, o jornal libertário O Inimigo do Rei. Menos de um ano após seu lançamento, ele alcança outros estados do país, tendo como característica marcante a abordagem de temas polêmicos e liberadores como o aborto, a homossexualidade, feminismo, drogas, liberação do sexo, ecologia e o anarquismo. Esta pesquisa procurou mapear e problematizar a prática libertária no Brasil trazida para o interior deste jornal durante o tempo de sua circulação, entre 1977 e 1988. Palavras-chave: Inimigo do Rei, liberação, anarquismos. ABSTRACT In 1977, emerged in the Federal University of Bahia, the libertarian newspaper Inimigo do Rei (Enemy of the King). Before accomplished his first anniversary, the newspaper had been distributed in all Brazilian states. It had as its distinguished characteristic the presentation of polemic and liberators issues as abortion, homosexuality, feminism, drugs, sex liberation, ecology and anarchism. This research aimed to identify and to question the libertarian practices in Brazil that had a way to be publicized by this newspaper during the period of its existence (1977-1988). Keywords: Inimigo do Rei, liberation, anarchisms. Recebido para publicação em 26 de fevereiro de 2006 e confirmado em 11 de fevereiro de 2007. 181 11 2007 a peste, abril de 1984 a peste das corporações industriais aflige o teatro, assim como aflige todas as outras atividades humanas. é a medida do lucro que se crava na espinha dorsal, a adormece e a esvazia. tudo o que sobra é o cadáver frívolo de madame, revivido pelo consumo popular, uma imagem que se converte em nada, e as pessoas gastam o dinheiro ganho arduamente para conservar uma imagem que apodrece a mente. 182 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem experimental [como desfazer uma educação ambiental] ana godoy* “Não se pode sair da árvore com meios de árvore.” Francis Ponge O propósito deste artigo é menos debater as questões relativas à educação e ao meio ambiente do que propor ao leitor uma leitura experimental, leitura que funcionaria como meio de experimentação, na qual o leitor se aventuraria aquém ou além dos disciplinamentos impostos pela Razão e pelo conhecimento. Uma tal leitura avizinha-se do movimento da criança, que, sempre a fazer de cada coisa meios a serem explorados e materiais de renovadas explorações, deslocando-se e deslocando-os em incessantes idas e vin- * Doutora em Ciências Sociais pelo PEPG da PUC-SP e pós-doutoranda no Dept. de Filosofia e História da Educação da UNICAMP. verve, 11: 183-201, 2007 183 11 2007 das, subverte as funções que a circunscrevem e às quais ela serve, conferindo importância às coisas pelo uso que delas faz. Assim é que os deslocamentos que a criança inventa são simultâneos às intensidades que experimenta. Propor ao leitor este jogo é colocar sob suspeita a imbricação entre educação e meio ambiente, na qual prevalecem discursos e práticas voltados aos objetivos da conservação, explicitados não só por meio da criação de áreas de conservação e da defesa de ecossistemas e espécies ameaçadas, mas também por meio de um pensamento da conservação pautado em práticas consideradas saudáveis e comportamentos considerados adequados à participação ativa e responsável de cada indivíduo e da coletividade na preservação do equilíbrio ambiental. No entanto, colocar sob suspeita não implica negação, mas destituição do valor de verdade suposto em tais concepções, pois o problema para o qual aponto não é conservar ou deixar de conservar, assim como tampouco preservar o vivente ou responder às necessidades dos corpos empíricos. Aponto, colocando sob suspeita, para a conservação e regulação de vidas, para estratégias de gerenciamento, que fazem da conservação um modo de vida cuja finalidade é conservar a grande vida, uma “gorda saúde dominante”, cujo discurso é, simultaneamente, o vaticínio de uma catástrofe que obriga a aceitar e adotar um certo tipo de comportamento e pensamento, e a revelação do desastre que seria não fazê-lo. Nesse movimento impõe-se, forçosamente, escolher entre aquelas possibilidades de vida a nós oferecidas — alternativas circunscritas pelo que se considera o possível em uma sociedade, em um espaço-tempo históricos. 184 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... A ecologia, esta que chamarei maior,1 diz respeito ao possível que se realiza de uma determinada maneira, isto é, aquele escolhido entre um conjunto pré-determinado, segundo a lógica das proposições científicas2 a partir de uma redução da circunstância, aquilo que pode ser observado: a destruição como realidade e o conservacionismo como necessidade. Sua finalidade é a restauração de equilíbrios por meio de palavras de ordem, que desencadeiam e conformam a participação; equilíbrios tanto mais necessários quanto determinantes de uma boa vida que leva em direção à Vida como ideal.3 Há mais de trinta anos, Ivan Illich apontava4 o principal problema que cabia ao pensamento enfrentar na contemporaneidade das questões ambientais: o espaço escolar seria o meio de prolongar ou de perpetuar a docilidade com que as pessoas respondem às exigências do confronto entre o mundo industrial com o então emergente pensamento ecológico. Esta colocação permanece ressoando: a experiência do espaço escolar ensina às crianças e aos jovens a pensarem e se comportarem de acordo com codificações em relação às quais o ambiente é colocado como anterior às relações, como construção anterior à experiência. Essa imbricação entre ambiente e espaço escolar aparece associada a práticas que pressupõem a adequação dos comportamentos, de maneira que ao ambiente está sempre vinculada uma qualidade ou uma propriedade fundamentada em juízos de valor, tais como: saudável, puro, limpo, agradável ou, em outra escala, perigoso, sujo, inadequado, nocivo ou imoral. Nessa articulação, a educação emerge “como a casa do ruim e do bom, permanentemente preocupada em saber se contribui para um mundo melhor ou pior”,5 segundo um modelo moralizante com o qual permanece comprometida. Tais concepções, via de regra, apontam a necessidade de regular e controlar comportamentos ditos 185 11 2007 danosos ao meio ambiente, os quais encontram complementaridade nos comportamentos considerados socialmente danosos, favorecendo a proliferação de vidas não qualificáveis, as quais poriam em risco o equilíbrio sócio-ambiental. Desse modo, perpetuam-se os binarismos e complementaridades, mas sobretudo restauram-se hierarquias por meio das quais pretende-se medir e contabilizar, reforçando padrões de pensamento, de escuta e de olhar. De fato, segundo Illich, o controle político torna-se tanto mais aceitável quando recebe o nome de iniciação aos problemas do meio-ambiente, não só porque o controle político, ao investir na noção de meio-ambiente, supõe o espaço como fundo neutro e homogêneo, cujos limites e possibilidades podem ser determinados, mas também porque, ao fazê-lo, afirma a possibilidade de fechamento sobre superfícies eminentemente descontínuas. 6 A perpetuação da docilização, sugerida por Illich, evidencia-se quando o corpo individual e o corpo da Terra apresentam-se como aquilo a ser formado ou re-formado pelos novos saberes e suas aplicabilidades, de modo a alcançar o equilíbrio, a saúde perfeita para corpos e mundo a prova de vazamento. Educar para o meio ambiente é antes adequar o corpo à Terra e adequar é restaurar equilíbrios perdidos ou conquistar equilíbrios futuros. A saúde perfeita do corpo individual e do corpo planetário constituindo-se, concomitantemente, na promessa de reparação de danos e na prevenção de riscos. Educar para o meio ambiente apresenta-se como o cumprimento de prescrições que reduzem os corpos e as relações à conservação. A necessidade de mais regulação e controle indica, portanto, não só que se educa para controlar e de forma cada vez mais democrática e inclusiva — palavras de 186 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... ordem que tendem a apenas atualizar fascismos de toda ordem7 —, mas também indica que não é possível estabelecer um domínio eficaz e absoluto sobre os indivíduos. Se é contra as derivas que o pensamento da conservação luta, são as derivas que nos interessam, pois o que mais seriam elas do que o próprio movimento de expansão da vida na invenção de saídas surpreendentes? Fugas Assim, Luis e Armando iam, cada qual por seu caminho, para a escola. O aspecto do colégio era indissociável do que se passava dentro dele. As vozes dos professores recobriam o colégio como uma crosta sem brilho que as idéias, assim como o olhar, não conseguiam atravessar. Os dois meninos encontraram-se na frente do colégio, olharam-se e, na volúpia do olhar, o colégio se desvaneceu. Armando, o menino mais velho, disse: “Não vamos entrar, pois no quebra mar as ondas estão furiosas, quero vê-las.” Luis, o mais jovem, inebriado pela palavra do outro, disse: “Vamos.” A possibilidade de a chuva recomeçar e o medo de ser descoberto matando aula pelos pais misturavam-se, em Luis, ao gozo da presença do outro. Armando encontrava no olhar de Luis as palavras, e Luis encontrava nas palavras de Armando o olhar. Caminhando lado a lado, sentiam o amolecimento das coisas e a inutilização das palavras propiciados pelas manhãs úmidas, da mesma umidade persistente que se notava no suor do rosto de Luis, que agora fugia com Armando. Tudo transbordava: o ar, o corpo, o mar. E Luis pensava que eles não deveriam fazer nada senão ir ao colégio de manhã, tudo o mais sobrava. “Ali diante do quebra mar, Luis compreendia o espaço maravilhoso que Armando ocupava, espaço rítmico 187 11 2007 da mão que arrumava os cachos de cabelo, das gotas que caíam na terra e a faziam gritar, dos papéis que iam e vinham nas ondas. A paisagem estreava uma aparência diversa diante do estilo ou da maneira diversa dos olhares. Eles tinham chegado diante das ondas um tanto desmemoriados, aquilo parecia não ser sua finalidade. Momentaneamente servira, mas um segredo mais escorregadio os golpeava. As fugas do colégio são o grito de algo que abandonamos, de uma pele que já não nos justifica. A curvatura das ondas, a grosseira assimilação da onda por outra onda produzia uma vaga de vapores livre de lembranças. Como se as nuvens fossem se estendendo entre eles e transformassem os meninos nuns arquipélagos úmidos. Um barco bateu neles suavemente e se viu lentamente rechaçado pelos ponteiros de um relógio. Mudaram de rumo, a finalidade que os unira se perdia invisivelmente. Iam se manter mais tensas e secretas as palavras que os enlaçavam. Mais que ver as ondas, tinham-nas adivinhado entrando na atmosfera aquosa que desalojavam; chegava até eles um rumor distante, uma onda empurrava a outra, impulsionando curvados sons que se afinavam para penetrar na baia algoada dos ouvidos. Já tinham decidido passear. Nenhum ponto fixo podia prendê-los.”8 Pouco se diz da escola nesta breve história, mas o que se sabe, como bem o sabem os meninos, é que nem as idéias, nem o olhar conseguem atravessar suas paredes recobertas pela argamassa das vozes dos professores. Isto era o que precisava ser enfrentado, isto contra o qual toda idéia preferia correr e se atirar ao mar. Apressavam o passo em direção à escola e, no entanto, paravam para acompanhar as gotas de chuva escorrendo pelos vidros, cujos caminhos variavam com o vento: podiam sempre mudar de rumo. Acordar, ir para 188 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... a escola: entre estes dois pontos — a casa e a escola — , os meninos esquecem de ser alunos e investem nos seus passeios. Ao longo do caminho, dobram esquinas desnecessárias, criam zonas de lentidão nos portões, inventam mundos. Diante da escola, olham-se, e na volúpia do olhar decidem não entrar. Os meninos desbordam, embriagam-se no gozo de uma presença ausente, lançando-se em direção ao imprevisível. Os meninos de Lezama Lima afirmam o passeio, não contra a escola, mas pelo desejo de deambular, pelo desejo de se associar nesta deambulação que é também sua paixão irresistível: a inquietação dos corpos escorrendo na distância entre as palavras. Sabem que deveriam ir para a escola, mas “no tudo mais [que] sobra”,9 que excede, o querer se afirma frente ao dever evidenciado no peso das normas, das obrigações, dos bons comportamentos. Neste pequeno conto, Lezama Lima contrapõe o espaço apático, no qual se inserem a escola, os alunos, suas obrigações e deveres, ao espaço de potencialidades irredutíveis ao primeiro, atravessado por uma multiplicidade de excitações em que os corpos dos meninos se apresentam em sua dimensão topológica, variando em função dos afetos que experimentam. O ritmo dessa linha intensa que os percorre, em que o olhar dos meninos umedece os corpos, espraiando-se no azul dos botões emergindo e submergindo como ilhas, prolonga este espaço singular aquém e além do quebramar. Sobre a ilha, os meninos tornam-se arquipélagos e os contornos do dia-cinza-dos-alunos-a-caminho-daescola desfazem-se no prazer intenso que experimentam. Emerge um entorno de sons e cores, e cada aspecto torna-se intensamente perceptível, e os meninos experimentam uma nova maneira de ver, sentir e pensar. O espaço maravilhoso que Armando ocupa é esse espaço intensivo, o qual, juntos, eles irão povoar, e do 189 11 2007 qual Armando será arrancado pela chegada de Carlos: “Não tínhamos ficado de ir ao cinema?”.10 Novamente, surge “a obrigação com nome, a escravidão à linha e ao ponto”.11 Deste modo, seria equivocado pensar que o mero ausentar-se da escola resulta em experimentações, pois estas apontam, sobretudo, para uma espécie de subversão silenciosa desencadeada pelas turbulências que os atravessam — as quais acometem os meninos no encontro do olhar —, e que permanecem aquém das obrigações encarnadas neste ou naquele, venham elas sob qualquer forma, afirmando rupturas onde a “escravidão à linha e ao ponto” é aquela que mantém os meninos submissos ao “aluno”. Submissão moral, que faz da própria fuga do colégio uma escravidão: se não estamos lá, é porque deveríamos estar em outro lugar. A ruptura se faz ali sob a linha de fuga que os meninos traçam, em que eles se fazem fugados,12 isto é, puros corpos de sensação que se sucedem, como se cada uma perseguisse a outra, encontrando-se e separando-se; precipitandose umas sobre as outras, avançando e retrocedendo, traçando-se gradualmente e destraçando-se, ora violenta, ora suavemente, em que o delírio dos corpos é aquele da própria Terra. As invenções de Lezama Lima remetem-nos ao indomável da escrita e da vida nas suas circunvoluções, nas quais frases e personagens se contorcem, comprimidos, em meio às distribuições anárquicas da pontuação, que subvertem a sintaxe, demolindo-a, restando somente os sulcos de um relevo, linha sinuosa e ondulante na qual os corpos derivam. Entre duas certezas, exprime-se uma não-conformidade. Ela diz respeito a uma não-equivalência ou não-igualdade entre os termos, por meio da qual o furioso escândalo verbal de Lezama Lima põe-nos diante de uma paisagem que nos vê, “uma vasta topografia de acontecimentos, objetos, pessoas, utensílios”,13 fragmentos de texturas que esquivam o sentido e o ob190 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... jetivo em uma geografia pontuada por uma multiplicidade de traçados singulares, cujos desvios e curvaturas são a expressão dessa condição na qual cada intervalo é um espaço aberto ao surgimento de uma nova dobra, uma redobra.14 A questão já não é considerar a diferença das coisas de aspecto (aparência) diferente; tampouco a diferença de aspectos sobre uma mesma coisa, mas cada coisa como um ponto de vista, uma variação que extrai do mundo seus aspectos, formando um intrincado labirinto de montanhas, florestas, rios, homens, animais, plantas, pedras e objetos, deslocando-se e agitando-se contra a lei, indomesticáveis, indomáveis.15 Um ecossistema complicado. Experimentações I Um ecossistema complicado. Foi com essa curta frase que encerrei minha deriva pelo conto de Lezama Lima. Dificilmente poderíamos dizer que é complicado por uma mera questão de quantidade de coisas, mas sim pelas intensidades implicadas. Um ecossistema complicado não teria começo nem fim, não seria redutível aos elementos que compõem uma cadeia, tampouco ao que é dado à percepção, pois ele implica aquilo que insiste no dado sem ser imediatamente dado. Trata-se sobretudo de novos modos de perceber e sentir que forçam o pensar neste encontro com o conto de Lezama Lima. Nesse sentido, experimenta-se o conto como aprendizado singular. Assim é que no conto de Lezama Lima experimentase a ilha e um certo regime climático, mas também a ilha como um certo regime de intensidades não determináveis. A chuva, a umidade, mas também um desmanchamento que insiste e que atravessa objetos, 191 11 2007 pessoas, palavras. A paisagem dada: o pier, a escola, as ruas, o mar, mas também o desmanchamento desta paisagem, a invenção de outras paisagens táteis, sonoras, auditivas, visuais e seus sucessivos desmanchamentos. A umidade embebe as palavras e os corpos, a paisagem torna-se porosa, respira, transpira, dissolvese, aqui e ali pontos notáveis: um olhar, os pedaços de papel que o vento dispersa, os botões de uma blusa, os cachos de um cabelo, os peixes, as nuvens. Pontos a partir dos quais pequenos territórios se fazem para em seguida, no movimento do olhar, de um vento que bate, de uma voz que sobrevém, serem desfeitos. Os meninos tornam-se arquipélagos, lugar de seus passeios-experimentações, a paisagem estreando uma aparência diversa diante do estilo ou da maneira diversa dos olhares... Experimentações II Um estilo seria, então, esse tanto de selvageria que prolifera, menos em busca de paraísos perdidos, e mais ocupado com a invenção de quantos paraísos uma certa desrazão ou desordenamento forem capazes de inventar. Estranhos paraísos feitos à custa de ajuntamentos de coisas, explicitados na enumeração disparatada, na acumulação, nos arranjos provisórios e heterogêneos, na colagem, os quais desenham uma rede de conexões imprevisíveis e cambiantes. Sua característica é a da desfiguração ou do desobramento por prodigalidade e desperdício, pela irrisão de toda funcionalidade, de toda sobriedade: um excesso excessivo.16 O paraíso é este espaço eufórico de intensidades, de conjunções de heterogeneidades, formando superfícies nas quais os fragmentos brilham num emaranhado de camadas, de simultaneidades que não alcançam a unifica- 192 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... ção, em que as coisas diferem, discordam, fugindo à regra. Neste movimento, esquiva-se o objetivo, desvia-se, instante em que o tempo perde suas marcas, seu cadenciamento regular: o que deveríamos estar fazendo, o que deveremos fazer em breve, o que deveremos fazer em três décadas, o que deveríamos ter feito. Instante em que o espaço perde suas determinações: aqui sim, ali não. Movimento que se faz na não-conformidade ao uso, onde o uso, ao remeter ao costume ou ao hábito, o faz para venerar a tradição.17 As instituições nada podem neste lugar que não é um lugar, que já não é um pedaço da Terra, mas uma variação intensiva dos corpos, tanto mais imprevisíveis quanto o próprio fazer-se e desfazer-se das ondas no quebra-mar. Não importa se o período de desvio termina, se as determinações retornam; o tempo da experimentação se prolonga sobre uma linha infinita que se pega sempre pelo meio. É assim a experimentação, com seus barroquismos, mas também o é a vida, ou ainda um modo de viver, um estilo, que dizem respeito, sobretudo, a um modo de habitar. Experimentações III A paisagem estreava uma aparência diversa diante do estilo ou da maneira diversa dos olhares. Assim Lezama Lima leva-nos a experimentar a sensação de que em toda e qualquer coisa brota algo que se libera, que vaza, assim que uma reflexão tenta representá-la em conformidade a um modelo de pensamento, algo que foge à argamassa de palavras, à sua pretensão de preencher completamente e de uma vez por todas o vão entre as coisas. 193 11 2007 Pois é ali, no trajeto definido e definitivo de todos os dias, acordar-e-ir-para-a-escola — empurrados pelo sonho continental da Razão que lhes diz dever aprender (a verdade) para melhor conhecer (a verdade) —, que as crianças inventam desvios, transformando-se, sob os pingos de chuva, em “arquipélagos que ressoam o silêncio trazido pelo mar em sons vergados”.18 É à deriva da Razão que qualquer coisa se passa, pois a exigência da Razão, mais do que o confinamento do pensamento e da vida, é o investimento na sua paralisia e esterilização,19 investimento que redunda em uma vida enfraquecida, cansada e condenada a uma corporeidade fraca, culpada e ressentida, porque reduzida às legibilidades e estabilizações do jogo comunicacional. No entanto, segundo Nietzsche, “(...) o mais inteligível não é a própria palavra, mas a tonalidade, a energia, a modulação, o ritmo com os quais uma série de palavras é proferida, (...): tudo aquilo, portanto, que não pode ser escrito (...)”,20 e que, no momento mesmo da reflexão, já a ameaça aproximando o percebido daquilo que nele escapa. Experimentações IV Ao dar as costas à escola, as personagens de Lezama Lima arrastam-nos para outros passeios, convidam-nos a desconfiar, a pôr sob suspeita os mecanismos de estabilização dos quais habitualmente nos valemos para silenciar as perturbações ou ruídos que acompanham os encontros que se fazem, buscando confiná-los ao já sabido e sentido. Nesse sentido, a ecologia e o ambientalismo não podem ser desvinculados da criação de um regime de signos, que permite enunciar o valor de cada parte da Terra para o todo da Terra, e também o valor de tudo sobre a Terra para a Terra, fazendo valer “ora partes 194 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... excessivamente separadas, ora separações excessivamente preenchidas”.21 Não só os contornos devem ser suficientemente rijos para que não haja transbordamentos, mas, sobretudo, todas as linhas devem se subordinar a modelos apresentados como dados. O breve conto de Lezama Lima convida-nos a prestar atenção nesse jogo entre linhas endurecidas de reflexão e linhas de experimentação, que exprimem o embate entre forças de subordinação e insubordinação. Ao longo da leitura do conto de Lezama Lima, deixamo-nos levar pela rarefação da atmosfera, as certezas se esvaindo à medida que a umidade avança, tornando o próprio pensamento poroso. Não se trata de negar a escola e todo o aparato educacional, tampouco a ecologia ou o ambientalismo, mas sim de como inventar as linhas com as quais nos tornamos fugados, linhas que afirmam a aprendizagem experimental como aprendizagem da variação dos modos, fazendo ressoar no pensamento a complicação implicada na vida,22 levando-o ou obrigando-o a exercer sua máxima potência: pensar. Chegamos aqui um pouco, talvez, como as personagens de Lezama Lima, um pouco mais porosos, quem sabe mais úmidos, talvez até desmemoriados e mais suscetíveis a perguntarmos a nós mesmos se a educação ambiental, ao se colocar a missão de “conscientizar”, não se torna uma ferramenta de controle brutal, reduzindo a aprendizagem a um mero exercício reflexivo, apressando-nos a preencher os vãos entre as coisas com uma “argamassa” de conceitos, fatos e valores, de forma a que se sinta, diga ou pense o já sentido, dito e pensado? Já aí é todo um território que se desmancha, pois a porosidade que experimentamos, tal qual os meninos fugados, em que os encontros e as vizinhanças não es- 195 11 2007 tão determinados, abre-nos a toda sorte de interferências, intensificando experimentações, potencializando hibridações inventivas, fazendo fugir a figura da alteridade como suporte de gestões e relativizações por meio das quais se obtém uma equivalência generalizada.23 Nas bordas do mar... As fugas do colégio são o grito de algo que abandonamos, de uma pele que já não nos justifica, assim como as gotas que caíam na terra e a faziam gritar. Rompe-se a camada superficial, a crosta dura, a argamassa de palavras com a qual assentam-se as coisas e suas verdades, impermeabiliza-se superfícies, regulariza-se e eliminase ondulações, nivela-se e apruma-se o mundo. O conto de Lezama Lima é menos sobre dois meninos que matam aula, ou sobre a existência quotidiana, e mais o “instrumento de uma experimentação afetiva, de uma exploração dos pontos sensíveis da vida”,24 a experimentação de uma atmosfera de forças que transbordam a palavra. É por meio dessa atmosfera não-verbal que Lezama Lima torna sensível o grito, a ruptura da casca: o indizível da linguagem, o inactuável do gesto, o sem nome de toda nomeação, o impensável do pensamento.25 Algo se passa, e esse algo não esta confinado aos materiais dos quais Lezama se vale, mas remete àquilo que ele investe para deles extrair uma tensão que nos lança em direção a um futuro não dimensionável. Somos engajados, assim como Luis e Armando, em um processo cuja efetividade é a ruptura ativa no interior de tecidos estruturados quando, diante do quebra-mar esquecem-se para onde iam, desmemoriados, não reconhecem e tampouco se reconhecem, e o quebra-mar já não opõe resistência ao embate das ondas ou das correntes cuja intensidade não cessam de experimentar. Para onde íamos? 196 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... Ir à escola, não entrar, ir ao quebra-mar. Gestos quaisquer que desenham territorialidades e arranjos de referências: o possível da escola, do cinema, do mar. Porém, impregnados pela umidade, interrompem seu curso: não se trata mais de ir ou não à escola, tampouco de ver as ondas, mas de fazer com que tudo isso seja dominado pelo sensível da intensidade, e de tal modo que aquela paisagem desenhada não possa ser recomposta. É sobretudo a afirmação de uma porosidade do corpo e da subjetividade, abertura por meio da qual extrai-se “a matéria que convém ao corpo que se quer edificar”,26 em ressonância com os modos de subjetivação singulares que o exprimem. Luis e Armando valem pelo que os envolve, porque “exprimem um mundo ou mundos possíveis, paisagens e lugares, modos de vida que é preciso desdobrar, desenrolar”.27 Arrastados por Lezama Lima damo-nos conta que as paisagens e os lugares enrolam-se em Luis e Armando, e que a exuberância está menos nos mares, na tempestade, nos alunos, na aula, mas no algo mais que excede, naquilo que neles nos interpela tão violentamente que o mundo vacila, os sentidos perdem seus pontos de apoio, restando somente os vapores livres. ... um rumor distante Ao final deste texto o leitor poderia se perguntar: mas de que se trata? O que era tudo isso? Trata-se de uma experimentação. Trata-se de juntar alguns elementos. O conto de Lezama Lima, bem como o texto aqui apresentado, são o que menos contribui para uma aprendizagem experimental, pois é somente ao manipulá-los que eles se tornam materiais expressivos, compondo um arranjo de forças.28 A aprendizagem independe dos materiais escolhidos, mas da potência do encontro que se faz, das conexões que se inventa. 197 11 2007 Na perspectiva de uma experimentação, preparar um texto, um artigo ou uma aula é desenhar alguma coisa, é compor uma paisagem, mas, como o próprio termo diz, compor é antes arranjar, é maquinar, de maneira que, texto, artigo ou aula, se apresentam como uma paisagem que se faz na medida em que é percorrida. O percurso não é outra coisa senão as conexões inventadas. Não importa o que os elementos juntados significam, tampouco o que vai acontecer, qual o próximo passo, mas sim mobilizar o corpo, o pensamento, sensibilizá-los de modo a experimentar-se no experimentar a paisagem, traçando linhas e acompanhando-as, linhas por meio das quais a paisagem se desmancha e se inventa. Afinal, um artigo ou uma aula, na perspectiva de um aprendizado experimental, compõem-se sobre uma linha de fuga, assim como o texto sobre uma aula, e o tema aqui privilegiado: as ecologias que a vida inventa, menores ecologias. Sem sentido ou finalidade, elas não reconhecem qualquer ordem, qualquer razão, qualquer estabilidade. Remetem, sobretudo, àquilo que permanece indomesticável, escapando insistentemente aos sistemas de ordenação, sejam eles quais forem. Um ruído permanece insistentemente, mesmo em face dos mais arrojados projetos de pacificação impostos à vida e ao pensamento; esta é a força do menor, ou a potência minoritária. A existência se retoma, se reitera, sem ser coagida pelas leis; transgressiva, ela manifesta uma singularidade contra a lei, sob a lei, não se constituindo, portanto, como norma para julgar, decidir ou proceder. Notas 1 Bruno Latour argumenta pela insustentabilidade da distinção entre ecologia científica e ecologismo ou ambientalismo, vendo em ambos os portavozes privilegiados de uma missão que é conduzida em proveito do “bem-estar, prazer 198 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... e boa consciência de um pequeno número de humanos, cuidadosamente selecionados, geralmente americanos, brancos, machos, ricos e educados.” Bruno Latour. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, EDUSC, 2004, p.45. Tradução de Carlos Aurélio Mota de Souza. 2 A este respeito ver Pierre Levy . O que é o virtual. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Ed. 34, 2001, pp.16-17. Tradução de Paulo Neves. Ver Edson Passetti. “Sociedade de controle e anarquia”, o autor coloca que a restauração de equilíbrios, buscando qualidade de vida, é o que objetiva as “estratégias de ecopolítica em que participar é mais do que difundir uma ética de respeito e conservação do planeta (o que, por vezes, confunde-se com a atuação circunscrita aos santuários ecológicos, últimas espécies animais e outras a um apelo ao desenvolvimento capaz de dar conta das populações e seus locais).” in Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Ed. Cortez, 2003, p.271. 3 Ivan Illich. “Contra a produção do bem-estar” in As instituições e os discursos. Tempo Brasileiro, out./dez. de 1973, pp. 87-92. 4 Walter O. Kohan. “Entre Deleuze e a educação”, in Educação e Realidade, v. 27, nº2, jul/dez de 2002, p.126. 6 Kaustuv Roy. “Gradientes de intensidade”, in Educação e Realidade, v.27, nº2, jul/dez de 2002, pp. 90-91. 5 Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam que o racismo não se dá por exclusão racial, mas por meio de uma estratégia de inclusão diferencial em que o Outro passa a ser expressão de identidade e homogeneidade étnicas, sempre remetido ao Mesmo. 7 Recortes do conto “Fugados”, de José Lezama Lima. Fugados. São Paulo, Iluminuras, 1993. Tradução de Josely Vianna Baptista. 8 9 Idem, p.17. 10 Ibidem, p. 20. 11 Ibidem, idem. Segundo o Moderno Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis, fugado é um termo proveniente da música, e significa composto em estilo de fuga. Josely Vianna Baptista preserva o termo na tradução para o português sem utilizar itálico. 12 13 Josely Vianna Baptista. “Cardume argênteo de peixes verbais”, posfácio, in José Lezama Lima, 1993, op. cit, p. 108. Gilles Deleuze. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus, 1991, p. 3438. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 14 199 11 2007 15 Segundo Lapoujade “a sensação exprime a força que ela reencontra. (...) Sentir, é assistir a passagem de uma força, não somente as forças que nos afetam, mas também as forças que dobram as montanhas, que deformam os corpos, e que propiciam a emergência de novos modos de subjetivação, novos modos de existência”. David Lapoujade. “Conférence”, p.4. Severo Sarduy. “Por uma ética do desperdício”, in Severo Sarduy. Escrito sobre um corpo. São Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 57-80. Texto também publicado sob o título “Barroco e neobarroco”, no volume de textos América Latina em sua literatura, organizado pela UNESCO. 16 Benito Pelegrín. “Las vías del desvío en Paradiso. Retórica de la oscuridad”, in José Lezama Lima. Paradiso (edição crítica). ALCA XX, 1996, p. 626. 17 18 José Lezama Lima. 1993, op.cit., p. 19. Carlos Henrique de Escobar. “O gato à deriva da Razão” in Carlos Henrique Escobar (org.). Por que Nietzsche? Rio de Janeiro, Achiamé, s/d., pp.78-79. 19 Friedrich Nietzsche. Fragmentos do espólio verão-outono 1882. Brasilia, Ed. UNB, 2004, § 296. Seleção, tradução e prefácio de Flavio R. Kohte. 20 Luis B. L. Orlandi. Procedimentos expressivos (curso ministrado no PPG da PUC/SP, 1º semestre de 2005). 21 22 Idem. A articulação entre biodiversidade e diversidade cultural pretende exprimirse numa totalidade que tudo abarca, funcionando como uma terapéutica do Todo em relação ao qual o “material bruto” da diversidade é utilizado para expressar a identidade e a homogeneidade segundo graus de afastamento do elemento do branco. Bruno Latour, op.cit., 2004, p. 323 e 45; Kaustuv Roy, op. cit., 2002, p. 94, e Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mille Plateux. Paris, Minuit, 1980, p. 218. 23 24 François Zourabichvili. “Deleuze e a questão da literalidade”, in Educação e Sociedade, v.26, nº93, set./dez. de 2005, p. 1318. 25 Tais concepções estão presentes nas diversas análises desenvolvidas por Blanchot, José Gil e Gilles Deleuze. 26 José Gil. Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo, Iluminuras, 2005, p. 75. Gilles Deleuze. Proust e os signos. Rio de Janeiro/São Paulo, Forense Universitária, 2003, p.113. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. 27 28 Cf. Silvio Ferraz. O Livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição). Rio de Janeiro, 7 Letras/FAPESP, 2005, pp. 89-90. 200 verve Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem... RESUMO Dois movimentos atravessam este artigo. O primeiro põe sob suspeita a articulação entre educação e meio-abiente, na sua imbricação com um discurso conservacionista e um pensamento da conservação, ambos pautados em práticas consideradas saudáveis e comportamentos considerados adequados. O segundo compõe-se com o conto Fugados de Lezama Lima, e com ele esboça algumas linhas, linhas de uma aprendizagem experimental, que remetem, sobretudo, àquilo que permanece indomesticável: as ecologias que a vida inventa, menores ecologias. Palavras-chave: educação, aprendizagem experimental, menores ecologias. ABSTRACT Two movements pass through this article. The first one questions the relationship between education and environment, in its connection with a conservacionist discourse and a conservation mentality, both based on practices seen as healthy and on behaviors seen as appropriate. The second one is based on Lezama Lima’s short story Fugados and, from it some lines of a experimental learning are drafted. Those lines are related with the things that still are savage: the ecologies invented by life, the minor ecologies. Keywords: education, experimental learning, minor ecologies. Recebido para publicação em 27 de agosto de 2006 e confirmado em 23 de outubro de 2006. 201 11 2007 transgressão e esgotamento: aguda indiferença, suficientemente desinteressada e escrupulosa1 alexandre de oliveira henz* Foi com o convite a esse ciclo que a oportunidade de rever os filmes propostos, o ver de novo, me lançou numa pretensa experiência de recognição, que no seu decorrer não me protegeu em quase nada de seus compostos, esta pororoca. São filmes impossíveis de se ver e sair ileso, eles são dinamite, uma fenda aberta, um susto pelo qual vos agradeço. Pela importância de qualquer susto que não se mereça como as palavras de Arnaldo Antunes na música Qualquer. É a fecundidade deste susto que aqui agradeço. Ver esses filmes foi isso. Com esse breve depoimento me introduzo um pouco na espessura das questões propostas pelo ciclo: Cinema, jovens e transgressão, e farei alguns poucos comentários, na verdade uma série de notas ziguezagueantes. Inicio pelo filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, de 1971. * Alexandre de Oliveira Henz é doutor em psicologia clínica e professor na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) – Campus Baixada Santista. verve, 11: 202-217, 2007 202 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... É interessante acompanhar o personagem Alex, quando prisioneiro, e em grande medida inscrito na sociedade disciplinar com sua matrícula 655321 e sua assinatura várias vezes solicitada. Ele se submete ao tratamento Ludovico de reabilitação. Chamo a atenção para todo esse momento na prisão e também após sua saída. A prisão é apresentada com seus investimentos numa aprendizagem para se tornar bajulador e ardiloso. Há, no filme, uma saída e uma passagem do poder prisional ao poder médico, psiquiátrico e farmacológico que, é claro, se articulam muito bem. Kubrick já antevia no início da década de 70, a nova crença na biossociabilidade,2 nas bioidentidades. Hoje ainda estamos enredados no romantismo do século XIX, mas temos menos uma aposta num sujeito interiorizado, do segredinho, do desejo íntimo e sentimental e mais um investimento na visibilidade, numa exterioridade mais pacificada, numa performance bovinamente instalada que se quis de Alexander, e que nada tem a ver com a exterioridade grega antiga. No filme se vê o jogo da retificação e vigilância da performance exterior, que implica peritagem constante de si e do outro, isto de Laranja Mecânica ainda aparece no lote behaviorista do campo da psicologia. O condicionamento aversivo em que violência e sexo provocam vômito. O jogo sofreu mutações, se sutilizou e atualmente é mais desejado. Há uma outra fé que é mais hegemônica, outra crença se impôs: a neurociência tem a cura, a cura para a ferida da existência, para corrigir, retificar a vida. A medicina, a indústria farmacológica, a psiquiatria biológica vão nos levar à utopia asséptica, ao grande sonho de limpeza, à utopia que é a paz dos contentes. O filme tangencia essas questões. No filme, o escritor, agora na cadeira de rodas, reencontra Alex. Lembrado como subversivo pelo ministro, o 203 11 2007 escritor diz ao telefone uma frase precisa, aguda: “o povo vende a liberdade por uma vida tranqüila.” Dito de outro modo, na companhia de Espinoza: “Os homens combatem pela sua servidão como se se tratasse da sua salvação.”3 Em Alex vemos esse movimento, descrito por Espinoza, de transgressão e ironia. Em vários momentos o autoritarismo e a hierarquia compõem muito bem com uma ironia rebelde, eles operam como seus co-produtores. Poderíamos, então, reivindicar o humor e com ele um outro jogo com a transgressão? Poderíamos acompanhar nesse filme uma transgressão perversa, irônica e uma transgressão criadora, ambas na vizinhança do caos? O filme recorre a nossa inalienável violência, ao intratável em nós. Isso tudo que vemos em Laranja Mecânica em alguma medida nos habita. Violência e crueldade. Aqui a afirmação de Nietzsche de que a cultura se constitui por uma “espiritualização da crueldade”4 dá o que pensar. Algumas vezes essa espiritualização da crueldade e da violência está condenada à expressão nua e crua, é a emergência de algo que não tem e, muitas vezes, não terá governo. Na psicologia, inventamos uma parafernália de exames e diagnósticos toda vez que o que podemos chamar de determinação volitiva adequada (a vontade, a responsabilidade, a consciência moral, o eu adequado) espana, “dá pau”. Toda vez que alguém, bom moço e/ou da gangue de Alexander, mata a família (e nem vai ao cinema). Com Elefante, de Gus Van Sant, penso em outras questões. Uma escola secundarista é o território principal de uma teia. Ali passam vidas, jovens e mortes. Patricinhas anoréxicas vomitando no banheiro. O filme mostra, lentamente, movimentos de microfascismo e linhas de vida. Nuvens negras podem ser vistas no início e no final. Deste filme se poderia dizer em muitas direções, penso 204 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... em algumas. Todos sabemos que o fato de se ter jovens em todos os filmes selecionados não garante a possibilidade de uma configuração nova e criadora. Em alguma medida, e em muitas situações, a juventude pode trazer os sintomas mais crus de uma microfascistização da cultura. Ela aparece de um jeito escancarado e sem temor em alguns jovens. Para muitos que chegam às universidades não é uma questão de formação, não se trata apenas de cuidado com sua formação, freqüentemente já chegam aos cursos de graduação demasiadamente formados. Muito jovens e blindados, com cacoetes dinossáuricos, com certezas fascistizadas. A questão não é apenas da juventude, em alguma medida, trata-se do desafio de deformar, de abrir espaço na fôrma, tornar porosa a blindagem a que todos — não só os jovens — estamos submetidos. Em Zero de Conduite acompanhamos uma deformação criadora. Neste filme, dirigido em 1933 por Jean Vigo, lemos o subtítulo: jovens diabos no colégio. Na seqüência inicial, num trem, dois meninos fazem uma série de invencionices e diabruras. Invenções de uma inocência brutal. Também inocente é o professor que, no mesmo vagão, dorme ao lado dos meninos: o novo professor, Huguet, aquele que no filme imita Chaplin, mas poderia ser Keaton (já que a discussão sobre a superioridade de um destes dois palhaços, presente em cena de Sonhadores de Bertolucci, é insolúvel). Esse professor poderia se inscrever numa linhagem de personagens, andando e desenhando com as pernas para o alto na sala de aula, saudando os meninos na hora da rebelião, ou ainda, se perdendo e se encontrando com eles no passeio pela cidade. Huguet possui algo do Idiota de Dostoievski, ou dos clowns que povoam as obras de Samuel Beckett. Uma outra política de transgressão se apresenta. Ele possui a grandeza de não saber o que todos já sabem. E isso é altamente disruptivo e explosivo. 205 11 2007 Concomitante a esta inocência, há que se considerar o complô dos meninos, em que se evidencia a necessidade de planejamento, de inteligência e astúcia. O filme mostra inclusive os clichês de tudo isso, o jargão da revolta revolucionária, os discursos, a convocação, as bandeiras, etc. Clichês interessantemente acoplados a um movimento de matilha, a um passeio ditirâmbico, que se inicia antes e que aparece nas imagens transbordantes que se seguem após a guerra de travesseiros. Na cena final os meninos aparecem sobre o telhado, em fila, talvez carregados pelo diabo numa linha de saída. Há uma certa implicação do involuntário nessa revolta que, no âmbito das forças, tentando evitar simplificações, essencializações e dicotomias, poderia ser pensada numa distinção entre ingenuidade e inocência.5 Em Zero de Conduite não prepondera a ingenuidade — o infantil no sentido adulto da palavra em que se acoplam perfeitamente humildade e arrogância. O ingênuo, diferentemente do inocente tenta definir-se pelo desprezo e desconhecimento dos valores que tentam hegemonizar e dirigir o mundo. Neste esforço de desprezá-los, muito os preza. Esta perspectiva ingênua afirma-se pelo negativo: não querer saber, ser pelo avesso, num ato reativo. Aparente e supostamente, tem-se um desprendimento dos valores imperativos, mas, com efeito, opera-se na esperança despótica de um mundo funcionando pela lamúria, a falta e o preenchimento de demandas narcísicas. Em outra direção, os movimentos inocentes afirmam uma potência criadora, difícil de ser localizada. O inocente é um alvo não oferecido, tal qual o professor Huguet, que nem sequer é um opositor da ordem, ele desinveste a culpa e favorece o acaso. Não há aqui um desconhecimento dos valores instituídos, apenas não lhes é dada 206 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... importância maior, posto que estão colocados fora do foco. A ênfase da rebelião passa, no filme, pelas autoridades que são alvejadas e ficam acuadas, mas sai pelos telhados ativamente disponível a situações em aberto. Situações em aberto é o que reivindica o filme Sonhadores, de Bernardo Bertolucci. Impregnado de referências, fronteiras borradas, aprisionamento e infantilização, por vezes, o movimento do filme é pendular, entre a experimentação e a proteção excessiva. Em muitas cenas os personagens não saem da casa ou pelo menos de uma certa ambiência de impermeabilidade. Ainda assim a vida escapa ao roteiro social da transgressão. A tentativa de morte está implicada com uma vida suicidária que vai se produzindo, pouco a pouco, ainda que aderida a modelos libertários. A vergonha e o suicídio são interrompidos bruscamente pela própria vida, o mundo invade a casa na cena final. Um susto e uma saída. Nisso tudo há uma política que ressoa em Beckett e Deleuze, uma transgressão, um fio muito tênue, que diz respeito, nesse caso, a um estado da sensibilidade contemporânea, que ganha fecundidade com a noção de esgotamento, além do que podemos chamar de cansaço. Esse fio é capaz de amarrar ou desamarrar muitos fenômenos atuais. Na maior parte destes filmes não se trata tão somente do esgotamento do sujeito moderno, do eu, mas de uma política com a vida, em que a noção de esgotamento permite uma operatoriedade. Para acompanhar esses movimentos nos auxilia o último longo texto de Gilles Deleuze, publicado em 1992, que se intitula “L’ épuisé”6 [“O esgotado”] cujo tema é o esgotamento do possível. Este ensaio foi anexado como posfácio à publicação de quatro roteiros de peças para televisão de Samuel Beckett. No “L´épuisé”, Deleuze analisa três línguas em Beckett, e quatro maneiras de esgotar o possível que a elas correspondem. 207 11 2007 É importante assinalar que no esgotamento não há passividade, há que se estar ativo para ir ao cinema, esperar, pular na água, perambular, mas é preciso suspender a utilidade prática da existência. O esgotamento não é nem mesmo um estado de prontidão, que guardaria ainda um certo campo pragmático, alguma utilidade. A ativação no esgotamento é uma vibração intensiva, não é para alguma coisa. É isso o que interessa à problematização da transgressão nestes filmes: uma intensificação para nada, uma vibração intensiva. Um jogo por proliferação de tecidos, a noção de maturidade do homem referida por Nietzsche, algo da seriedade da criança dedicada aos brinquedos,7 hiatos, peripécias, deiscências, silêncios. No esgotamento, a confusão de identidades é apenas aparente, como refere Beckett, devido à pouca aptidão de as ter,8 o que implica, entre outras coisas, uma certa inocência e ausência de humanidade, uma largueza de alma, isto é, uma possibilidade de aumento da superfície de contato, de expandir a gama de experiências efetivamente experimentáveis e toleráveis, desalojando e transformando os pólos dominantes dos lugares do certo e do errado que tentam monopolizar as interpretações de mundo, procurando manter suas paisagens congeladas numa tônica invariável. Nietzsche, referindo-se a um sim à vida, sugere essa espécie de largueza quando atribui aos que ele denomina homens nobres: “Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus “malfeitos” inclusive - eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento (no mundo moderno, um bom exemplo é Mirabeau, que não tinha memória para os insultos e baixezas que sofria, e que não podia desculpar, simplesmente porque - esquecia). Um 208 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... homem tal sacode de si, com “um” movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam (...).”9 Efetivações de uma aguda indiferença e esgotamento: esquecer, não levar a sério, não ter a que desculpar. A transgressão do esgotado está cravada no instante, um rebanho, com pouco fardo de memória e interioridade: “não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado.”10 Da mesma maneira, Malone11 não compreende nem julga. Nas páginas finais de Malone Morre, está escrito: “Tudo está pronto. Menos eu. Estou nascendo na morte, se é que posso usar essa expressão. Essa a minha imagem. Merda de gestação. Os pés já saíram de dentro da grande boceta da existência. Posição favorável, espero. Minha cabeça morrerá por último. Recolha as mãos. Não consigo. A dilacerada me dilacera. Minha história terminada, ainda estarei vivo. Falta que promete. É o fim de mim. Não mais direi eu.”12 Uma deserção do eu. É interessante assinalar que para Deleuze “(...) apenas o esgotado é suficientemente desinteressado, suficientemente escrupuloso.”13 Há um agudo desinteresse que não desaba no indiferenciado passivo ou na dialética, um desinteresse ativo que, mesmo para nada, não nos exime do questionamento de si, de estarmos muito bem informados e implicados com uma vida para além da referência narcísica. Os personagens de Beckett passam pelo cansaço, mas não se detém aí, vão de um nada de vontade a um “desinteresse escrupuloso” e têm em comum o fato de terem visto algo que excedia os dados da situação.14 Partem desautomatizados, liberados do torniquete de seu 209 11 2007 laço orgânico com o mundo, carregando leves a aguda desafeição dos que não chegam a saber o que todo mundo sabe e que negam discretamente o que se julga ser reconhecido por todo mundo.15 Nos filmes vistos, algumas transgressões esgotadas não se inscrevem na ilusão dialética do ter ou não um poder absoluto. Desinteressados do controle sobre a multiplicidade supostamente impessoal e sedutora das exposições de si, os personagens desertam esses movimentos de poder - espécies de pirotecnia e iconoclastia, superexcitações ruidosas. Esses movimentos são também uma velha nova questão que implica cansaço e descanso, não um esgotamento. Deleuze em entrevista a Marlene Chapsal refere-se “a um prodigioso quadro de sintomas correspondentes à obra de Samuel Beckett: não que se tratasse apenas de identificar uma doença, mas o mundo como sintoma e o artista como sintomatologista”,16 e ele enfatiza que esta sintomatologia deve ser reconhecida em seu aspecto criador. A acídia e o silêncio são criadores em Beckett. A acídia numa aposta em sua frouxidão e em sua fecundidade, na lentidão que não deve ser confundida tão somente com entrega passiva ou enclausuramento. Aproximemo-la àquela produtividade não pragmática referida anteriormente, um ativar-se para nada, que pode auxiliar em uma certa operatoriedade política do involuntarismo. Um uso astucioso e escrupuloso da abulia. Escrúpulos no emprego da inapetência é o que reivindica o filme Lavoura Arcaica, mais ainda, ele é um filme que pergunta pela sujidade da vida. Filme de misturas e indeterminação. Nada é limpo, asséptico, puro. Na primeira cena os dois irmãos conversam na verdade do vinho, in vino veritas ao modo do Banquete de Platão 210 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... ou de Kierkegaard. Logo aparecem os dois ramos da família, o do pai, marcado pelo equilíbrio, luz e ordem e o da mãe que se avizinha ao risco (onde estão o irmão e a irmã que protagonizam o conflito principal do filme). Há aqui também uma inocência, um involuntarismo transgressivo. Não é uma aposta no contra, no negativo. É um movimento menos humano, com a terra, as folhas cobrindo, uma certa disponibilidade para o Elemental a que se refere D. H. Lawrence, “Porque as pessoas não deixam de ser amáveis ou de pensar que são amáveis, ou de querer ser amáveis, e não são um pouco elementais em vez disso?”17 Aqui também é recorrente a referência ao demônio no corpo, ao diabo, esse elemento de borda, o que carrega. O personagem central na conversa com o pai grita: “a impaciência também tem seus direitos.” A saída do filho, o abandono da casa, não foi somente uma fuga da opressão, da família, mas o filho torto, a ovelha negra, o epiléptico que vislumbra outra coisa. É sua própria animalidade que o faz escavar uma saída, com sua mãe como testemunha afetuosa e silenciosa. O personagem central sabe e diz da frágil solidez da ordem. Quer seus próprios remédios e venenos. O texto de Raduan Nassar quase transcrito ao filme de Luiz Fernando Carvalho, por vezes lembra, mesmo que às avessas, mas não totalmente, um outro pai e uma outra família, numa estranha zona de proximidade com o romance As lojas de Canela, de Bruno Schulz.18 É todo um emaranhado vivo, agudo, singularíssimo, os projetos surdos de suicídio, os cheiros das roupas já usadas, manchas de solidão. Na conversa com o pai falam das águas inflamáveis do tempo, de uma geografia da moral e depois tudo é paralisado, quando o personagem central desdiz tudo. São enunciadas tantas máximas infernais que referirei uma outra que não foi dita, a conversação final do 211 11 2007 filho com o pai ressoa com os versos de William Blake quase antecipando Foucault: “Prisões são construídas com pedras da lei e bordéis com tijolos da religião.”19 Na última cena, a dança da irmã, bacante, possuída, adornada com os objetos da caixa trazida pelo irmão, vestígios de seus encontros extra familiares, de seus contágios com o mundo. As fendas temidas pelo pai agora se escancanram, abrem-se para a vida. Ninguém suportou o jorro, essa embriaguez vital, máxima transgressão e silêncio. Um silêncio que precisa de muitas palavras, precede e finaliza, ao modo de Beckett. Silêncio do intervalo, não somente entre as palavras, mas no entre que não designa uma correlação localizável. Acontecimento sem início nem fim, jogo de uma vida que acedeu ao indefinido. É esse o silêncio-sintoma criador que nos entres isola os personagens de Beckett, dessubjetivando-os. Sobriedade transgressiva de Beckett sintomatologista. Silêncio dos espaços infinitos, sem descanso nem paz. Não mais o cansaço da pausa, ou recolhimento solipsista, nem mesmo aquele que já teria dito o que havia de ser dito,20 é o silêncio esgotado que se adensa em alguns filmes que vimos, um uso do silêncio para que as imagens se intensifiquem. Transgressões esgotadas podem estar nesse silêncio. Esgotamento e beatitude é o que acompanhamos no filme a Menina Santa de Lucrecia Martel. A menina toca as superfícies, se podemos pensar em santidade é ao modo de Santa Tereza de Ávila, enfiada na espessura dos problemas, das coisas, do mundo. Sua missão prossegue quase em silêncio. “Uma vocação para salvar uma só pessoa não é pouco”, diz a menina. Seu silêncio é um não dizer que é um sim. Que isola para estar à altura 212 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... das experimentações. Uma proteção provisória para se defender das feridas mais grosseiras e parasitárias. O congresso médico, a formalidade das coisas, a discussão religiosa sobre vocação, tudo isso tem outros ecos na menina. Nela e no médico Jano há algo que transborda, um não resistir e ao mesmo tempo perambular em silêncio. Um fechar-se estratégico, que refere Nietzsche. Isolar-se para “não ver muitas coisas, não ouvi-las, (...) reagir com menor freqüência possível”,21 para se abrir à violência das feridas mais sutis da existência que aumentam a potência da vida. Não o silêncio de uma blindagem, a menina preserva as mãos abertas22 e sensações singularíssimas. Uma vida quase imperceptível, mas não retraída ou contemplativa em seu sentido comum. Ela consiste num instante sem limites, num se igualar ao mundo para vivê-lo em sua intensidade, e ao contrário de contemplativo retraimento implica uma aguda atividade em boa parte inscrita no involuntário. Com uma trama sutil, acasos e encontros, ao final, tudo está próximo do afundamento enquanto as duas meninas nadam. Estes movimentos e políticas de transgressão, hipóteses especuladas a partir do encontro com estes filmes, ressoam na pequena carta de Beckett à Michel Polac, aceitando que trechos de Esperando Godot fossem lidos em um programa de rádio. A carta foi a introdução à performance radiofônica, pois Beckett se recusou a conceder uma entrevista sobre seu trabalho. E é com o texto desta carta que encerro estas notas. Nela, Beckett escreve: “Você quer saber minhas idéias sobre Esperando Godot, cujos excertos você me dá a honra de transmitir no seu Club d’Essai, e ao mesmo tempo minhas idéias sobre teatro. Eu não tenho idéias sobre teatro. Não conheço nada. Não vou. É admissível. Bem menos é, 213 11 2007 antes, nessas condições, escrever uma peça e, então, tendo feito isso, nem sequer ter idéias sobre ela.(...) Eu não sei mais sobre essa peça do que alguém que consiga lê-la com atenção. Eu não sei com que espírito a escrevi. Eu não sei mais sobre os personagens do que o que eles dizem, fazem e lhes acontece. Do aspecto deles devo ter indicado o pouco que pude entrever. Os chapéus-coco por exemplo. Eu não sei quem é Godot. Nem mesmo sei se ele existe. E não sei se eles acreditam nisso ou não, os dois que o esperam. Os outros dois que passam ao final de cada um dos dois atos, deve ser para quebrar a monotonia. Tudo o que consegui saber, eu mostrei. Não é muito. Mas me basta, é o suficiente. Diria até que estaria satisfeito com menos. Quanto a querer encontrar em tudo isso um sentido maior e mais elevado para levar consigo depois do espetáculo, junto com o programa e as guloseimas, não vejo nenhum interesse nisso. Mas talvez seja possível. Eu não estou mais lá, nem estarei jamais. Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky, o seu tempo e o seu espaço, eu não pude conhecê-los um pouco senão afastando-me bem da necessidade de compreender. Eles talvez devam prestar contas a você. Que eles se virem. Sem mim. Eles e eu estamos quites.” 23 Essas foram algumas notas avulsas e descartáveis, um percurso supersônico por uma certa política com a vida que esses filmes podem propor. Uma política, lugar possível para inscrever o início de um debate. Mais uma vez agradeço pelo convite, mais que isso agradeço por estas intervenções bárbaras e sistemáticas que o núcleo empreende, por esses nichos de germinação (eventos, encontros, exposições, etc.), por esses espaços de desregulagens criadoras, uma espécie de guerrilha na imanência que tem engendrado. 214 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... Notas Este texto foi escrito a partir de palestra apresentada por ocasião do Ciclo: Cinema, Jovens e Transgressão, cujos filmes propostos foram Laranja Mecânica, Lavoura Arcaica, Elefante, Zero de Conduta, Sonhadores e Menina Santa, na PUC-SP, no contexto dos encontros propostos pelo Nu-Sol, em outubro de 2006. 1 2 Ver especialmente Paulo Rabinow. “Artificialidade e Iluminismo: da sociobiologia à biossociabilidade” in Antropologia da razão: ensaios de Paulo Rabinow. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999. Organização e tradução de João Guilherme Biehl. 3 Ver prefácio de Espinosa, Baruch. Tratado teológico-político. Lisboa, Ed. IN/CM, 1988. Tradução de Diogo Pires Aurélio. 4 Nietzsche, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo, Cia das Letras, 1992, pp. 135-136. Tradução de Paulo César de Souza. Conforme a afirmação do caráter radicalmente inocente da existência em Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia. Portugal, Editora Rés, s/d, parágrafos 8, 9 e 10. Tradução de António M. Magalhães. Bem como o artigo de Luis Benedicto Lacerda Orlandi. “Marginando a leitura deleuziana do trágico em Nietzsche” in Volnei Edson dos Santos (org.). O trágico e seus rastros. Londrina, Eduel, 2003, p. 21. No qual distingue inocência da mera ingenuidade, candura ou pureza de belas almas. 5 Deleuze, Gilles. “L’épuisé”, que se segue a Quad et autres pièces pour la télévision, de Samuel Beckett. Paris, Minuit, 1992. 6 Nietzsche, Friedrich. Além do Bem e do Mal - Prelúdio a Uma Filosofia do Futuro. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2004, capítulo IV, parágrafo 94. p. 71. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. 7 Beckett, Samuel. O Inominável. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 47. Tradução de Waltensir Dutra. 8 Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral — Uma Polêmica. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1998, p. 31. Tradução de Paulo César de Souza. 9 10 Friedrich Nietzsche. Segunda consideração intempestiva — da utilidade e desvantagem da história. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003, pp. 07-64. Tradução de Marco Antonio Casanova. 11 Malone, referindo-se a animais, fardos e homens, sugere que: [...] Os animais estão no pasto, o sol aquece as pedras e as faz faiscar. Sim, deixo minha felicidade e retorno à raça dos homens também, que vão e vêm, muitas vezes com fardos. Eu os julguei mal talvez, mas não creio nisso. Além do mais, eu nem os julguei. Quero apenas começar a compreender como tais seres são possíveis. Não, não se trata de compreender. Do quê, então? Não sei. Aqui vou eu de qualquer forma [...]. In Samuel Beckett. Malone Morre. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986 (e Círculo do Livro, 1988), p. 32. Tradução e posfácio de Paulo Leminski. 215 11 2007 12 Idem, p. 143. 13 Gilles Deleuze. L’ Épuisé. Paris, Minuit, 1992. p. 61. Gilles Deleuze. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro, Editora Graal, 1988, pp. 217-218. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 14 15 Idem, p. 217. Gilles Deleuze. “Mística e masoquismo” entrevista concedida a Madeleine Chapsal (La Quinzaine Litteraire, 1-15 de abril de 1967, p. 13) a propósito da publicação de Présentations de Sacher-Masoch, acompanhada de um texto de Leopold von Sacher-Masoch, “La Venus à la fourrure”. Paris, Minuit, 1967 in Gilles Deleuze. A ilha deserta e outros textos — textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo, Editora Iluminuras, 2006, p. 172. Organização da edição brasileira e revisão técnica de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi. 16 17 William Blake e D. H. Lawrence. Tudo que Vive é Sagrado. Belo Horizonte, Editora Crisálida, 2001, p. 141. Tradução de Mario Alves Coutinho. B. Schulz. Lojas de Canelas. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996. Tradução de Henryk Siewierski 18 19 William Blake e D.H. Lawrence. Op. cit., p. 31. 20 Fábio de Souza Andrade. Despalavras de Beckett. Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 19 de setembro de 1999. Friedrich Nietzsche. Ecce Homo — Como Alguém se Torna o que é. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 47. Tradução de Paulo César de Souza. 21 22 Idem, p. 47. Beckett, Samuel. Uma carta sobre Godot. Tradução do francês de Leonardo Babo. Paris, 1952. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 08 de setembro 1996. Beckett escreveu ”Esperando Godot’’ em 1949, mas a peça só foi produzida em 1953 em Paris, um pouco antes alguns excertos foram apresentados em uma performance radiofônica no programa Club d’Essai’. 23 216 verve Transgressão e esgotamento: aguda indiferença... RESUMO O artigo problematiza e explora filmes implicados com o tema: Cinema, Jovens e Transgressão. Nos filmes analisados procurou-se evidenciar uma política que ressoa em Samuel Beckett e Gilles Deleuze, uma transgressão, um fio muito tênue, que diz respeito a um estado da sensibilidade contemporânea. Um esgotamento que está para além do cansaço. Palavras- chave: transgressão, esgotamento, política. ABSTRACT The article complicates and explores films implied with the subject: Movies, Young and Infringement. The analyzed films were found evident a politics that resounds in Samuel Beckett and Gilles Deleuze, an infringement, a very thin line, which concerns a state of the contemporary sensibility. An exhaustion that is far beyond the tiredness. Keywords: infringement, exhaustion, politics. Recebido para publicação em 03 de dezembro de 2007 e confirmado em 23 de outubro de 2006. 217 11 2007 arte: máquina de guerra beatriz scigliano carneiro* Arte pensa sem os moldes do pensamento, pensa lidando, experimenta materiais, palavras, sons, sensações, conceitos, objetos. Junta. Separa. Desmonta. Justapõe. Informa. Deforma. Racha. Arte acontece e analisa acontecimentos. Torna perceptível. Abre o olho. Afina os ouvidos. Vibra as narinas. Atiça a pele. Não dá sossego. Sinestésica, provoca sinestesias ao ecoar no corpo. Arte escapa de ser Arte. Lança aos doutos a pergunta para sérias polêmicas: O que é Arte? E assim se evade imperceptível, atravessa os templos, as salas bem postas, os cofres, foge veloz para a rua, para o lado de fora de paredes que a guardam, protegem, valorizam. Leva com ela seus artistas guerreiros, que não se abatem com noites ao relento, isolados da balbúrdia bajuladora das multidões que enaltecem quem retoca a imagem de seus * Doutora e pós-doutoranda em Ciências Sociais na PUC-SP. Professora-pesquisadora no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP pelo Prodoc/Capes. Pesquisadora no Nu-Sol. Publicou o livro Relâmpagos com claror: Lygia Clark, Hélio Oiticica, vida como arte, pela Editora Imaginário/FAPESP em 2004. verve, 11: 218-232, 2007 218 verve Arte: máquina de guerra espelhos. Não é qualquer arte, nem uma idéia de arte em busca de canais de expressão, mas interessam atitudes artistas que dão suporte à arte. A arte escapa de elegantes salões e dos leilões, das várias paredes de tijolos ou conceitos que a contém para a contemplação, não como um espírito diáfano e puro, mas carregada por pernas, braços, por corpos em fuga, atentos ao instante exato de se moverem. São corpos de carne, osso e sangue que percorrem as ruas, levados pela arte, que mal sentem o frio da madrugada e os horários das refeições, concentrados em avançar pelas invenções que vão esboçando. Invenções de máquinas de guerra, irredutíveis aos aparelhos de dominação e às soberanias hierárquicas. Necessárias à invenção guerreira de si. A arte é o que ocorre entre o artista, o que este inventa e os espaços que ambos percorrem, produzindo efeitos e catalisando forças. A análise da arte que “cria mundos”, que constitui e afirma estilos de vida se orienta por critérios que avaliam se esta construção leva ao assujeitamento ou à práticas de liberdade. Em outros termos, se tais construções artísticas funcionam como peça de aparelho de captura, engrenagem de apaziguamento ou como máquina de guerra. Por outro lado, tais critérios que não são dados prontos, não formam um juízo. “O juízo impede a chegada de qualquer novo modo de existência,”1 impede a apreensão “do que há de novo em um existente”2 e bloqueia a invenção de modos de vida. Esses critérios resultam das práticas e permitem que se percebam, dentro das mais diversas atividades artísticas, aquelas que trazem forças, aquelas que se constroem como máquinas de guerra. Por resultar de experimentação concreta, parecem estar sempre em fuga e não se separam da atividade que se intenta analisar. A arte guerreira é aquela que, 219 11 2007 ao inventar-se, inventa as regras para sua análise e, muito mais do que criar isso ou aquilo, “muda o valor das coisas.”3 Portanto, para se chegar a essa arte é preciso ir com ela, deslocar-se com a linha de fuga que constrói, com os saberes que experimenta, com as problematizações que acarreta. É preciso pensar com a arte na perspectiva guerreira, recorrendo a noções que não sejam apenas ferramentas analíticas, mas armas. A noção de máquina de guerra assinala que há uma exterioridade em relação ao aparelho de Estado ou situações de autoridade hierárquica, uma exterioridade que escapa constantemente da interiorização territorial que o aparelho estatal exige para ser soberano. 4 Devido à capacidade em agenciar linhas de fuga e conectá-las ao exterior, a máquina de guerra sofre constantes e, às vezes, bem sucedidos ataques de captura por parte do Estado. Todavia, cabe ressalvar que nem toda linha de fuga é liberadora, há linhas de fuga destrutivas, linhas de morte. O fascismo é um exemplo de um agenciamento destas linhas destrutivas e auto-destrutivas em uma máquina de guerra capturada, que se congela no Estado e na afirmação de hierarquias. Máquina de guerra relaciona-se com lutas e conflitos concretos e, conforme a relação que mantém com a guerra, acaba se dividindo em dois pólos. De um lado, quando efetiva a guerra e assim forma uma linha de destruição, o Estado se apropria dela, “subordina-lhe a fins políticos e lhe dá por objeto direto a guerra.”5 Aqui se incluem os choques e lutas em favor de grandes revoluções, que nada mais são do que aprimoramento do poder de Estado. Neste pólo, a máquina de guerra se torna instituição estatal, uma instituição capturada. 220 verve Arte: máquina de guerra No outro pólo, estão máquinas de guerra menores, que traçam linhas de fuga para além do Estado e das hierarquias, recusam a tornar-se modelos e, quando percebidas, resistem à captura, assim, encontrando a guerra. “(...) não seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaçostempos.”6 Todavia, pode ocorrer que, no instante da conquista, a máquina de guerra se metamorfoseie em outra coisa, irredutível, lance seus dardos para longe e escape, deixando para os captores uma casca esvaziada. Em ambos os pólos há um constante movimento de captura e fuga. Deste modo, esta noção possibilita que se atravessem situações sem que se perca a dimensão libertária que possam carregar e sem fazer vista grossa aos conflitos. Pode-se assim decodificar, captar a passagem de algo, mesmo imperceptível, que desmonta a identidade plena, os códigos bem postos. Historicamente a máquina de guerra se relaciona com um agenciamento que nunca se fecha sobre uma forma de interioridade ou em um território: o nomadismo. Há uma disjunção entre o nômade e o mundo sedentário, no qual o sedentário seria o que procura sempre codificar por meio de leis, instituições e o nômade percorreria seus caminhos fora da Moral, fora dos traçados do Estado, ignorando qualquer luta pelo reconhecimento mediante critérios universais ou tidos como tal, ou por um exercício de poder hierarquizante. “O nomadismo não só é possível no interior do Estado, como é absolutamente necessário para a sobrevivência de alguns indivíduos.”7 Existências que funcionam como máquina de guerra não se apresentam como alternativas aos modelos de subjetivação assujeitada do Estado, mas carregam a força da exterioridade “que destrói 221 11 2007 a imagem e suas cópias, o modelo e suas reproduções, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito.”8 Não se trata de um duplo contraditório: ou sedentário ou nômade, que ocupariam pólos separados. Ambos podem estar no mesmo lugar, mas vivendo em planos diferentes que se interceptam em situações de tensão. Não se complementam, não são se alternam. Por outro lado, não apenas os nômades históricos “possuem o segredo [da máquina de guerra]: um movimento artístico (...) pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento (...).”9 Pois é este traçado, este agenciamento que se constrói sobre linhas de fuga que define o nômade e a máquina de guerra. Não é o nômade que define a linha de fuga, ele é constituído por ela. Um artista qualquer, na medida em que escapa da identidade sedentária de “domesticador de imagens”10 e se articula com uma exterioridade, caminhando com linhas de fuga desconhecidas, neste momento, se encontra atravessado pelo nomadismo. O artista nômade é aquele que se deixa levar pelas linhas de escape para fora das identidades e categorizações. Suas obras expressam modos de existência e abrigam também o que se classificaria como algo fora da arte, dissolvendo classificações arte e vida, individual e coletivo, público e privado, abrindo passagens imprevistas entre mundos, expandindo galáxias. Até que ponto este artista vai se manter à altura do caminho de sua própria arte depende da coragem de se deslocar através dos riscos que a atividade artística guerreira traz. Depende também da capacidade em montar uma máquina de guerra que agencie linhas de 222 verve Arte: máquina de guerra fuga liberadoras e guerreiras e construa um plano de consistência, um modo de conexão — “só tem consistência, aquilo que aumenta o número de conexões”11 —, para enfrentar a “grande conjunção dos aparelhos de captura ou de dominação.”12 *** Em 1968, as ruas de cidades em várias partes do mundo foram ocupadas quase que simultaneamente por ativistas, políticos, filósofos, operários, artistas, estudantes, jovens na maioria. As instituições consagradas para disciplinar corpos e mentes receberam a carga de contestações múltiplas vindas de inúmeros setores manifestadas em praças públicas. No entanto, sorrateiramente, em reação às formas de rebeldia dos anos 1960, as formas de dominação corriqueiras começaram a se metamorfosear em outra configuração. Controle, “nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro,”13 predomina na caracterização da atualidade. Desde o Post-scriptum de Gilles Deleuze, publicado em 1990, esta noção se tornou imprescindível para problematizar aspectos das relações sociais e avaliar as resistências de uma perspectiva libertária. Uma procedência da descrição do controle encontrase em Norbert Wiener, que em 1948 recuperou a palavra grega kybernetes, “piloto de barco” — origem da palavra “governador” — e denominou o amplo campo da teoria das mensagens como cibernética.14 Tal teoria se refere não apenas ao uso das máquinas, mas inclui uma psicologia, um paradigma científico e as implicações sociais de sua aplicação.15 Para Wiener comunicação e controle se situam na mesma classe de elementos, mas 223 11 2007 com uma importante distinção. Comunicação é a simples transmissão de uma mensagem. Por sua vez, o controle consiste em uma situação na qual o comando das ações de outra pessoa depende da transmissão de uma mensagem no imperativo, e a resposta do outro precisa manifestar que a ordem foi compreendida.16 Burroughs retomou o termo controle da cibernética, associando-o mais explicitamente às práticas de comando e governo das ações e comportamentos. Em artigos e entrevistas entre 1968 e começo dos anos 1970, analisou situações de dominação não necessariamente ligadas aos meios eletrônicos. Encontrou no antigo calendário maia um modelo que esclareceu aspectos dos métodos modernos do controle. “Os antigos maias possuíam um dos mais precisos e herméticos calendários de controle jamais visto neste planeta, um calendário que de fato controlava o que o povo pensava e sentia em qualquer dia determinado.”17 O conhecimento do calendário e dos detalhes de sua aplicação era reservado a uma casta de sacerdotes que mantinha seu domínio praticamente sem contingentes policiais nem soldados. Ao se referir aos movimentos de contestação que, na enorme velocidade proporcionada pelos meios de comunicação, se espalhavam pelas ruas nos anos 1960, Burroughs observou que quem controlava fazia concessões para continuar controlando.18 Constatou que o controle precisaria de oposição para se exercer, se não houvesse nenhuma resistência, o controle não existiria. Neste contexto, avaliado pelo escritor no calor dos acontecimentos, é possível compreender melhor porque um dos efeitos das contestações dos anos 1968 foi alguma flexibilização da disciplina por meio de transformações institucionais. O controle aparece com maior visibilidade enquanto toma o modelo de uma exacerbação de certas projeções 224 verve Arte: máquina de guerra disciplinares, como a de vigilância constante, na qual se criam maneiras para que o vigiado se sinta permanentemente observado durante algum confinamento. O controle contínuo corre ao lado do aperfeiçoamento das instituições prisionais e outros equipamentos para a prática disciplinar. Agora, porém, o ato de vigiar ocorre também em espaços abertos, vigia-se também a rua com câmeras e satélites. Entretanto, o controle não disciplina os corpos extraindo deles as forças para o trabalho, ou reprimindoas em nome da ordem social, em espaços confinados. Ações de controle não se resumem a técnicas sofisticadas de vigilância, nem objetiva produzir sensações de se estar sendo reprimido, pois no controle encontramse previstas resistências e oposições. “Agora não estamos mais em um mundo onde um olha para muitos, mas no seu reverso, no qual muitos olham para o um eletrônico, traduzido numa midiosfera governada por sinopses, em que prevalece a televisão, as sondagens, os programas de computação e a Internet. É o tempo da democracia midiática em que todos devem participar.”19 De início, quando se flexibilizam disciplinas, as técnicas de controle surgem como conquista de liberdade. Como no caso da Liberdade Assistida, uma das medidas sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, criado em 1990 pelo Estado brasileiro, implantada com o intuito de reduzir a internação de jovens com infrações leves. A institucionalização da L.A. incorporou experiências realizadas em paróquias e sociedades de bairro que, visando retirar jovens das prisões da FEBEM, inventaram formas de acompanhamento dos casos fora das grades. Entretanto, em poucos anos, desde sua implantação, o contingente confinado aumentou, tanto quanto o número de atendidos pela L.A.20 Não funcionou apenas como uma flexibilização das 225 11 2007 disciplinas, mas se mostrou eficaz técnica de se neutralizar e prevenir resistências à manutenção de punições e ao sistema penal para jovens, além de ampliar o elenco das condutas passíveis de castigo.21 Estas e outras medidas, como a criação do hospital dia para enfrentar a crise hospitalar, exemplo citado por Deleuze, também “passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizaram com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.”22 Participação contínua, flexibilização das disciplinas, ênfase no aprendizado constante mediante programas estruturados, circulação veloz de informações: estas são algumas práticas do controle. Mudanças de estilos de vida pela ação tecnológica também estão em curso. As instituições disciplinares, como escolas, prisões, asilos, exércitos, criam moldes identitários fixos, algumas vezes estigmas para toda a vida, os quais são impressos em quem por elas passam, com ressonâncias na própria maneira de perceber o mundo. Ao mesmo tempo, a difusão das tecnologias de comunicação e de registro em banco de dados, pelas quais o controle se exerce em espaços abertos, tem feito com que identidades fixas coexistam com “sujeitos flexibilizados”23 e adaptáveis dentro de uma “cartela” de opções, muitas vezes, resultantes de cuidadosos estudos de técnicas de subjetivação. Enquanto prática de assujeitamento, a subjetivação se deixa capturar por instituições religiosas, estatais ou educacionais, e assim funciona como modelagem do íntimo de cada um de acordo com “fôrmas” estabelecidas. Foucault descreveu o poder pastoral caracterizado pela interiorização de uma verdade subjetiva por cada membro do rebanho, como um tipo de poder instaurado no ocidente a partir da disseminação do cristianismo. Esta modalidade de relações de poder foi perdendo a característica religiosa e “encontrou no Estado um 226 verve Arte: máquina de guerra novo suporte e um princípio de transformação,”24 enraizando-se na razão do Estado.25 Atualmente, moldar o íntimo dos indivíduos não depende apenas de figuras similares a um pastor ou de estruturas burocráticas centralizadas. Técnicas diversas, provenientes dos saberes das ciências humanas, por meio de tantas outras técnicas de divulgação e propaganda, disseminam conhecimento da “verdade” de cada um e padrões de comportamento adaptáveis a condições momentâneas. “A ‘personalidade flexível’ representa uma forma contemporânea de governamentalidade, um padrão internalizado e cultural de coerção suave,”26 sem relação direta com práticas disciplinares. Há formação de um verdadeiro “mercado de subjetividades”,27 com estímulos à modificação do comportamento de modo a adequá-lo a estilos de vida focando o consumo e relações de trabalho, à modificação do corpo conforme padrões ‘desejáveis’, divulgados pela literatura de auto-ajuda e pela mídia. Neutralizou-se drasticamente a resistência aos modelos de sociabilidade associados a padrões de dominação. Corpos disciplinados e vontades que se sentem seguras sob controle constante geram consenso e tolerância mútua. Ao mesmo tempo, desqualifica-se qualquer atualização de modos de vida imprevistos, de algum “gesto que transtorna.”28 A questão da produção de modos de vida remete às considerações de Foucault acerca das tecnologias de si. Estas são práticas sobre o corpo ou espírito, efetuadas por pessoas interessadas em atingir alguma finalidade. As práticas de si, pelas quais um sujeito se constitui de modo ativo, derivam de esquemas e vivências encontrados na cultura, na sociedade, na história, no grupo social.29 Se a invenção da escrita consolidou uma arte de viver baseada na subjetivação dos discursos lidos e ouvidos em “músculos e sangue,”30 os meios eletrônicos, especialmente o 227 11 2007 computador, com suas imagens e textos abertos à interferência pessoal e coletiva, permitem processos de subjetivação inéditos na história. Afirma-se inclusive, o nascimento de uma nova cultura, denominada cibercultura,31 termo que recupera a definição de cibernética, retirando-lhe, porém, a referência mais política ao “governo” ou à “pilotagem”, mas não deixa de ser um nome, redundante, para a caracterização da cultura da sociedade de controle. As resistências aos policiamentos interiorizados se tornou uma questão política urgente. Onde estariam as liberações, muitas vezes pulverizadas em acontecimentos imperceptíveis? Quais são os usos destes meios eletrônicos de hoje para além de consolidar o controle? “As máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma parte.”32 De que modo a potência de alguma máquina de guerra tracejada pela arte estaria já desmontando a subjetivação assujeitada do controle, na qual ser adaptável e participativo se tornaram padrões? Entretanto, nem toda arte tem combatido assujeitamentos, nem tracejado linhas de fuga liberadoras. Há arte que apenas entretém ou decora, há arte que apazigua, há arte que apela a ressentimentos, há arte que denuncia, há arte que serve à palavras de ordem. O que é Arte? Na sociedade de controle apela-se à participação contínua, também por meio de atividades artísticas. O que é Arte? Arte é o que: Arte tira crianças da rua. Arte inclui moradores da periferia na comunidade. A arte promove a participação. Arte estimula a auto-estima. A arte denuncia as falhas de instituições procurando aprimorá-las. A arte conscientiza. A arte leva à maioridade. Arte é o que: O artista passa a ser animador cultural, não precisa mais fugir por nenhuma linha que o leve pra fora, agora é um cidadão participativo. 228 verve Arte: máquina de guerra Não é nesse pólo sedentário que a máquina de guerra agencia linhas de fuga diruptivas. Em capturas controladas não se deixa divisar sequer uma gota de sangue. A “grande conjunção dos aparelhos de captura ou de dominação” controla o conflito também distribuindo sorrisos tolerantes e brindes de festas. Interessa a arte atravessada pelo outro pólo da máquina de guerra, no qual a atitude artista mantém a coragem de dizer não — um não afirmativo — às injunções evidentes do controle e dizer não ao que constitui um aspecto sutil do “novo monstro,” a saber, as “alegrias do marketing”33 ou então “as alegrias do capitalismo liberal.”34 Neste pólo a linha de fuga faz conexões com modos de existência e experimenta caminhos próprios, percursos nômades. Aqui, a arte se constrói como máquina de guerra e escapa das programações que lhe são oferecidas como itinerários inevitáveis.35 Caso for percebida neste aspecto de recusa simultânea à afirmação ética, encontra a guerra e enfrenta as forças dos aparelhos de captura, tanto as forças coercitivas, quanto as sedutoras. Da perspectiva dos efeitos liberadores das linhas de fuga, avaliam-se as forças e correntes coletivas que agenciam a arte enquanto potência de resistência, invenção ou que a capturam. Ao mesmo tempo em que, com arte, se inventam as formas por vir, se exercitam éticas, se experimentam as sociabilidades que ultrapassam limites. E se inventam armas. Notas Gilles Deleuze. Crítica e Clínica. São Paulo, Editora 34, 1997, p.153. Tradução de Peter Pal Pélbart. 1 2 Idem, p.153. 229 11 2007 3 “Criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das coisas” Yoko Ono. Apud. Hélio Oiticica. Experimentar o Experimental, 22 de março de 1972. (datilografado). Projeto HO. 4 Gilles Deleuze e Félix Guattari. “1227-Tratado de Nomadologia: a Máquina de Guerra”. Mil Platôs — capitalismo e esquizofrenia v. 5. São Paulo, Editora 34, 1997, p.23. Tradução de Peter Pál Pelbart. Idem, p. 106. 5 Gilles Deleuze. “Controle e Devir”. Conversações. São Paulo, Editora 34, 1998, p. 212. Tradução de Peter Pál Pelbart. 6 7 Regina Schöpke. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. São Paulo, EDUSP; Rio de Janeiro, Contraponto, 2004, p. 169. 8 Gilles Deleuze e Félix Guattari, 1997, op. cit., p. 47. 9 Idem, p. 109. O Estado inspira uma imagem do pensamento, com diversos contornos e variações. O artista ,“o poeta pôde exercer, em relação ao estado imperial a função de domesticador de imagens”, como um “funcionário da soberania”. Ibidem, p. 45. 10 11 Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Conclusão: regras concretas e máquinas abstratas”, 1997, op. cit., p. 223. Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”. In 1998, op. cit., p. 220. 12 13 Gilles Deleuze e Félix Guattari. “1227-Tratado de Nomadologia: a Máquina de Guerra”. In 1997, op. cit., p. 110. 14 Norbert Wiener. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São Paulo, Cultrix, 1968, p. 15. Tradução de José Paulo Paes. 15 Idem, p.15. 16 Idem, p. 16. Daniel Odier. The job: interviews with William S. Burroughs. New York, Penguin., 1989, p. 38. (tradução da autora). 17 18 William Burroughs. “The limits of control (1975)”. Grauerholz; Silverberg (ed.) Word Vírus: A William Burroughs Reader. New York, Grove Press, 1998, pp. 341-342. Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003, p.13. 19 20 Thiago Souza Santos. “Liberdade assistida: uma tolerância intolerável”. In Verve 9. São Paulo, Nu-Sol, 2006, p. 120. 230 verve Arte: máquina de guerra 21 Idem, p. 122. 22 Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”. In 1998, op. cit., p. 220. Brian Holmes. The flexible personality: for a new cultural critique. Disponível em http://www.16beavergroup.org/brian/, acessado em outubro de 2005. (tradução da autora). 23 Michel Foucault. “La philosophie analytique de la politique”. Dits et écrits, v. II., Paris, Gallimard, 1994, p. 551. (tradução da autora). 24 25 Idem, p. 550. (tradução da autora). 26 Brain Holmes, op. cit. (tradução da autora). Cristian Ferrer, O anarquismo heterodoxo de Cristian Ferrer. Entrevista, por Ilana Feldman. Disponível em http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/ 2505,2.shl, acessado em outubro de 2005. 27 28 Edson Passetti e Salete Oliveira (Orgs.). A Tolerância e o Intempestivo. São Paulo, Atelier Editorial, 2005, p. 14. Michel Foucault. “L’éthique du souci de soi”. Dits et Ecrits, v.4, Paris, Gallimard, 1996, p.356. (tradução da autora). 29 30 Sêneca. “Carta 84”. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos. Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1991, p. 381. 31 André Lemos. Entrevista virtual, 24 de novembro de 2003. Disponível em http://www.magnet.com.br/bits/especiais/2003/11/0001, acessado em novembro de 2005. 32 Gilles Deleuze. “Controle e Devir”. In 1998, op. cit., p. 216. Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”. In 1998, op. cit., p. 226. 33 34 Gilles Deleuze. “Controle e Devir”. In 1998. op. cit., p. 213. 35 A distinção conceitual entre percurso e itinerário encontra-se em Hypomnemata 58, fevereiro de 2005. http://www.nu-sol.org/hypomnemata/ hypomnemata58.htm 231 11 2007 RESUMO Neste artigo considera-se a arte como máquina de guerra, enquanto invenção de novas práticas e arma de resistência. Propõe-se aqui iniciar uma discussão mais ampla acerca da arte sob o foco da experimentação de estilos de vida para enfrentar o controle e afirmar valores libertários. Palavras-chave: arte, máquina de guerra, práticas libertárias. ABSTRACT In this article art is considered as war machine, as the invention of new practices and resisting weapon. It is proposed to start a broader discussion on art focusing ways of life experiences to face control and to assert libertarian values. Keywords: art, war machine, control society. Recebido para publicação em 22 de agosto de 2006 e confirmado em 25 setembro de 2006. 232 verve Cantos da revolução 2 jamais teria imaginado que após a torrente e o jogo de longos cabelos machos crescidos na rebelião dos anos sessenta que os cabelos curtos de tipo militar seriam moda nos anos oitenta jamais teria previsto quando abandonaríamos o estilo habitual de hábitos conformistas a favor da revolução do indivíduo simplesmente infringindo as leis do vestir que terno e gravata seriam uma vez mais fechados sobre as costelas e sobre a vontade como um tributo às fotos do rico e da riqueza 233 11 2007 pensava que precisamente no limite do justo grau de pobreza o nosso pensamento pudesse posar resplandecendo na luz do sol e não pensava que assim como nada seríamos tornados ao topázio da riqueza vestindo roupas como se estivéssemos vestindo poder não imaginava quando falávamos de amor livre que pudesse transformar o sexo no jogo de futebol um jogo livre cheio de abatidos não me dava conta quando as multidões de anarquistas começavam a reaparecer sobre as colinas do arno e do pó que eles eram unidimensionais amáveis, mas sem suficiente substância 234 verve para enfrentar as incumbentes desordens e o nosso atavismo bárbaro e muitos fundadores choraram pela sua unidimensional previsão e visto a sua dinamite fazer explodir cidades a sua física do vôo usada para o terror não tinha previsto o quanto fossem insidiosos os abraços da democracia creio que todos desejam passar a um nível superior voando além dos limites mesquinhos das nossas vidas a luz sublime (julho de 1982) 235 11 2007 o único e sua propriedade1 john henry mackay* (Parte 2) Assim nos fala Max Stirner. Como nós respondemos a ele? A tentativa de avaliar seu trabalho dificilmente pode ser melhor do que repetir suas palavras; ainda assim devemos fazê-lo para ao menos indicar o que faz esse livro ser incomparável. * John Henry Mackay (1833-1864), filho de uma alemã e um escocês, viveu na Alemanha com sua mãe após a morte precoce de seu pai. Sua longa trajetória literária inclui escritos de diversos gêneros, mas ficou conhecido como poeta lírico e anarquista. Seus escritos gay-amorosos foram publicados sob o pseudônimo de Sagitta. A redescoberta de Max Stirner é atribuída a Mackay. verve, 11: 236-271, 2007 236 verve O único e sua propriedade O significado de Der Einzige hoje é o que foi há setenta anos atrás: mais suspeito e sentido do que reconhecido. Como poderia ser diferente em tempos em que efetivamente tudo em que nos apoiávamos estava sendo abalado, quando fazíamos um sincero esforço em colocar novos valores no lugar dos velhos, quando o velho e insípido vinho foi reiteradamente derramado em novas garrafas, em vez de ser jogado fora, e quando estávamos ainda tão pouco convencidos da completa inutilidade de grande parte dos valores. A raça humana está entre a noite e o dia. Meio acordada, nós esfregamos o nosso olho, ainda pesado e sonolento, e ainda não ousamos olhar para a luz. Nós não somos capazes de nos separar dos velhos abrigos dos nossos conceitos, ainda que se choquem com as nossas cabeças; nós somos muito covardes para deixar nosso velho país e nos lançarmos ao mar da autoconsciência, que sozinha pode nos conduzir à outra margem; nós ainda não temos uma genuína confiança no futuro, apesar, ou no entanto, porque não temos mais qualquer confiança em nós mesmos. Nós não acreditamos mais em Deus, certamente não. Tornamo-nos ateístas, mas permanecemos “devotos”. Nós não rezamos mais diante do bicho-papão2 da igreja, nós nos ajoelhamos diante dos santuários dos nossos egos interiores. Nós nos intoxicamos da mesma maneira e nossa miséria ao acordar é a mesma. Nós apenas acordamos com mais freqüência, e nossa condição hesita entre a embriaguez e a dúvida, não mais a intoxicação eterna e sagrada do primeiro, dos “verdadeiros” cristãos. Assim, esse homem junta-se a nós. Ele não aparece com a condescendência do padre: ele não está a serviço de Deus, nem à de nenhuma 237 11 2007 idéia; nem sob a proteção da professora — ele deixa para nós a decisão sobre se acreditamos ou rejeitamos o que diz; nem com o cuidado do médico — ele nos deixa viver e morrer — pois sabe que a nossa ilusão é nossa doença. Ele não vem como o filósofo que procura nos envolver na rede de um novo sistema de especulação; ele rejeita a linguagem do filósofo, essa língua disforme, obscura e ininteligível, utilizada por todos aqueles que pretendem falar apenas entre si; ele cria para si sua própria linguagem, pois sabe que todo conhecimento pode ser compreensível, se assim o quiser. Ele não fala de nós; ele raramente fala conosco. Ele fala dele e apenas dele, e nós vemos como isso, seu Eu, remove uma amarra após a outra, até estar livre da última, ele permanece em orgulhoso auto-senhorio como seu próprio soberano, inconquistável, no lugar onde finalmente conquistou. A incomparabilidade e unicidade, anunciadas por Stirner, não são mais nem menos que a declaração de soberania do indivíduo. Até agora se falava apenas de seus direitos e deveres, e de onde ambos começam e terminam; mas ele se afirma livre do último e em comando do primeiro. Nós temos que decidir por nós mesmos. E como não podemos retornar à noite, devemos ir ao dia. Pois agora sabemos que somos todos egoístas. Quando vemos nossos feitos, vemos que alguns já nos levaram longe, muito mais longe do que a nossa consciência quer admitir, enquanto os outros nos envolveram nos conflitos mais insolúveis. Seria em vão continuar buscando iludir a nós mesmos e aos outros sobre as bases de nossas ações. Agora que os reconhecemos, o que resta a nós se não agir de acordo? 238 verve O único e sua propriedade O sucesso irá nos ensinar aquilo pelo qual temos que agradecer a Stirner, se o exemplo daqueles que já viveram suas vidas ainda não nos mostrou. É o nosso conhecimento final. Não mais resistamos. O dia está chegando não muito cedo após uma noite demasiadamente longa! Ele levantou pescoços inclinados pressionou a espada nas mãos paralisada: tirou-nos a fé e nos deu a certeza. Lembrou-nos de nossos verdadeiros interesses, dos nossos interesses mundanos, pessoais, próprios, especiais, e nos mostrou como buscá-los, em vez de nos sacrificar pelos interesses ideais, sagrados, estrangeiros — os interesses de todos — traz de volta a felicidade da vida, que nós aparentemente havíamos perdido. Ao analisar o Estado dos políticos, a sociedade dos socialistas, a humanidade dos humanistas e ao trazê-los à consciência como as barreiras à nossa propriedade, ele deu o golpe fatal na autoridade — quebrada com o desejo de poder da maioria, da totalidade, e de seus privilégios — e em lugar do cidadão, do trabalhador, do homem, entra o Eu, em lugar do destruidor intelectual, o criador encarnado! Mas não apenas isso: ao dedicar a outra parte do seu trabalho à exaustiva investigação das condições sob as quais esse Eu sozinho está numa posição para se desenvolver até sua unicidade, ele o mostra em seu poder, sua relação, sua auto-satisfação — os meios da sua força e sua vitória final. E no lugar da nossa raça cansada, torturada, automartirizada, entra aquela orgulhosa e livre de Der Einzige — a qual o futuro pertence. O que ele fez, fez para ele, porque lhe dava prazer. 239 11 2007 Ele não pede agradecimento algum, e nós a ele devemos nenhum. Ele apenas nos lembrou de nossas ofensas contra nós mesmos! Isso é o que ele fez; e como fez não é menos que admirável. Se a naturalidade e a força são as marcas do verdadeiro gênio, então Max Stirner era um gênio de primeira grandeza. Ele vê o mundo e seu povo com seus próprios olhos e tudo está ali diante dele na nítida luz da realidade. Nada pode perturbar ou iludir sua visão: nem a noite do passado, nem a colisão dos desejos de seu próprio tempo. Seu trabalho é completamente original, e nenhum livro teria sido escrito com maior objetividade e ausência de preconceito do que esse: Der Einzige und sein Eigenthum. Não há nada, mas nada mesmo, que Stirner assuma como firme e dado, a não ser seu próprio Eu. Nada o espanta ou confunde, de início nada o “impressiona”. Assim, ele se parece com a verdadeira criança daquele tempo crítico, tão infinitamente adiante que começa onde os outros se afastaram. Essa objetividade confere à sua palavra essa certeza auto-evidente que possui este espantoso efeito sobre uns, e vitorioso sobre outros. A lógica do pensador é incomparável. A consistência lógica rígida de suas conclusões não se retrai diante de nenhuma conseqüência. Ele não permite ao leitor levar seus pensamentos até o fim de seus territórios; ele mesmo o faz. Conceitos que pareciam ser até agora inquestionáveis são resolvidos por ele um a um e ele os permite entrar em colapso. Ele rastreia o significado das palavras até apreender seu entendimento correto, que está frequentemente em completa contradição com aquele que lhe era atribuído até então. Ele despe os grandes conceitos de sua pompa e os mostra em seu vazio; ele traz de volta à honra 240 verve O único e sua propriedade os desdenhados, condenados pela linguagem comum. Ele nos ensina pela primeira vez seu verdadeiro uso. Até agora não se pôde demonstrar sequer uma contradição interna nele; o futuro não terá nada a fazer a não ser levar adiante o que ele estabeleceu para todo o tempo. Novas perspectivas irão se abrir em abundância, mas ele encerrou esta discussão. Em sua despreocupação divina e sua lógica impiedosa, sua obra se parece com a de um homem que fez; como um dos mais afiados pensadores de nossa época diz a respeito do único, “não para agradar outros, mas em primeiro lugar para agradar o próprio criador”. Já que Stirner foi incapaz de viver de acordo com seu desejo, sua aversão foi despertada e ele criou a obra de sua vida, sobre a qual despejou toda a sua liberdade, enquanto todos ao seu redor se exauriam em furiosas exclamações e fanatismo intolerante. Se calma, autonomia, superioridade, alegria, ironia e generosidade são sempre as melhores marcas do verdadeiro homem livre, afobação, incerteza, indignação, emotividade, irredutibilidade dogmática e futilidade obtusa são marcas do homem sedento pelo poder. Um frescor no prazer na batalha perpassa esse livro da primeira a última página. Estar à altura de seu próprio adversário, ter um real adversário que se oponha a ele, o qual ele possa olhar nos olhos e capturá-lo, o qual “ele mesmo repleto de coragem, sua própria coragem” inflama, estar face-a-face na batalha, é isso que Stirner deseja para si! [Mackay parafraseia aqui parte das citações de Stirner encontradas em Schiller, Wallenstein’s Tod, Ato 1, Cena 4. Ver nota na página 1783]. Mas também ali onde o inimigo se retira timidamente, onde em seu lugar surgem os fantasmas da loucura e da ilusão, as sombras do passado, ele persegue os fugiti- 241 11 2007 vos até os esconderijos mais remotos e não descansa até trazê-los à luz do dia e os despir como os espectrais fantasmas da nossa obsessão. Ouropel e imundice— ele elimina ambos: o primeiro não o ilude e o segundo não lhe é repugnante; o ouropel do intelectual e a sujeira do indesejado desaparecem diante da consciência de sua unicidade. Sua coragem é incomparável e não se encolhe diante de nenhum adversário. Ele não reconhece qualquer autoridade sobre si. Nada lhe é sagrado. Ele é mais do que o debochador, mais do que o crítico. Ele é o grande zombador. E sua risada chama-se liberação. Essa coragem é sempre a mesma. Os velhos conceitos, aparentemente enraizados no solo dos séculos e firmes para a “eternidade da raça do homem” —, ele os ataca corajosamente, assim como os recém aparecidos slogans de sua época, aos quais trata de “ideais do futuro”, de uma nova época, e ambos, o velho e o novo, decadentes e valiosos quando por ele tocados. Tudo o que ele ataca luta sob uma bandeira, um sinal, uma fé. Mas ele luta só e ergue-se e cai com seu eu — o mais significativo exemplo para a verdade das palavras de Ibsen: “O mais forte dos homens é aquele que está mais só” [extraído de Um inimigo do povo]. Mas tão grande quanto sua coragem é sua antevisão. Ele sabe que as mãos atadas não podem lutar e que a língua paralisada não pode falar. Ele não se entrega às mãos do inimigo. Ele conhece a tola estupidez do poder soberano, que em sua onipotência divina assombra as moscas cujo zumbido perturba seu sono e não percebe a raposa que se infiltra no castelo. Stirner sabe, basta dizer “Prússia” e a obra de sua vida está destruída; dizer “China e Japão”, e toda criança sabe o que ele quer dizer. Até mesmo as aulas de dinamarquês e o 242 verve O único e sua propriedade vizinho “autocrata de todos os russos” ele nomeia apenas com...; e desde que fala de um “certo” Estado. É evidentemente um jogo infantil; mas o poder é cego e ele ri diante dele. Apenas quando acredita que suas mãos certeiras talvez possam alcançá-lo é que ele deixa o jogo e defende-se prontamente de uma acusação criminal: ele escolheu a palavra “indignação” (Empörung] apenas por seu significado etimológico, e não a utilizou em sua acepção “limitada”, significando “rejeitada pelo direito penal”. A armadura do pensador é impecável. Ele traz para a solução de suas tarefas um conhecimento que nunca o deixa sem recursos. Busca incansavelmente exemplos que necessita na história do passado. A bíblia, sobre a qual ele era sem dúvida um grande conhecedor, sempre o proporcionava os exemplos necessários. Apenas essa maravilhosa exposição sobre os homens dos velhos e novos tempos já seria suficiente para testemunhar quão profundo era o seu entendimento da história humana em suas conexões internas, mesmo que quase nenhuma página de seu livro faça menção a ela. Acredita-se que Stirner lia pouco — em oposição a Bruno Bauer. Isso parece estar equivocado ao observarmos o número significativo de obras de seu tempo às quais faz referência para exercitar sua crítica sobre as idéias contidas nos livros. São citadas por Stirner não apenas as mais importantes publicações de seu tempo, de Feuerbach e Bauer, os primeiros escritos de Proudhon que lhes oferece muitos alvos, mas também as passageiras obras de então, hoje completamente esquecidas. Essas citações, no entanto, nunca eram escritas de memória, mas eram constantemente empregadas da maneira mais cuidadosa, seguindo rigorosamente as palavras de seus autores. 243 11 2007 Não apenas a história passada e presente, mas também a vida cotidiana lhe oferece repetidas ocasiões para resgatar sua colorida riqueza, no intuito de provar diariamente a infalibilidade de suas afirmações, não obstante os mais convincentes exemplos. Ao mesmo tempo, não é a riqueza do seu conhecimento, a delicadeza com que o emprega e o seu intelecto, mas é aquilo que não pode ser aprendido e é possível apenas aos gênios — captar o mundo dos homens com o instinto da intuição de tal maneira que o importante seja separado do supérfluo — o que faz de Max Stirner e de seu trabalho tão único. Do mesmo modo que é capaz de delinear com poucos traços uma vida humana única, fazendo-lhe permanecer tangível em todo seu desenvolvimento de criança a homem, ele também demonstra nas inundações das grandes correntezas da humanidade sobre a terra a trajetória das idéias através dos séculos e suas idas e vindas; o que as propulsiona e onde elas se chocam é compreendido primeiramente relacionado a ele. Massas caóticas adquirem forma por suas mãos, para que nós as reconheçamos em sua verdadeira forma. Com a mesma certeza ao atravessar a neblina do passado, ele nos conduz através dos demolidores do nosso agitado próprio tempo. Nem o distante, nem o próximo confundem a sua visão, e incansavelmente nos conduz através da nossa selva de erros, até que alcancemos o solo seguro do futuro com a alta e orgulhosa estatura de proprietário. A linguagem e estilo do livro de Stirner — “o laborioso trabalho dos melhores anos de sua vida” — são tão originais quanto seu pensamento. Ele mesmo certa vez o chamou de “a quase desajeitada expressão do que queria.” Ele afirmou sobre si mesmo que “lutou muito contra uma língua que havia sido mimada por filósofos, mal 244 verve O único e sua propriedade utilizada pelo Estado, pela religião e outros crentes, e capaz de gerar uma ampla confusão de conceitos.” Sua linguagem possui, no entanto, um grande charme. Ela não é suave e maleável, portanto não será atrativa ou desencaminhadora; não é obscura e difícil, portanto não irá confundir ou intimidar. Mais do que qualquer outra coisa ela é de clareza cristalina, honesta, viva e capaz de qualquer expressão. Não conhece frase vazia, nenhuma contradição nem meias-medidas. Nunca se contenta com pistas, e em tudo o que fala, persegue o objetivo até que o alcance. Afirma-se que o estilo de Stirner é cansativo devido a suas repetições. Na realidade, Stirner nunca se repete. Ao aproximar-se de seu objeto de análise de maneira inventiva, sempre inovadora, ele nunca o abandona antes de tê-lo visto por todos os ângulos e tê-lo compreendido. É realmente impressionante a multiplicidade de ângulos pelos quais sua visão infalível enxerga as coisas e os homens, além do fato de nunca ser demais repetir verdades, o grande valor de sua obra está precisamente em abordar todas as objeções, em levar em consideração todos os diversos ataques à soberania do Eu. Quando lhe parece necessário, ele mesmo revela a raiz etimológica do conceito a ser descoberto (por exemplo, Estado, sociedade etc.). Ele tem uma extraordinária paixão por perseguir o significado da palavra e freqüentemente expõe sua ambigüidade pela forma perspicaz com que a utiliza, de tal maneira que a tradução de suas frases para outros idiomas pareça impossível. Ele prefere a confrontação afiada de opostos de forma a provar sua completa impossibilidade de conciliação. E todos aqueles que utilizam meias-medidas e eufemismos — os piores inimigos de qualquer progresso — o acusarão agora, assim como antes, de “extremista”. 245 11 2007 Já os que não podiam acusar de ambigüidades seu estilo afiado, preciso e livre, de maneira escorregadia eles diziam ser frio. A acusação volta-se contra os que a fazem: os que só conseguem se aquecer no fogo artificial do entusiasmo, nunca na própria chama pura da vida. Assim como uma incomensurável fúria fulmina desde as profundezas de seu livro, o calor da vida emana de sua linguagem. É verdade que ela às vezes se torna pesada e ampla, e somente após algumas reiteradas tentativas consegue lidar com aquilo que pretende ultrapassar. Mas não é falha de Stirner que ela precisa vencer o caminho através da selva de conceitos confusos e áridas abstrações de outros, por meio da dialética hegeliana e do jargão do liberalismo da época. Como ela respira aliviada quando se torna novamente a expressão dos próprios pensamentos de seu mestre, com que luz ela então os persegue — da alta zombaria até o cáustico desprezo, da alegre risada a mais amarga seriedade! Ela não torna a força de seu pensamento mais difícil à toa e raramente se eleva a um sublime emocionalismo. Mas onde se torna apaixonada, ela agarra com toda a força e cria descrições dignas de um artista de primeira linha, para a qual, juntamente com esses que possuem a frágil inocência de um desejo não correspondido, essas linhas também pertencem ao que Stirner escreveu, enquanto os sinos badalavam ao seu ouvido, que soavam “o festival de mil anos de existência da nossa querida Alemanha”. Esse livro parece ser frio? Que desprezo fala do feitiço dos “verdadeiros sedutores” da juventude, desses que “apressadamente semeiam os grãos do auto-desprezo e reverência a Deus, que preenchem jovens corações com lama e jovens mentes com estupidez”! E que amargura, que orgulho ferrenho das descrições do grande hospício do mundo e o insano 246 verve O único e sua propriedade comportamento dos internos, sua sede de vingança, sua covardia? Essa linguagem, tão cheia de emoção e com inesgotável fonte de expressões, possui ainda uma clareza cristalina. Torna a leitura desse livro único possível a qualquer um que saiba pensar. Por essa razão, os filósofos profissionais o rejeitam. Mas isso é completamente imaterial. Quando a ciência se tornar livre, como almeja a arte hoje em dia, Max Stirner irá ocupar o seu devido lugar. Enquanto isso, seu livro terá passado por milhares e milhares de mãos, espalhando as sementes de seu pensamento sobre a terra. Não é um livro que possa ser lido de uma vez. Também não é um livro que se possa folhear. Ele será apanhado e deixado de lado muitas vezes, para que os pensamentos que emergiram possam serenar, para que as sensações de indignação fiquem claras. A cada nova aproximação, o livro deixará uma marca mais duradoura em nós e seu charme cada vez mais intenso. Ele nos acompanhará pela vida, e como nunca conseguiremos vivê-la até o fim, nunca conseguiremos esgotá-lo inteiramente. Este livro é a própria vida. *** Os expoentes da “crítica” se defrontaram com uma perda diante da obra. Eles provavelmente perceberam que não poderiam deixar de dar atenção a uma publicação que mexia com as emoções em tantos sentidos. Porém, em parte eles não cumpriram sua obrigação, e em parte buscaram dispensar-se dela. As razões são evidentes —sua impotência. 247 11 2007 Assim, a quantidade de resenhas detalhadas e que possam ser levadas a sério é relativamente pequena; mas é ainda muito grande para que possamos analisá-las uma a uma cuidadosamente neste momento, ainda que merecessem. Uma breve, mesmo que incompleta, visão é necessária para esclarecer a extensão do cenário apresentado acima relativo à recepção geral da obra. As resenhas mais importantes são sem dúvida as consideradas pelo próprio Stirner e às quais respondeu; a elas será dada de imediato a atenção que merecem. Primeiro, em relação aos jornais de grande circulação — até onde podem ser analisados nessa conexão —, que ignoraram completamente o livro. Eles tinham coisas mais relevantes a fazer do que dar atenção a uma importante publicação que exigiria espaço, que seria melhor — e mais facilmente — ocupado por algum tipo de fofoca ou discussão sobre atualidades. O tempo do Hallisches Jahrbuch e do Deutsches Jahrbuch tinha passado, e aquilo que era importante e sério era cada vez mais espremido nos minguados espaços dos folhetins. Os periódicos e as revistas especializadas agiram menos negativamente. O Blätter für litterrische Unterhaltung de 1846, que, diga-se, resenhava tudo, buscou em um longo artigo chegar ao fundo do “único” [“der Einzige”]. Para eles, ele é o “excesso de filosofia de uma escola decadente”, seu conceito de intelectual é completamente falso e materialista; ele é o “profeta solitário”, e em nenhum lugar está tão bem e claramente refletida a dissolução do hegelianismo na sua forma de manual. Die Grenzboten, em Leipzig, ocupava-se freqüentemente com Stirner. A primeira vez foi em uma resenha escrita logo após a publicação de seu livro. O autor, um certo W. Friedensburg, era da opinião de que as “últimas 248 verve O único e sua propriedade teorias dificilmente admitem outro interesse no ser humano que não seja o da atitude mais blasé e esvaziada de pensamento, como aquela que encontra expressão apenas no ballet contemporâneo.” Mas ele irá, de fato, cuidar-se para não se ocupar da obra de Stirner com mais seriedade do que já havia feito. “Quem irá me garantir, portanto, que esse Eu não está se entretendo comigo e não está rindo diante do tolo que considera o tradicional como sendo o lado mais sério do senso de verdade!” Dois anos depois, Der Einzige era chamado de apaixonado, trazendo profundos sinais de uma bela alma, entediada pela monotonia da vida filistina, pela história e em esforçar-se por um objetivo! Antes, no entanto, um futuro era ainda profetizado por essa “bela alma”, e a esperança era de que Stirner “retornaria à velha bandeira após sua fracassada revolta contra o liberalismo.” Como se ele algum dia fosse assumir essa bandeira! A partir da perspectiva teológica, Hengstenberg respondeu em seu conhecido Evangelische Kirchenzeitung no final de 1846. Ocorreu na publicação do livro Das Verstandesthum und Individuum [Racionalidade e o indivíduo; publicado anonimamente por Karl Schmidt]. Stirner era visto como acabado, seu livro foi meramente citado. Houve muitas discussões sobre Der Einzige em Viertel-jahrsschirft de Wigand e sobre sua seqüência, Die Epigonen, além dos artigos em que Stirner respondeu pessoalmente, e sobre os quais voltarei adiante. No terceiro volume da primeira revista citada acima, uma seção “Feuerbach und Der Einzige” do artigo “Characteristik Ludwig Feuerbach”, escrito por um anônimo, é dedicada ao “digno adversário”; no quarto volume de Die Epigonen há um artigo, “Auflösung des Einzigen durch den Menschen” [Dissolução do único por meio do homem], escrito por Bettina von Arnim. 249 11 2007 Apenas a detalhada resenha, “De la crise actuelle de la Philosofie Hégélienne. Les parties extrême en Allemagne,” publicada no Revue des deux Mondes, de 1847, deve ser lembrada. Seu autor Saint-René Taillandier é o grande conhecedor, um especialista em relações alemãs. A resenha é dedicada, conjuntamente a Ruge e Stirner. O autor é corretamente da opinião de que a tradução do título para o francês não deveria ser “L’individu et sa propriété”, mas “L’unique et sa propriété”. Ele se coloca inteiramente ao lado de Stirner e nós reproduzimos algumas passagens de sua obra memorável na tradução alemã de [Hermann] Jellinek, que junto com [Alfred Julius] Becher foi executado [por pelotão de fuzilamento] diante do Neutor, em Viena: “Veja que precisão, que certeza indestrutível em Max Stirner! Nada o abala em sua poderosa combinação de idéias. Homem afortunado! Não possui qualquer escrúpulo, nenhuma hesitação ou remorso. Nunca um dialético foi tão bem defendido pela secura de sua natureza. Sua caneta não estremece; é elegante sem ser afetada, graciosa sem ser tendenciosa. Onde outro seria agitado, ele sorri naturalmente. O ateísmo é suspeito por ser ainda religioso em demasia; acrescentar ateísmo a egoísmo, essa é a tarefa que cumpre, e com que facilidade, com que calma de espírito!” E ainda: “o fato de que uma caneta capaz de escrever essas coisas foi encontrada, que as escreveu tão friamente, com tamanha elegância, é um segredo incompreensível. Uma pessoa deve ler o livro para convencer-se de que ele existe.” E, por último: “Como pode alguém tornar esse entusiasmo sobre nada compreensível para um leitor francês?” O francês, portanto, avalia a obra detalhadamente da sua maneira, e no decorrer de sua pesquisa percebe que não está do lado de Stirner como imaginava que estaria no início da investigação: ele atira palavras contra essa “obsessão estúpida de renunciar a si mesmo” que é tão apaixonada quanto aquelas que utilizou anteriormente em 250 verve O único e sua propriedade sua avaliação. Mas é notável que foi um estrangeiro quem encontrou a primeira e praticamente a única palavra de carinhosa admiração pela obra e procurou ser justo sobre sua ousadia e grandeza. A quantidade de artigos independentes sobre Der Einzige era extremamente pequena: a filosofia privilegiada e suas publicações mantiveram naturalmente silêncio mortal sobre todo o movimento. Mas o livro era mencionado em quase todas as considerações da filosofia “crítica” da época. Quem quer que se depare com um artigo sobre os “pós-hegelianos” pode estar certo de encontrar o nome de Stirner atrás de Strauss, Feuerbach e Bruno Bauer, às vezes descartado com palavras de desprezo, e raramente com um sério esforço de ser justo com ele, como nos seis volumes de Brockhaus Die Gegenwart de 1851, em um artigo anônimo “Die deutsche Philosofie seit Hegels Tode” [“Filosofia alemã após a morte de Hegel”]. Ali, atrás de todas as suas vítimas, eles encaixotaram o grande destruidor, feliz por ter encontrado um lugar para seu espírito desenfreado. Stirner ainda hoje se encontra nesse canto — com “seu escrito, que pode ser considerado como o mais extremo que o radicalismo filosófico da época produziu em corajosa e engenhosa negação,” como no verdadeiramente notável acordo literal entre esses homens exaustivamente sabidos de nossas grandes enciclopédias, copiando uns aos outros. As vítimas diretas em parte mantiveram silêncio, em parte buscaram se defender. Da parte da “Crítica” foi pela boca de Szeliga, a quem Stirner respondeu, enquanto o próprio Bruno Bauer nunca chegou a mencionar o nome de Stirner em seus escritos (Bauer já tinha abordado esta discussão na época de sua pesquisa histórica sobre a crítica do “soberano, do absoluto”) — veremos em breve como Feuerbach se posicionou. — Os socialis251 11 2007 tas e comunistas não se dignaram a qualquer resposta detalhada. Para ser exato, Marx e Engels responderam imediatamente, mas o manuscrito de sua obra “contra as ramificações da escola hegeliana” apenas veio à luz, “até onde não foi devorado pelas traças,” cerca de sessenta anos depois, em 1903. É saborosamente intitulado “São Max” e é certamente o mais estúpido e vazio escrito que as lutas dialéticas da época produziram. É legível apenas para aquele que possuiu interesse e compreensão suficientes para considerar interessante essa última polêmica de valor exclusivamente histórico. Até mesmo seu último editor não o apoiou mais, como realmente deveria. Sabemos como Stirner acabou com o jargão da escola pós-hegeliana e quão difícil foi, de acordo com ele mesmo. Mas enquanto ele o transformou na própria linguagem da vida, Marx e seu eco permaneceram presos a ele e depois o conduziram a abstrações que ainda hoje — infelizmente para o trabalho nãoemancipado — dominam o partido e o deixam estagnar nas velhas e rígidas formas. A obra — na qual acidentalmente Moses Hess, um antigo adversário de Stirner, também participou — demonstra o valor reconhecido por Marx na obra de Stirner, quando lhe dedicou uma resposta quase tão extensa quanto o próprio Der Einzige. Ruge foi facilmente influenciado: após a publicação de Der Einzige, como comprova sua correspondência, ele deu o mais caloroso reconhecimento a Stirner (“a primeira obra legível de filosofia em alemão,” “deve ser apoiada e divulgada”) até o entusiasmo pela crítica de seu mais odiado adversário, Kuno Fischer. Buscou discutir com Stirner em seu Zwei Jahre in Paris [Dois anos em Paris], no qual concedeu considerável espaço ao livro de Stirner, o corajoso “chamado de despertar no campo dos teóricos adormecidos”, em sua consideração sobre “nossos últimos dez anos” (“Der Egoismus und 252 verve O único e sua propriedade die Praxis: ich und die Welt” [Egoísmo e experiência: Eu e o mundo]). Na história da filosofia — internacional e alemã — haverá espaço para a filosofia de Stirner, mesmo que não sempre e, claro, nem em seu devido lugar — como o início de uma nova era — nem em seu lugar adequado — como uma nova forma de pensar, que não parte do conceito para o sujeito, para subjugá-lo, mas começa pelo último, captura o objeto, para subordiná-lo. Sim, na história da filosofia, na história da vida intelectual do nosso século, a Stirner será atribuído com relutância um pequeno espaço, pois todo escrito da história não é hoje em dia mais do que uma descrição do sucesso refletido nos olhos da maioria. Não importa quanto adentrarmos na posição dessa crítica, como se desenvolveu depois e fora da crítica contemporânea descrita, ela nos levaria muito além das fronteiras da nossa obra. *** O próprio Stirner respondeu por duas vezes às críticas à sua obra. Essas respostas, que são do maior interesse e importância, são ao mesmo tempo as últimas expressões da sua visão sobre a vida e (com uma exceção) suas últimas contribuições para revistas. A primeira resposta opõe as três mais significativas e importantes resenhas feitas a Der Einzige no ano 1845. Elas vieram de três lados que haviam sido atacados por Stirner da maneira mais afiada: do lado socialista, Moses Hess, o comunista, respondeu; a crítica deu sua resposta por meio de Szeliga; o terceiro que se dignou a uma resposta foi o próprio Feuerbach. Juntas, essas críticas foram provavelmente as mais notáveis feitas a Stirner. Sua es- 253 11 2007 colha em relação às três foi lógica e a ocasião lhe propiciou realizar, mais uma vez, seu ímpeto destrutivo contra todos os lados. A segunda resposta de Stirner, elaborada muito tempo depois, foi direcionada contra a resenha de um jovem que se arriscou em abordar sua obra com pretensão e audácia nunca antes vistas, cujo trabalho escolar foi resgatado do esquecimento apenas por meio da resposta de Stirner. A primeira resposta de Stirner à crítica de Der Einzige é encontrada em quase cinqüenta páginas do terceiro volume de Wigand’s Vierteljahrsschrift, de 1845. Seu título é “Recensenten Stirners” [Comentaristas de Stirner], e as iniciais “M. St.” como assinatura não deixam dúvidas sobre o autor. A crítica de Szeliga, “Der Einzige und sein Eigenthum”, foi publicada na edição de março de Norddeutsche Blätter, publicada pelos Bauer, por Fränkel L. Köppen e pelo próprio Szeliga como “Beiträge zum Feldzuge der Kritik” [“Contribuições para a campanha da crítica”]. Szeliga (seu verdadeiro nome era outro) era um jovem oficial, “uma figura militar precisa no pensamento e na fala, agressivo, com uma inclinação soldadesca à crítica, sem um mínimo de revolucionário e opositor, com um campo de visão prático e obtuso. Ele indagava apenas uma coisa da filosofia, que o libertasse de todas as considerações burguesas.” Ele não freqüentava “Os Livres” em Hippel, provavelmente por causa de sua oposição, mas pertencia ao círculo de Bauer em Charlottenburg e era considerado membro da “Sagrada Família”; estreou na revista literária dos Bauer com uma longa e tediosa crítica sobre Les Mystères de Paris. A ocupação industrial de suas horas de lazer com questões filosóficas da atualidade produziu ainda mais brochuras, como por exemplo, Die Universalreform und der Egoismus [“Reforma universal e egoísmo”]. Sua crítica à obra de Stirner, sobre a qual já havia dado uma 254 verve O único e sua propriedade aula a um pequeno círculo, é extraordinariamente detalhada. É a crítica da escola de Bauer, que aqui balança sua arma. “Der Einzige”, ele afirma, “fornece a oportunidade de um novo trabalho de auto-satisfação à crítica,” ao qual é tão pouco uma questão de derrubada de um, quanto da ascensão do outro. Após cuidadoso exame da “trajetória de vida do único um”, ele é declarado ser a “assombração das assombrações” e a posição de crítica a essa assombração é tratada de maneira tediosa. Como nesse caso, e também nas próximas resenhas, o exame das réplicas de Stirner nos possibilita abordar os pontos mais importantes, reconhecidos com tal e refutados pelo próprio Stirner. A segunda importante crítica a Der Einzige veio do lado socialista, por meio de Moses Hess, em uma brochura de vinte e seis páginas publicada em Darmstadt, intitulada Die letzten Philosophen [“Os últimos filósofos”]. Hess era um dos mais ativos combatentes do ainda jovem movimento socialista. Como Stirner, era um antigo colaborador do Rheinische Zeitung. Comunista em todos os sentidos, ele escreveu artigos para a revista de Herwegh Einundzwanzig Bogen aus der Schweiz e em 1845 refletiu precisamente sobre o capitalismo em sua revista Gesellschaftsspiegel, “reconhecidamente o centro do movimento socialista da época em Rhineland.” Os “últimos filósofos” são para ele Bruno Bauer e Stirner, o “solitário” e o “único”; no entanto, ele dirige sua crítica quase que exclusivamente ao último. Ele inicia sua apresentação com a suspeita de que “alguém poderia afirmar que os escritos recentes publicados por filósofos alemães eram instigados pela reação,” uma suspeita que desde então foi monotonamente reiterada pelos socialistas contra todo pensador liberal. Ele se esquiva rapidamente ao explicar que Bruno Bauer e Stirner nunca se deixaram determinar “pelo exterior”. Porém, se em sua opinião, “o desenvolvimento interior dessa filosofia que deriva da vida, teve 255 11 2007 que voltar-se a esse ‘nonsense’,” ele deixa a acusação da reação interna vigorar, convencido de também ganhar com isso o sucesso que ele pretendia aos olhos das massas. Após um olhar de relance sobre o dualismo da filosofia cristã, o “conflito entre teoria e práxis”, ele encontra no Estado cristão daquela filosofia, a moderna igreja cristã, o paraíso na terra. Nos cidadãos do Estado, de outro lado, ele não vê o verdadeiro homem, mas apenas seus espíritos, pois os corpos desses espíritos estão na sociedade burguesa. A Alemanha, para ele, ainda não alcançou esse Estado moderno, livre, que novamente pôs fim ao contraste entre o indivíduo e a raça. Porém, seus mais recentes filósofos, que alcançaram a realidade teórica dessa igreja moderna e suas contradições uns em relação aos outros, apenas consideram a relação do Estado com a sociedade burguesa. Portanto, Hess aproxima-se dos conseqüentes teóricos da escola filosófica. Ele discorda de Bauer afirmando que sua crítica nada mais é do que a crítica da alta polícia do Estado, para manter os desprezados sob controle; ele terá uma conversa muito especial com o próprio Stirner. De que tipo e quão triviais são suas objeções a ele é o que veremos a partir da resposta de Stirner. O terceiro na aliança compulsória é o próprio Ludwig Feuerbach. Ele publicou sua breve resposta a Stirner, “Uber das ‘Wesen des Christenthums’ in Bezug auf den ‘Einzigen und sein Eigenthum’” [“Sobre a essência do cristianismo com referência a O único e a sua propriedade”], no segundo volume de Wigand’s Vierteljahrsschrift de 1845 e re-publicou, sem alterações, pouco tempo depois, no primeiro volume de seu Sämmtliche Werke [Obras reunidas], o Erläuterungen und Ergänzungen zun Wesen des Christenthums [“Comentários e adições à Essência do cristianismo”], no qual incluiu uma nota de rodapé: que ali, como em qualquer lugar, ele apenas considera sua es- 256 verve O único e sua propriedade crita como uma escrita panorâmica, diante da qual ele mesmo se coloca em uma relação extremamente crítica. E que ele tem a ver apenas com seu tema, natureza e espírito, enquanto deixa a ocupação com suas letras alfabéticas para as crianças de Deus ou do Diabo. Stirner deve ter se interessado pela resposta de Feuerbach — e deve nos interessar — mais do que pelas outras críticas. Nela, a reclusão de Bruckberg buscou desviar o poderoso golpe de Stirner, desferido precisamente nele, mas infelizmente apenas muito breve, escrito em aforismos, e condensado em algumas páginas. Feuerbach nutria a maior admiração pela obra de seu adversário e a expressou claramente. Ele se inteirou da obra imediatamente após sua publicação e, no outono de 1844, escreveu a seu irmão: “é um trabalho engenhoso e de grande inteligência e tem algo a dizer sobre a verdade do egoísmo — mas excêntrico, parcial, falsamente definido. Sua polêmica contra a antropologia, isto é, contra mim, está assentada em pura falta de discernimento ou ausência de pensamento. Eu concordo com ele até certo ponto; em essência, ele não me atinge. Ele é, no entanto, o escritor mais engenhoso e livre que eu conheço.” Se a partir dessas linhas pode-se inferir toda a insegurança interior de Feuerbach em relação a seu adversário — sua honestidade está em batalha constante com seu orgulho ferido — assim, essa insegurança demonstra completamente a maneira pela qual ele acredita poder acabar com “o escritor mais engenhoso e livre que ele conhece.” Primeiramente, ele considerou escrever uma “carta aberta”, como relata seu mais recente biógrafo, Wilhelm Bolin, da qual ele também esboçou um começo. Ela ainda existe e se lê: “Caro ‘indescritível’ e ‘incomparável’ egoísta! Assim como toda a sua escrita, é também verdadeiramente ‘incompará- 257 11 2007 vel’ e ‘único’ o seu discernimento sobre mim. Eu há muito tempo previa essa opinião, apesar de ser tão original, e disse a amigos: serei tão irreconhecível que eu, que agora sou o ‘fanático’, o ‘apaixonado’ inimigo do cristianismo, serei incluído até mesmo entre seus apologistas. Mas o fato de que isso aconteceria tão rápido, de que até mesmo já teria acontecido, é que — admito — me surpreendeu. Isso é ‘único’ e ‘incomparável’ como você mesmo. Por menor que seja o tempo e o desejo de que disponho agora para refutar opiniões que não me tocam, mas apenas à minha sombra, eu ainda assim farei uma exceção ao caso do ‘Único Um’, do ‘Incomparável Um’.” Felizmente Feuerbach desistiu de continuar referindo-se a Stirner dessa maneira, mas, infelizmente, permaneceu com suas breves “explicações,” em vez de ter coragem e tempo para uma resposta consistente. Em outra carta a seu irmão, de 13 de dezembro de 1844, ele mais uma vez busca se desculpar e se conforta com a tola, mas para sua arrogância ética muito expressiva, suposição de que “o ataque de Stirner trai certa vaidade, como se quisesse construir seu nome às minhas custas.” Assim, ele magnânimo,deixa ao pobre anônimo a “alegria infantil do triunfo momentâneo.” Na realidade, o astuto homem parece ter suspeitado que em Stirner emergia um formidável adversário cuja vitória sobre ele significaria nada mais do que sua própria completa destruição, e preferiu, assim, evitar novas batalhas para que não traísse a fama de vitorioso por meio de novas derrotas. Provavelmente, por uma razão similar, ele omitiu em assinar seu nome em seus comentários em Wigand’s Vierteljahrsschrift, que atraiu interesse universal para a controvérsia que era esperada de todos os lados. Casualmente, pode-se dizer aqui que Feuerbach e Stirner nunca se encontraram pessoalmente; Feuerbach nunca veio 258 verve O único e sua propriedade a Berlin, e Stirner nunca saiu de lá enquanto um encontro teria sido de interesse de ambos. Como foi dito, Feuerbach, Hess e Szeliga responderam a Stirner conjuntamente. Ele deve ter escrito sua resposta “Rezensenten Stirners” [“Críticos de Stirner”] 4 imediatamente após a aparição da crítica em questão e quase de maneira precipitada. Como Feuerbach, ele também escreve sobre si mesmo na terceira pessoa. Após breve caracterização dos autores: Hess como socialista, Szeliga como crítico, e o anônimo — Feuerbach —, que primeiro toca no ponto em que todos os três concordam, o “Único Um” e o “Egoísta.” Segundo eles, o “Único Um” aparece como o “espírito dos espíritos” “como o “indivíduo sagrado que se deve livrar da mente,” e como um absoluto “arrogante.” Admita-se, o “Único Um” é uma frase vazia, uma expressão que nada expressa. Com relação às sagradas e grandiosas frases como homem, espírito, o verdadeiro indivíduo etc. é ainda apenas a “frase vazia, inculta e comum.” Ele, o único um, cujo conteúdo não é pensamento-conteúdo, é, portanto, também indescritível e “porque indescritível, o mais completo, e ao mesmo tempo — sem frase.” Mas o próprio Szeliga é a frase-conteúdo, Feuerbach com seu imaginado Único Um no Paraíso (Deus) é a frase sem frase-proprietária, e Hess, o único Hess, é ele mesmo apenas um arrogante — os três não o captaram. Suas caracterizações do egoísta são muito populares e demasiadamente simples. Os exemplos escolhidos por eles são despidos de sua santidade: o emocionante exemplo de Feuerbach, que opõe a cortesã ao amado; o de Szeliga, da menina rica e da mulher petulante; e o que Stirner utiliza para Hess, do europeu e do crocodilo — eles todos dão margem a ver mais uma vez, por todos os 259 11 2007 lados a natureza do próprio interesse de alguém quando comparada ao interesse sagrado. A santidade da união dos sexos, orgulho de serviço, trabalho e a lei humana do amor fornecem uma compreensão sobre descobertas que são tão profundas quanto surpreendentes; elas demonstram de uma nova maneira quão sem sentido é trazer o sagrado para simples relações sexuais, que eles permitem existir por mais tempo que o interesse exige (“o interesse de um sobre o outro cessa, mas o laço desinteressante continua a existir; quão tolo é colocar o que é absolutamente, genericamente interessante por sobre o próprio interesse pessoal”) e quão inútil é perseguir “altas” leis, em vez de deixar o indivíduo fazer aquilo que lhe parece mais útil. Stirner encerra sua resposta geral apontando que nenhum dos três “reconheceu” a mais longa seção de sua obra, na qual trata amplamente das relações do egoísta com o mundo e suas associações; ou seja, todos ignoraram essa seção. Ele finaliza dedicando algumas palavras a cada um deles. Nelas, Stirner desconsidera os brutos e grosseiros ataques de indignação contra o egoísmo. Está claro que não ocorreu a Szeliga usar crítica “pura”: o que ele fez não é a crítica “pura”, mas a crítica totalmente parcial. Feuerbach não tocou de maneira alguma no ponto que realmente importava, ou seja, “que a essência do homem não é a de Feuerbach ou de Stirner, ou a de qualquer outro homem.” Ele não tem nenhuma pista disso. “Ele permanece preso em completa despreocupação com suas categorias de gênero e indivíduo, Eu e você, homem e natureza humana,” afirma Stirner. As outras respostas a Feuerbach desafiam uma repetição na brevidade exigida aqui, tanto quanto as próprias “explicações” de Feuerbach; para serem compreendidos, ambos de260 verve O único e sua propriedade vem ser lidos e examinados em sua completude. Portanto, apenas nessa medida é que as objeções de Feuerbach devem se recolher passo a passo diante da incansável lógica com a qual Stirner refuta cada um de seus argumentos. Stirner conclui provando a Hess que ele, enquanto homem, não pode ser mais completo do que é: todo o gênero humano está contido nele, em Hess, e não falta nada daquilo que torna um homem um homem. Mostra ainda o pouco que ele compreendeu dos egoístas se associando entre eles; quão absurdo é assumir que a sociedade burguesa poderia importar a ele de alguma maneira. Ele, então, busca refutar uma série de objeções, tendo passado sobre outros com justificado desprezo, tal como na passagem em que se refere à oposição de Stirner ao Estado como “oposição ordinária da burguesia liberal”; “qualquer um que não tenha lido o livro de Stirner sem dúvida vê isso imediatamente.” Finalmente, Stirner explica a Hess, com alguns exemplos simples, óbvios, sua “associação de egoístas.” (Hess a chamava — muito equivocadamente — “associação egoísta”). Para Stirner, essa não é uma associação de egoístas na qual alguns permitem a trapaça à custa dos outros, mas, ao contrário, uma associação em que o contato entre o interesse do um e o interesse de outros, mesmo que apenas rapidamente, de passagem, é motivo para se associarem. Finalmente, Stirner relembra a seus três críticos de uma passagem do pequeno artigo de Feuerbach “Kritik des Anti-Hegel.” Já que o esquecido tratado pode apenas ser encontrado em algumas poucas mãos, vou citá-lo aqui. Feuerbach fala sobre o duplo tipo de crítica que tem sido destinada aos sistemas filosóficos: a crítica do reconhecimento e a crítica do desentendimento. Sobre a última, ele afirma na seguinte passagem: “O crítico 261 11 2007 não separa aqui a filosofia do filósofo; ele não se identifica com seu ser, não se transforma em seu outro Eu... Ele tem sempre outras coisas na cabeça em relação ao seu adversário; ele não pode assimilar suas idéias e, conseqüentemente, não encontra sentido nelas a partir de sua compreensão; elas se movem no espaço vazio de seu próprio eu como átomos epicuristas, e seu entendimento é a oportunidade de reunir um aparente todo por meio de apropriados ganchos exteriores especiais. A única, válida, objetiva medida, a idéia do sistema, da qual a alma onipresente, ela mesma na maior das contradições, é ainda a unidade, presente ou não, é para ele um objeto, ou apenas uma má cópia feita por ele mesmo. Portanto, ele se vê transferido ao campo de seu adversário numa terra não-mundana, onde tudo necessariamente lhe chega tão maravilhosamente ‘Nova Holanda’ (o antigo nome da Austrália), que ‘visão e audição lhe falham’, que ele não sabe mais se está acordado ou sonhando e talvez, às vezes, apesar da certeza apenas em rápidos momentos de seu intervalla lucida (lúcidos intervalos), até mesmo duvida de sua identidade e da correção de seu entendimento. As formas mais nobres, harmonicamente ligadas, transitam nos mais aventurosos emaranhados como figuras inconsistentes, grotescas, diante de seus olhos perplexos; as mais elevadas expressões da razão soam como contos de fada sem significado em seus ouvidos. Em sua cabeça, ele provavelmente encontra idéias e conceitos análogos a idéias filosóficas, e nelas possui alguns frágeis indícios, mas apenas para o objetivo de com elas crucificar o filósofo como criminoso contra o senso comum. Pois ele conhece esses conceitos apenas até certo ponto e considera esse limite como sendo a lei de suas validades. Se eles se estendessem para além dessas estreitas fronteiras, os perderia de vista. Eles se perdem na neblina azul do inalcançável como fantasmas, o qual o filósofo, por meio de 262 verve O único e sua propriedade um truque secreto até agora não revelado, hipnotiza ao mesmo tempo como a second sight5 dessa razão.” Essas palavras de Feuerbach ajustam-se bem à maioria, até mesmo a grande maioria de críticos de Stirner, que acabou por saber apenas isso, a crítica do desentendimento. Feuerbach, no entanto, quando escreveu provavelmente nunca pensou que ele mesmo seria lembrado pelo reverso de suas próprias palavras. As esperanças às quais Stirner dá vazão — numa ocasião futura falar mais extensamente sobre algumas das questões tratadas, como a sociedade burguesa, a santidade do trabalho etc. — demonstram quão seriamente ele pensou sobre dedicar seu mais profundo interesse na questão social. Elas permaneceram, no entanto, descumpridas. Apenas uma vez mais, pela segunda e última vez, Stirner respondeu a críticas a sua obra. Ocorreu quase dois anos depois. Wigand havia dado continuidade a seu Vierteljahrsschrift, que havia sido proibido após curta existência, com Die Epigonen. Nele, em seu quarto volume, de 1847, após seu livro ter sido comentado diversas vezes em números anteriores, Stirner publicou, sob o pseudônimo G. Edward, uma resposta a Kuno Fischer. Este último, na época um jovem estudante de vinte anos de Halle, pouco tempo antes havia publicado no Leipziger Revue um longo artigo, “Moderne Sophisten” [“Sofistas modernos”], no qual sujeitou a escola moderna de filosofia a uma crítica tão insolente quanto superficial, mas não pouco imaginativa. Já que aquela revista foi imediatamente posta de lado, ele permitiu que seu artigo fosse reeditado no quinto volume de Die Epigonen, a pedido de Wigand, e sem respeito por seu 263 11 2007 adversário, como ele disse, o teria tornado um corpus delicti [corpo de delito]. Enquanto isso, Stirner respondeu. Seu manuscrito dever ter chegado às mãos de Fischer, já que junto com sua resposta foi publicado um comentário escrito por ele. Ambos possuíam o mesmo título, “Die philosophischen Reactionäre” [“Os reacionários filosóficos”]; os comentários de Stirner tinham o seguinte subtítulo, “Die Modernen Sophisten. Von Kuno Fischer” [“Os sofistas modernos, por Kuno Fischer”. A resposta de Fischer foi “Ein Apologet der Sophistik und ein ‘philosophischer Reactionär” [“Um apologista do sofismo e um ‘reacionário filosófico’”]. Ao se examinar de perto a resposta de G. Edwards poderia parecer que não tivesse saído da caneta de Stirner. Não porque o autor tenha se referido a Stirner na terceira pessoa, o que era muito natural, mas devido ao estilo do artigo que às vezes não refletia as inconfundíveis características do estilo de Stirner. Mas Fischer assumiu com tamanha certeza que Stirner era o autor, e este não fez qualquer esforço para contradizer essa suposição, que temos todas as razões para acreditar que esse ensaio, de extraordinária importância em tantos aspectos, é uma obra de Stirner. “Die modernen Sophisten” de Kuno Fischer inicia com uma consideração sobre “os princípios do sofismo”, daí parte para “os pré-requisitos filosóficos do sofismo moderno,” como figuram para ele em Hegel (“a manifestação do espírito absoluto na energia teórica e prática do homem”), Strauss (o reconhecimento panteísta do espírito absoluto), Bauer (o desaparecimento de qualquer objeto em pura arbitrariedade), e Feuerbach (o ponto de vista de qualquer humanismo). Primeiramente, ele vê o “sofismo moderno” em Stirner: “o egoísmo absoluto ou o reino animal espiritual.” A maior parte do tratado é dedicada a ele. Stirner é o pietista e dogmático do egoís264 verve O único e sua propriedade mo, que vê espíritos em todo lugar; o único um “a arbitrariedade dogmática — que se tornou um princípio — uma monomania fundada na crença em fantasmas.” Veremos adiante como Stirner responde a isso. A última parte do ensaio ocupa-se de dois livros, dos quais Fischer afirma que o sofisma contido neles vai até mesmo além de Stirner, do egoísmo ao indivíduo e deste à ironia. Esses pontos serão também abordados mais adiante. Ao final, a antítese ao sofisma moderno é definida — humanismo, “humanidade livre.” Em sua resposta, Stirner debocha da impressionante agilidade com que Fischer termina com “a tediosa obratitã da crítica moderna.” Assim como tudo isso é mantido mais ao nível pessoal do que a resposta anterior, é também ao mesmo tempo rica em idéias mordazes e expressivas. De acordo com o padrão de Fischer, todo pensador pode ser considerado um sofista: visto dessa maneira, ou ele é um “filósofo” ou um “sofista.” Os próximos comentários só podem ser compreendidos se mantidos em sua versão integral e não podem ser reproduzidos de maneira alguma de forma abreviada. Os conceitos definidos por Fischer, conforme estabelecidos em seu uso como, por exemplo, o dos “poderes objetivos do mundo”, o do “pensar”, o do “mundo moral”, são examinados a partir de novas perspectivas. Sua descrição de sofismo na história é investigada: os jesuítas, os românticos (sujeitos “particulares”), “pura crítica.” A contradição entre interesse e princípio é abordada. A suposição de que o egoísmo de Stirner tinha se desenvolvido como conseqüência da auto-consciência de Bauer é confrontada com o fato de que Stirner já tinha terminado sua obra, enquanto Bauer ainda estava preso no trabalho de sua crítica à Bíblia, e que Stirner somente poderia ter lembrado da proclamação da “crítica absoluta”, em um apêndice. Fischer parece desconhecer a polêmica de Stirner com Feuerbach. Se ele a conhecesse, não 265 11 2007 teria visto no “egoísmo” de Stirner o “dever” de um “imperativo categórico,” um “dogma”, pois Stirner define o egoísta em oposição ao “dever”, ao “ser homem,” humanismo, o inumano — define sua “ataraxia” [calma], sua intransigência, seu terrorismo contra tudo que é humano. O desentendimento é tão grosseiro que Stirner desejou desistir de toda comunidade com os homens, se retirar de todas as características de sua organização, simplesmente negando-as! Essa resposta termina com uma indicação das poderosas conseqüências da obra de Stirner e uma engenhosa comparação. Mesmo se não tivesse sido escrito por Stirner, a resposta veio de alguém que poderia se orgulhar de ter prontamente compreendido naquela época a essência de seus ensinamentos melhor do que a maioria. Quando, ao final, ele compara Kuno Fischer a um homem cuja obra equivale a tornar-se famoso à tout prix [a qualquer preço], ele também está certo. A resposta contemporânea de Fischer a ele bastava como uma nova prova de que suas suposições estavam corretas. *** Um ano depois da publicação de Der Einzige, também na editora de Wigand, uma obra anônima Das Verstandesthum und das Individuum [“A racionalidade e o indivíduo”] apareceu, e foi rapidamente seguida por outra, uma obra menos extensa com o título Liebesbriefe ohne Liebe [“Cartas de amor sem amor”]. Seu autor se auto-denominava Karl Bürger. Na realidade, o autor de ambas era um jovem filósofo, que havia sido por um tempo membro do círculo de Hippel, e posteriormente também do Köthener 266 verve O único e sua propriedade Kellergesellschaft [sociedade da adega (de vinhos) Köthen], cujo nome real era Dr. Karl Schmidt, de Dessau. Ele, posteriormente, retornou à sua teologia, escreveu numerosos trabalhos pedagógicos e se fez conhecer principalmente por meio de sua obra de vários volumes Geschichte der Pädagogik [“História da pedagogia”]. Foi nesses dois escritos que Kuno Fischer tão astutamente percebeu a transição do mundo “espiritual” ao “mundo natural animal” e à “ironia”. Eles podem ser desconsiderados aqui, nem tanto por essa razão, mas porque de fato as pessoas freqüentemente acreditavam ter visto nessas obscuras produções, escritas às pressas, uma última continuação de Stirner, e que eles podiam ridicularizá-lo com elas. Porém, se o próprio Stirner esperava que seu adversário “fosse tão honesto a ponto de não esperar” que ele lesse mais do que uma página do Verstandesthum, então nós também nos contentaríamos com essa uma página. Um resumo disso seria o esforço do autor em mostrar o que “a única verdade seria, se alguém fosse algum dia mera razão.” Claramente vinculado a Der Einzige, Das Verstandesthum und das Individuum parece culminar com a afirmação: “O indivíduo não pensa coisas atomísticas, singulares, mas, ao contrário, encara, olha e as apanha.” O Liebesbriefe ohne Liebe é mais propriamente uma paródia tola de Lucinde de Schlegel; deste podemos ficar até mesmo sem a uma página. *** No ano 1846, Stirner recebeu a visita de um jovem poeta muito entusiasmado com sua obra — “no entanto, no sentido oposto, contrário.” Ele veio apresentar-lhe pri- 267 11 2007 meiro um poema que havia acabado de escrever. O jovem poeta chamava-se Alfred Meissner e sua obra era intitulada Ziska. A resposta de Stirner, relatada pelo próprio Meissner, é uma das poucas expressões pessoais emitidas por ele mesmo que permaneceram para nós. Mas há outra razão para repeti-las aqui. Stirner devolveu o manuscrito com as palavras: “Você deveria ter moldado Ziska como um poema heróico cômico. Em uma espécie de Batrachomyomachia! [uma tempestade num copo d’água; muito barulho por nada. A palavra é o nome de um poema de escárnio heróico em grego, supostamente de Pigres de Caria, e significa As Batalhas dos Sapos e do Rato.] Os mitos da igreja cristã tornaram-se escravos do destino, como os pagãos também se tornaram. Os contrastes do papado e do protestantismo tornaram-se de tal forma algo do passado que um poema com esse conteúdo só poderia interessar, digamos, a teólogos. Não deve mais haver oposição à Igreja. Tornou-se completamente indiferente para nós: não se disputa mais batalhas ultrapassadas. Sim, eu tenho certeza: deveria ter sido um poema heróico cômico.” Essa resposta é tão característica para ele que pode ser considerada aqui como um ponto de partida para uma última análise da influência e conseqüências de Der Einzige und sein Eigenthum no futuro. Por menor que seja nele e dele mesmo, o livro realmente indica a posição que Stirner assumiu em sua luta. Essa luta não era contra as formas exteriores da visão de mundo cristã, a mofada e decadente igreja do presente, mas contra esse espírito, que constrói cada vez em novas formas, novas fortalezas de poder, o espírito do cristianismo, que como uma obscura neblina estende-se no passado. A realização de Stirner é ter despido esse espírito de sua santidade e tê-lo exposto como o insubstancial espírito da nossa imaginação. Enquanto as mentes mais radi- 268 verve O único e sua propriedade cais de seu tempo — Strauss, Feuerbach, Bauer — ainda se baseavam decisivamente, mas temerosamente, nas concepções de sagrado, ele as dissolve e as deixa desintegrar. Ele ultrapassa o cristianismo em suas derradeiras conseqüências. Ele está destruído. Ele se estende atrás de nós com sua humilhação de milhares de anos, sua depravação da irmandade, seus incontáveis horrores, com os quais mancha a história, suas mentiras, seu autodespojamento de qualquer orgulho, cada propriedade, cada alegria e beleza genuínas; e ainda que prevaleça hoje em seus efeitos finais, Stirner, todavia, tirou isso de nós — como uma maldição! Assim, ele permanece na fronteira entre dois mundos, e com ele começa uma nova época na vida da humanidade: a época da liberdade! Ainda não encontramos para isso melhor nome que anarquia: a ordem determinada pelo interesse mútuo, em vez da condição prévia de ausência de ordem do poder; a exclusiva soberania do indivíduo sobre sua personalidade, em lugar de sua subjugação; a responsabilidade de si sobre suas ações em lugar de sua dependência — sua unicidade! Sobre as bases da visão de mundo cristã repousam os pilares de todos os conceitos que sustentam o poder; como Stirner lhes retirou o chão, eles tiveram que cair, e com eles cai aquilo que defendiam. Tão poderosa será essa reversão sem sangue de todas as relações de vida — e comparativamente tão rápido quanto certo — que esse livro imortal em suas conseqüências será um dia comparado à Bíblia. Assim como esse livro “sagrado” figura no início do calendário cristão, para levar por dois mil anos seus desastrosos efeitos para quase todo canto do mundo 269 11 2007 habitado, está também o livro profano do primeiro e autoconsciente egoísta no início dessa nova era, na qual vivemos os primeiros sinais, para exercer uma influência tão benéfica quando o “livro dos livros” foi pernicioso. Se desejarmos dizer mais uma vez o que é, como poderíamos fazê-lo melhor do que com as próprias palavras do criador? São elas: “Um crime poderoso, despreocupado, desavergonhado, sem consciência e orgulhoso” — cometido contra a santidade de qualquer autoridade! E com Max Stirner perguntamos, triunfando na irrupção da tempestade purificadora e liberadora causada por ele: “Não estremece em trovões distantes, e não vê como o céu torna-se previsivelmente silencioso e sombrio?” Notas Quinto capítulo extraído do livro Max Stirner — his life and his work. Traduzido da terceira edição em alemão por Hubert Kennedy. Concord, Peremptory Publications, 2005. A obra de Stirner Der Einzige und sein Eigenthum foi traduzida por Mackay como The unique one and his property, mais próxima da tradução em português O único e a sua propriedade. No entanto, a versão em inglês, editada por David Leopold, é intitulada The ego and its own (Cambridge, Cambridge University Press, 1995). (NT). 1 O autor utiliza o termo bogeyman, que na literatura anglo-saxã refere-se a um monstro imaginário que assusta crianças, frequentemente escondido embaixo da cama ou dentro do armário. O uso do termo indica ainda um medo irracional diante de algo ou alguém. 2 3 A citação de Stirner encontrada em Wallenstein’s Tod, Ato I, cena 4, de Schiller, conforme estabelecido por Steven T. Byington em O Único e sua propriedade, é: Eu ouso defrontar qualquer adversário o qual possa ver e medir com meus olhos, vigor inflama minha coragem vigor para a batalha. Ou, na clássica tradução de Samuel Taylor Coleridge: Eu enfrento cada combatente O qual possa ver, fixando olho no olho Que, cheio de coragem, incita coragem também em mim. (NT) A resposta de Stirner aos seus críticos encontra-se em “Rezensenten Stirners”, In Bernd A. Laska, Max Stirner: parrega, kritiken, repliken. Nürnberg, LSR-Verlag, 1986, pp. 147-205. (N.E) 4 5 em inglês no original alemão (Nota de Mackay). 270 verve O único e sua propriedade RESUMO Apresentação da obra de Max Stirner O único e sua propriedade, por John Henry Mackay. 2ª parte. Palavras-chave: Max Stirner, único, associação. ABSTRACT Presentation of Max Stirner’s work The ego and its own, by John Henry Mackay. 2st part. Keywords: Max Stirner, unique, association. Indicado para publicação em 08 de novembro 2005. 271 11 2007 a direita está crescendo? a esquerda que cresce, a direita está crescendo? mas não estamos observando e experimentando a liberação do planeta? no século dos genocídios da conduta ética tipo Lincoln, à conduta ética tipo Martin Luther King, a... (agosto de 1983, tipo, em italiano no texto) 272 verve Foucault, fulgurações da diferença Resenhas foucault, fulgurações da diferença salete oliveira* Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2006, 296 pp. Michel Foucault costumava dizer que o saber não é feito para compreender, é feito para cortar. Outra maneira sua de afirmar o duplo indissociável entre poder e saber. Fulguração de vida. Vida fulgurada, também, por Nietzsche, que se interessava por produzir o conhecimento daquilo que o corpo experimenta. Experimentações em fulguração estética que se fazem vida na vida. Nos espaços em que ela sobra, excede e escapa. Não se deixa agarrar, tal os versos em prosa heraclítica de seu poeta predileto, René Char. Tal a escrita explosiva em suas centelhas. Uma fulguração ocorrida em estrelas no espaço sideral é designada por astrônomos como uma liberação de energia, de forma explosiva, da qual resulta um aumento rápido do brilho do astro no qual ocorre, promovendo-lhe alterações, diferenças. No planeta Terra ela é designa* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora no Departamento de Política da PUC/SP. verve, 11: 273-277, 2007 273 11 2007 da por um raio que incide em sua superfície provocandolhe sulcos, vestígios. Rastros em astros, diferentes. Diferentes fulgurações, também, encontradas em Figuras de Foucault. Livro organizado por Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto como efeito das exposições realizadas no “Colóquio Internacional Michel Foucault, 20 anos depois”, ocorrido em 2004 na UNICAMP. Os vinte quatro artigos dispostos no livro em ordem alfabética pelos primeiros nomes dos autores — Alfredo (VeigaNeto), Ana (Maria de Oliveira Burmester), André (Duarte), Antonio (Cavalcanti Maia), Carmen (Lúcia Soares), Denise (Bernuzzi de Sant‘Anna), Durval (Muniz de Albuquerque Júnior), Edson (Passetti), Flávia (Biroli), Frédéric (Gros), Kleber (Prado Filho), Luiz (B. L. Orlandi), Márcio (Alves da Fonseca), Margareth (Rago), Nathalie (Piégay), Oswaldo (Giacóia Junior), Pedro (de Souza), Richard (Groulx), Richard (Miskolci), Salma (Muchail), Sílvio (Gallo), Tânia (Navarro Swain), Tony (Hara) e Vera (Portocarrero)— oferecem-se ao leitor em travessias múltiplas que o incitam, também, à travessura de subverter o abecedário para tocar em suas próprias urgências de A a Z e de Z a A. AZs-ZAs. Da zona à anarquia; da loucura ao sexo; do eu ao si; da estética à vida. Fulguram, explodem diferenças. Está-se diante de uma profusão de análises acompanhadas por inúmeros Foucault. Inútil aventar a homogeneidade ou a edificação de conceitos. Trata-se do espaço do precário, provisório, arredio. É possível estar diante de fulgurações de Foucaultarquivo, quando “o uso do arquivo não permite amarrar o homem e a obra” (p. 184), como destaca Nathalie Piégay. Das pedagogias do corpo, passando pelo filósofo mascarado, o leitor depara-se com o sorriso no rosto de Foucault, em uma conversa ridente, ao melhor gosto do gato de 274 verve Foucault, fulgurações da diferença Alice trazido por Luiz Orlandi, o sorriso estancado por Durval Abuquerque em uma incursão colorida, na qual a genealogia imiscui-se na zona cinza do mostrar-se à vida em combate, até mesmo no momento da morte. Hoje quando alguém morre é comum fazer seu necrológio. Os gregos antigos não lançavam mão de tal prática. Ao invés de discorrer sobre o morto, faziam uma única pergunta: viveu com paixão? Embate profícuo revolvido por Frédéric Gros acerca da diferença entre a retórica do conhecimento de si socrático-cristão e o exercício estético do cuidado de si. “Quem sou eu é uma questão que se articula através da relação instaurada entre o diretor de consciência e o seu eu dirigido, nos primeiros monastérios cristãos. Isto quer dizer que esta interrogação se inscreve num dispositivo preciso de obediência incondicional e indefinida ao Outro, enquanto que a questão grega O que você está fazendo de sua vida se inscreve num projeto pontual de liberação” (p. 136). A estética de existir explode no espaço em uma profusão liberadora de fulgurações de estéticas da existência, em “Heterotopia, anarquismo e pirataria”, com Edson Passetti. Insurreição de um sabor único que faz poder saber do indomesticável nos anarquismos e compõe com Foucault em dança com Max Stirner um arco teso de arremessos certeiros. Leveza de criança, outra antena propícia, distante do corsário e próximo ao pirata. “A criança é o retorno do adulto que rangeu, tornou-se pirata de si, desdobrado, artístico. É a eclosão da surpresa oceânica como tormenta ou calmaria, aprendizado de exercícios em espaços heterotópicos, onde se dissolvem os absolutos de autoridade e liberdade junto com o governo político” (p. 117). Navegações díspares em ressonância heterotópica nos descaminhos da nau foucaultiana, em Tony Hara, que das crises e abalos extrai de Foucault superfícies da atualidade covarde e entristecida, na qual há uma direta cor275 11 2007 respondência entre o depauperamento da imaginação e da vida policiada. O combate não cessa; vem habitar na experimentação do desassombro da criança. “Não se trata evidentemente do retorno aos antigos valores transcendentais ancorados na forma de um Deus, mas sim rachar a Terra, as palavras, as nossas convicções e perder-se e encontrar-se no labirinto infinito da própria vida, tal como o intrépido argonauta nietzschiano” (p. 278). Embates e debates outros no campo da educação, abordados por Alfredo Veiga-Neto, acerca da dominação e violência na escola, e re-pensados por Sílvio Gallo ao propor uma nova filosofia da educação. Ao leitor podem ressoar na memória, também, passagens imperdíveis de Foucault– professor, não só aquele que, como muitos contam, dava aulas admiráveis, como o acrobata sublinhado por Didier Eribon, que tantas vezes, em seus cursos no Collège de France, esperava por uma questão que nunca vinha. Ou ainda, um outro que ao ser encarregado de ministrar uma disciplina intitulada Psicologia Geral, adentrava na sala e já na primeira sessão, alertava: como tudo que é geral não existe vou dar o curso sobre o que está me inquietando no momento presente. Ou ainda mais um, aquele que reservava a alguns alunos onicontentes, que freqüentam a universidade, o título de beduínos. É bem verdade que, naquela época, os estudantes torciam, faziam de tudo para não se encontrarem em tal condição, e, assim, escapar da questão final proposta pelo professor: disserte sobre a família neurótica, ou seja, a família. Da família como modelo central da arte de governar, tema tratado por Márcio Fonseca; atravessando uma análise arguta de Oswaldo Giacóia acerca da biopolítica, biopoder, e os investimentos do governo sobre a vida o leitor mais uma vez se estende e distende percursos, outras palavras, para se deparar na companhia de Margareth Rago com as duas grandes interdições da po- 276 verve Experiências e liberações lítica moderna apontadas por Foucault: o sexo e a política. Sensibilidade sutil que vem amalgamar gestos anarquistas, femininos em práticas de experimentações de si, na coragem ímpar da anarquista Emma Goldman, na ousadia inventiva da associação Mujeres Libres, durante a Guerra civil espanhola, de mulheres que não caíram nas armadilhas liberais de generalização do feminismo. As pesquisas, os problemas, as pistas, as fulgurações deixadas por Foucault possibilitam a instauração deste bom encontro tecido pelos autores no livro Figuras de Foucault. Do negro imprime-se a caligrafia amarela e da figura na penumbra em cinza é possível subverterse as palavras e as coisas de A a Z e de Z a A, e neste espaço delicado e vigoroso não esquecer que as genealogias são mais precisamente insurreições. experiências e liberações bruno andreotti* Gilles Deleuze. A Ilha Deserta. São Paulo, Iluminuras, 2006, 383 pp. Filósofo. Pós-estruralista. Filósofo da diferença. Pensador do devir, do acontecimento. Esses e muitos outros epítetos podem ser atribuídos a Gilles Deleuze. Nenhum enunciado, porém, pode dar conta desse nome, se por nome entendermos algo que denomina um aconteci- * Pesquisador no Nu-Sol, bacharel e licenciado em História pela PUC-SP, mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. verve, 11: 277-281, 2007 277 11 2007 mento, uma multiplicidade. Um livro é uma máquina. Que uso faremos dela? Há certos livros que provocam furos e desmoronamentos no leitor. Furam sua blindagem, os muros que habilmente constrói, dia após dia, para quando se olhar no espelho confortavelmente dizer: Eu. Desmoronam esse Eu, e, portanto, ler algo assim é colocar-se em risco, pois nunca se sabe muito bem o que irá desmoronar. Devemos ser dignos desses livros, estar à altura deles, desse acontecimento suscitado por livros assim, como são os de Deleuze, como é A Ilha Deserta, uma coletânea de textos preparada por David Lapoujade e não um livro projetado por ele. Deleuze dizia que escrever é fazer um outro falar de uma certa forma. É delicioso poder ler tantos outros, ver a filosofia de Deleuze fazer com que essas singularidades falem. Podemos notar sua preocupação com a experiência em muitos textos (pp. 29-32), não propriamente com o que é a experiência, mas quem, como, onde, quando, em que caso, quanto se experimenta. Experimentar como um processo de individuação, que não é a de um indivíduo, mas de um acontecimento, um mergulho no virtual, uma atualização e nunca, ou pelo menos apenas de uma maneira secundária, uma recognição. Sempre está em jogo nessa experiência uma liberação de algo. Criar condições para que se possa experimentar de uma outra maneira. O eu faz parte das coisas que é preciso dissolver (pp. 24-29). Somos demais formatados para apreender a novidade de cada experiência; demasiadamente blindados para abrir-nos à multiplicidade de forças em jogo num acontecimento: o organismo contendo o corpo sem órgãos, o Édipo contendo o desejo, a imagem contendo o pensamento. A experiência é representada e não vivida. É para afirmar essa experiência, para liberá-la de qualquer finalidade, unidade, verdade ou sentido, que os escritos de Deleuze 278 verve Experiências e liberações funcionam. São escritos intempestivos, palavra de valor singular em Nietzsche e Deleuze. Essas experiências liberadas são intempestivas, no tempo e contra o tempo, são perturbadoras. São experiências que criam, destroem para criar. Qual a relação disso com a política? Para alguns, essa pergunta faz todo sentido, visto que é necessário explicitar ou desenhar, para uns não faz nenhum, pois é óbvia demais. É que essas experiências liberadas são interpretações, e interpretar já é mudar as coisas, já é política. Nem sempre o intempestivo é político-histórico, mas há momentos em que o político e o histórico coincidem (pp. 155-166). Tomar o poder, objetivo de toda revolução, é coisa de escravos. Os intempestivos, diz Deleuze, são criadores, o que implica uma nova relação com aquilo que se chama política, que não passa por um partido, por uma vanguarda e tampouco por uma tomada do poder, e sim pela invenção de uma máquina de guerra. O desejo é revolucionário, não no sentido de que queira a revolução, mas constrói máquinas que se inserem no campo social (pp. 295-305), esparrama-se pela história, para que seja liberado do Édipo, da psicanálise. O desejo não é representado, é produzido política, econômica e historicamente; no entanto, a máquina de interpretação psicanalítica aparece para formatar esse desejo no Édipo. Liberar o desejo do Édipo é liberar uma multiplicidade de um Eu (pp. 345-352). Liberar os fluxos, descodificar, desterritorializar... é arriscado. Deleuze jamais negou os perigos dessas experiências; contudo, elas valem a pena. Tudo isso e um tanto mais ou menos despertou malentendidos. Notável é o que se fica sabendo numa pequena nota de rodapé (pp. 103-105): Kostas Axelos, filósofo grego que dirigiu a coleção Argumentos, na qual Deleuze publica “Apresentação de Sacher-Masoch” em 1967 e “Espinosa e o problema da expressão” em 1968, escreve, em 279 11 2007 1972, sobre O Anti-Édipo no Le Monde: “Honorável professor francês, bom esposo, excelente pai de dois filhos encantadores, amigo fiel (...) queres que teus alunos e teus filhos sigam na ‘vida real’ o caminho de tua vida, ou por exemplo o de Artaud, que tantos escrevinhadores invocam?” (p. 104). Há pessoas que entendem Deleuze sem nunca ter lido uma linha de sua obra, enquanto alguns a lêem exaustivamente e nada entendem. Só se descobre a novidade de um autor ao colocar-se no ponto de vista que ele inventou. Estando nesse ponto o leitor é levado num fluxo propiciado pela leitura. Aí ela se torna fácil, simples e alegre (pp. 293-294). Quando interrogado diretamente sobre como essas experiências liberadas podem atuar politicamente, a resposta de Deleuze não poderia ser melhor: “Se o soubéssemos, não diríamos, fá-lo-íamos.” (p. 339). Nunca há certezas nesse campo de experimentações que propõe Deleuze. É que um livro jamais pode responder ao desejo enquanto livro, mas em função daquilo que o rodeia, em si mesmo não tem valor. Só politicamente um livro pode responder a um desejo, fora do livro (pp. 277-292). A preocupação com a criação de novas condições de experimentação pode ser vista em diversos campos e já está no próprio modo como Deleuze tratava a filosofia: menos como história e mais como devir. Ver o uso singular que ele faz de Bergson (pp. 33-45) e (pp. 47-71), Kant (pp. 79-97) e do estruturalismo de 1972 (pp. 229-247). É que a criação conceitual de Deleuze não opera por filiações, mas por alianças. E essas alianças não se dão apenas com filósofos e com a filosofia, mas com artistas e com a arte (pp. 171-174) e mesmo com cientistas e com a ciência. Talvez seja uma das passagens mais interessantes do livro o momento em que, numa comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia, Ferdinand Alquié, professor de Deleuze, o censura por não ter usado em sua exposição exemplos propriamente filosóficos, mas mate- 280 verve Um sacrifício para o condutor político máticos, biológicos etc., e com isso negar a especificidade da filosofia. Ele responde: a crença na especificidade da filosofia eu aprendi com o senhor (p. 144). Deleuze nos mostrou que importava menos o que uma coisa é do que os usos que dela se poderia fazer, dos modos como se faz funcionar. Logo de início se é avisado sobre o que no livro não há: textos inéditos ou póstumos, exceto o texto que dá nome ao livro, “Causas e Razões da Ilha Deserta”. O mais profundo é a pele, tudo já estava lá, na superfície do que já estava escrito e publicado, Deleuze não queria póstumos, comenta Lapoujade... Mas como seria interessante se Deleuze fosse alvo de uma traição tão potente como aquela cometida por Max Brod com Kafka, que deveria ter queimado suas obras incompletas e escritos pessoais, mas preferiu publicá-los... Na traição se está em risco, e no risco está a possibilidade da invenção de uma máquina de guerra. um sacrifício para o condutor político edson passetti* Ismail Kadaré. A filha de Agamenon. O sucessor. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, 217 pp. Tradução de Bernardo Joffily. Uma noite, durante um jantar, um jovem editor propiciou uma breve e intensa conversação sobre Thomas Bernhard, de quem eu tinha lido recentemente Per* Coordenador do Nu-Sol, Núcleo de Sociabilidade Libertária, e professor no Depto de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. verve, 11: 281-287, 2007 281 11 2007 turbações, presente de um amigo. Um outro livro pousado na mesa de leituras de minha casa, ganho de outro amigo, intitulado A filha de Agamenon. O sucessor, duas ficções de Ismail Kadaré, de alguma maneira me atiçava e me rechaçava. Olhava para um dos títulos e pensava em Fidel Castro na sua longevidade e nas imprecisas notícias sobre seu estado atual de saúde, fato adequado e esperado quando se trata da vida de um ditador, e em seu sucessor, o irmão Raul, que se vier a ocupar o lugar do condutor continuará a ditadura do proletariado por linhagem de sangue, já em voga na Coréia do Norte. O outro título me levava à jovem Ifigênia, filha de Agamenon, sacrificada em nome do direito do rei à vida de cada guerreiro numa guerra pela recuperação da bela Helena, esposa raptada pelo formoso Paris. O livro de Kadaré, enfim, tinha contra ele um certo filme baseado em um de seus romances. E, por isso, também, ele fazia parte de minhas salutares perturbações. Ismail Kadaré viveu na Albânia tomada pelos fascistas, nazistas, socialistas soviéticos e depois alinhada ao governo chinês, desde 1968 até a morte de Mao-Tsé tung. Buscou o exílio na França antes do fim da ditadura, em 1992, durante o governo de Ramiz Alia, o sucessor de Enver Hodja (1945-1985), que procurou reabrir diplomaticamente o país reatando relações com os Estados Unidos, União Soviética, Itália e Grécia, e realizando eleições em 1991. O resultado reafirmou a vitória dos comunistas que por si só foi insuficiente para gerar uma paz temporária. O caos político e econômico permaneceu gerando não só uma imigração em massa para os portos da Itália, mas provocando a chamada de uma nova eleição que levou os democratas ao governo. Como na URSS, a ditadura do proletariado ruía diante do dispositivo eleitoral democrático. 282 verve Um sacrifício para o condutor político Kadaré foi um resistente sem pretender virar herói ou mártir. Consta que publicou O grande inverno, em 1977, lisonjeando o ditador, para poder continuar escrevendo, mas que desde então arranjou um jeito de enviar seus escritos para o exterior como foi o caso de A filha de Agamenon, concluído em 1985, conforme atesta Claude Durand, presidente da Fayard, no prefácio desta edição brasileira. Entre outubro de 2002 e março de 2003, escreveu O sucessor, complementando o breve livro anterior com a mesma escrita enxuta e trágica, traduzida por Bernardo Joffily, brasileiro que chegou a trabalhar na rádio Tirana juntamente com o líder do PC do B, João Amazonas, quando tinha admirações pelo regime de Hodja. Mas não foram somente eles os apreciadores brasileiros da pouco conhecida ditadura do proletariado albanesa. O sociólogo e deputado federal pelo PT Florestan Fernandes, depois de visitar o país no início da década de 1990, provavelmente cercado por programas oficiais, ao regressar declarou seu grande entusiasmo com aquele socialismo, numa época em que PT era sigla que associava socialismo e democracia. Ismail Kadaré compôs um díptico sobre os sacrifícios ao poder, os assujeitamentos, medos, as maneiras da ditadura do proletariado, a sucessão do Condutor, o que dita as leis, que nos remetem à Cuba de hoje em dia, mas não só às tiranias governamentais. As ditaduras não acabam simplesmente com a morte do ditador, a sucessão ou a substituição do regime; elas criam os dispositivos de exceção, articulando expectativas da população e medidas jurídico-políticas que, gradativamente, são incorporados pelas democracias. Afinal, as ditaduras também são governos com altos índices de consentimento obtidos por adesão ou medo. Ismail Kadaré fala da Albânia, o “lugar das águias”, uma terra por onde circula uma estranha fábula sobre 283 11 2007 como atingir o mundo de cima sentado nas asas desta ave de rapina que exige do transladado, somente pedaços de carnes. Por mais equipado que se esteja corre-se o risco da guarnição acabar, pois a travessia pelos precipícios é longa, a águia cobra regularmente sua ração e se pode chegar lá no mundo de cima reduzido ao esqueleto de um morto cujas carnes foram lentamente devoradas. A águia, como o ditador ou qualquer governante, alimenta-se dos que pretendem chegar ao cume. Suzana é a filha do possível Sucessor do Condutor. Ela ama um jovem de quem deverá se afastar para agradar os governantes. O seu apaixonado namorado descartável recebe em troca um surpreendente convite para assistir, na primavera, a comemoração do primeiro de maio em um lugar especial na tribuna de honra. Ele atravessa o livro pelas ruas de Tirana pensando sobre a razão do convite, encontrando pessoas muito e pouco conhecidas que vão ficando pelo caminho, agrupadas em pequenos currais ou lugares reservados a indivíduos muito, pouco e menos importantes do que ele naquele dia. Todos desconfiam dele e ele de cada um. Suzana, a Ifigênia da vez, cederá. O Sucessor se imaginará o futuro Condutor e este será substituído conforme desejava. Tudo simples, poderoso e mortal! Com a chegada da democracia, das empresas, das participações e das inclusões sociais, aparecem, imediatamente, outras comemorações articuladoras das massas como os festejos recordes de apresentações ao ar livre com bandas de rock’n’ roll em que vips também vão ficando pelo caminho entre os espectadores e o palco, fato que se comunica com os eventos em ambientes fechados patrocinados por empresas privadas, estatais ou mistas que promovem celebridades instantâneas e ostracismos irreversíveis. Na ditadura ou na democracia, a maneira de distribuição do rebanho vip é similar; 284 verve Um sacrifício para o condutor político as dúvidas entre os escolhidos se parecem, e todos se assujeitam para serem convidados especiais do tirano do Estado ou da glorificação da participação na empresa, ostentando o convite na mão ou a camiseta no tronco, sua medida de beleza e jovialidade. Trata-se de uma maneira sutil de sujeição nos escalões superiores que conjuga a obediência por amor à distinção e ao mérito procedimentais da tradicional burocracia do Estado moderno com a produtividade da burocracia privada. Será que hoje em dia “educação, trabalho produtivo e treinamento militar” somente fazem parte do antigo triângulo revolucionário? A entrada da Romênia e da Bulgária na União Européia, no final de 2006, facilitará a futura absorção da Albânia e da sua população liberta dos horrores que se abateram sobre ela no Kossovo, durante a ditadura Milosevic, no final do milênio passado. O governo de todos por um só (ditadura) ou o governo de todos por cada um (democracia), com ou sem divisão de poderes governamentais, segundo Proudhon, apenas mantêm a continuidade do Estado, ora com mais ou menos autoridades e liberdades. Diríamos, ora em nome do proletariado, ora em favor da população, para agradar o tirano ou a empresa. Entretanto, se empresa e governo estão associados e se ajustam por modulações fazendo com que os assujeitados amem os superiores, participando diretamente nesta vida institucionalizada, isto não se transforma em “lei de ferro”; há também a linha de fuga: o libertarismo ou Anarquia, praticamente impossível sob o regime ditatorial, torna-se um provável acontecimento a partir das restaurações democráticas. O sucessor, o segundo livro dentro do livro, leva o leitor para outro canto. Ali onde não se mistura mais proletariado ou povo com dirigentes, superiores e empresários. Estamos diante dos arranjos, composições, pe- 285 11 2007 quenas vinganças, jogos de morte, exílios, invejas que compõem a gramática do poder soberano. Ao condutor se deve tudo: “peça o que quiser, todos estamos dispostos a nos sacrificar” (p. 213). O sucessor é achado morto no outono, num 14 de dezembro, em sua residência. Foi suicídio ou homicídio? Sabe-se somente que era esperada a queda do sucessor. A continuidade do Condutor no sucessor depende menos do anúncio do escolhido do que dos ininterruptos arranjos burocráticos, da vontade do déspota, do proletário mais proletário. Sobre o sucessor recaem muitos olhos e seus gestos se tornam involuntariamente suspeitos. Até a beleza da reforma arquitetônica que realizou em sua residência será a justa medida das invejas. De que valerão a sua devoção incondicional e inabalável e a de sua esposa ao partido único? Depois de repentinamente morto, resta à sua família aceitar a partida para o exílio num confinamento no interior da Albânia, carregando o veredicto de traição do quase condutor, quando apenas ocorreu mais uma trapaça palaciana. A destruição do sucessor foi irremediável desde a reluzente inauguração da residência reformada pelo arquiteto, equilibrando medida, ordem, proporção, ameaçando a individualidade do Condutor e a burocracia da ditadura. Trata-se da explicitação de mais um momento da história da individualidade, quando se estabelece a relação de proximidade entre a ditadura do proletariado e a aristocracia decadente, escondendo outros segredos pelos labirintos que levam aos porões. Estes lá permanecerão, até serem lembrados pela nova face do indivíduo, agora não mais dissolvido no coletivo, na linhagem de sangue ou na vanguarda da razão iluminista como ditadura do proletariado, mas no governo de todos por cada um, com a futura democracia e a consolidação da Euro286 verve Um sacrifício para o condutor político pa como um grande Estado sobre os Estados federados. Disse, então, o arquiteto: “mudam os regimes, os hábitos, as catedrais, mas os crimes são sempre os mesmos. E a inveja, o seu primeiro móvel, tão amiúde esquecida, longe de amainar torna-se cada vez mais tenebrosa”. Fidel Castro agoniza. Cuba esperará até sua morte para assistir sua sucessão pela linhagem de sangue do ditador ou por outra eminente democracia? Nesta sociedade de controle em que vivemos não faltam seguidores, amantes da obediência, do individualismo. Uma ditadura permanece mesmo depois da morte do soberano ao provocar o aparecimento de dispositivos de exceção que atravessam governos e expandem fluxos autoritários em nome da segurança democrática. O livro de Kadaré fala da emergência de dispositivos de exceção presentes na ditadura e por isso é mais do que uma crítica à ditadura comunista a serviço de democratas juramentados. Provoca e perturba. Faz lembrar, na atualidade, que muita gente se entusiasma com Hannah Arendt e suas reflexões sobre o totalitarismo, talvez pela recusa a ler as reflexões menos liberais de Raymond Aron sobre democracia e totalitarismo. Entretanto, estes mesmos dois lados omitem as contínuas repetições registradas nestes regimes (quando muito, retratam semelhanças entre o totalitarismo nazista e o comunista), e pressentem que as diferenças podem provocar uma vida libertária como indicara Proudhon. Eles crêem que é possível se precaver de perturbações. A continuidade da relação condutor-sucessor exige o sacrifício; este é o princípio do poder soberano em qualquer regime, seu direito de matar, mesmo no Estado de Direito. 287 11 2007 um livro para usar, brincar, jogar acácio augusto* Daniel Colson. Pequeño léxico filosófico del anarquismo — De Proudhon a Deleuze. Buenos Aires, Nueva Visión, 2003, 287 pp. Tradução Heber Cardoso. Não se trata de um dicionário. Embora o dicionário Aurélio apresente léxico e dicionário como sinônimos na primeira definição; é a segunda definição de léxico que nos aproxima do livro de Daniel Colson: “conjunto das palavras usadas numa língua, ou num texto, ou por um autor”. Qualquer pessoa poderia dizer: “Um anarquista se submetendo à dureza da ordem alfabética?”. Ao contrário, é nesta opção de organizar o livro na forma de um léxico que está a delícia de ler o livro de Colson e a dificuldade em resenhá-lo. Há uma possibilidade infinita de comentar cada verbete. Trata-se de um livro com múltiplas entradas que se bastam por si; um livro rizomático que não se lê da primeira à última página, seguindo a ordem do alfabeto. Favorece o leitor que pode pegá-lo e ir à busca do que lhe interessa, ignorando livremente o resto. Como sugere o autor, “cada leitor pode eleger as entradas que melhor lhe convier, seja porque experimenta uma afinidade particular e intuitiva com tal ou qual palavra, tal ou qual idéia, seja porque algumas constituem uma cristalização particularmente importante em sua maneira * Bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e Secretário do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP). verve, 11: 288-292, 2007 288 verve Um livro para usar, brincar e jogar de pensar, de sentir ou de perceber” (p. 15). Somente como um livro para um fim específico, é que mantêm semelhança com um dicionário comum. As palavras são objetos de lutas. A maneira como são escritas ou ditas, onde e quem as redige ou pronuncia, estão sempre sob o fogo cruzado das lutas políticas. Lutas móveis e dinâmicas, que se desdobram em liberações, libertações, dominações, fissuras, junções. São objetos pelos quais se luta, à revelia dos que querem decretar seu definitivo estatuto dando a última palavra. Para os anarquistas, as palavras são inventadas em luta, nos seus embates e enfretamentos de resistências e experimentações de liberdade. São vitais instrumentos, lanças de guerreiros. Os dicionários ao tentarem estancar essa luta, dando o definitivo significado das palavras, assemelham-se à frieza dos livros de códigos jurídicos. É no sentido das palavras em luta que Colson compõe seu léxico. Não é uma enciclopédia do anarquismo, que pretende indicar o significado correto de cada palavra, idéia ou expressão. Não é, também, um livro de história do anarquismo à maneira de Max Netllau ou do jeito de Daniel Guérin. Colson dá um tratamento singular, mas não aleatório, a cada verbete que escolheu para compor seu livro, estabelecendo analogias, conexões, movimentos e aproximações muitas vezes surpreendentes. Trata-se de uma conversa que quer “fazer visível as afinidades secretas (...) que unem filósofos e teóricos tão diferentes como Espinoza, Leibniz, Stirner, Proudhon, Bakunin, Tarde, Nietzsche, Bergson, Foucault, Simondon, Deleuze e alguns outros” (p. 14). Busca aproximações e distanciamentos no campo de luta das práticas discursivas, levando ao limite do possível (p. 137) o sentido anárquico da palavra libertário. Maio de 1968. Este acontecimento se espalhou como centelhas pelo mundo; e abriu caminho para que 289 11 2007 marxistas, desencantados com o autoritarismo da URSS, estudassem o anarquismo e investissem em uma bizarra síntese entre marxismo e anarquismo, vendo nisto, a expressão da atitude dos jovens no maio de 1968 (leia-se Daniel Guérin). No entanto, aparte sua importância histórica com repercussões inclusive no Brasil (caso de Daniel Guérin), livros-síntese deste calibre se estruturam na enfadonha e redundante divisão idéiasmovimento. Deixam clara a opção teórica e metodológica pelo marxismo. O livro de Colson também é um efeito, menos imediato, das experimentações de maio de 1968. Mas segue outro caminho. Vai em busca de pensadores que extraíram das experimentações vivenciadas pelos jovens dessa geração uma outra possibilidade de pensar e de viver, sem pleitear o anúncio de um novo anarquismo. Percorre os ditos e escritos de Foucault, Deleuze, Nietzsche e outros para adicionar novas palavras ao vocabulário libertário, rever antigas e, por vezes de maneira um pouco apressada, e muito empolgado, salvar algumas. O mais interessante, é que afirma a anarquia como uma atitude que libera o viver, que encara a vida, em suas manifestações mais cotidianas, como uma luta por liberdade no presente; em oposição ao anarquismo como “registro classificatório e identitário das categorias da ordem dominante” (p. 31). Mostra que há muita potência de liberdade na associação Proudhon e Deleuze, Bakunin e Espinoza. Muito mais do que poderia estabelecer a teoria ou que poderiam imaginar alguns anarquistas defensores das sagradas escrituras. A associação entre Foucault, Deleuze e a anarquia não é uma novidade. No Brasil, desde os anos 1980 essa afinidade, no sentido que Colson dá a essa palavra (pp. 21-22), aparece em escritos de anarquistas como Edson Passetti e Margareth Rago. Entretanto, encontramos per- 290 verve Um livro para usar, brincar e jogar cursos e reflexões singulares em cada um desses autores, anarquistas diferentes com diferentes anarquias, marcando uma alegre descoberta no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos. É estranho que autores como Antonio Negri e Michel Hardt, com seu conceito de Multidão, e Murray Bookchin, com suas preocupações ecológicas que vão de encontro com os atuais investimentos de Estados, empresas e organismos internacionais, são mais bem recebidos entre alguns anarquistas, do que Foucault, Deleuze ou Nietzsche, com suas inquietações libertárias sobre estética da existência, processos de subjetivação e vontade de potência. Uma das referencias teóricas dessa maneira de pensar o anarquismo encontra-se no livro de Bookchin, Anarquismo social ou anarquismo como estilo de vida: um abismo intransponível, e que desemboca em grupos que procuram desesperadamente pela existência de uma classe operária ou que atuam à maneira paroquial de uma ONG. Um anarquista não quer abolir o poder, toma-o para si. O Léxico de Colson apresenta a possibilidade de encontrar em Nietzsche, Foucault, Deleuze, Espinoza corajosos parceiros, que junto aos clássicos anarquistas e suas experimentações na história do movimento operário, nos dão vitalidade para a luta (ver o verbete vital pp. 274-275). O sentido anárquico que Colson dá à noção nietzschiana de eterno retorno (pp. 87-93) é um belo momento do livro em que a injeção de vitalidade nos toma, enrubescendo alguns anarquistas que insistem em manter vivo, com a ajuda de “aparelhos”, um certo humanismo e a evidente herança iluminista que habitou o pensamento libertário. Alguém que já passou pelo livro de Colson poderia dizer: “O que fazer com verbetes como autonomia (pp. 4344) ou com passagens onde Colson afirma a busca de 291 11 2007 outro mundo ou de uma outra composição das forças?” Irritam certas passagens do livro, tanto quanto a ausência de Willian Godwin no verbete sobre a justiça (p. 143) ou o fato de se deter a uma bibliografia quase que exclusivamente francesa. Isso, no entanto, não me impede de vibrar, no verbete seguinte (justificação, Idem) ao ler: “O anarquismo rechaça qualquer justificação, tanto para si como para os outros” (Ibidem). Deleuze dizia que se lê um livro como quem ouve um disco. Vamos até uma parte, se não nos serve passamos para outra. Disse, também, em seu abecedário feito com Claire Parnet, que na condição de filósofo, escrevia para não filósofos. Afinal, continua Deleuze, músicos não gravam discos para serem ouvidos apenas por músicos e artistas não fazem arte para ser apreciada apenas por artistas. Pois nada impede que uma pessoa qualquer possa produzir — ao ouvir uma música, apreciar uma tela ou ler um livro — um encontro que possua preciosidade apenas para ela. Penso que a força e a beleza desse livro de Colson está exatamente nisso. Desde seu formato é um livro que não se destina a iniciados, sejam anarquistas, marxistas, filósofos ou sociólogos. Pode ser aberto por qualquer um sem preocupação de segui-lo até o fim e sem a necessidade de aprová-lo ou reprová-lo, mas para utilizá-lo, não da maneira que bem entender, mas na medida em que se é afetado por uma vontade de anarquizar. Daniel Colson é professor de sociologia na Universidade de Saint-Étienne, pesquisador no CRESAL (CNRS), integrante da livraria libertária La Gryffe, em Lyon e autor, entre outros livros de Anarchosyndicalisme et Communisme — 1920/1925 e diversos artigos na imprensa libertária francesa e de outros países. Um breve estudo seu sobre o pensamento de Proudhon pode ser encontrado no volume 9 de Verve, este Léxico, infelizmente, não possui tradução em língua portuguesa. 292 verve Roberto Freire: anarquia aqui e agora roberto freire: anarquia aqui e agora josé maria c. ferreira* Roberto Freire. O tesão pela vida. São Paulo, Editora Francis, 2006, 320 pp. Elaborar uma resenha crítica ao último livro publicado por Roberto Freire — O tesão pela vida — não é, para mim, uma tarefa fácil. Várias razões estão na origem desta afirmação. Em primeiro lugar, amizade traduzida em múltiplas pulsões de vida unem-me a Roberto Freire enquanto perdurarem as nossas trajetórias biológicas e sociais. Em segundo lugar, não conheço em profundidade e extensão a vastíssima obra publicada pelo autor, nomeadamente em livros e artigos. Por último, o lugar sócio-histórico de Roberto Freire no âmbito dos anarquismos que interpretam e vivem a anarquia assume uma singularidade exemplar no Brasil, cujas generalizações são difíceis de discernir a nível planetário. Devo, desde já, acrescentar que este livro tem uma contribuição importante de João da Mata, Jorge Goia e Vera Schroeder, integrantes do Coletivo Anarquista Brancaleone. Estes muito devem a Roberto Freire na construção e vivificação da Soma enquanto terapia anarquista. Diga-se também, em abono da verdade, que sem eles a obra e a vida de Roberto Freire não teria a plasticidade social que atualmente detém. Para os devi- * Professor do SOCIUS — Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa e editor da Revista Utopia. verve, 11: 293-298, 2007 293 11 2007 dos efeitos aconselha-se a leitura dos capítulos 16, 21 e 22 — “O anarquismo somático” (pp. 201-208); “Escravidão e corpos mutilados: a capoeira como resgate da vida” (pp. 267-275); “Capoeira Angola: a terapia pelo corpo” (pp. 276288) — de João da Mata, os capítulos 17 e 19 — “Antenas anarquistas contemporâneas” (pp. 209-219); “A liberdade no risco” — de Jorge Goia (pp. 235-251) e, ainda, “Menos prosa e mais poesia” de Vera Schroeder (pp 252-266). Sabendo de antemão das dificuldades que já enunciei, para elaborar o meu discurso narrativo debruçarme-ei sobre três fatores explicativos que atravessam a centralidade da obra e vida de Roberto Freire. Assim, de início procurarei incidir na análise da Soma como uma terapia anarquista baseada numa epistemologia e metodologia interdisciplinar. Por outro lado, focarei a importância dos pressupostos antinômicos da análise de Roberto Freire em relação a fenômenos biológicos, econômicos, sociais, políticos e culturais. Por último, sublinhe-se a construção e a vivência da anarquia aqui e agora a partir de uma pedagogia que tem a sua essência em indivíduos livres e soberanos. Neste livro, desde o primeiro capítulo sente-se que a relação de Roberto Freire com a psicanálise e a psicologia foi fundamental na sua formação de médico e de inventor do conceito de Soma enquanto terapia anarquista. Entre as múltiplas contribuições de autores de diferentes origens epistemológicas — filosofia, antropologia, ética, psicologia, psicanálise, biologia, sociologia, etc... — destaca-se sobremaneira Wilhelm Reich. Este autor foi fundamental para abrir as pistas biológicas e sociais de libertação do corpo, da mente e da psique dos seres humanos inscritos nos parâmetros do princípio da realidade normativa do Estado e da sociedade capitalista. Sendo uma criação e adepto dos pressupostos da psicanálise desenvolvidos por Sigmund Freud, Wilhelm 294 verve Roberto Freire: anarquia aqui e agora Reich, após o advento histórico do fascismo em alguns países europeus e a evolução do socialismo soviético, entra em ruptura com o seu chefe e torna-se um defensor acirrado da libertação total dos corpos dos indivíduos da escravidão exercida pela religião, pelo Estado e pelo capitalismo. Os seus livros e experiências emblemáticas que realizou nos Estados Unidos da América serviram de antídoto a todo o tipo de castração bioenergética e, simultaneamente, de projeção mundial para os que aspiravam evoluir no sentido da emancipação individual e social. Não admira que Roberto Freire encontre em Reich a base da desconstrução psicológica e psicanalítica que lhe faltava realizar em relação à influência perniciosa que Sigmund Freud exercia nas modalidades terapêuticas de normalização dos doentes e, sobretudo, em relação à sua identidade com a ordem social vigente. A Soma, enquanto terapia anarquista, centra-se no indivíduo enquanto totalidade de vida bioenergética, social, política, cultural, econômica e civilizacional. Neste sentido, para Roberto Freire havia uma impossibilidade de explicar qualquer fenômeno biológico ou social sem articulá-lo com a totalidade universo. Devido a essa relação de interdependência sistemática e profunda entre a parte e o todo, a sociedade global e os indivíduos, Roberto Freire cria a Soma no decorrer da década de 70 do século XX. Não só é genuinamente uma terapia anarquista, baseada na autoeducação bioenergética dos corpos, da mente e da psique, como também é objeto de experimentação grupal em vários Estados do Brasil. Embora seja impossível discernir sobre todos os paradigmas e autores citados neste livro, outras dimensões epistemológicas ajudam a compreender a obra de Roberto Freire. Engels, Clastres e Foucault. Se há algum resquício de contradição epistemológica em Roberto Frei- 295 11 2007 re neste livro é justamente na associação política, antropológica, biológica e social que faz entre estes três autores. A tese materialista histórica e dialética de Friedrich Engels é incompatível com os pressupostos analíticos de Pierre Clastres e Michel Foucault. A contradição emerge não só porque Engels, progenitor máximo do modelo marxista, tenha se revelado uma “peste” analítica societal, cujas conseqüências deterministas geraram a escravidão individual e coletivas. O problema maior é o seguinte: como conciliar as noções de família, propriedade privada e luta de classes com indivíduos livres e soberanos, sem necessidade de chefes e de amos. Se a Soma — enquanto autores da libertação dos corpos e das vidas dos indivíduos —, encontra em Pierre Clastres e Michel Foucault familiaridades e correspondências efetivas com o étimo Anarquia, o mesmo não podemos dizer em relação a Engels. Na perspectiva de Roberto Freire existe sempre um pressuposto inquestionável: a anarquia aqui e agora. Esta dimensão da sua vida e obra leva-nos para os campos do amor, da amizade, da solidariedade e da liberdade. É uma diferença que o separa de todos os anarquismos ortodoxos, quer eles se denominem anarco-sindicalismo, comunismo libertário ou anarco-comunismo. Antes de qualquer revolução social ou classe social predestinadas a transformarem-se em coveiros do capitalismo, do Estado e da religião, para Roberto Freire, cada indivíduo per se deve ser único como ator da sua própria libertação. Essa libertação é inextrincavelmente associada a uma interdependência e complementaridades sistemáticas, entre a morte e a vida, a teoria e a prática, o amor e o ódio, a guerra e a paz. Neste domínio demonstra a sua identidade com o anarco-individualismo preconizado por Max Stirner. 296 verve Roberto Freire: anarquia aqui e agora Diga-se de passagem que uma das críticas do movimento libertário feitas a Roberto Freire reside na sua ação individual e coletiva que implica uma experimentação efetiva da Soma, como terapia anarquista, que é sem dúvida alguma a visibilidade social maior da anarquia aqui e agora. Os conteúdos e formas das críticas que lhe foram endereçadas pelo movimento libertário que, por ironia do destino, partiram daqueles que se julgam os herdeiros e guardiões genuínos da anarquia no Brasil, resulta do fato que Roberto Freire e os seus “acólitos” vendem e ganham dinheiro com a sua mercadoria denominada anarquia. Pergunto a mim mesmo e a todos que se identificam com a anarquia: quem não é objeto de compra e de venda nesta sociedade? No caso específico da vida de Roberto Freire, caso quisesse enriquecer, quer pela via profissional, quer pela via patrimonial herdada, não necessitava de pautar a sua trajetória biológica e social no sentido da emancipação individual e social. Para este efeito teria aproveitado a venda da sua mente, da sua psique e do seu corpo de uma forma mais rentável, sem estar sujeito às dificuldades de sobrevivência econômica e financeira da Soma. Ao entrar em ruptura com a militância dedicada ao comunismo no Brasil, viu na experimentação comunitária de tipo anarquista as bases de desconstrução dos múltiplos autoritarismos e couraças intrapessoais e interpessoais. Para isso o melhor antídoto é a aprendermos a auto-governarmo-nos, a auto-educarmo-nos e a auto-compreendermo-nos, de tal foram que possamos decidir e liderar as nossas vidas, sem precisarmos de alguém para isso, inclusive do anátema que certos anarquistas ortodoxos lhe lançaram de ser o “guru” do Soma, enquanto terapia anarquista. Por fim, na atualidade, em que medida os elementos analisados neste livro sobre a vida e obra de Roberto Freire tem pernas para se desenvolver. 297 11 2007 No meu entendimento, há razões suficientes para integrar e desenvolver o imaginário individual e coletivo da anarquia, pelos seguintes elementos. Em primeiro lugar, pelo fato de associar a totalidade de cada ser humano à sua realidade intrínseca de seres biológicos e sociais. A complementaridade e a interdependência ajuda-nos a dar um sentido às nossas vidas no sentido de uma ecologia e uma pedagogia assentes na biodiversidade e equilíbrio ecossistêmico em escala planetária. A vida em vez da morte impõe-se sobremaneira em todas as relações sociais, mas também em relação a todas as relações que mantemos com as demais espécies animais e vegetais. Se compreendo bem o sentido do conceito de diferença e de liberdade dos corpos em atos de amor e de liberdade na obra de Roberto Freire em relação aos seres humanos de cor branca, preta, amarela, cinzenta, etc..., também devo perceber e compreender, sem o ter explicitado de forma concreta, que essa dimensão está implícita em qualquer ser vegetal ou animal. Outro fator importante a sublinhar reside no conteúdo auto-construtivo e de auto-governo dos corpos que é dado pela dinâmica de grupo assente nos pressupostos da pedagogia libertária e em algumas especificidades da capoeira Angola. Quer uma opção, quer outra, ajudamnos enormemente a assimilar informação, conhecimento e energia sobre o nosso metabolismo energético, e também de nós mesmos como atores inscritos na construção do imaginário individual e coletivo de pulsões de vida como potenciação da anarquia, em detrimento das pulsões de morte que produzem e reproduzem o Estado, o capitalismo e os Deuses de diferentes tipos. Finalmente, para concluir. Este livro de trezentas e vinte páginas — O tesão pela vida — é um hino à anarquia que, em última instância, expressa a vida de um homem que muito admiro e que vale a pena ler enquanto subsistirmos no planeta Terra. 298 verve NADA VEZES NADA TUDO VEZES TUDO NADA ÀS VEZES MUITO MUITO MAIS QUE TUDO 299 11 2007 NU-SOL Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata Boletim eletrônico mensal, 1999-2007 flecheira libertária (comentário semanal do nu-sol sobre pessoas, coisas e planeta), desde 13 de fevereiro de 2007, em www.nu-sol.org vídeos Libertárias, 1999 Foucault-Ficô, 2000 Um incômodo, 2003 Foucault, último, 2004 Manu-Lorca, 2005 A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006 Cage, poesia, anarquistas, 2006 CD-ROM Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um incômodo) Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004 1. a anarquia Errico Malatesta 2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston 3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T. 4. municipalismo libertário Murray Bookchin 5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux 6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky 7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva 8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin 9. deus e o estado Mikhail Bakunin 10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin 11. escritos revolucionários Errico Malatesta 12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares 13. do anarquismo Nicolas Walter 300 verve 14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau, Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero 15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton, Schuster, Kyrou, Legrand 16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda, Berkman 17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti 18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo Colombo 19. o essencial proudhon Francisco Trindade 20. escritos contra marx Mikhail Bakunin 21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud 22. a instrução integral Mikhail Bakunin 23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino, Enckell 24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag 25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón 26. a revolução mexicana Flores Magón 27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo 28. bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval 29. autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta Livros Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). Terrorismos. São Paulo, Cortez, 2006. Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo. São Paulo, Ateliê Editorial, 2005. Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro, Editora Revan/Nu-Sol, 2004. Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004. Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone Editora/Nu-Sol, 2003. Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário/Nu-sol, 2001. 301 11 2007 Recomendações para colaborar com verve Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação: Extensão, fonte e espaçamento: a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. b) Resenhas: As resenhas devem ter no máximo 05 páginas (até 9.000 caracteres com espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. Identificação: O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, para identificá-lo em nota de rodapé. Resumo: Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas — em português e inglês — e de três palavras-chave (nos dois idiomas). Notas explicativas: As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim de texto. Citações: As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto observando o padrão a seguir: I) Para livros: Nome do autor. Título do Livro. Cidade, Editora, Ano, página. Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo, Imaginário, 2001, p. 74. II) Para artigos ou capítulos de livros: 302 verve Nome do autor. “Título” in Título da Obra. Cidade, Editora, ano, página. Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, 1972, p.76. III) Para citações posteriores: a) primeira repetição: Idem, p. número da página. b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página. c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor, ano, op. cit., p. número da página. IV) Para resenhas As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título, da seguinte maneira: Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp. V) Para obras traduzidas Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número de páginas. Tradução de [nome do tradutor]. Ex: Michel Foucault. As Palavras e as Coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail. As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em disquete seja encaminhada pelo correio para: Revista Verve Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001, São Paulo/SP. Informações e programação das atividades do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org 303