1 Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa WOLFGANG AMMON 1869-1938 (Ingrid Ani Assmann) 2015 Joãozinho Felizardo Aventuras e vivências de um jovem brasileiro Narrativa para jovens e para todos aqueles que conservam a juventude Santa Catarina Ilustrações de Dr. Macedo (Curitiba) e Hans Nöbauer (Rio de Janeiro) 1926 2 Joãozinho Felizardo* ÍNDICE Introdução da tradutora ................................................................... p. 6. Prefácio ........................................................................................ p. 12. I. A cabana solitária. Joãozinho como sentinela. A luta com o réptil. O triunfo. A procura pela criança desaparecida. "Valente", o inteligente cão rastreador. A tropa de burros. A tenda de ciganos. Haverá luta? Vitória e a volta para casa ........................................................................................................... p. 13. II. A primeira ida de Joãozinho à escola. Cana-de-açúcar, café, arroz, tabaco e mandioca. Engenho de cana-de-açúcar. Moinho de mandioca. O monjolo. A venda da mata. A máquina fantástica. Joãozinho é motivo de riso. A escola da mata ........................................................................................................... p. 24. III. Mutirão para a derrubada da mata. Coleta de cipó. Um falso amigo. Joãozinho sofre um acidente na floresta virgem. A justiça alcança o malfeitor. O fandango. O Cruzeiro do Sul. Dois contratempos. Os mestres cantores com a viola. Brigas e danças. Joãozinho como salvador. Anita ......................................... p. 31. IV. Doença grave. Joãozinho corre risco de vida. O curandeiro. O pacto de Maria com Deus. O papagaio. A convalescença de Joãozinho. A volta à escola. Macacos e outras coisas na floresta virgem. Anita ajuda Joãozinho nas tarefas escolares. A queimada da roça. Joãozinho no fogo dá provas de "menino felizardo". "Estórias de Pedro Malazarte, Carlos O Grande e outros". O destocamento, preparo e plantio da roça ........................................................................................ p. 41. V. A preparação para a briga de galos. O sabiá e o colibri. As selvagens abelhas melíferas. Os periquitos e os papagaios, o tatu, o lagarto e o tamanduá, o inambu e a saracura, o bem-te-vi, o pica-pau, a araponga. A briga do galo com o Ammon, Wolfgang. Hansel Glückspilz. Abenteuer und Erlebnisse eines jungen Brasilianers (Joãozinho Felizardo. Aventuras e vivências de um jovem brasileiro). Curitiba, Impressora Paranaense Max Schrappe, 1926. Trad. de Ingrid Ani Assmann. * 3 peru. A casa do padrinho Cidral. As frutas brasileiras. Joãozinho empenha sua liberdade. A briga de galos ....................................................................... p. 50. VI. Joãozinho cumpre sua palavra. A despedida. A viagem para a cidade portuária. A grandiosidade e a amplidão do Brasil. Os rebanhos de gado nos campos, as florescentes colônias alemãs, as matas de erva-mate, as serrarias e as plantações. O infinito mar. As gaivotas e as garças. O porto. Um animal horrível. As locomotivas e os automóveis. O transporte de mercadorias no porto. A baía. Os navios ................................................................................................. p. 61. VII. A primeira viagem de trem de Joãozinho. O milagre do telégrafo. A inexperiência de Joãozinho causa alegria aos companheiros de viagem. A Serra Geral do Mar. A viagem para o inferno. Os túneis. A chegada em Curitiba. Os bondes. A vida na cidade e pessoas estranhas. A hospedaria. O exército brasileiro aproxima-se. A bandeira nacional. A catedral. A venda da cidade ...................................... p. 70. VIII. A prova. A decepção de Joãozinho ao saber que não será doutor. A magia: através da parede, ouve-se o chamado por alguém que entenda a língua alemã. O telefone. A luta interior de Joãozinho: ele quer voltar para casa. O sentimento do dever. O moinho de erva-mate. A viagem em carro de transporte através do campo .................................................................................... p. 79. IX. A luta. Os pinheiros e a mata de erva-mate. A venda do campo. Um reencontro indesejável. Um inimigo oculto. Águas furtadas. Joãozinho é introduzido na nova profissão. O marujo baiano sedento de sangue. Joãozinho quer deixar a redondeza sinistra. Sua amarga saudade do lar ........................................... p. 87. X. Joãozinho precisa trabalhar arduamente. Os cavalos de montaria. Através do conhecimento da língua alemã ele consegue a colocação de empregado. O armazém de erva-mate. A luta de Joãozinho com seu inimigo. A derrota sangrenta. A capoeira brasileira supera a luta jiu-jitso japonesa ....................................... p. 95. XI. De como Joãozinho imagina sua volta para casa. O inventário e o balanço na venda. Joãozinho resiste a uma tentação. Um domingo na venda do campo. As corridas de cavalos são combinadas. O cachola e o bacará. Dois recentes e desagradáveis conhecidos preocupam Joãozinho: o segundo ringue ............. p. 103. XII. A preparação para a volta ao lar. Os presentes e as economias. A cavalgada pela floresta e montanhas. O assalto dos ladrões. Joãozinho em risco de vida. Uma boa lembrança na hora certa. O alojamento noturno. O segundo assalto ........................................................................................................... p. 112. 4 XIII. A capela da mata. Joãozinho agradece a Deus pela sua salvação milagrosa. Avista-se o lar. O que Anita vai dizer? A alegria do professor da mata, o júbilo da mãe e dos irmãos. A concretização de um profundo desejo da mãe. Joãozinho vive um momento inesquecível. Jacó, o papagaio, e "Valente". O cumprimento dos padrinhos. A alegria na terra natal .................................. p. 119. XIV. O retorno à loja de Casa Branca. A preparação dos cavalos de corrida. A pista. O erro de Joãozinho: ele deve pagar para outros. Ele cai em desgraça junto ao patrão. A serraria na mata de pinheiros. O mate-chimarrão. A cuia e a bomba ........................................................................................................... p. 125. XV. A sinistra massa intransponível da mata à noite. O inverno brasileiro nas montanhas. Joãozinho descobre um complô e recua furtivamente. As matas de ervamate do Paraná e as matas de borracha do Pará. Como é produzido o mate bruto? Um mate-carijo. Barbaquá, congoinha e caúna. O churrasco de paca ............ p. 132. XVI. A perplexidade de Joãozinho numa perfídia. Os perigos. As opiniões contrárias. A preparação para a carreira. O treinador de cavalos. Uma trapaça. O feiticeiro. As magias e os golpes perigosos. A festa da igreja no campo. A bebida fatídica ............................................................................................... p. 139. XVII. A carreira no campo. Os cavaleiros adversários. A suspeita de Rodrigo. Um acidente inesperado causa grande preocupação. Joãozinho como indivíduo necessário. A força de vontade dá a vitória. A batalha na pista. Os mortos e feridos. O baiano desaparece .............................................................................. p. 149. XVIII. O ferido na maca. Joãozinho sente-se como criminoso e quer confessar tudo. A confissão de um moribundo. O inocente é alvo de suspeita. O relógio reencontrado. O agradecimento de Rodrigo. Um enterro ............................. p. 156. XIX. A ascensão de Joãozinho. Ele toma conhecimento dos grandes homens do povo português, brasileiro e alemão. Ele treina futebol. O banco de jardim sob o cipreste. O tempo de aprendiz chega ao fim. A cavalgada para Curitiba. O Hino Nacional. Uma bonita menina curitibana. As perspectivas de viagem ............ p. 163. XX. Em casa. A partida para a caça. O rancho na floresta virgem. Os rastros de anta, lontra e cateto. As histórias de caçadas com onça. O fatigante avançar na floresta montanhosa. Os enormes troncos de imbúias, canelas, peróbas, sassafrás, cedros, tarumãs, araçás entre outros. A caçada de cateto. O fiasco de Joãozinho ........................................................................................................... p. 171. 5 XXI. O jacu. O rastro de uma onça. O sacrifício de Joãozinho. O graxaim. Joãozinho vira motivo de chacota. A presa abatida. A febre. Margarida e Vitório .......................................................................................................... p. 179. XXII. A glória de Joãozinho na caçada. A partida para a região duvidosa. A chegada na fazenda. O administrador Fabrício. Joãozinho é visto como espião. Histórias sinistras. A angústia. A mangueira e os urubus. O cavalo empacador. Os perigosos caminhos de cavalgada ...................................... p. 187. XXIII. A fazenda Lavrinha. A criação de gado. A invernada. Os cochos de sal grosso para o gado. O berne. O laço em atividade. Os bezerros marcados a ferro quente. Os peões. Os agregados. As artimanhas do administrador. As estações de chuva e a contabilidade .......................................................................... p. 194. XXIV. A fazenda vizinha. A suspeita de Joãozinho em relação a Fabrício se confirma. Ele treina arremesso de laço. O fantasma noturno. A armadilha do fantasma. O fantasma é surrado ............................................................. p. 200. XXV. As tentativas frustradas para uma explicação. Joãozinho tenta se furtar da situação. Ele é alcançado. Os índios. Os bois mortos. As trilhas de bugres. O assalto dos selvagens. O buraco do tatu. O acidente de Fabrício. Joãozinho, na tentativa de fuga, encontra o acampamento dos bugres. Nestor .................. p. 205. XXVI. A mão morena. O empregado Lammin revela a treta do administrador. A fuga selvagem. A salvação frustrada. O arremesso do laço. Uma luta de box. A luta de vida e morte. A salvação está próxima. Mãos ao alto. O principal culpado consegue escapar. Joãozinho cai desfalecido ao chão. Emília ...................... p. 212. XXVII. A caçada aos bugres. O juiz de paz Bueno. O administrador é encontrado. A queda do cavalo branco. Um final de misericórdia. Um grande dia na vida de Joãozinho. A tristeza do administrador. A viagem para o sul: colônias florescentes dos imigrantes alemães e os campos no Rio Grande do Sul. A criação de gado. A cidade de Curitiba. A filha do patrão. As hesitações da mãe ............. p. 218. XXVIII. A tristeza de Anita. Aparência e Essência. Uma proposta de negócios. Joãozinho renuncia ao seu emprego. A mudança para Casa Branca e Palmital. A surpresa do professor. O pedido ..................................... p. 224. de casamento. A bênção da mãe. Final 6 INTRODUÇÃO DA TRADUTORA O romance Hansel Glückspilz (Joãozinho Felizardo) é de 1926 e é considerado como obra pioneira no âmbito da literatura juvenil para leitores de língua alemã no Brasil. A narrativa é composta de vinte e oito capítulos que se apresentam como unidades mais ou menos independentes. Cada capítulo expõe uma situação inicial, de equilíbrio ou desequilíbrio, e o desenvolvimento de uma ação transcorrida e concluída no próprio capítulo. O elemento de ligação entre todos os capítulos é o personagem central, Joãozinho, que o narrador molda como exemplo para seus leitores. A narrativa começa quando Joãozinho tem apenas 7 anos. No decorrer da mesma são relatadas todas as aventuras e experiências, que o protagonista vivencia até aproximadamente vinte e cinco anos de idade. O cenário do romance é bastante amplo, pois Joãozinho é conduzido através de paisagens diferentes que se estendem desde a planície tropical até o planalto de clima mais ameno; da mata virgem sussurrante ao campo livre e verde; do bramido do mar à mata da erva-mate nativa; da colheita do chá à criação de gado na fazenda solitária. Essas idas e vindas são oportunidades de que o narrador se vale para descrever, minuciosamente, a paisagem do sul do Brasil e, ao mesmo tempo, mostrar o crescimento do personagem, que aprende a conhecer diversas classes de pessoas e vivencia profissões diferentes. Assim, envolvida por uma paisagem real e suave, a narrativa aproxima da terra natal os filhos de imigrantes alemães através de um romance de leitura cativante. 7 Sabemos que o tradutor exerce grande influência na mensagem geral da obra que traduz, pois cabe a ele optar por um certo nível de linguagem, adaptar o texto e manter uma posição definida ante as personagens. Por outro lado, o grau de respeito para com o original talvez seja a mais difícil de todas as decisões a serem tomadas por um tradutor. No texto em questão, por se tratar de obra situada fora da nossa época, temos que optar, inicialmente, por transformar e/ou modernizar a sua atmosfera lingüística, trazendo-a para nós. Assim: --o pronome de tratamento usado na narrativa no original, Sie (o senhor, a senhora) revela um tratamento formal, de respeito. A tradução de Sie por senhor/a na escritura do romance seria uma fato natural na década de 20. Atualmente, década de 90, resolvemos continuar a traduzir o Sie por senhor/a na relação do menino com os outros personagens mais velhos, em discurso direto. Já no discurso indireto, onde temos o tratamento também formal com Herr, Herr Dr. optamos pela tradução com o pronome você. "...Der Herr Ribeiro..." ( Ribeiro...) "...Herr Dr. Bark war früher Advokat..." ( Bark era advogado...) --Optamos em manter o padrão monetário da época (milréis),já que seria difícil encontrar um valor correspondente nos dias de hoje. "...und erhält im ersten Jahr 30 Mil-réis Monatsgehalt..." ( ...e receberá no primeiro ano 30 mil-réis por mes...) Os nomes próprios, que se encontram na narrativa em alemão, foram traduzidos por seus correspondentes em português. Os nomes dos irmãos, Hansel und Gretel, principais protagonistas do romance, foram adaptados para o português como Joãozinho e Maria. 8 É importante observar que estes nomes aparecem traduzidos na obra original como Joãozinho (Hansel), e Guida (Gretel), em várias passagens da narrativa. No original, a menção de Hansel und Gretel remete-nos aos irmãos do conto de fada dos irmãos Grimm. Porém, na tradução dada pelo narrador no romance este elo se perde. Joãozinho tem outra irmã com o nome de Maria. Parece-nos que o autor desdobrou a personagem feminina dos contos de fada em Gretel e Marie. Para que a relação com a fábula - os dois irmãos se perdem na floresta e vão parar na casa da bruxa - não se perdesse, pois o primeiro capítulo do romance traça um paralelo com esta - a irmã desaparece na floresta e Joãozinho sai à sua procura, encontrando-a com um bando de ciganos - mantivemos a adaptação já existente de Joãozinho e Maria. No entanto, Marie, do original, foi traduzido por Margarida. No romance Hansel Glückspilz, cuja ação se desenrola numa comunidade brasileira, Ammon coloca, entre parênteses, ao lado da palavra portuguesa sua palavra correspondente em alemão. Ao iniciarmos a tradução da obra, pensamos em manter, para maior fidelidade à forma, ou melhor, ao estilo ammoniano, as palavras, frases ou expressões que aparecem entre parênteses, mas invertidas na tradução, ou seja, nos parênteses foram colocadas as traduções portuguesas. Citaremos alguns exemplos para melhor esclarecer a proposição: "Invernada"(überwinterungsweide). por"überwinterungsweide" (Invernada) "Urubús" (Aasgeier) por "Aasgeier" (Urubús) Todavia, optamos pela montagem de uma "edição bilíngüe", onde este recurso tornou-se desnecessário à medida que o leitor tem ambos os textos em mãos. 9 No entanto, há palavras referentes à fauna e flora que, ou por não existirem correspondentes em alemão, ou por serem pouco usadas, são mencionadas apenas no português: Sabiá, Colibri, Periquito, Jacú, Bicho-berne, Pinheiro, Inambú, Saracura, Bem-te-vi e outras. Aparecem também, não traduzidos, vocábulos que refletem os costumes da região como Mate, Chimarrão, Cuia, Bombilha, Churrasco, Rancho, etc. O vocabulário português incorporado vem reforçar a imagem do novo mundo, de cuja vida o romance em questão é um retrato bastante fiel. Por outro lado, encontramos grande dificuldade em traduzir palavras como: "Der Obercaixeiro"( O caixa chefe) cap.10 . "Caixeiro" (caixa) "Oberlehrling" ( Aprendiz chefe) cap.9 . "Lehrling" (aprendiz) Estes substantivos indicam uma graduação na vida profissional dos padrões da cultura alemã e seus correspondentes encontrados em português são: "Der Obercaixeiro" - balconista chefe "Caixeiro" - balconista "Oberlehrling" - mestre de aprendiz "Lehrling" - aprendiz No decorrer da narrativa deparamo-nos também com a citação de inúmeros provérbios. Como exemplo citamos, no capítulo XI, um provérbio e sua forma correspondente, já citado por Thomas a Kempis (1379-1471) em sua “Imitação de Cristo”. "Der Mensch denkt und Gott lenkt! ( o homem pensa e Deus dirige). "O homem põe e Deus dispõe!" 10 São freqüentes as criações intralinguais, baseadas na língua portuguesa e na alemã, e que aparecem no texto da seguinte maneira, por exemplo: venda - picada Venda - complô Pikade - Komplott Há palavras que não foram traduzidas pelo narrador, realçando a característica regional do vocábulo. São inseridas no contexto lingüístico alemão através da anteposição do artigo. Vejamos: der Lasso, der Monjolo, der Fandango, der Curandeiro, die Roça, der Mutirão, der Caixeiro, der Agregado, der Feiticeiro, die Fita, die Bondes, der Vendist. Na linguagem do romance aparece a composição de palavras, juntando Empacador-Pferd; um radical Lassowerfen; português Matewald; a um alemão: Das Mateschuppen; das Tatuloch; der Obercaixeiro; die Maultiertropa; Mandiocamühle; die Waldvenda; die Kampvenda; die Stadtvenda; Cipósammeln. Na tradução para o português, o destaque dado a estes sintagmas usados pelo narrador, no original, acaba se perdendo parcialmente. Recorrendo a esse processo de incorporação, a narrativa enfocada adquire um colorido local que a torna, sob este aspecto, bastante expressiva quanto à criação de uma determinada atmosfera regional, a do Sul do Brasil. Outro problema por nós defrontado no decorrer do processo da tradução é o que se refere à precisão minuciosa com que o narrador define as cores. Exemplo: "...in escura...) dunkelgrünem Laub..." ( na folhagem verde 11 "...viele goldgelbe Orangen..."( muitas laranjas amareloouro...) "...schwärzlich grüne Kaffeesträucher..."( os verde- enegrecidos pés de café...) Antes de concluirmos estas reflexões seria importante ressaltar que este romance nos é hoje um "guia", talvez idealizado, enquanto revelação dos hábitos daquela época. Ou seja, o que no início era novidade para os olhos dos "alemãezinhos", hoje é novidade para nossos olhos de leitores do fim do século. Enfim uma nova descoberta! Finalmente podemos dizer que apesar de pecarmos, em parte, contra a forma literária do texto original, tentamos exprimir a personalidade do artista criador enquanto vivencia sua obra e afirma sua visão do mundo para si mesmo, confessando-a ao leitor. 12 Prefácio Com a publicação do presente livro esta editora abre um caminho no campo da literatura brasileira. Os jornais alemães no Brasil repetidamente vêm lamentando que até agora não temos um número maior de obras de literatura juvenil, que possam aproximar dos filhos brasileiros de imigrantes o ambiente, as regiões geográficas, a terra natal, através de uma narrativa ilustrada. Não faltam boas leituras juvenis alemãs, que nos vêm da velha terra natal para nós, porém falta o livro da terra para crianças mais maduras, que lhes apresente sua terra natal com as belezas e singularidades do sul brasileiro numa excitante narrativa. O conhecido autor Wolfgang Ammon incumbiu-se, a pedido da editora, de escrever esse livro para os brasileiros do sul do país e para a juventude alemã. No índice pode-se captar a riqueza do assunto: a planície tropical, as frias regiões montanhosas; a murmurante floresta virgem, o verde campo livre, a vida das pessoas no interior, na cidade, nas regiões costeiras, na fazenda solitária, na plantação de erva-mate, na caçada nas selvas - tudo passa por nós na excitante e excêntrica descrição da vida de um jovem e retém nossa atenção até o final. As habilidades que "Joãozinho Felizardo" herdou da mistura dos sangues germânico e luso-brasileiro fazem dele um homem íntegro, ao qual não faltam sucesso nem simpatia. As ilustrações foram feitas por artistas que se inspiraram na natureza. Reproduzem o típico e impressionante mundo do sul do Brasil. O livro pode ser adquirido por livreiros na Europa através da Firma F. Volckmar, Leipzig, e na América do Sul através da presente editora. Max Schrappe "Impressora Paranaense" Curitiba, 28 de agosto de 1926 13 I A cabana solitária. Joãozinho como sentinela. A luta com o réptil. O triunfo. A procura pela criança desaparecida. "Valente", o inteligente cão rastreador. A tropa de burros. A tenda de ciganos. Haverá luta? Vitória e a volta para casa. A cabana da pobre viúva Soares Pilz ficava na floresta. Desde a morte de seu marido trabalhava no pequeno pedaço de terra com seus três filhos mais velhos, Francisco, Margarida e Pedro. Os dois menores, Joãozinho e Maria, ainda brincavam: Eram muito fracos para ajudar no trabalho da terra. A cabana ficava isolada na floresta. O vizinho mais próximo, o velho Cidral, morava a uma meia hora de caminhada dali. A casa da viúva era feita de tábuas pardas e vigas de canela e coberta com folhas secas de palmito. Tanto na parte da frente como nos fundos havia duas janelas e uma porta. No quintal, ao lado do paiol e do chiqueiro de porcos, havia lindas laranjeiras em cuja folhagen verde-escura luziam laranjas maduras. Logo atrás rompiam abundantes pés de café verde-escuro com grãos vermelhos. As altas bananeiras, com enormes folhas verdeamareladas, formavam um pequeno bosque ao qual se anexava uma grande moita de bambu. Tanto em frente da casa como ao lado, além das laranjeiras havia também mamoeiros com suas frutas amarelas em forma de pera, bem como inúmeras goiabeiras. Atrás do pomar estendia-se a roça com suas plantações até a mata virgem. Numa tarde em que a viúva precisava ir trabalhar na roça com os três filhos mais velhos, chamou o pequeno João, menino pequeno e encorpado de sete anos. Ele brincava ao lado da casa com a pequena Maria que só tinha dois anos. A mãe colocou sua enxada nas costas, Francisco segurava sua foice enquanto Margarida e Pedro se apoiavam nos cabos de suas enxadas. - “Joãozinho”, dizia a mãe para seu pequeno filho, “cuide 14 bem de sua irmãzinha Maria, e fique sempre de olho na casa, para que não venha nenhum ladrão e nos roube. Você pode ser pequeno para trabalhar, mas já pode cuidar da casa e da Maria. Assim, conto com sua ajuda.” Joãozinho sentia-se muito importante como senhor da casa e seus olhos azuis brilhavam de orgulho. Mas assim que as vozes da mãe e dos irmãos mais velhos se foram perdendo ao longe, e seus vultos desaparecendo na imensidão da mata, tomou consciência da solidão em que ele e sua pequena irmã se encontravam. Na verdade, as galinhas cacarejavam e ciscavam ao seu redor, como antes. O galo cantava tão alto para a mata, que o eco voltava muitas vezes. Os patos brincavam na lama perto da casa, os porcos grunhiam na pocilga. E Valente, o cachorro, arrastava lá atrás sua corrente em redor da casinha. Porém não se ouvia nenhuma voz humana, além da tagarelice da pequena Maria. E ele estava totalmente sozinho com ela. Ele pegou sua pequena e suave mãozinha e a conduziu até o balanço de cipó, que estava fixo entre os pés de laranja. A delicada criança deixava-se balançar alegremente. Então chuparam algumas laranjas. “Baança”, pedia Maria mal as tinham chupado, e Joãozinho a balançava novamente, e ela gritava de tanta alegria. Contudo, a consciência da responsabilidade pela segurança da criança e da casa afligiam a alma de Joãozinho. A solidão começava a aterrorizá-lo. A mata não estava murmurando de uma maneira sinistra? Que barulho era aquele lá da mata?... Eram índios que se arrastavam?... ou uma onça?... Joãozinho não se divertia como sempre, quando a mãe e seus irmãos mais velhos estavam em casa. Pensava que logo teria que dar uma volta ao redor da casa e pelo quintal, pois a mãe tinha-o deixado como guarda. Talvez uma janela ou uma porta tivesse ficado aberta. 15 Ele queria tirar a irmãzinha de dois anos do balanço, para levá-la consigo na caminhada. Mas Maria se recusou chorando, não queria sair do balanço. Assim Joãozinho foi sozinho. Primeiramente, ao redor da casa. Portas e janelas estavam bem fechadas, como ele pôde constatar. Agora era a vez do quintal e do paiol. Deu uma olhada na pocilga. Os animais grunhiam esperando comida. Então, foi até Valente, que estava defronte de sua casinha e balançava alegremente o rabo com sua aproximação. Brincou um pouco com o cachorro e então dirigiu-se até o paiol. Ali o papagaio o recebeu brincando no poleiro e gritando: “Jacó quer pão, ...pão...” Joãozinho o intimidou com o punho e checou o interior do paiol. Tudo em ordem. Então o homenzinho sentiu-se importante. Agora queria voltar para brincar com Maria mas, de repente, deu um grito. Na soleira da porta dos fundos da casa, estava enrolada uma enorme e venenosa jararaca. Joãozinho deu um pulo para trás. Ele nunca tinha matado uma cobra mas observara, com frequëncia, como a mãe ou os irmãos mais velhos matavam um réptil tão perigoso com um pedaço de pau. A cobra não podia escapar! Ela poderia se esconder e um dia morder a mãe ou os irmãos. Então eles poderiam morrer! “Uma cobra venenosa a gente não deve deixar escapar...”, dizia a mãe. “Apenas as cobras verdes vocês não devem matar, pois elas exterminam camundongos e insetos.” Joãozinho arrastou-se de volta para o paiol e procurou por uma boa vara flexível. Seu coraçãozinho batia com muita força. Lentamente, dirigiu-se de novo para a porta dos fundos da casa. A cobra havia percebido o perigo. Desenrolou seu corpo, brilhante com manchas pretas e amarelas, para bater em retirada. Com a aproximação do menino levantou a cabeça triangular de víbora, e sibilando com a venenosa língua pontuda. Por um momento, o corajoso menino vacilou. A cobra parecia extremamente perigosa. Porém, quando ele percebeu que ela se preparava para se esconder debaixo da casa de madeira, reuniu toda sua coragem e levantou o pedaço de pau bem para o alto com as 16 duas mãos. Um golpe preciso...Então Joãozinho deu um salto para trás. A cobra estava enrolada. Ela queria sair se arrastando. Então não houve estremecimento... Em frente! Ele aproximou-se rapidamente da cobra furiosa que sibilava, golpeou-a novamente com toda a força de seu corpo e saltou de lado outra vez. Pelos movimentos exaustos do réptil, Joãozinho viu que havia ferido a espinha dorsal do animal, e que ela não conseguiria mais atacar. Continuou a golpear a jararaca, até que ela apenas estrebuchasse. Para maior segurança foi buscar uma enxada com a qual bateu na cabeça da serpente até que estivesse morta. O menino deu um grito triunfal. Tremia de preocupação. Seu rosto queimava. Os cabelos loiros caiam desordenados na testa suada. Contudo, seu pequeno coração batia de alegria por ter ganho a batalha. O que a mãe diria!... E os irmãos, bem, eles ficariam olhando!... Ha, ha, ha! Ele ria alto de prazer. - Maria, Maria! - ele chamava excitado pela glória, - venha até aqui, uma cobra! Eu a matei, eu! O cachorro arrastava a corrente atrás dele e uivava. - Valente, fique quieto! - gritava Joãozinho e corria para pegar Maria. - Louro, louro! - grasnava o papagaio e batia com as asas verdes acinzentadas. Assim que Joãozinho se aproximou do balanço de cipó, não encontrou a menininha. - Maria!... Mariiia!... Maria! - gritava o menino, e olhando ansiosamente ao redor. Apenas o murmúrio da mata, o manar da fonte, o grasnar de um tucano eram audíveis. - Maria, onde você está? - gritava Joãozinho chorando. Então começou a vasculhar, com muito medo, a casa, o paiol e o quintal, à procura da irmã. Percorreu todas as moitas ao redor. 17 Não encontrou nada que pudesse conduzi-lo a uma pista de Maria. Apenas a bonequinha de pano, que a mãe lhe fizera, estava ao lado do balanço vazio. Por mais de uma hora ele procurou angustiadamente pela pequenina, que lhe tinha sido confiada, sem encontrá-la. E Valente, o inteligente cão, arrastava disparadamente sua corrente e uivava, como se pudesse medir a imensa dor do pequenino, que se atirava chorando ao chão. - Onde será que a irmãzinha tinha ido parar? - Esta pergunta desesperada machucava, sempre com mais intensidade, a alma do menino. Então ele teve uma idéia. Há meio ano, quando o irmão Pedro se perdera na floresta, Francisco, o irmão mais velho, usou o cachorro,amarrado com uma corda,para judá-lo na busca e, assim encontrou Pedro. Joãozinho então, deu um salto e dirigiu-se para a casinha do cachorro. Valente, cão de porte médio, era um inteligente cão de caça. Ele disparou selvagemente, passando pelo menino como se não pudesse esperar mais para ser solto. O menino amarrou-lhe uma corda na coleira. A outra ponta da corda ele amarrou em sua cintura. Então, soltou a corrente da coleira do animal que gemia de alegria e que, com um salto, derrubou o menino no chão. Imediatamente, o inteligente animal parou e esperou até que Joãozinho tivesse se levantado. O menino deu a boneca de Maria que estava no balanço, para o cachorro cheirar. O cachorro deu algumas voltas e começou a correr com o focinho no chão seguindo o atalho que levava para a estrada. Joãozinho teve que se esforçar para acompanhá-lo. O cachorro arrastava-se para a frente. Muitas vezes o rapaz tropeçava, porém o cãozinho inteligente parava e olhava para todos os lados, para não derrubar o menino. Os dois chegaram à estrada que, com tempo bom, também era trafegada por carretas que iam para a cidade portuária. Ao redor havia palmeiras, grandes samambaias com espinhosos marrons, amoreiras, abacaxis selvagens, capim alto e troncos bambus 18 delimitando a espessa floresta verde que cercava a estrada. Uma imensa figueira entrelaçada de trepadeiras estendia-se na bifurcação do caminho. Seria possível que Maria, uma criança de dois anos, conseguisse andar tanto sozinha? Joãozinho começou a duvidar do poder de busca do cachorro. No entanto, desde que deixara a criança no balanço, já passara uma hora e meia provavelmente. Porém aquela menina pequena não poderia ter caminhado tão longe sozinha. “Será que alguém não roubou nossa Maria?” pensava enquanto corria e lágrimas desciam pelo seu rosto vermelho. “Pessoas más ou... até índios?” Um pavor foi tomando conta dele: “Oh! Deus, coitada da mãe! Ah, se ficar sabendo que sua Maria desapareceu, ela morrerá de preocupação e de tanto chorar!” E, enquanto isso, continuava correndo atrás do cão, já quase sem fôlego. Na trilha da mata, atrás do menino, podiam-se ouvir os sinos de uma tropa de burros. Os cavaleiros que acompanhavam a tropa avistaram o menino que corria e o cachorro que parecia arrastálo. Um dos cavaleiros incitou seu cavalo, alcançando o menino e fez com que o cachorro, que latia furiosamente, parasse. Respondendo à pergunta do cavaleiro, Joãozinho contoulhe chorando o que lhe acontecera. Então o tropeiro colocou-o junto na sela e deixou que o cão continuasse na busca. Valente disparou na estrada, com o nariz colado ao chão. O cavaleiro e Joãozinho seguiam a galope. Não demorou muito para chegarem a uma pequena clareira na mata, coberta por uma verde grama de campo. Ali avistaram um acampamento de ciganos. Três barracas pontiagudas, amareladas pelo tempo, destacavam-se do verde escuro da densa mata. Ao lado estavam três carros pintados de azul, junto dos quais seis cavalos negros pastavam. Entre as barracas e os carros crepitava o fogo vermelho do acampamento, cuja fumaça subia azulada ao céu do entardecer. Sobre o fogo pendiam panelas pretas. 19 Os ciganos, com lenços vermelhos amarrados ao redor da cabeça ou do pescoço, estavam sentados, conversando e se divertindo, ao redor do fogo. Eram três homens, quatro mulheres e algumas crianças. Quando o cavaleiro e o menino conduzidos pelo cão, os encontraram eles saltaram espantados. O tropeiro soltou rapidamente a corda de Valente e este disparou com um grito de alegria em direção de uma barraca, na qual entrou rapidamente. Joãozinho havia descido do cavalo e seguiu seu fiel cão, enquanto o tropeiro interrogava os ciganos acerca da criança desaparecida. Eles imediatamente mostraram caras ameaçadoras e gritavam que não eram comedores de crianças, e que não sabiam nada de uma menina roubada. O tropeiro ficou inseguro. “Quem sabe esse menino mentiu para mim”, pensou furioso, sem saber o que fazer. Enquanto isso Joãozinho entrou na barraca com o cachorro e, com um grito de alegria, foi ao encontro de sua irmãzinha, que dormia sobre uma pele de animal, com olhos vermelhos de chorar. Valente, o esperto cão de busca lambia suas suaves mãozinhas. Nisto Maria acordou e já ia chorar quando viu o fiel Valente e seu irmãozinho. Imediatamente sua expressão se iluminou. Enquanto isso, o tropeiro que tinha acompanhado Joãozinho ao acampamento encontrava-se numa difícil situação com os ciganos. Eles estavam cada vez mais furiosos e procuravam, com ameaças, fazer com que o tropeiro deixasse o acampamento. Este franziu a testa, procurando com os olhos pelo menino que trouxera, e pegou sua pistola. Os ciganos encolerizados se aproximavam dele e o empurravam para que descesse do cavalo e fosse embora, senão eles lhe mostrariam quem era o senhor do acampamento. Simultaneamente agitavam facas e varas diante do rosto do tropeiro, para intimidá-lo. Nesse momento ele ouviu o sino da tropa que se aproximava e encheu-se novamente de coragem. Seus três companheiros viram que os ciganos o ameaçavam com palavras e 20 armas para obrigá-lo a bater em retirada. Aproximaram-se com seus cavalos, puxaram as pistolas e avançaram sobre os ciganos. - Afastem-se imediatamente, seus cães danados, senão vamos abrir fogo - gritou o condutor da tropa. Diante disso os ciganos estremeceram e recuaram para seus carros, ainda negando o roubo da criança. Nisso Joãozinho saiu da barraca com a irmãzinha, seguido de Valente, e aproximou-se de seu protetor. - Agora vocês, seus canalhas, ainda vão negar?! - gritou este com satisfação. - Venham, crianças, eles não farão mais nada contra vocês! Os ciganos entreolharam-se, consternados e embaraçados, murmurando provocações em sua língua. Joãozinho precisou contar, novamente, onde morava com sua mãe e irmãos, como eles se chamavam e como tudo acontecera desde que Maria desaparecera. A menina repetia solicitamente as palavras finais do irmão e também queria contar: - Mulhé bava, ...garrou Maria, levou mato. - Vocês ouviram, bando de canalhas? - gritou o condutor da tropa. -Vou denunciá-los à polícia no próximo lugarejo! Então uma cigana aproximou-se chorando e relatou que encontrara a criança chorando na mata onde, de tanto cansaço havia caído, e ela, por pena, a havia levantado e levado para o acampamento. Por isso ela não poderia ser castigada pela polícia. - A nós vocês não enganam! - gritavam os tropeiros. Agora vocês querem se justificar, sua corja! Por que vocês negaram que haviam roubado uma criança, hem? Se a gente não tivesse vindo, vocês nunca mais devolveriam a menina. A pobre mãe nunca mais veria sua criança. Nós conhecemos vocês! Tomem cuidado, nós vamos denunciá-los! O tropeiro que levara Joãozinho até lá, colocou este e Maria em seu cavalo, e voltou pelo mesmo caminho, em direção à casa da viúva. O fiel Valente, latindo alegremente, ia à frente. Porém nunca se afastava muito, como se quisesse ficar de olho nas crianças. Entretanto, a tropa continuou seu caminho. 21 Quando o cavaleiro se aproximou da casa da viúva com as crianças, ouviu choros e lamentações. - Oh, Deus, onde estão minhas pobres criancinhas? Joãozinho, Maria onde vocês estão? Francisco e Pedro as procuravam como loucos nas moitas ao redor. A mãe e Margarida, a filha mais velha, já haviam procurado pelas crianças na casa, no paiol e quintal. Encontraram a cobra morta e não entendiam porque a casinha do cachorro estava vazia. Apenas o papagaio respondera ao chamado deles: - Louro ... fora, louro, Jacó, pão! Francisco e Pedro procuravam pelas orlas da floresta Chorando muito, a mãe se apoiava na porta e abraçava Margarida, que também se lamentava: - Meu Deus, Meu Deus, onde será que está minha doce e pequena Maria? E então, irritou-se: - Joãozinho, este menino malvado! Certamente foi com o cachorro perambular pela mata e não cuidou nem da criança nem da casa. Antes eu não tivesse confiado tanto nesse garoto. É claro que aconteceu alguma coisa com minha pequena Maria... ou talvez já esteja... morta -, e choravam com amargura. Nesse momento os irmãos viram o cavaleiro que se aproximava com as crianças. - Mãe, mãe, alguém está trazendo as crianças! - Gritavam com alegria. E Valente, o fiel cão, também saltava em suas direções latindo alegremente. A mulher virou-se como um relâmpago e olhou, ainda com os olhos cheios de lágrimas... Deu um grito de alegria e foi correndo ao encontro do cavaleiro. Este parou, tirou as crianças de cima do cavalo e também desceu. A mãe puxou a pequena Maria de encontro ao peito e a beijava impetuosamente. E então, em Joãozinho, que se aproximava docilmente, deu um empurrão tão forte que este chegou a vacilar. - Seu menino desobediente -, gritou com raiva, - você deveria ter cuidado da criança e da casa, e foi passear e ainda levou o 22 cachorro! Mas espere, você vai levar uma sova, oh, se vai! E nunca mais vou confiar em você, seu irresponsável! Joãozinho ficou de lado, estarrecido. Seu coraçãozinho batia dolorosamente. Ao invés de ser elogiado e acariciado, é rejeitado pela mãe e ainda vai levar uma surra. Empalideceu e recuou. Então o tropeiro começou a contar o que sabia de Joãozinho e como o encontrara na busca de sua irmãzinha roubada. Relatava com que coragem aquele menininho matara a cobra venenosa para que sua mãe e seus irmãos não fossem atacados por ela; como a irmãzinha havia desaparecido; como saíra com o cão à sua procura, e como ele e os tropeiros salvaram a criança. Sem a astúcia e perseverança de Joãozinho e sem o faro do cão, Maria continuaria desaparecida para sempre. Aí as lágrimas brotaram dos olhos da mãe, Ela colocou Maria no chão, abriu os braços e chamou soluçando: - Venha para perto de mim, meu menino corajoso! Eu fui injusta com você! Você foi valente e cumpriu sua obrigação! Não chore, meu pobre menino, porque sua mãe o repeliu! Joãozinho, retendo corajosamente as lágrimas, atirou-se nos braços da mãe, que o acariciava e beijava elogiando-o muito pelo acontecido. Valente, o fiel cão, também se aproximou e deixou-se acariciar com palavras amigas. Então a mãe soltou o menino, acariciou seu cabelo, deu ainda um beijo em Maria e se aproximou do tropeiro que observava tudo sorrindo. Ela pegou-lhe a mão, apertou-a com força e, com lágrimas nos olhos, agradeceu-lhe por ter salvo suas crianças. Também não permitiu que o tropeiro partisse sem antes entrar na casa com ela e os filhos e sentar-se com eles à mesa. Ele teve que tomar um café forte e comer o pão doce de melado. Enquanto isso seu cavalo recebia os cuidados de Francisco, que lhe dava milho para comer. Porém, ele não poderia demorar muito por ali, se quisesse alcançar a tropa de burros e seus companheiros. Assim, partiu com as bençãos da família. 23 Contudo, à noite toda, Joãozinho teve que contar como matara a cobra, como tudo acontecera. Com orgulho, a mãe olhava para seu pequeno rapaz. Assim, estavam todos sentados e conversando quando alguém bateu palmas lá fora, anunciando visita. No quarto, a pequena lamparina de querosene já estava acesa. Francisco, o irmão mais velho, abriu a porta e olhou cuidadosamente na escuridão. - Oh, é o vizinho Cidral, entre! - disse alegremente. A viúva se levantou depressa. - Oh, compadre Cidral, comadre, vocês chegaram em boa hora, entrem e sentem-se! E então, quando o velho Cidral e sua bondosa e gorda mulher se acomodaram, ouviram assustados e estupefatos, mas com muita satisfação, o que acontecera, e como o afilhado deles, Joãozinho, havia-se portado com cautela e valentia. Os olhos do velho Cidral brilhavam de orgulho. Pegou seu afilhado Joãozinho no colo e o acariciou. Naquela noite, os amigos foram embora bem tarde. 24 II A primeira ida de Joãozinho à escola. Cana-de-açúcar, café, arroz, tabaco e mandioca. Engenho de cana-de-açúcar. Moinho de mandioca. O monjolo. A venda da mata. A máquina fantástica. Joãozinho é motivo de riso. A escola da mata. Três anos se passaram. Joãozinho crescera muito e já precisava capinar o jardim com sua pequena enxada, buscar água e ajudar em muitas outras coisas. A pequena Maria tinha cinco anos e acompanhava o irmão com freqüência. Às vezes, os irmãos mais velhos, Francisco e Pedro, levavam junto o irmãozinho, para a roça ou para a mata. Então, Maria tinha que ficar em casa com a mãe, o que se tornava difícil para ela. Sem Joãozinho ela não sabia o que fazer. - Logo Joãozinho precisa ir à escola -, dizia a mãe - daí Maria precisa ficar em casa! - Maria também escola! - resmungava a pequena e franzia o delicado rosto como quem vai chorar. A coisa foi ficando séria. A mãe conversava freqüentemente com o compadre Cidral e com os dois filhos mais velhos: Joãozinho deve aprender a escrever, ler e calcular. Ele precisa ir para a escola. Contudo, a escola mais próxima era a do velho Bento Damásio e ficava a quase duas léguas. Para ir a pé, o menino levaria muito tempo. Diante disso, a mãe já queria abandonar seu propósito. Um dia o compadre Cidral veio e disse: - O menino vai à escola! Ele vai a cavalo! - Onde vamos arrumar dinheiro para comprar um cavalo? - disse a mãe. O velho José Cidral alisou seu cavanhaque grisalho e disse cautelosamente: - Eu sou o padrinho de Joãozinho e dou-lhe meu pônei (petiço). - O Mico? - gritou Joãozinho, imóvel de espanto. - O Mico marrom ligeiro? 25 Sorrindo, o velho Cidral acenou com a cabeça. Joãozinho deu um pulo de alegria, gritando com prazer. Então correu ao redor da casa e chamou os irmãos: - Eu vou ganhar o "Mico" do padrinho para ir à escola! Viva, viva! E Maria, que seguia apressadamente o irmão, também gritava: Viva, viva! - sem saber que seu amado Joãozinho iria à escola, deixando assim de ser seu companheiro nas brincadeiras. No dia seguinte, o compadre José Cidral veio montado em seu baio amarelo, já conduzindo o petiço marrom escuro pelo cabresto. Petiço já vinha com um baixeiro de lã. Joãozinho já estava pronto e tremia de contentamento. Toda a família estava reunida em frente da porta. Sorrindo, todos observavam com que trabalho Joãozinho tentava subir no cavalo. Finalmente, realizou a façanha. Todavia, assim que o padrinho Cidral passou-lhe as rédeas, o pônei disparou derrubando Joãozinho e atirando-o na grama entre as galinhas e os patos. Os irmãos e o velho Cidral choravam de tanto rir. Apenas a mãe se assustou e Maria começou a chorar. Porém, Joãozinho não se machucara. Envergonhado, levantou-se da grama e limpou a roupa da sujeira das galinhas, enquanto seus irmãos Francisco e Pedro pegavam o pônei. Francisco segurou o Mico pelas rédeas e Pedro colocou o garoto novamente no cavalo. - Afirme a coxa e as pernas! Puxe as rédeas! Cuidado! - Assim gritavam para Joãozinho os irmãos e o velho Cidral. Joãozinho estava corado de vergonha e de zelo. Seus olhos brilhavam. Estava decidido a não cair mais do cavalo. Com força, prendeu as pernas no corpo do cavalo e segurou as rédeas curtas. E tudo correu bem. O garoto cavalgava ligeiro, ao lado do baio do velho Cidral, ao longo da mata. Todos pareciam alegres, mas Maria chorava amargamente ao perceber que a vida de Joãozinho, agora, começava a ficar séria. Os dois cavaleiros sumiram na espessa mata. Na baixada, ao lado da grande figueira, atravessaram a larga estrada para conduzir novamente seus cavalos para a estreita picada. Varas de bambu arranhavam seus braços, samambaias sussurravam, 26 a mata erguia-se grandiosa de ambos os lados do caminho. Trepadeiras caíam de imensos cedros e canelas, orquídeas de muitas cores brilhavam no verde da copa das árvores. Um sopro fresco saía da mata escura. Ouvia-se o grasnar dos verdes papagaios e o assobio dos pequenos e pretos micos. Após algum tempo a escuridão da mata se apagou e os dois chegaram à grande plantação de cana-de-açúcar, que pertencia ao velho Gomes. O campo sussurrante dos pés amarelados da canade-açúcar, com suas folhas pontiagudas e estreitas, estendia-se por todos os lados. Como pano de fundo, delineavam-se as verdes montanhas da mata. E bem mais ao longe erguiam-se as azuladas pontas da Serra Geral do Mar, ao encontro do céu de um azul pálido da manhã. Do outro lado do caminho, entre laranjeiras e bananeiras, estava a casa branca do velho Gomes. O telhado era de telhas côncavas de um marrom avermelhado. A propriedade era toda cercada. Não muito longe da estrada, sob um paiol aberto, estava o moedor de cana-de-açúcar, acionado por dois bois de canga malhados. Alguns negros colocavam sempre mais feixes entre as lâminas de aço da prensa, outros cuidavam do recipiente em que caía o caldo marrom da cana. Uma carreta, com rodas de madeira a ranger, saía da plantação com dois bois de canga. Grandes feixes de cana estavam na carreta conduzida por um mulato. O velho Gomes estava na beira da estrada e cumprimentou os recém-chegados que pararam seus cavalos. Enquanto conversavam sobre o objetivo da cavalgada, o velho Gomes enrolou dois cigarros de palha de milho, oferecendo um ao velho Cidral. Joãozinho ganhou alguns suculentos gomos de cana para chupar, e ele e Cidral continuaram seu caminho e chegaram a uma plantação de mandioca. Os pés marrons da mandioca estendiam-se em fila com suas verdes cristas de folhas bipartidas cobrindo toda a propriedade. Junto à estrada estavam espalhadas algumas raízes maduras que haviam rebentado e revelavam seu interior, branco como neve, do qual se produz a nutritiva farinha de mandioca e a fécula. 27 Atrás da casa, que ficava na plantação, Joãozinho via o moinho de mandioca sob um telhado. Grandes montes de bagaço estavam nas proximidades. À beira do caminho, esbeltos coqueiros exibiam os troncos prateados que revelavam-lhes a idade pelo número de anéis. Cavalgaram por um rio deixando seus cavalos matarem a sede. Ao lado deles, na água, havia um monjolo que socava a farinha com gritos e gemidos além de um golpe surdo. Joãozinho olhava para tudo isso com grande curiosidade. Cavalgaram através da espessa mata, e também por plantações. Nosso Brasil maravilhoso é tão rico de tudo que se possa pensar como presente da natureza! Plantações de milho, tabaco e arroz se revezavam com grandes cafezais e campos de banana. O padrinho Cidral explicava para o garoto que o açúcar, o milho, a mandioca, o tabaco, o arroz e o café são os principais produtos da planície e que a agricultura das propriedades enriqueciam o Brasil. Por isso deveríamos honrar o trabalhador da terra e o agricultor. - Você está vendo lá as duas vendas? - perguntava ele ao garoto apontando para os telhados que surgiam por detrás da mata. É para lá que levamos nossos produtos da terra. Por esses produtos recebem-se lá todas as mercadorias necessárias e dinheiro para pagar os juros. Os dois apearam diante de uma das vendas. O vendeiro Vicente Lacerda recebeu-os com um aperto de mão e ofereceu um cigarro de palha de milho. Havia muitas pessoas reunidas ali. Sobre as tábuas e prateleiras estavam armazenadas peças com tecidos para roupas, caixas de chapéus, gaitas de mão. Nos pilares estavam pendurados palas, ponchos, botas, armas, ferramentas e outras coisas. Da viga mais baixa do teto balançavam panelas e chocolateiras de lata e de ferro. Porém o que mais excitava a curiosidade de Joãozinho era uma caixa com um enorme funil, de onde ouviam-se vozes humanas e música. Dos bancos aos cantos da venda e em frente ao balcão, os lavradores da redondeza escutavam esses sons. Joãozinho contemplou 28 a caixa de madeira, olhou para dentro do grande funil, encostou a orelha bem perto da caixa e pensou: - Ali dentro não pode estar sentada a pessoa que tanto grita e faz música. Com certeza ela está embaixo do balcão. Com um sorriso astuto trepou sobre a mesa do balcão e saltou para dentro del, começando a rastejar para encontrar o autor do barulho. As pessoas da venda haviam observado esse comportamento do garoto com grandes risadas. Porém, ao surgir o rosto desconcertado de Joãozinho por detrás do balcão, onde ele não descobrira nenhum ser vivente, quase morreram de rir. - Bobão! - disse o padrinho Cidral, que de tanto rir teve que segurar a barriga, - Você nunca viu um gramofone? Joãozinho arregalou os olhos, boquiaberto, quando o esclareceram sobre aquela máquina esquisita. - Quanta coisa maravilhosa existia no mundo, com as quais um pobre menino do mato nem ousava sonhar! Sorrindo, o velho Cidral esvaziou o copo, e ambos deixaram a venda para continuar a cavalgada. Tornaram a entrar na mata. Porém, logo surgiu a pequena casa de madeira, a escola do velho Bento Damásio. O mestre estava em frente da pequena porta e os observava cordialmente. Era alto e magro e sua cabeça reluzia com a careca. Também a barba era rala, em seu rosto inteligente. Cumprimentou os recém-chegados com uma longa e engraçada conversa. Era famoso em toda a redondeza pelos seus "discursos" e suas piadas. Ele sabia até de cor um dos brilantes discursos do famoso Rui Barbosa, como tinha sido publicado no jornal. Então, convidou os recém chegados para entrarem, o que eles fizeram imediatamente. Na sala de aula estavam sentados no chão mais ou menos vinte garotos entre nove e dezesseis anos. Cada grupo de quatro tinha como mesa, um banquinho de madeira diante de si. Alguns escreviam com giz na lousa de pedra, outros com caneta sobre papel. Na branca parede de madeira estava pendurada uma tábua preta que servia de 29 lousa. Nela estavam escritos, com giz, letras, números e palavras. Num canto, dois garotos ajoelhados mastigavam, olhavando para a parede. - Veja Joãozinho - ria o padrinho Cidral e apontava para os dois pequenos pecadores, - isso também pode acontecer com você, se você não tomar cuidado! - Sim, meu jovem -, disse o mestre, - e se você se tornar atrevido e não obedecer, então você apanha com esta vara! - E, dizendo isto, deu-lhe "algumas chibatadas como demonstração" fazendo com que Joãozinho se retraísse. Com isso, a turma toda da escola caiu numa grande risada. Joãozinho pensou: Ah, antes eu estivesse em casa com mamãe e brincando com Maria! - O menino já fica aqui, hoje mesmo! - disse o padrinho Cidral. - Eu pago lousa, giz e mensalidade. As tarefas ele deverá fazer aqui após a aula, antes de voltar. Seu lanche está na sela. Vá buscar, Joãozinho, e deixe o petiço no pasto. Joãozinho fez o que lhe fora ordenado. O padrinho Cidral voltou para casa. Joãozinho o acompanhou com os olhos cheios de lágrimas. O primeiro dia na escola foi uma tortura para ele. Os outros alunos troçavam dele, porque ele não podia compreender que aqueles riscos tortos na lousa pudessem ser letras com as quais alguém pudesse aprender alguma coisa. Porém, após ajoelhar-se algumas vezes no canto e levar algumas com a vara, sob as risadas dos colegas, ele se esforçou por copiar cuidadosamente aqueles traços. Quando os outros garotos foram para casa, a pé ou a cavalo, ele ainda teve que ficar e encher a lousa de letras. Finalmente, teve permissão para pegar o pônei e ir embora. Com que prazer subiu em seu cavalo e partiu dali! Como estava feliz quando chegou à noite em sua casa, onde a mãe e os irmãos já esperavam por ele na porta, perguntando-lhe como tinha sido seu dia. - O caminho para a escola era bonito -, disse Joãozinho enquanto estava sentado na sala e pegava sua Maria no colo. - 30 Também a volta foi bonita. Mas eu não vou mais à escola. Eu não gosto de lá! Então, contou para os irmãos sobre a máquina maravilhosa que tinha visto na venda. E todos ficaram admirados. Porém, na manhã seguinte, apesar de suas lágrimas, Joãozinho teve que voltar à escola. - O que o padrinho Cidral diria -, disse a mãe -, se você não fôr à escola! E o petiço, ele tomaria de volta. Vá e seja aplicado, até que você tenha aprendido o suficiente! O período de aulas não foi bem aquilo que Joãozinho esperava. Sempre a vara do mestre o ameaçava ou os outros meninos troçavam dele. Somente depois que um dia, no recreio, ele bateu num garoto maior que ele, deixaram em paz e tornaram-se amigos dele. Mas lá havia um menino de quatorze anos, bem maior e mais forte que Joãozinho, e que se chamava Salvador. Joãozinho era alvo de muitas de suas farras. Apagava o que ele, com muito esforço, escrevera, escondia-lhe a lousa, esmurrava-o às escondidas ou, ainda, comia-lhe o pão. Uma vez, quando Joãozinho queria voltar para casa, Salvador tinha soltado o petiço e Joãozinho teve que fazer aquele longo percurso a pé. No dia seguinte, o padrinho Cidral foi, junto com ele, à escola e falou com o mestre sobre os delitos do malvado Salvador. Foi possível laçar o petiço novamente. Ao tomar ciência das malvadezas de Salvador, o mestre Bento Damásio pegou o rapaz e deu-lhe uma surra da qual esse se lembrou por mais três dias. Mas, secretamente, Salvador jurou se vingar de Joãozinho pela surra. E a oportunidade apareceu-lhe dali a alguns meses. 31 III Mutirão para a derrubada da mata. Coleta de cipó. Um falso amigo. Joãozinho sofre um acidente na floresta virgem. A justiça alcança o malfeitor. O fandango. O Cruzeiro do Sul. Dois contratempos. Os mestres cantores com a viola. Brigas e danças. Joãozinho como salvador. Anita... O mestre Bento Damásio anunciou um mutirão ou punxirão. Com o pouco dinheiro da escola ele levava uma vida miserável. Já era muito velho e a escola tomava-lhe muito tempo para poder, ele próprio, derrubar a mata e plantar. Porém, precisava de milho, feijão, mandioca, batatas e outros víveres que poderiam ser plantados em sua terra. Assim, todos os anos convidava os pais e os irmãos mais velhos de seus alunos para um trabalho comunitário. Os alunos também precisavam ajudar, com o facão e a foice. Logo cedinho, no dia do mutirão, reuniam-se vinte homens e o mesmo número de rapazes para a derrubada da mata. Primeiro, todos tomavam café na casa do professor. A mata, que deveria ser derrubada e queimada para a plantação, estendia-se atrás da escola até o alto das montanhas. Os homens golpeavam os troncos com machados. Era com muito barulho que as lascas voavam. Os rapazes, nesse meio tempo, tinham como tarefa limpar a floresta do mato rasteiro para que os homens pudessem ter acesso às grandes árvores. As plantas trepadeiras também deveriam ser retiradas para não impedirem a queda perfeita das árvores. Contudo, o cipó preto era retirado das árvores em longas madeixas, porque esta planta trepadeira era usada para fazer redes e cordas. O cipó era recolhido pelos alunos e enrolado em novelos. Todos os meninos se esforçavam para conseguir o maior novelo para entregar ao professor. 32 Salvador, no dia anterior ao mutirão, percorrera toda a mata e encontrara um cedro com inúmeras trepadeiras de cipó preto no alto das montanhas, no meio da floresta. Ele subira escondido no cedro e cortara, com uma serra manual, mais da metade do galho que tinha mais cipó preto, para que o grande galho caísse sobre aquele que tentasse puxar o cipó. Se esse enorme galho atingisse uma pessoa poderia matá-la ou aleijá-la para sempre. O grupo de rapazes percorria alegremente a mata. Os arbustos de bambus, samambais, amoras silvestres, ananás, palmitos e espinhos retinham os ansiosos. Todos queriam começar a puxar os cipós. Risos e altos gracejos ecoavam através do amanhecer na mata fresca. Os meninos trabalhavam orgulhosamente com a foice e o facão. Atrás deles, e abaixo da montanha coberta de mata ressoavam os golpes de machado e o estalido das canelas, perobas, cedros e outras imensas árvores que caíam. Nas últimas semanas, Salvador revelara-se sempre muito simpático para com Joãozinho, de tal modo que este não suspeitava do falso rapaz. Hoje, também, Salvador mantinha-se perto dele e mostrava-lhe os melhores locais para colher cipó. Com muito orgulho, Joãozinho olhava para o maior dos rolos de cipó que eles haviam recolhido e que carregavam nos ombros. - Venha depressa, Joãozinho - cochichava Salvador, baixinho, enquanto os outros garotos ficavam um pouco para trás -, ali em cima, atrás daquela moita, há um cedro que está cheio de cipó. Venha, antes que os outros percebam! Joãozinho corria zelosamente atrás dele através do mato. Chegaram ao cedro que o inescrupuloso Salvador escolhera para sua vingança. Ele indicou sussurrante, para seu companheiro um grande galho, ao lado da árvore, que estava cheio de cipó pendurado. Joãozinho, imediatamente, começou a puxar com muita força a planta trepadeira. Seu novelo, em que enrolava o cipó, ficava cada vez maior. O garoto dava gritos de alegria. Porém, Salvador fazia - Psiu, psiu, fique quieto, para que ninguém venha até aqui para pegar cipó dessa árvore! - E do outro lado da árvore, olhava com um interesse irônico para Joãozinho que, com toda força, puxava uma corda de cipó após a 33 outra. O galho semi-serrado com todo esse puxar deveria finalmente ceder! Nesse instante ele estremeceu. Ouviu-se um ranger no alto do cedro. E, em seguida, ressoou de repente um terrível estalido. Aquele galho imenso recoberto de trepadeiras e orquídeas caía ao chão. Um grito angustiante e horrível ressoou pela mata junto com um golpe surdo e uma queda. Joãozinho estava estirado aos pés do cedro. Salvador queria sair dali sorrateiramente. Porém, pálido, ao sair rastejando da mata, os outros garotos gritaram: - Onde está Joãozinho? Não foi ele que gritou? Você estava com ele, não? Diante disso não adiantava negar. Ele gaguejava dizendo que um galho tinha caído em Joãozinho. Essas coisas aconteciam às vezes na coleta de cipó. Os garotos se arrastaram para dentro da mata onde Joãozinho estava deitado, inconsciente, no chão. Logo alguns homens subiram o morro, entre eles os irmãos de Joãozinho e o velho Bento Damásio. Os meninos trouxeram água, que foi despejada no rosto do menino desfalecido. Esfregavam sua fonte com cachaça. O chapéu de palha, feito de um cipó branco e grosso que o menino usava durante a queda do galho, estava agora cravado em seu rosto, e suavizara o peso do grande galho. Assim, lentamente, ele voltava a si. Contudo, seu ombro estava gravemente ferido e precisou ser enfaixado. Joãozinho gemia muito enquanto o professor cuidava do ferimento. Salvador quis aproveitar a oportunidade e apoderar-se dos novelos de cipó. Porém, Joãozinho percebeu e lhe disse, gemendo: - O novelo grande é meu! O professor voltou-se. Nesse momento, seu olhar pousou sobre o galho semi-serrado, que estava ao lado de Joãozinho. Viu o olhar maldoso de Salvador e imediatamente percebeu o que ali se passava. Ele saltou sobre o rapaz: - Patife, você serrou o galho, para se vingar do garoto! Espere! Homens e rapazes haviam, nesse ínterim, ali se aglomerado e ouviram as palavras do professor. E que ele estava certo, podia-se ver no rosto transtornado de Salvador. Negar agora de 34 nada lhe adiantava. Foi amarrado numa palmeira fina com o cipó que ele próprio recolhera e ficou ali o dia inteiro, até que o trabalho terminou. E, à noite, quando se começou a comer e a beber, foi mandado embora e não deveria aparecer mais por ali. Nesses mutirões (ou como também se diz, punxirões) festejava-se à noite, depois do trabalho concluído. O professor e sua mulher traziam a comida para todos e distribuíam as garrafas com vinho de laranja e cachaça. Havia pirão de mandioca, feijão preto, batatas, e carnes no espeto, a que chamavam churrasco. Após o jantar, começava o fandango. Os banquinhos, que serviam de mesa, eram retirados da sala de aula. Algumas lamparinas iluminavam tremulamente o salão de dança. As mulheres e as meninas estavam sentadas no chão ao redor da sala. Os homens e os rapazes estavam reunidos lá fora em frente à porta. Eles se vangloriavam de seus trabalhos e atitudes, fumavam e cuspiam, até que o acordeão os chamasse novamente para a dança. No céu da noite reluziam milhões de estrelas e sobre a escola brilhavam e faiscavam as estrelas do Cruzeiro do Sul, que estão também presentes na gloriosa bandeira brasileira. Nas matas pairavam os incontáveis vagalumes e cantavam milhões de grilos. Do pântano ecoava o surdo martelar dos sapos. Morcegos deslizavam do telhado da casa e uma coruja voou, guinchando sinistramente, sobre as altas árvores que estendiam escuros galhos em direção ao céu. No interior da casa Joãozinho estava sentado, com o ombro enfaixado, ao lado do professor que tocava o acordeão. Oh, como eram bonitos os acordes que soavam do acordeão! Até os cachorros, que lá fora brigavam pelos ossos, começaram também a ganir. Aos pares, os casais infatigáveis dançavam e batiam com os pés no chão da sala. Oh, mas a vida era bela! Alguns clamores acompanhavam a música, quando a melodia era alegre. Entre uma dança e outra havia uma pequena pausa. Também esvaziavam-se muitas garrafas e o ambiente se tornava cada vez mais animado. Um velho negro, que chegara por último, tirou uma viola de dentro de uma 35 sacola. - Olé, o velho Tomás vai tocar -, gritavam todos ao mesmo tempo - Um fandango! Um maxixe! Então os homens colocaram-se em fila e, à sua frente, as mulheres, em outra fila. E o verdadeiro fandango brasileiro da roça começou com um compassado bater de pés e um caminhar de um ao encontro do outro. O barulho ritmado ressoava alto da sala surda para a mata escura, acompanhado pelo vibrar e soar das cordas da viola. Lá fora emergiam da escuridão duas figuras furtivas. Eram parentes do desonesto Salvador que fora varrido dali. Ambos carregavam escondidas sob a pala fina de lã suas armas. O mais moço era Antonio Zerino, irmão de Salvador, rapaz vesgo de mais ou menos vinte anos, moreno e desgrenhado. O outro, Bento Quadra, um preguiçoso e mal afamado arruaceiro, era tio de Salvador. Antonio Zerino segurava uma viola na mão. Eles vieram para brigar e vingar Salvador pelo ultraje sofrido ali, pois, para eles, este era inocente. Chegaram de mansinho, sem dizer nada, pois queriam primeiro comer e beber à vontade. E, no entanto, não tinham ajudado no trabalho de derrubada da mata. Há parasitas desse tipo tanto entre os homens como sob os cumes das árvores da mata. Eles se alimentam do trabalho dos outros e os derrubam. Os dois sujeitos entraram na sala de aula, onde se dançava, e cumprimentaram as pessoas, modestamente, sentando-se num canto. Assim que veio a pausa da dança, foram rodeados pelos homens. Ofereceram-lhes vinho de laranja, cachaça e doces. Brincaram e conversaram com eles até começar uma nova dança. Preocupado, Bento Quadra puxava sua barba rala e vermelha e sussurrava algo para o vesgo Zerino. Ambos riam e bebiam. Então, na pausa seguinte, o último desembrulhou sua viola e Bento Quadra gritou para as pessoas suadas da dança: - Escutem, Antonio Zerino quer se medir com o tocador de viola de vocês. Parem um pouco! - Que legal, um desafio de canto, bravo! - gritavam as pessoas animadas - Mantenha a honra, velho Passarinho! Passarinho, o negro, sorriu ironicamente, consciente da vitória. Os outros já haviam tentado enfrentá-lo na viola e na feitura 36 de versos e haviam perdido. O moleque vesgo, o Antonio Zerino, deveria logo mostrar as armas. Começou a tocar as cordas de sua viola e todos pararam para ouvir. Uma das mãos morenas deslizava pelas cordas amarelas de arame enquanto a outra dedilhava no cabo da viola à procura do tom. Uma ardente, porém triste, melodia sussurrava e ressoava na sala surda. Agora Antonio Zerino levantou a voz e começou a cantar uma estrofe, numa melodia queixosa, na qual provocava o outro tocador de viola a cantar e a dizer o que tinha aprendido com a vida. Imediatamente o negro grisalho aceitou o desafio e respondeu. As cordas de sua viola soavam e sussurravam uma melodia clara e trocista: Eu gozei a vida E ela era tão bela e tão dura E ensinou-me a lição Que cada um é como é Palmas e gritos de "bravo" o elogiavam. Mas o instrumento de Zerino já recomeçava. O vibrar e o tremular da viola estremeciam pelos corações dos ouvintes. Finalmente, o cantor levantou a forte e jovem voz desafiando o negro. Enquanto seus olhos vesgos se voltavam para Joãozinho, que sentado ao lado do negro, com seu ombro enfaixado, ouvia atentamente. "Ah, se você fosse mais claro Mas você é tão negro como a noite Se cada um é como foi feito Quem te fez tão escuro assim?" Um riso malicioso ressoou. - Olé, Passarinho, honre seu posto e dê-lhe uma resposta, senão você já perdeu! 37 O velho negro riu meio embaraçado, meio mordido, e cantou com o acompanhamento da viola: Nós não éramos um só e iguais Quando Deus nos chamou para a vida? Por isso sua pele é amarela Por isso seus olhos são vesgos. Aplausos estridentes aclamaram esta resposta, que aludia à cor amarela e suja da pele, e aos olhos vesgos do mau rapaz. A disputa dos dois cantores e violeiros prosseguia, para o deleite geral dos ouvintes. Joãozinho orgulhava-se do velho Passarinho que ele observava de lado. Os ataques mútuos foram ficando cada vez mais fogosos, e procuravam derrotar o adversário com alusões pessoais em versos sem nenhuma arte. Antonio Zerino sentia que seus versos venenosos arrancavam menos palmas que a engraçada canção de defesa do negro. Seus olhos vesgos ficaram vermelhos de sangue e sua mão tremia. E Bento Quadra o instigava baixinho. Assim, aos poucos, ele dirigiu seus versos hostis para o mutirão desse dia e para a recolha de cipó dos meninos. O professor recebeu sua espetada, Joãozinho e seus irmãos foram atacados e muitos dos presentes, que tomaram parte no castigo de Salvador, recebiam sua parte em versos fortes e picantes. Porém, o velho Passarinho dava seus contragolpes e repelia os ataques com muita graça. Entretanto, o ambiente ia ficando cada vez mais hostil contra os dois perturbadores que, evidentemente, procuravam por briga. Agora Antonio Zerino cantava, com voz estridente, e sua viola vibrava e soava: Todos vocês merecem as feridas Que Salvador sofreu hoje Aqueles que amarraram o rapaz Irão receber com juros. 38 Murmúrios rancorosos tornaram-se perceptíveis. Alguns já cerravam os punhos. Tenso, Joãozinho aguardava os acontecimentos. O velho Passarinho afinou sua viola novamente e com cordas sonoras começou agora, com um sorriso nos lábios: Salvador é um menino mau! Ele queria tirar a vida de Joãozinho Quem cava para os outros uma cova, Cava geralmente.... a sua. Gargalhadas estrondosas e muitos aplausos atestavam para os dois penetras que a maioria dos presentes não simpatizava com eles. Nesse momento, Bento Quadra saltou para o centro da sala, arrancou a pistola do cinto e atirou na parede ao lado de onde as mulheres e crianças estavam sentadas no chão. O estalo atordoou a audição das pessoas. O bafo de pólvora encheu a sala. As mulheres e as mocinhas deixaram a sala de aula gritando e chorando muito, e foram para a sala de estar da família do professor. O professor avançou sobre Bento Quadra e gritou ordenando: - Quem quiser briga, saia da minha casa! - Aí Antonio Zerino saltou sobre ele, agarrou-o pelo pescoço e gritou: - Foi você, seu patife, que deixou que amarrassem meu irmão Salvador na árvore! No mesmo instante alguns rapazes, entre eles também Francisco, irmão de Joãozinho, atiraram-se sobre os dois brigões para ajudar o professor. Diante disso, Bento Quadra puxou da bainha de couro a longa faca usada na mata. A lâmina brilhava sinistramente na trêmula luz vermelha da lamparina de querosene. Apontou a ponta do facão para o irmão de Joãozinho, um rapaz robusto de dezoito anos. Francisco, porém, saltou de lado como um relâmpago e agarrou o braço do adversário que segurava o facão. Os dois lutaram selvagemente pela posse do longo facão. - Cachorro, você deve 39 morrer! - berrava o ruivo Bento Quadra, - você faz parte dessa parentela toda asseada que desonrou nosso Salvador! De todos os lados procurou-se separar os dois homens que lutavam. Enquanto isso o vesgo Antonio Zerino, desapercebidamente, havia se arrastado para trás de Francisco. Com muita força puxou o jovem para trás enquanto tirava uma faca da bainha. Contudo Joãozinho, que assistia à briga divertindo-se muito, não se distraíra. Mal percebeu que seu irmão Francisco corria perigo, procurou pelo outro irmão, Pedro. Mas Pedro fora ao rio buscar água fresca para as mulheres, antes da briga começar. Ele não ouviria o pedido de ajuda de seu irmão. Assim, Joãozinho percebeu, então, que ele mesmo tinha que ajudar o irmão, pois Antonio Zerino já pegara a faca para enfiá-la nas costas de Francisco. Rápido como um relâmpago, Joãozinho se atirou ao chão e torceu a perna direita de Antonio fazendo com que este perdesse o equilíbrio e, cambaleante, caísse ao chão. Porém, o furioso Bento Quadra já se desvencilhara dos que o seguravam e ele e Francisco cairam no chão. Ajoelhou-se sobre o rapaz e levantou o braço. Em sua mão brilhava a faca que queria enterrar no peito de Francisco. Nesse momento, um laço de cipó prendeu o pescoço do arruaceiro e sua cabeça foi puxada para trás. Ele revirou os olhos, e, com a língua de fora, deixou cair a faca. Era Joãozinho que teve a feliz idéia de fazer um laço com o cipó que estava ali e atirá-lo por sobre a cabeça daquele que se ajoelhava sobre seu irmão. Para puxar o brigão outros o ajudaram imediatamente. Puxaram com tanta violência a corda de cipó que quase enforcaram Bento Quadra. Ao afrouxar o laço, Bento mal conseguia respirar e levou algum tempo até que tivesse se recuperado para poder deixar a casa, 40 apoiado em seu sobrinho.Muitas maldições e ameaças foram rogadas aos dois pervertidos até que sumissem na escuridão da noite. Joãozinho foi muito elogiado pelos rapazes e homens. Contudo, não saíra sem dano da luta. O curativo havia caído do seu ombro e estava com arranhões no rosto vermelho, mas os olhos azuis brilhavam de felicidade pois seu irmão Francisco havia vencido. Assim que o professor refez as ataduras de Joãozinho, Francisco abraçou-o e disse-lhe olhando firme em seus olhos: - Você me salvou, João, isto eu nunca vou esquecer! - e apertou-lhe a mão. As mulheres e meninas, que nesse meio tempo, voltaram para a sala, admiraram-se da presença de espírito e da coragem de Joãozinho que, apesar de ferido, ajudou o irmão. Anita, a filha do professor estendeu-lhe a mão e disse: - A partir de hoje vou ajudá-lo com as tarefas escolares! e Bento Damásio, sorrindo, acenou-lhe com a cabeça. As mulheres trouxeram um café quente. E Bento Damásio comentou depois que bebeu o café: - O cafezinho está como deve ser: quente como o inferno, negro como o demônio e doce como o amor. Ha, ha, ha! Sorrindo satisfeito, ele aceitou os aplausos e os risos que se seguiram a seu gracejo. Esta piada ele repetia em todas as oportunidades, quando café era oferecido. Em seguida, pegou o acordeão e tocou uma valsa. O negro pôde descansar durante o cafezinho. Tocaram-se apenas músicas de dança lenta, até o amanhecer. Então todos voltaram para casa. Aula não haveria para que os alunos e a família do professor pudessem dormir bastante. 41 IV Doença grave. Joãozinho corre risco de vida. O curandeiro. O pacto de Maria com Deus. O papagaio. A convalescença de Joãozinho. A volta à escola. Macacos e outras coisas na floresta virgem. Anita ajuda Joãozinho nas tarefas escolares. A queimada da roça. Joãozinho no fogo dá provas de "menino felizardo". "Estórias de Pedro Malazarte, Carlos O Grande e outros". O destocamento, preparo e plantio da roça... Os ferimentos no ombro de Joãozinho causados pelo galho de cedro, as aflições da briga e a noite sem dormir trouxeram conseqüências sérias. Joãozinho teve febre muito alta provocada pela infecção do ferimento e teve que ficar muitos dias de cama. A pequena sala onde estava deitado tinha só uma janela minúscula. O chão era de barro pisado: não havia soalho na casa da viúva. Para acomodar o doente, arrumou-se um “burro”, que é como se chamava a cama de campanha. Nas paredes de tábua da salinha estavam penduradas peças de vestuário e utensílios manuais. Junto ao leito havia um baú de madeira em que a mãe sentava-se enquanto cuidava dele. Ela recriminava os filhos mais velhos, Francisco e Pedro, por não terem trazido o menino ferido para casa em vez de deixá-lo a noite inteira lá na festa. Aí os filhos disseram-lhe que sem a presença de Joãozinho no baile, Francisco poderia estar morto e deitado no ataúde. Apenas sua ajuda impediu que a faca de Antônio Zerino ferisse Francisco pelas costas, e sem a feliz idéia do laço de cipó Bento Quadra teria enforcado ou apunhalado o rapaz. Agora, também, era tarde para repreensões. O estado de Joãozinho foi se agravando. Tinha febre alta e não reconhecia ninguém ao redor de seu leito. A pequena Maria teve permissão para entrar na sala e quis fazer-lhe um carinho com a mãozinha delicada, mas o doente a empurrou, pois nem a ela reconhecia. Essa atitude para com a 42 pequena era inconcebível. Seu Joãozinho, seu querido companheiro não queria saber de sua irmãzinha. Perplexa, ela começou a soluçar. - Nosso Joãozinho vai morrer? - perguntou ela, chorando amargamente, para a mãe que fazia compressas frias na cabeça do irmão doente. - Deus está conosco e ele se salvará! - disse a mãe baixinho. Seus olhos encheram-se de lágrimas. - Se nosso Joãozinho morrer, ele vai ficar com Deus? perguntou Maria, esfregando os olhos molhados. A mãe acenou com a cabeça e passou a mão sobre os olhos. Entretanto, a febre do doente subia ameaçadoramente. O compadre Cidral e sua mulher também vieram para aconselhar e ajudar. Algumas mulheres dos vizinhos também vinham, apesar de suas casas ficarem a meia hora de caminhada. Traziam da mata ervas refrescantes e folhas de chá salutar que, como aprenderam com suas mães, eram usadas para o tratamento de doentes. Ao constatar que o estado de Joãozinho não melhorava, o velho Cidral, saindo da sala disse para Francisco: - Pegue meu baio e vá até o curandeiro. Traga-o com você no baio. O cavalo é bem forte para carregar dois magrelos como você e o velho Sebastião Ribeiro. Francisco fez o que o velho Cidral lhe ordenara. Quando apareceu com o cavalo selado diante da casa, todos saíram do quarto do doente para dar-lhe ainda um conselhos e vê-lo sair. Assim, Maria ficou sozinha junto ao leito de Joãozinho. Olhava para a cabeça vermelha e febril do irmão ainda com os olhos cheios de lágrimas. De repente ajoelhou-se, juntou suas pequenas mãos para orar, levantando os tristes olhos azuis para a janela, através da qual podia ver o céu nublado, e rezou em voz alta: Querido Deus, deixe o Joãozinho para mim agora, você pode levá-lo quando fôr velho, tá! Nesse instante as nuvens se separaram e, como por um milagre do Pai Divino, apareceu um cantinho de céu azul bem sobre a pequena menina ajoelhada. 43 Maria levantou-se agora calma e confiante. Estava certa que Deus deixaria seu irmão ainda na terra. A mãe e algumas vizinhas voltaram para o quarto. Maria não lhe contou nada sobre seu pacto com Deus. Isso deveria ser um segredo entre Deus e ela... Após algumas horas, Francisco voltou com o curandeiro, Sebastião Ribeiro. O velho, muito magro, estava sentado atrás de Francisco, na garupa do cavalo. Ajudaram-no a descer do cavalo. Então ele entrou no aposento do doente segurando na mão um saquinho de ervas. Assim que examinou o menino abanou a cabeça. Então, foi até a cozinha onde fez uma bebida com muitas ervas e raízes. De repente, ecoou um grito de admiração pela casa. Joãozinho abrira os olhos, murmurando "Maria". O olhar que dirigiu para a irmãzinha era nítido e claro. Depois fechou os olhos e adormeceu. Então o calor desapareceu de sua cabeça e em seu rosto brilhava o suor. O curandeiro Sebastião, mancando, aproximou-se da cama do doente e apalpou seu pulso. Daí sacudiu a velha cabeça cinzenta: Ele está salvo! - disse com voz grave. A mãe, chorando, apertou o rosto entre as mãos, pois a felicidade era muito grande. A grande tensão das últimas horas era aliviada, agora, pelo choro. Todos estavam admirados pela repentina melhora. Apenas Maria não se admirava. Ela sabia quem havia ajudado tão depressa e quem atendera seu pedido. O restabelecimento de Joãozinho caminhava a passos largos. Após alguns dias, Maria já pode levar-lhe Jacó, seu papagaio verde acinzentado, que aprendera a falar algumas palavras. Joãozinho e Maria riram muito quando Jacó disse algo novo que aprendera nos dias em que Joãozinho estava doente. - Todos para fora, silêncio, ele precisa descansar! - Depois ele se afastou abanando as penas verde-acinzentadas do rabo. - Jacó quer pão! grasnou por fim! Valente, o cachorro, também pôde visitar Joãozinho no quarto. Margarida soltou o cachorro da corrente e este disparou para 44 dentro da casa, indo direto para o pequeno cômodo onde Joãozinho estava. Gemendo de felicidade, apoiou as patas dianteiras na cama, ao lado do doente. Valente abaixou a guedelhuda cabeça com a língua vermelha para fora, tentando lamber o menino. Joãozinho rejeitava sorrindo os carinhos do cão... Após duas semanas Joãozinho, totalmente recuperado, pegou seu pônei Mico e foi cavalgando para a escola. Ele não ansiava nem um pouco por isso, pois receava a troça dos colegas por ter, provavelmente, esquecido muito do que já aprendera. E sobretudo tinha medo da vara do professor. Porém a cavalgada deu-lhe grande prazer. Observava tudo o que havia no caminho da mata. Orquídeas de muitas cores, ninhos de pássaros, buracos nas árvores para onde abelhas melíferas selvagens enxameavam, borboletas coloridas, colibris brilhantes como metal, bandos de macacos e negras plantas trepadeiras no fundo da espessa mata. Prestava atenção ao grito monótono e sombrio dos macacosbugios que estavam na profundidade da mata escura, ao bater do pica-pau, ao grasnar do tucano, e ao palavreado dos papagaios e periquitos. Lentamente seu pônei avançava pelo suave caminho da mata. Cavalgou também pelas plantações dos lavradores e deixou seu Mico beber água no rio junto ao monjolo. E sempre quando via alguém endireitava-se na sela e deixava o pônei trotear livremente. Ao passar pela venda, ouviu novamente o alto falar e cantar do gramofone, e deu-lhe vontade de descer e entrar. Quanto mais se aproximava da temida escola mais o medo e a tristeza tomavam conta de seu ser. Mas ele não poderia hesitar, senão chegaria atrasado. Assim, conduziu o Mico a galope e logo chegou à casa do professor. O pônei ficou no pasto cercado e ele entrou na sala, com o coração disparado... Seu medo foi em vão, como acontece muitas vezes na vida. A acolhida foi terna e calorosa. Todos os alunos e o professor e 45 sua mulher cumprimentaram Joãozinho, felizes pela sua presença. Anita, a filha do professor, menina de oito anos, de cabelos pretos e ondulados, foi a última a se aproximar. Estendeu-lhe a mão, seus olhos escuros sorriam para ele e seus dentes brancos brilhavam entre os lábios vermelhos. - Graças a Deus que você sarou -, disse ela. Agora quero ajudá-lo a estudar! O primeiro dia de aula transcorreu bem. Joãozinho não levou varadas nem críticas, apesar de ter-se revelado desajeitado e bobo a princípio. Tinha esquecido quase tudo que sabia antes. Salvador e seus parentes haviam-se mudado dali. Quando a aula terminou e todos os alunos pegaram seus cavalos ou foram a pé para casa, Joãozinho foi conduzido por Anita para outra sala, para almoçar com a família do professor. O velho Bento Damásio tinha por Joãozinho muita afeição, que se intensificara após o fandango, quando Joãozinho se portara como herói. Após o almoço, Anita sentou-se com Joãozinho e ajudou-o a fazer as tarefas. Com muita paciência, explicava-lhe as coisas novas e como ele deveria escrever e calcular. Ela entusiasmava-se muito, jogava para trás seus negros cabelos encaracolados e olhava para o menino com seus olhos escuros aveludados até que ele entendesse o que ela lhe explicara. Foi assim que começou o gosto dele pelo estudo. A partir desse dia, interessou-se muito em ir para a escola, e progredia rapidamente na escrita, na leitura e no calcular. Nesse meio tempo, as árvores e os arbustos derrubados durante o mutirão ficaram bem ressequidos pelo sol. Assim, o professor Bento Damásio determinou um dia para que a roça fosse queimada. Era um dia muito quente. O professor e seus alunos subiram a montanha. A lenha seca encobria a encosta. Também o vento estava propício para impelir o fogo. Os troncos e os galhos da parte inferior da encosta eram amontoados e de vários lados acendia-se fogo. 46 Nossa , como as ansiosas línguas de fogo devoravam a lenha seca! Mais acima, dos lados e no meio da roça também se deitava fogo. O vento forte empurrava as chamas para cima e inflamava também os troncos que estavam no chão. Assim, em pouco tempo, toda a montanha estava em chamas e as nuvens que se formavam eram de um azul-acinzentado e de um amarelo enegrecido. O vale encheu-se de um crepitar e estalir ensurdecedores, como se milhares de espingardas estivessem sendo disparadas. Também ribombava como o choro e o estalar de granadas que explodiam quando os canos de bambu cheios de água estouravam nas brasas. Um espetáculo sinistramente magnífico se apresentava para os meninos, que haviam atiçado esse fogo imenso. Chamas vermelhas como o sangue ardiam em grandes labaredas no ar azul. A verde encosta realçava-se maravilhosamente nesta clareira vermelha e ardente. Uma onda de calor percorria a clareira, tostava os verdes cumes das árvores na beira da roça e ressecava o rosto do professor e dos meninos que, com galhos, acendiam o fogo em toda parte em que ele se apagara. Um grande fervor e uma exuberante alegria tomavam conta de Joãozinho neste trabalho calorento. Seu rosto queimava de tão vermelho pelo calor do fogo. De repente, o fogo enfurecido atingiu a mata verde da propriedade vizinha. Isto não podia acontecer, pois poderia atingir toda a mata e causar grandes danos para o vizinho. - Atenção -, gritou o mestre assustado, - meninos, rápido, depressa, apaguem o fogo da beira do mato com galhos e paus! Os meninos se apressaram. Todos se esforçavam, principalmente Joãozinho. Como os meninos trabalhavam para chegar à beira do fogaréu para apagar com paus e varas as labaredas menores que queriam atingir a beirada da verde mata! 47 Porém Joãozinho, em todo seu fervor, arriscou-se demais. De repente, ele se viu cercado pelo fogo. Não havia nenhuma passagem pela qual pudesse sair e se salvar. Um grito assustado ressoou ao mesmo tempo que os gritos de alegria dos meninos. - Ajudem-me, eu estou queimando! - ouviram o menino gritar. Horrorizados, todos ficaram parados. Uma fumaça inflamada abafava o lugar onde Joãozinho estava e ele já previa sua morte, como acontecera a muitos lavradores no Brasil que morriam na queimada da roça. O professor foi o primeiro a recuperar-se do susto. Menino azarado - gritou e aproximou-se do fogo. Com uma rápida olhadela pelas proximidades examinou o local de onde Joãozinho pedia ajuda. Acabou descobrindo um lugar onde o anel de fogo, que cercava o menino, era menos intenso. - Aqui! Tragam musgo molhado da mata, façam um caminho até Joãozinho batendo com pedaços de pau! - assim ele exortava os meninos a lutarem contra o barulhento e rápido elemento da natureza. Os meninos atenderam-no imediatamente. E Joãozinho, que não perdera a cabeça, com um galho apagava, as chamas no meio da ilha de fogo, até que com um grande salto pôde sair dali, caindo nos braços do professor. Imediatamente apagaram as chamas que já tomavam conta dele jogando-o ao chão, rolando-o no musgo molhado até que o calor cessasse. Agora Bento Damásio ria de alívio. - Em tudo esse menino precisa estar à frente. Em toda desgraça ele se sai como felizardo! Todos começaram a rir, até mesmo Joãozinho que tinha umas queimaduras no rosto e nos membros e até seus cabelos estavam chamuscados. A partir desse dia ele recebeu o apelido de "Joãozinho Felizardo"(Hansel Glückspilz). Entretanto, o fogo já se acalmara. Grossas fumaceiras estendiam-se sobre as montanhas e os vales. 48 Tudo acontecera em apenas uma hora. Restara somente uma esfumaçada e negra encosta com cinzas brancas que se destacavam horrivelmente das montanhas verdes. Os troncos mais grossos, raízes e tocos de árvores meio carbonizados ainda ardiam e chamejavam vermelhos quando o professor e seu grupo desciam a encosta em direção à escola, onde lhes seriam servidos café e pão-deló pela mulher do professor e por Anita. Porém Joãozinho ainda foi alvo de muita brincadeira. Enquanto isso, Anita dava-lhe os maiores pedaços daquele doce e saboroso pão-de-ló. Alguns dias mais tarde, quando a roça já esfriara, o trabalho de destocamento da encosta precisava ser iniciado. Entre os troncos e ramagens carbonizados era necessário abrir espaço para o plantio e para as leiras. Mais uma vez, o professor e os meninos foram ao trabalho. Joãozinho, mais uma vez, estava presente. Para empurrar os troncos carbonizados para o lado e pegar nas ramagens negras e fuliginosas valiam-se de mãos e braços. Alguns troncos mais grossos eram divididos em pedaços. Os meninos e rapazes trabalhavam com os membros e rostos enegrecidos e, com o suor que caía de suas faces, mais pareciam varredores de chaminés. Nesses dias, o professor estava sempre muito animado e fazia brincadeiras para divertir os meninos que trabalhavam para ele. Após o trabalho, narrava para os meninos atentos as peripécias do famoso Pedro Malazarte ou contava as histórias de Carlos Magno e as façanhas de seus doze cavaleiros. Também sabia descrever muitas aventuras que lera ou ouvira de pessoas idosas; e algumas dessas velhas histórias ficaram para sempre na lembrança de Joãozinho. Entre elas, a história do cachimbo salvador ou a história de Gulliver, entre outras. Chegaram os dias de chuva. Então, colocavam-se em ordem as tarefas escolares. Mesmo com chuva, Joãozinho sentia prazer em ir à escola, desde que, com a ajuda de Anita, fizera muitos progressos. Quando o tempo melhorasse, os alunos, junto com o professor, iriam para a roça plantar. Cada um tinha que trazer de casa 49 uma enxada para afofar a terra úmida da chuva. Entre a lenha carbonizada, pedaço por pedaço era aberto e plantado. Plantava-se feijão como alimento principal, milho para pão de fubá e comida de animais, raízes de mandioca, sementes de abóbora e melão, legumes e cebola até que toda a terra estivesse preparada para suprir as exigências do professor. Assim, durante a época de aula joãozinho não aprendia apenas a escrever, ler e calcular, mas também a trabalhar com a terra do agricultor, sustentáculo da terra natal. Após três anos o rapaz já estava tão adiantado que, às vezes, substituía o professor junto aos meninos menores. Bento Damásio disse então para o velho Cidral: - O menino pode vir a ser um professor ou talvez um político. Ele é seu afilhado e você não tem filhos. Deixe-o freqüentar uma escola da cidade. A viúva não tem condições para isso. Ela é pobre, mas você é rico! O velho Cidral sorria satisfeito alisando seu cavanhaque grisalho e disse, pensativamente: - Eu vou pensar. Seria bom, se um homem muito capaz saísse de nossa região. E, sem que Joãozinho suspeitasse, essa hora se tornaria uma baliza para sua vida. O futuro lhe traria muitas experiências novas e brilhantes como também muitas lágrimas silenciosas. 50 V A preparação para a briga de galos. O sabiá e o colibri. As selvagens abelhas melíferas. Os periquitos e os papagaios, o tatu, o lagarto e o tamanduá, o inambu e a saracura, o bem-tevi, o pica-pau, a araponga. A briga do galo com o peru. A casa do padrinho Cidral. As frutas brasileiras. Joãozinho empenha sua liberdade. A briga de galos... Joãozinho ouvira na escola que dentro de algumas semanas haveria uma grande briga de galos em Palmital. Quando contou essa novidade em sua casa, os irmãos Francisco e Pedro entreolharam-se sorrindo. Há muito tempo sabiam dessa disputa que acontecia anualmente. Agora Joãozinho ficou sabendo que eles estavam se preparando para participar da briga. Para tanto, já haviam escolhido alguns frangos ainda mal formados e que constantemente procuravam briga com outros frangos, investindo ferozmente sobre esses. O galo de Francisco era de plumagem preta, tinha um bico cortante e esporas bem afiadas. Portanto, prestava-se otimamente para a briga de galos. Já o futuro lutador de Pedro era amarelo e magro, mas com boa estrutura. Quando os rapazes tinham meia hora de folga, dirigiam-se às escondidas até seus galos para atiçá-los e provocá-los até que investissem contra seus donos. Assim, eles tornavam os galos, já ávidos de briga por natureza, ainda mais ferozes e bravos. Entretanto, a mãe não gostava que se preparassem esses pobres animais para lutar e brigar, para o ódio e a selvageria. Ela se irritava com tal crueldade, que se tornara um hábito dos rapazes dessa região. Para ela, não se deveria maltratar de animais, pois eles sentem dores como os homens. Porém a juventude era assim, a opinião da mãe não adiantava muito. Os rapazes praticavam secretamente seu jogo. 51 Joãozinho também se interessava muito pela coisa e alegrava-se pelo dia em que os galos de briga dos irmãos venceriam os outros galos. Assim preparados e que os adestrados, dois galos Francisco estavam e Pedro suficientemente organizaram, às escondidas, a primeira briga de galos, e Joãozinho pôde assistí-la. Francisco segurou seu galo preto no braço e aproximou-o do galo amarelo de Pedro. Os animais, que nos últimos tempos tinham sido separados e não mais se conheciam, eriçavam a plumagem furiosamente e esticavam o pescoço para ferir o adversário com o bico cortante. Mas Francisco e Pedro sempre os puxavam para trás até que eles estivessem bem furiosos. Finalmente, quando a raiva dos galos já era incontrolável, deixaram que um avançasse sobre o outro. Os três rapazes sentavam-se no chão e atiçavam os galos que saltavam um sobre o outro machucando-se mutuamente com bicadas e com golpes de esporas. Porém, quando a briga esquentava muito, as penas começando a voar e o sangue já escorrendo da plumagem, cada um pegava seu galo e o prendia novamente. Essas tentativas repetiram-se nos dias seguintes para desenvolver a agilidade e a astúcia no ataque e incentivar a coragem dos galos. - Eu também quero um galo de briga -, dizia Joãozinho freqüentemente após uma luta dessas. Mas os irmãos mais velhos eram contra e diziam que ele ainda era uma criança. As brigas de galo eram coisa de adulto e não de criança. Porém, Joãozinho enfiara na cabeça que ele também precisava obter e adestrar um galo de briga. Mas quem lhe daria um galo, de presente, e onde ele poderia treiná-lo sem que os irmãos soubessem? Então lembrou-se que o padrinho Cidral, há alguns dias, lhe dissera: - Joãozinho, o professor está muito satisfeito com você. Se você precisar de alguma coisa, venha falar comigo! Agora o padrinho deveria arranjar uma solução e ajudá-lo. Numa bela manhã de domingo o menino pediu permissão à mãe para ir visitar o padrinho Cidral. 52 - Sim, vá, Joãozinho - respondeu ela, - você já deveria ter ido lá há mais tempo. Aqui, leve esta cestinha de morangos para a madrinha. Eles não têm morangos no pomar. Joãozinho se aprontara e tomou o atalho, pela mata, que levava à casa dos Cidral. Logo dobrou à direita e subiu uma verde colina de onde ainda avistava o telhado de sua cabana. Então submergiu na aconchegante mata verde, cujos cumes murmuravam muito acima dele. Oh, era uma manhã maravilhosa, e Joãozinho não tinha medo da floresta. Conhecia o caminho, pois já o percorrera muitas vezes sozinho. Nos arbustos da mata o sabiá - a cotovia brasileira assobiava languidamente. Sob o sol da manhã brilhavam na delicada folhagem verde e nas pontas da grama, gotas de orvalho que mais pareciam milhões de diamantes, e um forte perfume de raízes exalava, refrescante, do interior da mata que amanhecia. Inúmeras borboletas brincavam no ar ensolarado, pequenos colibris coloridos zuniam sobre flores do mato e orquídeas. Grandes escaravelhos zumbiam e grilos cantavam alegremente. Abelhas selvagens carregavam ativamente mel para sua casa, cuja entrada ficava no alto de um árvore oca. As formigas carregavam, em compridos pelotões, pequenos pedaços de folha sobre o caminho. Nos altos ramos das imensas árvores da mata, os papagaios verdes faziam barulho e os periquitos gritavam. Um grande lagarto tomava sol estendido no caminho. Com o barulho da aproximação de Joãozinho o lagarto sumiu na mata. E um tatu enfiou-se rapidamente em seu buraco. Em algum lugar da mata um tamanduá zumbia, e uma corça marrom sussurrava através dos arbustos. E lá embaixo, na garganta da mata, um inambú e uma saracura se faziam presentes. Joãozinho prestava atenção em tudo que via e ouvia. Até mesmo os pequenos bem-te-vis ele ouvia gorjear, o pica-pau bater, e o som metálico da araponga, pássaro que as pessoas chamavam de "ferreiro" da floresta. Após meia hora de cavalgada ouviu o latido de cães e o cacarejar de galinhas. Ao sair da mata avistou, do lado da grama plana, o sítio do padrinho José Cidral. 53 A casa branca, de barro e madeira, era coberta com telhas marrom- avermelhadas e tinha muitas janelas e portas, que freqüentemente estavam abertas. À esquerda, atrás da casa, via-se um grande paiol de troncos de palmito e coberto com folhas também de palmito. Atrás dele, estavam os cercados para cavalos, vacas e porcos, como também para aves. À direita, atrás da casa, ficava o grande pomar no qual havia, como Joãozinho sabia ,uva, laranja, banana, limão, ameixa, goiaba, ananás, araçá, cambucá, jabuticaba, pêssego, caqui, figo e mamão. O Padrinho Cidral era famoso ali na região pelo seu pomar. E qual o país que tem uma gigantesca riqueza em frutas primorosas como o Brasil ?! No espaço vazio defronte da casa moviam-se patos, galinhas e perus. Quando Joãozinho se aproximou, viu um pequeno galo de um marrom-avermelhado atacar um peru. O peru gorgolejou, desdobrou furiosamente toda sua plumagem, em forma de roda, e dançou esticando o pescoço para lá e para cá. Seus olhos cintilavam irados na cabeça vermelha. Com o bico, partiu sobre o galinho insolente. Mas este saltou violentamente para cima do peru batendo com as asas em seus olhos e deu-lhe, com muita agilidade, algumas bicadas. E a plumagem marrom-avermelhada voltava sempre a agitar-se contra o peru, ameaçando-lhe os olhos com garras e esporas. Finalmente o peru retirou-se, gorgolejando furiosamente, e deixou o campo de batalha para o inimigo (galo marrom avermelhado). - Dará um magnífico galo de briga! - disse Joãozinho rindo e dirigindo-se diretamente para a casa. Dois cães bravos aproximaram-se dele latindo. Porém, o padrinho Cidral já chamava os animais de volta, pois saíra à janela por causa dos latidos, e Joãozinho entrou na sala. O padrinho José Cidral estava sentado em sua cadeira de balanço, na sala, e fumava um cigarro de palha de milho. Ouvia-se o palrear de sua mulher com a negra na cozinha. 54 Joãozinho aproximou-se do padrinho, beijou-lhe a mão e recebeu a bênção. Então transmitiu as saudações da mãe e levou a cestinha com os morangos para a cozinha, onde foi cumprimentado calorosamente pela madrinha. Após responder a todas as suas perguntas, saiu dali para fazer o pedido a seu padrinho. - Sente-se no sofá! - disse o padrinho sossegadamente. Joãozinho sentou-se no sofá trançado de cipó, perto do qual estavam algumas cadeiras também trançadas. O menino admirava a mobília maravilhosa. Nas paredes brancas estavam pendurados retratos coloridos de santos. E, ao lado dos quadros, viam-se as botas de montaria e o laço do padrinho dependurado num gancho de ferro. Também sua espingarda e facão estavam ali. Algumas penas coloridas de pássaros estavam pregadas na parede. No canto, havia um pequeno altar caseiro com duas portas abertas, e uma pia de água benta. À frente queimava uma lamparina de querosene. Uma pele crua de jaguatirica, esticada sobre hastes, apoiava-se numa das paredes. No centro da sala havia uma mesa redonda com uma toalhinha de crochê. E sobre a mesa, um prato de argila colorida sob uma moringa marrom. Nas janelas havia até cortinas amarelas, e um bonito armário estava ao lado da porta. Nada disso havia na casa de Joãozinho, nem mesmo assoalho como aqui. Lá, o assoalho era de barro pisado e, quanto a móveis, tinha-se apenas banquinhos, mesas e um baú de madeira. Como a casa do padrinho era bonita! Havia até um escarrador colorido, no canto. Mas o velho senhor Cidral, ao fumar, cuspia despreocupadamente no assoalho, onde já estavam algumas bitucas de cigarro. Ele perguntava ao menino sobre uma porção de coisas. O velho soprava, com manha, uma grande nuvem de fumaça do cigarro recém enrolado e pegou no braço de Joãozinho. Venha cá! - Ele passou a mão sobre os cabelos loiros e bem penteados e disse amigavelmente olhando nos olhos azuis: - Joãozinho, o professor elogiou-o novamente. No começo ele estava insatisfeito com você, pois você não queria estudar. Mas, no 55 último ano, você passou todos os seus colegas. Logo o senhor Bento Damásio não poderá lhe ensinar mais, pois ele próprio não sabe além do que você sabe. Joãozinho olhou para o chão envergonhado. Porém seu coração exultava. Se o padrinho estava tão satisfeito provavelmente lhe daria o galo. - Joãozinho -, começou novamente o velho Cidral, jogando a cinza do cigarro, - você sabe que você é meu afilhado. Você não gostaria de ser um homem capaz, estimado que honre sua família e seu povo? Joãozinho acenou atenciosamente com a cabeça. Precisava concordar com tudo que o padrinho dissesse para que ele lhe arranjasse um galo de briga. - O Bento Damásio diz que você tem uma boa cabeça. Você pode ser alguém na vida. Estou pensando em levá-lo para a cidade. Você deve freqüentar uma boa escola e estudar. Eu não tenho filho, assim quero fazer de você um homem que torne famoso nosso canto da mata. O que você acha? Oh, como Joãozinho se assustou com isso! Ele deveria ir para a escola da cidade, onde a pequena Anita não poderia mais ajudá-lo a estudar. Queriam arrancá-lo do lar para ir para o frio e inimigo mundo estranho! Seus olhos encheram-se de lágrimas. Agora ele não poderia dizer nada contra, senão o padrinho não lhe daria o galo. Mas poderia passar muito tempo, ainda, até que chegasse o dia da ameaçadora despedida. Assim, forçou o rosto num sorriso afirmativo. Agora, o que estava em jogo era o galo. Por isso respondeu baixinho com um "sim", quando o padrinho Cidral pegou em sua mão e perguntou: - Você quer? - E em seu fervor em ganhar o galo nem cogitou que concordara e que um homem decente precisa cumprir sua palavra. - Agora vá até a cozinha e peça à madrinha para ela lhe dar alguma coisa gostosa para comer! - disse animado o velho Cidral. Joãozinho hesitava. - Tem alguma coisa lhe apertando o coração? - perguntou o velho. 56 E, então, Joãozinho contou-lhe seu grande desejo. Ele queria o galo marrom-avermelhado como presente, e adestrá-lo aqui no quintal do padrinho até a briga da galos. E, ninguém poderia saber disso. - Ha, ha, ha - ria ruidosamente o velho Cidral, segurando a barriga. Na verdade ele era contra o segredo e contra a briga de galos. Contudo, divertia-se quando pensava na sensação que a aparição inesperada de Joãozinho, na briga da galos, causaria. Assim, concordou sorrindo. Joãozinho ganhou o galo desejado e a permissão de adestrá-lo secretamente no quintal, como aprendera com os irmãos. Passou o domingo todo na casa dos Cidral que lhe prometeram guardar segredo. A mãe e os irmãos surpreenderam-se muito que Joãozinho visitasse freqüentemente seu padrinho nas semanas que se seguiram. Antigamente ele não ia lá todos os dias! Maria, principalmente, irritava-se pelo fato de Joãozinho deixá-la brincando sozinha em casa ao invés de levá-la consigo. Joãozinho agia como se não se apercebesse de nada e treinava seu galo para a briga na casa de Cidral. Assim chegou o domingo em que aconteceria a grande disputa de galos. O lugar escolhido para a luta era Palmital, assim chamada a região entre as duas vendas. Jovens e velhos vinham a pé ou a cavalo para Palmital. Os vendedores faziam bons negócios. Também Francisco e Pedro puseram-se a caminho, com seus galos. Ao perguntarem a Joãozinho se não iria junto, disse-lhes ele: - Eu vou depois, com o padrinho Cidral! No espaço livre diante da primeira venda limpou-se um grande círculo. Ao redor deste, os rapazes sentavam-se no chão. Os apostadores tinham seus galos embaixo dos braços. Atrás deles estavam as mulheres, crianças e velhos que observavam tensos. Sobre eles radiava o céu azul, no qual brancas nuvenzinhas de cordeiros desfilavam, e um vento agradável trazia frescor para o rosto das pessoas. Da primeira venda, soavam sons do gramofone. 57 Soltavam-se apenas dois galos de cada vez para lutar no círculo. Apostava-se dinheiro em cada um deles. Quem apostava no galo que vencesse ganharia o dinheiro. Os galos vencedores não precisariam mais lutar naquele dia. A primeira disputa estava em pleno curso quando o velho Cidral e Joãozinho chegaram, a cavalo. Apearam em seguida. Numa cestinha trançada de junco, Joãozinho trazia o jovem galo. Sentou-se ao lado do padrinho Cidral, no círculo, junto aos outros participantes. Além dos dois galos dos irmãos de Joãozinho, mais quatro galos participavam da disputa. O galo de Pedro acabara de derrotar seu adversário. Joãozinho alegrou-se quando o irmão guardou o dinheiro da aposta e pôs o galo amarelo de lado para descansar. Como vencedor, seu galo talvez pudesse se apresentar mais uma vez na luta final. Agora era o grande galo negro de Francisco que brigava com o cinzento galo de raça do filho do vendeiro Henrique Lacerda. Travou-se uma luta cerrada que excitou a todos. Mas, apesar do galo de Francisco manter-se valente, no final ele sucumbiu e foi vencido. Francisco perdera seu dinheiro. Por fim, apresentaram-se para a luta os dois galos restantes. Novamente todos acompanharam os saltos alternados, as investidas, os ataques e as defesas dos galos lutadores até que o galo mosqueado de várias cores, de Quintino, bateu o adversário. Agora o importante era ganhar a luta final. Três galos foram os ganhadores, o amarelo de Pedro, o cinza de Henrique e o mosqueado multicor de Quintino. Quintino exigia o galo de Pedro para a luta final. Após uma disputa acirrada o galo de Quintino venceu. Assim, Pedro perdera a aposta com seu galo amarelo, que vencera anteriormente. Mas, ainda restava o invencível e temido galo de raça de Henrique, o filho do vendeiro. - Quem quer apostar contra meu galo de raça? - gritou Henrique. - Ninguém tem coragem? - Olhava triunfante ao redor. Alguém tem um galo. que aceite lutar com o meu? - gritou desafiadoramente. 58 - Mostrem o galo, mesmo que ele ainda não tenha lutado hoje! Eu aposto dez mil-réis; quem tem coragem? O velho Cidral sorriu ironicamente, cutucou Joãozinho e deu-lhe uma nota de dez mil-réis. O coração de Joãozinho batia violentamente - Eu aceito a aposta! - disse ele rouco pela excitação! Então, abriu o fecho do cesto e seu pequeno galo marrom avermelhado saltou no círculo. Isto causou uma grande sensação. As pessoas que estavam mais distantes aproximaram-se rapidamente. Os irmãos de Joãozinho, Francisco e Pedro, e o velho Bento Damásio com a filha aproximaram-se também. - Não, esse Joãozinho, esse menino! - comentaram as pessoas - onde ele arrumou um galo de briga? - Isso aconteceu com a minha permissão! - disse o velho Cidral, orgulhoso. Sempre mais pessoas acercavam-se dali. - Vejam que galo pequeno! - diziam - é esse aí que quer brigar com o galo de raça de Henrique, ha, ha, ha! Joãozinho, você vai perder seu dinheiro! - Henrique também ria irônico: - Deixem-no! Ele quer se livrar do dinheiro! Em dois minutos meu galo mata de bicadas esse pintinho! Passe para cá o dinheiro, se você não tiver medo. Isso já está perdido, ha, ha, ha! O dinheiro de Henrique e de Joãozinho foi entregue a uma pessoa imparcial e o primeiro foi buscar seu galo de raça. Entretanto, o galo de Joãozinho olhava timidamente em volta para aquela multidão no círculo e, receoso, entrou furtivamente no cesto que ainda estava ao lado de Joãozinho. Quando as pessoas viram isto caíram na risada e zombaram de Joãozinho. Furiosamente o menino empurrou seu galo para o círculo onde os rapazes estavam sentados. Então Henrique colocou seu galo de raça de boa estrutura, que vencera na primeira luta, no centro do círculo. A ave batia as asas e deu um grito de guerra "Cócóricó" - Bravo, bravo - diziam os rapazes, aplaudindo. 59 No mesmo instante o galo cinza viu o pequeno galo marrom-avermelhado de Joãozinho. E já partiu, com o pescoço esticado, sobre seu adversário. Assustado, o galo de Joãozinho pôs-se em fuga várias vezes, seguido pelo galo grande, no interior do círculo de pessoas. Ele procurava, evidentemente, um esconderijo. Porém, as pessoas cruéis sempre o empurravam novamente para o círculo. Um riso clamoroso ressoou. - O galo de Joãozinho está fugindo! hi, hi, hi! O galo de Joãozinho quer ir para o galinheiro! ha, ha, ha! - As pessoas riam às gargalhadas. Joãozinho olhava, muito pálido, para o padrinho Cidral e via que este mastigava furiosamente as pontas do bigode e, aborrecido, franzia a testa. Aí brotaram lágrimas quentes nos olhos azuis do menino. - Que vergonha! Seu galo não se apresentou uma só vez. E o dinheiro do padrinho tinha-se perdido! Agora o pernudo galo de Henrique alcançara o pequeno adversário ligeiro e deu-lhe uma forte bicada. A dor repentina agiu como por milagre. Como um raio, de tão rápido, o pequeno galo marrom voltou-se como se quisesse dizer: - Agora acabou a brincadeira, agora estou falando sério! E fez como fizera naquela luta com o peru: revoluteou com as asas batendo ligeiro nos olhos do galo grande, cegando-o por um instante. Simultaneamente, deu-lhe inúmeras bicadas violentas, veloz como um raio. Um aplauso coletivo e gritos de “bravo” elogiavam sua valentia. Joãozinho respirava aliviado. O velho Cidral sorria muito satisfeito. A partir de então travou-se uma luta acirrada entre o grande e o pequeno galo, em que o último compensava a forte estrutura do galo de raça com grande agilidade. Habilmente o galo pequeno esquivava-se das bicadas do grande, e pulava sobre seu dorso, arrepiando seu pescoço e dando-lhe esporadas. Em seguida, recomeçou a revolutear frente aos olhos do adversário e os turvava batendo com as asas. Ao mesmo tempo, não poupava bicadas. Suas 60 garras atingiam continuamente a cabeça do galo grande. Golpe após golpe, bicada após bicada, sem parar até que o cinzento galo de raça perdeu a coragem e a força caindo, humilhado, no chão. No momento seguinte fugiu com as asas caídas e sangrando muito. Henrique procurava inutilmente, com grande ira, induzir novamente o galo a lutar. Empurrões, beliscões e ralhos não adiantavam mais nada. O galo grande tinha medo do adversário, e fugia sempre, assim que o pequeno investia sobre ele. Agora o galo de Joãozinho bateu a asas e cheio de orgulho cantou um estridente "Cócóricó". Estrondosos aplausos, gritos de “bravo” e risos seguiam esse canto de vencedor. - Joãozinho Felizardo! - gritou o velho Bento Damásio e correu ao encontro do menino, - você é realmente um felizardo. Afagou o ombro de Joãozinho enquanto Anita sorria para seu colega de escola com seus lindos olhos. Joãozinho recebeu os 20 mil-réis e os deu ao padrinho Cidral. Sorrindo, o velho pegou as duas notas na mão, examinouas pormenorizadamente e deu uma nota de dez mil-réis ao garoto: Tome esta nota de dez mil-réis, Joãozinho, pois foi seu galo que a ganhou. O dinheiro é seu. Os dez mil-réis que lhe emprestei aceito de volta! Joãozinho dançava de alegria. Era a primeira vez na vida que ganhava dinheiro. Todos alegraram-se com sua vitória grãos de milho, principalmente seus irmãos e Anita. Joãozinho chamava o galo com empurrando-o delicadamente para o pequeno cesto. Então todos ficaram na venda onde falou-se sobre as brigas ainda por muito tempo. Ao anoitecer, voltaram para casa. 61 VI Joãozinho cumpre sua palavra. A despedida. A viagem para a cidade portuária. A grandiosidade e a amplidão do Brasil. Os rebanhos de gado dos campos, as florescentes colônias alemãs, as matas de erva-mate, as serrarias e as plantações. O infinito mar. As gaivotas e as garças. O porto. Um animal horrível. As locomotivas e os automóveis. O transporte de mercadorias no porto. A baía. Os navios... Joãozinho conseguira impor sua vontade e vencer na briga de galos. Contudo, já no mês seguinte, chegou o momento em que se arrependia amargamente da promessa feita ao padrinho Cidral, pois gostaria de poder voltar atrás. O padrinho, que muitas vezes já conversara com a mãe de Joãozinho sobre o futuro do menino, deixara recado para que se aprontasse para ir, por uma semana, para a grande e distante cidade de Curitiba. Lá o menino seria apresentado a um professor e testado por ele para verificar se poderia freqüentar a escola da cidade. Nessa viagem o velho Cidral procuraria saber do início das aulas, condições de pagamento e custo total, aproximado, do estudo e do alojamento de Joãozinho. A instrução escolar do menino, com o tempo, poderia tornar-se dispendiosa para ele. Joãozinho agarrava-se a isso como última esperança. Ele não poderia recusar-se a ir para a cidade e tornar-se um homem ilustre, após ter dado a palavra ao padrinho(por causa do galo). Porém, seu jovem coração constrangia-se ao pensar na viagem e na tão próxima despedida do lar. Quando a mãe deu-lhe o recado do padrinho, ficou vermelho como fogo. As lágrimas brotaram em seus olhos azuis. A mãe perguntou-lhe, então, com expressão triste: -Vai ser difícil para você, Joãozinho? O menino precipitou-se sobre a mãe e enterrou a cabeça em seu colo. Um soluçar violento sacudia-lhe os ombros. Ele deveria deixar sua mãezinha, seu lar, a Maria, os irmãos e Anita. E ninguém estaria com ele na estranha cidade. Nem Valente, o cachorro, nem 62 Jacó, seu papagaio. Aos poucos, e soluçando muito, dizia isso para a mãe enquanto enfiava o rosto molhado em seu colo. Ela afagava seus cabelos loiros com a mão suave, procurando acalmá-lo. -Eu não quero ir para a cidade! - gritava desesperado. -Eu quero ficar aqui! -Mas, Joãozinho, você não precisa ir embora. - disse a mãe. - Diga ao padrinho que você não quer. O garoto levantou sua cabeça e disse chorando: -Mas eu prometi ao padrinho! -Bem, nesse caso você precisa manter sua palavra - disse a mãe. - Palavra dada não volta atrás! O que se promete, precisa ser mantido. Ela passou delicadamente a mão sobre o cabelo do filho e recomeçou a falar: - Veja, meu filho, seria leviandade minha se eu me opusesse a que você fosse para uma boa escola. Você poderá encontrar um bom emprego e ganhar muito dinheiro. Já pensou se você, um dia, voltar para cá como um homem ilustre e nos disser: Vocês não precisam mais trabalhar tanto. Eu quero dar-lhes dinheiro para vocês fazerem uma casa melhor e comprarem uma vaca leiteira e cavalos. E vocês também poderão ter uma criada para que a mãe e Margarida não precisem fazer o serviço pesado. Imagine que felicidade seria para mim, se o meu Joãozinho puder ajudar sua velha mãe! Joãozinho a ouvia com interesse. Agora, encantado, desatou a rir alto por entre as lágrimas. Sim, deveria ser maravilhoso se ele conseguisse proporcionar uma ajuda e uma alegria dessas a sua mãe. Nessa hora também, mostrando firmeza, quis reprimir sua dor e não deixar que o padrinho percebesse quão triste estava. Nos dias seguintes falava-se apenas da viagem e das preparações que se faziam necessárias. Joãozinho, que não precisava mais freqüentar a escola da mata, visitou a família do professor para despedir-se. A despedida de Anita foi-lhe difícil. Ele também procurou alguns vizinhos para despedir-se. Porém, o que mais queria era ficar em casa nesses últimos dias antes da viagem. No meio do bambuzal atrás do quintal havia um lugarzinho escondido que ninguém conhecia. Ali as verdes e lisas varas de bambu cercavam o menino por todos os lados, como uma pequena mata, 63 quando ele queria ocultar da mãe e dos irmãos a dor e as lágrimas. Nesse lugar, às vezes se atirava ao chão e chorava. Sobre ele o vento murmurava, misteriosamente consolador, através das copas das árvores, e sussurrava pelas folhagens verde-douradas dos bambus. E o sabiá cantava sua suave melodia até que o menino o ouvisse e, aos poucos, então se acalmava. Joãozinho propôs-se não deixar a mãe perceber nada e aparentar alegria em casa. Porém, o difícil momento da despedida aproximava-se. Secretamente, Joãozinho já se despedira do cachorro, do papagaio, do gato e dos porcos. Também acariciara seu galo marrom-avermelhado por longo tempo e escondera os brinquedos feitos por ele mesmo. Tinha também percorrido todos os recantos ao redor da casa. Bem cedinho, com o nascer do sol, o padrinho Cidral já estava diante da porta, montado em seu baio. O poncho e a bolsa estavam presos na sela. Nas longas botas de montaria estavam a espada e a pistola. - Pronto, Joãozinho! Vamos! - disse ele animado. Joãozinho subiu em seu pônei gordo e marrom, o "Mico". Ao despedir-se da mãe e dos irmãos reteve as lágrimas com muito sacrifício. Eles não deveriam perceber quão difícil isso era para ele. Ele queria ficar rico e poder ajudá-los. Todos estavam ao lado de seu pequeno cavalo e Joãozinho procurava sorrir alegremente. Mas, então, viu que Maria escondia seu delicado rosto no avental e ao chorar, sua loira trança estremecia. Daí não pôde mais se conter e de seus olhos também as lágrimas começaram a cair. Felizmente o padrinho começou a tocar o baio. O "Mico" o seguiu imediatamente e os dois cavalos seguiram a trilha, animados. Agora Maria chorava alto, escondendo o rosto em seu aventalzinho. A mãe e Margarida também começaram a chorar. Com os olhos molhados acenavam para Joãozinho. Francisco e Pedro agitavam os chapéus. Eles invejavam o pequeno irmão pela sorte, mas ao pequeno homenzinho isto não parecia ser motivo para inveja. O velho Cidral e Joãozinho cavalgaram até a encruzilhada perto da grande figueira. O pônei queria virar para o costumeiro caminho que levava à escola, do outro lado da mata. Porém, o velho Cidral conduziu seu baio pela larga estrada da mata pela qual 64 Joãozinho, há quase sete anos atrás, correra com Valente para salvar Maria, que desaparecera. Logo alcançaram a clareira onde, naquela época, estava a tenda de ciganos e, após seis horas de cavalgada chegaram ao lugarejo mais próximo. Após duas horas de descanso, numa venda, eles prosseguiram. Quando a noite aproximou-se chegaram à casa de um amigo do velho Cidral, onde foram recebidos cordialmente. Joãozinho parecia estar anestesiado o dia todo e não percebeu nenhuma maravilha. O velho Cidral também ficara muito quieto, como era seu costume. Joãozinho, logo após o jantar, deitou-se numa cama que improvisara, com o baixeiro e o pelego, cobrindo-se com o pequeno poncho azul que a mãe costurara para a viagem. Durante o dia todo sentia um peso no coração dizendo-lhe que tão logo não veria a terra natal e talvez já precisasse ficar na cidade. Não conseguia pegar no sono. Somente depois que chorou bastante e fez sua oração conseguiu adormecer. Ele sonhava que já se tinham passado muitos anos. Agora voltava para casa a cavalo, montado numa sela prateada. Uma grande tropa de vacas e cavalos, que lhe pertencia, ia à frente. Atrás dele vinha a tropa de burros carregada com víveres, presentes e dinheiro. De repente todos os velhos amigos, conhecidos, e colegas estavam ali e Bento Damásio fazia um longo discurso sobre o famoso Joãozinho Felizardo, que honrou sua terra natal e cuja riqueza e prestígio deviam-se à sua própria capacidade. Joãozinho viu como sua mãe chorava de alegria, como Maria batia palmas com suas mãozinhas e como Anita, com os negros cabelos encaracolados, olhava para ele admirada. Ela estendia-lhe a mão sorrindo. Mas quando quis agarrá-la, pegou no vazio e... acordou. Então ele percebeu que toda sua felicidade e riqueza tinham sido apenas um sonho e que estava sozinho, numa casa estranha, deitado no chão. As figuras amadas da mãe, dos irmãos, de Anita e dos pais desta sumiram. Longe, bem longe deles, ele descansava sobre os apetrechos de sua sela e não em casa, em sua cama de cipó trançado. Sentia-se terrivelmente abandonado e infeliz 65 após o sonho lindo, e as lágrimas quentes brotavam em seus olhos cansados. Por muito tempo chorou, até o sono o envolver novamente. No dia seguinte Cidral e Joãozinho prosseguiram a viagem. Cavalgaram por regiões solitárias onde havia apenas algumas casas e também por pequenos lugarejos. Ao longe erguiam-se as pontas escuras da montanha e as escarpas da serra sob o pálido azul do céu. Todas as novas e inúmeras impressões das coisas singulares que Joãozinho via no caminho faziam com que, por instantes, esquecesse a amarga saudade do lar. Curioso, olhava de cima de seu pônei para o mundo colorido e admirava-se de como o Brasil era grande e maravilhoso. E o padrinho Cidral, que se alegrava com o espanto do garoto, contava-lhe orgulhosamente que, mesmo que continuassem cavalgando por mais mil dias, não veriam mais que uma décima parte do Brasil. Falava-lhe dos grandes campos; das estâncias e da criação de gado do Rio Grande do Sul; das florescentes colônias teutobrasileiras dalí e de Santa Catarina; das cidades do interior do Paraná; das fazendas de café e dos campos de algodão de São Paulo. Ele já viajara por esses estados brasileiros. No terceiro dia chegaram à praia. Oh, como Joãozinho arregalou os olhos quando desciam de um outeiro e avistaram uma superfície de água, brilhante e flutuante, que se estendia ao longe até tocar o céu. A luz do sol brilhava sobre as ondas que se agitavam. Coroas de espuma branca ondulavam sobre as verdes cristas de água que bramavam selvagemente e que voltavam em quedas rompantes numa rebentação branca como neve. Eles desceram até a areia branca e cintilante da praia. Como paredes de água, que pareciam vidro verde, as ondas marinhas desciam, com um estrondo trovejante, como se quisessem engolir os dois cavaleiros. Aproximavam-se como se fossem cavalos selvagens gritando, sacudindo as crinas de espuma branca e atirando-se umas sobre as outras. Joãozinho olhava assustado para o padrinho e queria pôrse em fuga com seu cavalo. Porém, as ondas furiosas despedaçavamse e pulverizavam-se numa espuma branca, que se espalhava numa 66 água rasa e branca, debruando a praia plana e clara. A água mal molhava os cascos dos cavalos. Mas, do outro lado, o mar se quebrava furiosammente nos negros rochedos que, de molhados, brilhavam. Com um estrondo ribombante as ondas batiam contra os recifes, renovando sempre os ataques tempestuosos. E as nuvens de água e de espuma branca cobriam continuamente os rochedos. Ouviam-se gritos estridentes de gaivotas brancas, garças cinzentas e outros pássaros que voavam baixo sobre as ondas verdes e lançavam, de repente, seus bicos na água que espirrava. Eles caçavam peixes. Bem longe navegava um navio a vapor e, na linha do horizonte, cintilavam algumas velas brancas. Agora, a estrada conduzia para partes elevadas recobertas de mata. Pouco a pouco os viajantes perdiam a visão do mar. Porém Joãozinho durante o dia todo, admirava-se por ter descoberto a existência de uma coisa tão grandiosa, tão esplêndida e formidável como o imenso mar. Os dois viajantes pararam na casa de um pescador e surpreenderam-se pela pescaria, pelos peixes magníficos. Havia robalos, prejerebas, parus, badejos, pescadas, tainhas, bagres, linguados e muitos outros peixes. Ao cair da noite, chegaram à cidade portuária, onde tomariam o trem para Curitiba. O velho Cidral tinha um amigo nas proximidades do porto. Diante de uma grande casa desceram do cavalo. Foram acolhidos cordialmente, pois a hospitalidade é uma das boas características do autêntico brasileiro. Desarrearam os cavalos e os conduziram para a mangueira. Cansados, foram convidados para comer, numa mesa muito farta, e contaram para Ribeiro, amigo do velho Cidral o objetivo, a finalidade da viagem. No dia seguinte, Joãozinho ficou algum tempo diante da porta da casa. O barulho nas ruelas, o ruído dos carros na pavimentação de pedra, o grande número de pessoas e todas as novidades que podia ver confundiam-no. As estreitas ruas pareciamlhe pedreiras. 67 -Não- pensou arrepiado, -Como essas pessoas são dignas de compaixão, por serem forçadas a viver toda sua vida nesses muros de pedra, nas ruelas estreitas. Como é maravilhoso para nós morarmos no interior, na verde mata fresca onde o vento sussurra pelas árvores, os pássaros e os animais da mata movem-se alegres, as fontes e os riachos murmuram, onde temos liberdade para caminhar a largos passos e ter uma visão panorâmica para admirar!. De repente estremeceu, assustado. Uma gritaria penetrante e terrível ressoou pelo ar. Joãozinho rapidamente voltou-se para a porta salvadora. Nesse momento, o velho Cidral saía e Joãozinho tenso encarou-o. -O que está acontecendo? perguntou ao padrinho. -O padrinho não está ouvindo essa gritaria assustadora? perguntou Joãozinho receoso, -deve ser um animal medonho para gritar tão horrivelmente. -Bobagem!- ria o padrinho Cidral. Isto é a locomotiva, a máquina, que puxa os vagões do trem. Amanhã ela nos levará para o planalto, através das montanhas da Serra do Mar. Joãozinho olhava-o pensativamente. Será que isso não era muito arriscado? Porém, o dia ainda trouxe centenas de novas emoções para o menino do interior. O padrinho foi com ele ao porto. Quanta coisa podia-se ver já no caminho! Joãozinho não sabia para onde olhar primeiro. Aí de repente surgiu correndo, lá do canto, um monstro sobre quatro rodas, zunindo e ofegando terrivelmente. Gritava muito alto quando via as pessoas. Na frente, seus grandes olhos de vidro aregalavam-se. Sibilava, fumegava e tinha o dorso largo como um telhado. Joãozinho, assustado, pegou no braço do padrinho e empurrou-o contra uma parede da casa. O monstro já se aproximava. Percebia-se que havia gente dentro dele. - O que tanto você olha embasbacado, e por quê me espreme contra a casa? - gritou o velho José Cidral. - Você nunca ouviu falar de automóveis? 68 - Mas, padrinho, veja, um carro que anda sem cavalos! Não tem nem timão! E as pessoas atrevem-se a entrar nele! - Pateta, isto é um auto, do qual eu lhe falei! - Uma máquina impelida a óleo e conduzida por rodas. A condução é feita com um volante, como no navio. O carro passara rapidamente e já desaparecera, deixando o cheiro de gasolina e poeira no nariz e nos olhos dos dois habitantes da mata. Joãozinho continuava olhando, admirado, ao longo da estrada na qual o monstro singular desaparecera. Para ele era inconcebível que um carro pudesse se locomover sem uma parelha de bois, de cavalos ou burros. E tão rápido como um relâmpago, o carro voara dali. Chegando ao porto havia novamente muitas coisas notáveis para ver. Ali estavam, numa longa fila, os transportes marítimos com seus mastros, veleiros, barcos e, chalupas. Um bulício de carros e de barcos coloridos rodeavam o menino e seu padrinho. Pessoas moviam-se com cargas nas costas. Grandes pilhas de barricas e sacos com erva-mate, pilhas de tábuas, caixas e fardos eram carregados e descarregados. O padrinho mostrava ao menino admirado três navios a vapor, ancorados mais ao longe. Até uma canhoneira com proa afiada e convés baixo podia-se ver! Na baía brilhante os barcos a motor balançavam ligeiramente de um lado para outro. Faziam "toc, toc, toc" e atiravam a água espumante para cima, diante da proa. E, de repente, começavam a uivar estridentemente. Atrás de si deixavam como rastro, na água, um longo risco branco. Gaivotas voavam em grandes bandos sobre a água verde-amarelada do porto e apanhavam bocados de comida que caíam dos navios. Do lado de lá da baía, atrás dos navios a vapor, viam-se verdes ilhas arborizadas e rochedos marrons. Ao redor da água erguiam-se, sob o céu azul, montanhas de um verde escuro a cujos pés brilhava a areia branca da praia. Por toda parte viam-se casas claras e cabanas escuras. Os dois habitantes da mata eram, muitas vezes, empurrados de lado por carregadores apressados e marinheiros. Sobre 69 trilhos de ferro andavam carros abertos, puxados por burros. As pessoas sentavam-se nos seus bancos. Carros de transporte aproximavam-se com barulho. Barricas e fardos eram rolados por pessoas apressadas. O velho Cidral e Joãozinho pulavam de um lado para outro, para não serem atropelados ou esmagados. A cabeça lhes zumbia com todo esse barulho e tumulto e, assim, voltaram para dar uma olhada nos cavalos. 70 VII A primeira viagem de trem de Joãozinho. O milagre do telégrafo. A inexperiência de Joãozinho causa alegria aos companheiros de viagem. A Serra Geral do Mar. A viagem para o inferno. Os túneis. A chegada em Curitiba. Os bondes. A vida na cidade e pessoas estranhas. A hospedaria. O exército brasileiro aproxima-se. A bandeira nacional. A catedral. A venda da cidade.............. Ribeiro, em cuja casa os viajantes passaram a noite, levouos pessoalmente, no dia seguinte, até a estação ferroviária. O velho Cidral usava pala de lã sobre o terno de domingo e calçara as empoeiradas botas de montaria. De seus ombros pendia uma sacola azul na qual estavam suas coisas. Joãozinho vestia seu terno novo listrado, que a mãe lhe fizera e, na cabeça, o largo chapéu de tiririca. Não estava acostumado com sapatos, por isso estava descalço. Porém, usava, enrolado nas costas, seu pequeno poncho azul, com o qual se cobrira durante a noite. Nas mãos segurava o saquinho branco com paçoca para provisão de viagem. Ribeiro olhava sorrindo para seus dois hóspedes. Providenciou-lhes as passagens no guichê e deu-lhes conselhos úteis para a cidade grande de Curitiba. Havia muitas pessoas na plataforma da estação. A pesada locomotiva aproximava-se arfando e soltou novamente um grito estridente, que já assustara o menino do mato. Atrás dela rodavam os vagões com muitas janelas. Joãozinho pulou de lado com o espetáculo da máquina preta que bufava selvagemente e pisou violentamente no pé do velho Cidral. - Ai meus calos! - gritou este e levantou bruscamente o pé. Tome cuidado, moleque! E vamos! - Com isso empurrou o menino para a entrada do vagão. Joãozinho nem sabia como entrara no vagão e se sentara junto à janela aberta do carro. Tudo acontecera tão depressa e com tanto barulho! O vagão estava cheio de pessoas desconhecidas que arrumavam suas malas e caixas. 71 Um uivo estridente assustou o menino novamente. Um abafado rodar, sacudir e triturar começou a fazer barulho sob seus pés. O trem saía da estação. A viagem tornava-se cada vez mais veloz. Por fim, parecia a Joãzinho que o trem estava parado, mas lá fora, pelas janelas abertas, árvores, campos, matas, casas, igrejas, carros, animais e pessoas passavam correndo. E o que eram os arames, lá em cima, que acompanhava o trem? Os longos arames nas barras negras com cabeças brancas de vidro? O menino puxou o padrinho pelo braço e perguntou-lhe o que era aquilo. - São fios do telégrafo - explicou-lhe o velho Cidral. - As palavras correm neles como um relâmpago quando a gente quer mandar uma notícia rápida para alguém. Andam ainda mais depressa que o trem! Joãozinho olhava incrédulo para o padrinho. Será que o padrinho não queria troçar dele? Porém, José Cidral parecia muito sério. Continuou a contar que, agora, os homens haviam progredido tanto que podiam enviar palavras telegráficas sobre montanhas e mares sem fios, e que essas palavras eram interceptadas corretamente nas estações. Contudo, para ele, essa coisa ainda não parecia muito fidedigna. O trem parava em todos os lugarejos e Joãozinho debruçava-se então para observar o tumulto nas estações. Um dos passageiros fechou a janela, na saída de uma das estações, para que o vento não entrasse com tanta força no vagão. O menino não reparou que a janela fora fechada. Joãozinho aceitara com fervor a sugestão do padrinho para abrir o saquinho de paçoca, para comerem alguma coisa. Colherada após colherada empurravam agilmente a paçoca boca adentro. Com que delícia saboreavam a farinha de milho com os pedaços de carne de galinha! Isto era ainda um resto da comida vinda de casa. Assim que terminaram, e guardaram o saquinho vazio com as colheres de lata, ressoou o estridente uivo da locomotiva. O trem parava numa grande estação repleta de pessoas. Como um relâmpago Joãozinho esticou a cabeça para fora da janela de vidro que, pensava ele, estava aberta. Seguiu-se um estalar e um estilhaçar. Cacos de 72 vidro voavam para todos os lados e caíram no chão. Felizmente, a cabeça de Joãozinho fizera um buraco bem grande no vidro, pois, ao puxar a cabeça de volta, via-se que ele não se machucara. As pessoas que se encontravam na estação e as que estavam no vagão davam gargalhadas ao ver o vidro quebrado e a cara de bobo, assustada, de Joãozinho. O padrinho Cidral também ria muito, batendo com as mãos nos joelhos. Logo aproximou-se da janela um funcionário da estação e explicou ao velho que o vidro que o menino quebrara custava seis mil réis. Aí, passou a vontade de rir de Cidral. De cara azeda puxou a bolsa com o dinheiro e deu um safanão no menino que, assustado,cambaleou. A viagem prosseguia. Irritados e tristes estavam José Cidral e Joãozinho, em seus bancos. Por longo tempo não olharam para as barras de telégrafo, para as pontes, árvores, campos e nuvens que passavam correndo. Porém, quando o trem chegou na serra e subia as elevações verdes e marrons em grandes curvas, quando abriu-se a magnífica paisagem das montanhas, encostaram suas cabeças na janela e olharam admirados para o mundo maravilhoso de Deus. Viam abaixo deles, perdidos na distância, rochedos monstruosos; penhascos enormes; gargantas profundas; vales verdes e tranqüilos com animais pastando; quintas isoladas e pequenos lugarejos. Bem para baixo, a vista deslizava pelo monstruoso e escuro abismo e, para, cima pelas pontas escarpadas da cordilheira. Sobre pontes vertiginosas, que pareciam suspensas no ar, o trem ribombava. Embaixo estavam as matas silenciosas sobre cujos cumes parecia que os viajantes pairavam entre o céu e a terra. Para surpresa de Joãozinho cintilaram, de repente, todas as lâmpadas do teto do vagão. Quem as acendera, ao mesmo tempo, como seus relâmpago? O padrinho queria explicar, porém só conseguiu arranjar uma explicação da luz elétrica tão confusa, que Joãozinho, agora, é que não entendia nada. Olhando pela janela, percebeu que o trem começava a correr contra um alto penhasco. No instante seguinte teria que se despedaçar. Horrorizado, Joãozinho fechou os olhos e segurou-se firme 73 no assento. A fumaça penetrava no vagão. Joãozinho abriu um pouco os olhos e viu que lá fora era noite escura. Não dava para ver nem uma estrelinha. Ele já queria pegar no braço do padrinho e perguntar o que significava aquela mudança assombrosa de dia claro para noite escura, quando clareou de novo e o trem saiu, fazendo muito ruído, do buraco da terra. Então o padrinho esclareceu-lhe que tinham passado por um túnel que os homens haviam perfurado na montanha. Joãozinho preferia já estar em casa e poder contar sobre todas aquelas maravilhas para a mãe e os irmãos. Ora, como eles ficariam admirados! Eles o tomariam por um mentiroso. Mas o padrinho poderia confirmar tudo. Seguiram-se ainda muitos túneis e coisas interessantes. Porém, com o tempo, Joãozinho se cansara de tanto olhar e adormeceu. Acordou, depois de um longo sono, com o uivo prolongado da locomotiva e com violento solavanco. O trem entrara na estação de Curitiba e, de repente, parou quieto. Um barulho atordoante e um tumulto enorme enchiam a plataforma da estação. Um empurrar, impelir e puxar de pessoas que desembarcavam e se cumprimentavam confundiam os dois habitantes da mata, até que eles, finalmente, puderam sair do vagão. Através daquele tumulto de pessoas empurraram-se até chegarem à praça da estação. Longas filas de coches e carros atrelados com cavalos, automóveis, ônibus e carros de carga estacionavam ali. Sobre estreitos trilhos havia, alguns vagões abertos, que se ligavam, com finas barras de ferro, ao fio elétrico. O velho Cidral explicou ao menino que eram bondes, impelidos por energia elétrica que saía dos fios. Eles subiram num desses vagões e o bonde partiu em seguida. De ambos os lados levantavam-se edifícios altos como Joãozinho jamais sonhara. Quanto mais avançavam para o centro da cidade, mais aumentava o barulho e o tumulto de carroças, automóveis, coches, bondes e pessoas. Todos pareciam estar com muita pressa. Os automóveis precipitavam-se em lugares apertados, como se quisessem derrubar tudo o que estava à frente. Às vezes, 74 Joãozinho fechava os olhos assustados e acreditava que, certamente, haveria uma terrível colisão. Parecia que os carros velozes corriam diretamente para cima do bonde. Porém, no último instante desviavam com habilidade. Um buzinar, uivar, gritar, tocar de campaínha, guinchar e apitar infernais o ar. Cheirava a gasolina, a breu, a poeira. Meninos vendiam jornais subindo no bonde e gritando para os passageiros. Vendedores de bilhetes de loteria, de frutas e meninos de rua, faziam barulho. Joãozinho estava como que anestesiado e cravava os olhos no tumulto de pessoas; nos incontáveis fios que se estendiam aos lados, nas ruas; nas grandes vitrines pelas quais o bonde passava. Joãozinho e o padrinho desceram do bonde num ponto de parada e entraram numa estreita ruela, onde José Cidral sabia haver uma hospedaria para pessoas do campo e tropeiros. Logo passaram pelo portal do grande e monótono edifício. Sobre o portal brilhava um letreiro onde estava pintada uma cabeça de boi. O estalajadeiro possuía também um açougue que ficava ao lado da hospedaria. Ele usava um avental, branco manchado de sangue, e no corredor da casa, cumprimentou sorrindo os recém-chegados, mencionando imediatamente o nome de José Cidral, seu velho conhecido. O velho Cidral alegrou-se com isso. - Sim, conhecem-me em Curitiba -, dizia orgulhoso para o menino que olhava, admirado, para o importante homem que era conhecido mesmo na cidade grande de Curitiba. Como o velho Cidral queria hospedar-se sem gastar muito dinheiro, o dono da hospedaria conduziu os dois para um pequeno quarto que ficava no quintal. No cômodo havia apenas uma cama, duas cadeiras e uma mesa. Não tinha nenhuma outra mobília ou utencílios. Lavatório não era necessário, pois no quintal havia um poço. Os viajantes tiraram suas mochilas e o estalajadeiro deixou-os sozinhos. - Nessa cama tem lugar para nós dois! - acenava o velho Cidral com a cabeça. - As pessoas da cidade são mesmo estranhas, cobram das pessoas até para dormir. Se tivermos apenas uma cama, é mais barato! Joãozinho observava indignado, pois as pessoas da mata 75 ofereciam aos viajantes não apenas uma cama, como também comida de graça. As pessoas da cidade eram, certamente, mesquinhas. O velho Cidral riu disso, pois era da mesma opinião. Eles foram até o poço, lavaram o rosto e as mãos sujos do pó da viagem e caminharam cautelosamente, pelo corredor, até a sala de refeições. Em numerosas mesas estavam carroceiros, trabalhadores e pessoas do campo. José Cidral pediu um almoço e um copo de água. Depois que saciaram a fome, saíram para a viela, pela qual logo chegaram à rua movimentada. Novamente, Joãozinho admiravase do andar apressado das pessoas e seu vestuário estranho, que destoava muito da moda da mata. Ali caminhavam muitos janotas, rapazes cujas calças eram muito justas e muito curtas, enquanto paletós pareciam casacos de mulher, apertados na cintura e uma abóboda no peito. Usavam sapatos de bico fino. E as senhoras finas então! Estas usavam vestidos que, em cima e em baixo, eram muito curtos e sem mangas. E não eram justos na cintura como a roupa dos rapazes da cidade e das mulheres da terra natal. Os vestidos caíam quase retos, como uma camisa. E que chapéus estranhos elas usavam na cabeça! Em casa, na mata, essas mulheres seriam motivos de muita risada! Felizmente, Joãozinho também via pessoas que se trajavam como ele e o velho Cidral. Isto o tranqüilizava. Nas ruas havia novamente o louco correr e o barulho dos automóveis, dos bondes elétricos, dos carros de carga e coches. Por que todos tinham tanta pressa? Será que aconteceu alguma coisa em algum lugar? Eles andavam no passeio e paravam freqüentemente diante das ofuscantes vitrines para olhar as muitas coisas bonitas e estranhas que estavam expostas. Porém, o velho Cidral sempre estava com pressa, pois tinha muitas incumbências e compras para fazer. Joãozinho admirava novamente os meninos barulhentos que vendiam jornais; os impertinentes vendedores de bilhetes de loteria; os muitos aleijados que pediam esmola; os monges e freiras vestidos de preto que andavam pela multidão; os numerosos engraxates que manejavam zelosamente os calçados nos pés dos senhores sentados em altas cadeiras; os muitos salões de barbeiros e os cafés com 76 incontáveis mesas cheias de gente.Homens com estranhos carrinhos de mão que, na rua, vendiam sorvete e frutas; vendedores de rua que procuravam, com um grito longo e uma mistura de instrumentos, chamar a atenção sobre eles. O velho Cidral caminhava cautelosamente entre esse tumulto e respondia a cada vendedor ambulante. Estava orgulhoso pela cortesia com que lhe ofereciam aquelas coisas. Provavelmente viam que ele era um homem abastado e isso o alegrava! Comprou um jornal de dois meninos, e deixou-se engabelar com um bilhete de loteria que deveria correr no dia seguinte. Mais tarde, percebeu-se que não poderia ler o jornal porque não trouxera seus óculos. E o bilhete de loteria era uma sorte em branco. Porém, ele resolveu levar o jornal e o bilhete para a mata e mostrar às pessoas de lá que tipo de homem ele era. Daí, o velho Bento Damásio poderia ler o jornal para ele. E talvez ainda pudesse passar-lhe o bilhete de loteria! Os dois entraram em algumas lojas e perguntaram pelos preços. As compras, o velho adiou para o dia seguinte. Aos poucos queria descobrir onde se comprava mais barato. Com um piscar de olhos Cidral explicava ao menino que o admirava secretamente pela esperteza. De repente ouviram um rufo e som de música. Pararam imediatamente junto à multidão curiosa que já se aglomerava. Então viram um longo pelotão de soldados uniformizados que se aproximavam marchando compassadamente. À frente vinha um oficial num belo cavalo, empunhando a espada. Em seguida, um pelotão de soldados com a bandeira nacional. Todas as pessoas na rua tiraram o chapéu - exemplo seguido lentamente pelo velho Cidral. Ele também arrancou o chapéu da cabeça do garoto, fazendo com que este olhasse indignado para o padrinho. Então, percebeu que não só o padrinho mas todas as pessoas estavam com as cabeças desnudas. Agora os tocadores de tambor passavam marchando. Seguia-se um pelotão de soldados. E então recomeçava a música militar. 77 Oh, como o menino da mata se animava! O exército brasileiro! Com que orgulho e ousadia os belos rapazes vestidos com o bonito uniforme marchavam ao som retumbante da música! Agora, Joãozinho sabia que desnudara a cabeça diante da bandeira da pátria, diante do símbolo sagrado da terra natal. E seu peito jovem enchia-se de orgulho ao pensar que ele também pertencia à grande nação brasileira e que também, algum dia, usaria o uniforme de defensor da pátria! Depois que o grande pelotão de soldados passara por eles, colocaram novamente seus chapéus e atravessaram uma grande praça ornamentada com muito verde, com canteiros de flores, e árvores de sombra repuxos e bancos. Sentam-se admirando os jatos de água que, dos repuxos jorravam para cima. Depois, levantaram-se e continuaram a andar até que chegaram a uma igreja. Entraram pelo grande portal para rezar. Joãozinho, contudo, ficou tão atônito com o esplendor da casa de Deus que esqueceu-se de fazer sua oração. Ao deixarem a igreja, isto pesou-lhe muito na consciência. O velho Cidral perguntou a um guarda uniformizado onde ficava a rua da grande venda de Bark, Pereira & Cia. O policial mostrou-lhes um bonde elétrico que se aproximava, zunindo e buzinando violentamente, e que parou a um seu sinal. Os dois agradeceram e subiram rapidamente. Depois de percorrer uma boa distância, o bonde parou e o condutor mostrou-lhes um edifício em que estava escrito, em letras grandes, "Bark, Pereira & Cia. Eles desceram do bonde e caminharam para o prédio. Por uma das muitas portas, entraram no amplo espaço da venda. Joãozinho jamais acreditara que pudessem existir no mundo vendas tão imensas. Na parte posterior havia longas mesas e muitos empregados corriam por ali, carregando mercadorias para os vendedores e vendedoras. O velho Cidral aproximou-se e perguntou pelo Dr.Bark. - Qual o nome do senhor? - perguntou apressadamente um rapaz examinando o velho de barba grisalha, sua roupa e suas empoeiradas botas de montaria. 78 - O senhor não me conhece? Eu sou José Cidral da região de Palmital, um bom amigo do Dr.Bark - respondeu, um pouco ofendido, o velho. Uma das empregadas da loja correu para dentro. Porém, logo retornou e conduziu os dois habitantes da mata para o escritório particular da loja. 79 VIII A prova. A decepção de Joãozinho ao saber que não será doutor. A magia: através da parede, ouve-se um chamado por alguém que entenda a língua alemã. O telefone. A luta interior de Joãozinho: ele quer voltar para casa. O sentimento do dever. O moinho de erva-mate. A viagem em carro de transporte através do campo...... Dr. Bark tinha sido advogado antigamente e agora dedicava-se ao comércio. Seu sócio, Pedro Pereira, era um amigo de juventude, e foi através dele que se tornara comerciante. Hoje estava sozinho no escritório e revia umas cartas. Quando os dois habitantes da mata entraram, levantou a cabeça já grisalha e olhou sorrindo para o velho José Cidral que, há muitos anos, tinha como homem corajoso, desde que estivera em sua casa para caçar. Levantou-se da poltrona, abraçou o velho habitante da mata, estendeu a mão para cumprimentá-los e pediu-lhes que se sentassem. - Como está passando a velha senhora, lá em casa? E vocês? - perguntou alegre. José Cidral respondeu-lhe cordialmente e perguntou também pela saúde do Dr. Bark. Conversaram assim por algum tempo. O comerciante ofereceu ao velho amigo um charuto, que este acendeu cerimoniosamente. - Foi muito bom que o senhor aparecesse, novamente amigo Cidral! - disse o comerciante. Já faz alguns anos que o senhor não vinha para Curitiba. O que o traz aqui? Negócios? O senhor quer nos vender ou comprar alguma coisa? Ou posso ajudá-lo de alguma outra maneira? O senhor sabe, sou seu velho amigo. O velho Cidral estava radiante de alegria e procurava os olhos de Joãozinho para ver se este percebia a grande amizade e consideração que o distinto Dr. Bark, o chefe da grande firma, lhe devotava. Cidral relatou então, naquela sua maneira vagarosa, que tinha muitas coisas para resolver em Curitiba, porém o principal 80 motivo daquela longa viagem era colocar o menino numa boa escola para, mais tarde, cursar uma universidade. O menino deveria ser um doutor, um homem ilustre para honra de sua terra natal. Era seu afilhado e tão inteligente que concluiria logo os estudos. Bark o ouvia calmamente. Então voltou-se para Joãozinho: - O que você aprendeu? - Joãozinho corou embaraçado, escorregando na cadeira. - Você sabe calcular e escrever bem? - Joãozinho acenou confirmando. - Você sabe alguma coisa de gramática? - Dr. Bark continuou - Gram-grama-tica? - gaguejava Joãozinho e seus pensamentos se voltaram para o capim lá da terra, que era chamado de grama. De repente, lembrou-se da máquina falante da venda da mata, que parecia chamar-se assim "Grama-gramo" Ele acenou rapidamente com a cabeça e seus olhos azuis brilharam. - Bem, então diga, o que você sabe de gramática, perguntou Bark. - É uma máquina falante! - disse Joãozinho, muito orgulhoso de seu conhecimento. - Uma máquina falante? O senhor Bark olhou perplexo e abanou a cabeça sem compreender. - Como máquina falante? A gramática faz muita coisa com a língua. Mas máquina falante... de onde você tirou isso? O velho Cidral sorriu satisfeito. - Ele não sabe nada de gramática. Ele pensa que o senhor está se referindo a um gramofone. Bark ria sonoramente. - Gramática e gramofone! Isto é delicioso! - disse divertido. - E como está em Geografia e História? continuava rindo e testando. Joãozinho olhava-o sem compreender. Devagar começava a perceber que era um menino ignorante e que os conhecimentos que o velho Bento Damásio lhe passara deveriam ser muito insignificantes. Será que ele poderia voltar para casa, junto da mãe e dos irmãos? Seu coração batia forte diante dessa maravilhosa possibilidade. Mas... então nunca seria um ilustre homem rico, como sua mãe o imaginara! Não poderia ajudar a querida mãe e os irmãos a saírem da pobreza, como era seu grande sonho. 81 Bark deixou que ele lesse em voz alta um trecho do jornal "Comércio do Paraná" e passou-lhe algumas contas fáceis para cálculo mental. Joãozinho concentrou-se e saiu-se bem. O comerciante balançou a cabeça! - O menino tem apenas as noções que tinha o seu professor da mata. Mas parece que ele é inteligente! José Cidral disse satisfeito: - É, isso ele é mesmo! -Como é seu nome? - Perguntou o senhor Bark, - João Soares Pilz? Joãozinho respondeu afirmativamente. - Você sabe falar alemão? - continuou a perguntar o comerciante, passando da língua nacional para a língua alemã. Joãozinho respondia às suas perguntas num alemão entrecortado. - É surpreendente que você não só fale a língua de sua mãe, a nossa língua nacional, mas também a língua de seu pai! disse o comerciante. - Ambas as nações, tanto a alemã quanto a portuguesa, cujo sangue corre em suas veias, têm feito grandes realizações e têm revelado à humanidade grandes homens. Ambas as nações trabalham juntas na construção e na grandiosidade do Brasil. Você, meu jovem, diz Norberto, Bark é brasileiro. - Honre sempre as duas línguas, pois um homem autêntico não esquece o país e a língua de seu pai e tampouco a de sua mãe. Deu a mão a Joãozinho e voltou novamente a falar português. - Também seria um prejuízo descuidar-se de uma das línguas, pois o que você aprende brincando quando criança - noções de uma outra língua - como adulto você não pode prescindir de gastar muito dinheiro para aprendê-la. O conhecimento de uma língua mundial como o alemão, sem contar sua língua materna, significa uma inafiançável riqueza para a batalha da vida. Não jogue fora essa riqueza, porém lute por ela! Concordando, disse o velho Cidral: - Aí, o senhor tem razão! Eu já teria ganho muito dinheiro se além de nossa língua nacional eu soubesse alemão! Teria feito muitos bons negócios! - Veja! - riu o comerciante. - Bem, o Joãozinho precisa ainda ter muitas aulas particulares, antes que possa freqüentar as 82 primeiras séries do ginásio. Ele levará pelo menos uns catorze anos até conseguir o título de doutor. E então, nos primeiros anos ganhará tão pouco que, possivelmente, ainda precisará de um subsídio. O total até ele se formar montará mais ou menos de 20 a 30 contos de reis. - Pelo amor de Deus! - gritou o velho Cidral e caiu para trás em sua poltrona. - Isto seria mais da metade dos meus bens! Não, isto eu não posso! É uma pena, mesmo, mas o Joãozinho não será doutor! Será que o senhor não está apenas brincando? Porém, Joãozinho deixou cair sua cabeça. Agora tinha-se acabado seu brilhante futuro! - Não, estou falando sério! - disse Bark. - Tenho que saber, já que eu também estudei! Mas o senhor não precisa ficar triste por isso. O senhor não vê que pendurei meu título de doutor e advogado na parede para tornar-me comerciante? Eu não deixo que meus filhos sejam acadêmicos. Um médico, um funcionário do estado, juiz e todos os doutores têm na vida, na maioria das vezes, menos independência e bens do que um comerciante autônomo ou industrial. - Quando "nós" queremos viajar, não precisamos pedir férias a ninguém e não precisamos perguntar se o dinheiro é suficiente. Um homem capaz não precisa de um título de doutor para conseguir ser ilustre e rico. Deixe o menino... Levantou-se e foi até a parede, onde tocava uma campainha estridente. - Desculpem - disse, e pegou, como Joãozinho via para seu espanto, um objeto redondo pendurado numa caixinha e que ele segurava junto ao ouvido. Bark ficava lá e falava para dentro da caixinha, da qual saiam palavras humanas que pareciam com os cantos dos grilos. - O que é essa mágica, de novo? - pensava Joãozinho e puxava interrogativamente o padrinho pelo braço. - Isto é um telefone! - cochichou o velho, - com isso a gente fala através da parede com pessoas que estão distantes, que moram em outras partes da cidade. Através da eletricidade os fios lá fora levam as vozes e trazem as respostas. 83 Joãozinho bateu as mãos. Algo assim existia no mundo! Maravilhoso! Inconcebível! A partir de agora ele considerava tudo possível. Não se admiraria se o senhor, Bark de repente, saísse dali voando através da parede. Porém, este pendurou o fone redondo no gancho do telefone e disse: - Vamos acender a luz! Já está escurecendo! - Então ele apertou um botão na parede. No mesmo instante, duas lâmpadas brilharam. Uma luz branca e forte propagava claridade no ambiente. Joãozinho se admirava mais. Achava que as pessoas da cidade eram capazes de qualquer feitiçaria. Bark sentou-se novamente. - Parece que o seu Joãozinho tem sorte, velho amigo - disse, dando um tapinha no joelho do o velho Cidral. - O empregado responsável pela minha filial de Casa Branca acabou de dizer-me que está precisando de um aprendiz que saiba falar português e alemão. - O seu Joãozinho, na verdade, mal tem catorze anos, mas é um menino corpulento. O que o senhor acha se o mandássemos para o comércio do mate? Eu daria ordem a esse empregado para dar aulas para o menino. Ele é um senhor muito culto. - Joãozinho, à noite, aprenderia mais do que aqui na escola. Lá terá moradia e comida de graça e receberá, no primeiro ano, 30 Mil-réis por mês. Então o que o senhor acha? Um peso grande caiu da alma do velho Cidral. Respirava aliviado. Via um bom emprego surgindo para o menino sem que ele próprio tivesse alguma despesa. - Joãozinho, você é realmente um felizardo! - disse alegremente. - Assim, você não precisa ficar na cidade grande e ainda pode ser um homem ilustre e rico, se for capaz e corajoso. - O garoto vai gostar lá do campo de Casa Branca, achava Bark. - E se ele tiver sorte poderá um dia ser um vendedor autônomo. Mas, ele precisa assumir o emprego já. - Nós compraremos um vestuário melhor para ele e o senhor, amigo Cidral, poderá levá-lo pessoalmente até Casa Branca. O senhor chegará lá, com um dos nossos carros de carga, em dez horas. 84 - Sim, farei isso! - O que você diz disso, Joãozinho? - Você quer voltar para casa ou quer ser um vendedor ilustre e rico? Os olhos de Joãozinho encheram-se de lágrimas por ter tomado consciência, de repente, do grande tempo que iria ficar afastado de sua casa. - De vez em quando eu posso ir para casa ver minha mãe? - perguntou com voz triste. - Com certeza! - disse o senhor Bark tranqüilizando-o. - Se você trabalhar direito e se seu patrão estiver satisfeito com você, poderá ir para casa a seis meses, por três dias. Mas, depois, uma vez por ano! - Sim, eu vou! - sussurrou Joãozinho segurando o choro. Quero ganhar dinheiro, para poder ajudar minha mãe! - Homenzinho corajoso! - disse Bark batendo-lhes nos ombros. - Você dará muitas alegrias para sua mãe e a honrará muito! Todos os pormenores foram tratados. Bark escreveu algumas linhas para Rodrigo, patrão da loja de Casa Branca. Então, os dois habitantes da mata despediram-se e saíram do escritório. Um empregado acompanhou-os até a rua onde longa fila de lanternas e lâmpadas elétricas, vitrines brilhantes e milhares de janelas iluminadas faziam a noite virar dia. O empregado chamou o bonde elétrico que se aproximava, todo iluminado e tocando muito alto o seu sino através do barulho da rua. O empregado avisou o condutor onde os dois homens do campo deveriam descer. Estes logo se sentaram e o bonde partiu. Para Joãozinho, tudo que vivera desde que saíra de sua casa parecia um sonho. Neste sonho viajava pelas ruas que brilhavam, iluminadas, num carro sem cavalos. Como cintilavam e faiscavam as vitrines brilhantes, como luziam as deslumbrantes e iluminadas tabuletas no alto dos telhados e cumes das casas, e as luzes dos letreiros de propaganda que se apagavam para em seguida se acenderem novamente em muitas cores! Como os carros, coches, automóveis e carros de carga retumbavam e zuniam num estrondo selvagem pelas ruas! E esta multidão nas calçadas! Este chamar, gritar, rir e tanto falar! 85 Os dois desceram na travessa e procuraram, a pé, pela hospedaria. Jantaram, pensativamente. Na hora do cafezinho, o velho Cidral, já sentindo-se mais à vontade, começou a rir. - Ha, ha, ha, você é realmente um felizardo! - Mal o senhor Bark tinha-me dissuadido dessa estória de estudar porque a coisa iria custar muito dinheiro, e eu já estava decidido a levá-lo comigo de volta para casa, quando alguém fala através da parede: - Eu preciso de um aprendiz que entenda alemão! - E, pronto, meu Joãozinho tem um emprego, onde ele não apenas poderá continuar a estudar como também terá moradia e comida de graça, ganhando trinta mil-réis por mês. É difícil de acreditar. Ha, ha ,ha! Logo eles se recolheram. Passaram o dia seguinte fazendo muitas compras. Joãozinho ganhou dois ternos novos, um bonito chapéu de feltro, meias, roupas íntimas e um par de sapatos, além de uma mala de lata colorida. O velho Cidral reclamou por causa dos altos preços. E mesmo assim, estava intimamente feliz por não ter mais que pagar o estudo caro de Joãozinho, como havia imaginado em sua casa. Na manhã do terceiro dia, como Bark lhes aconselhara, dirigiram-se para o moinho de erva-mate da firma, procurando pelo carro de carga que os levaria até Casa Branca. Um taramelar, triturar e bater ressoava da grande moenda de mate coberta com chapas onduladas. Ao lado erguiam-se numerosos galpões menores. Uma alta chaminé fumegava, máquinas sibilavam e ronronavam. No ar havia uma poeira cinza esverdeada que cobria todos os telhados. Um cheiro suave e aromático de erva-mate entrou-lhes pelas narinas. Todos os trabalhadores estavam cobertos com o pó verde. Vários carros com toldos, atrelados com seis e até oito cavalos, descarregavam a erva-mate em sacos, como vinha das matas. Outros carregavam para os carros barris de madeira limpos e guarnecidos com etiquetas coloridas. Nestes barris a erva triturada e seca ia para a estação ferroviária para ser transportada dali para o porto, de onde seria enviada, de navio, para a Argentina, Uruguai e Chile. 86 Saindo do tumulto do átrio, os dois camponeses entraram no moinho de erva-mate, para perguntar ao guarda sobre o carro que procuravam. Lá dentro, em muitas repartições, os diferentes tipos de mate eram despejados em grandes montes. Trabalhadores esvaziavam os sacos que chegavam cheios. Avançando mais um pouco viram grandes máquinas de peneirar, cilindros de secagem, prensas que subiam e desciam, e enormes moedores em que o verde mate era triturado. Em cima, ao lado do telhado escuro e sujo do enorme pavilhão e ao longo das paredes, corriam largas correias com pás que traziam, ininterruptamente, novas remessas de mate. Um grande número de rodas vibrava e estalava, correias de couro agitavam-se rapidamente de roda em roda. Reinava um barulho ensurdecedor e a poeira verde espalhava-se por toda parte com tal intensidade que o velho Cidral saiu para respirar ar puro. Nesse instante alguém gritou para eles: - O que vocês querem aqui? Vocês não sabem ler? Lá fora tem uma tabuleta: Entrada proibida! - Era o guarda, um homem alto e sinistro, que assim lhes falava procurando, brutalmente, empurrá-los para fora. Porém o velho Cidral não se deixou intimidar. Por sua vez, berrou para o guarda: - Cuidado, seu grosseiro! Eu sou José Cidral, amigo de seu patrão. Se você, seu malcriado, não sabe como tratar pessoas decentes vou contar isso ao senhor Bark! Onde está a condução que deverá levar-nos para Casa Branca? O guarda murmurou uma desculpa e conduziu-os até o pátio de entrada, onde um carro de transportes acabara de ser carregado com sacos de farinha, caixotes, fardos, sacos de café e açúcar. - Ali, o velho Tom os levará. Vão lá e se anunciem. O carreteiro já está informado! Então o carreteiro, já grisalho, acenou para eles. Aproximaram-se rapidamente do carro, dispuseram a malinha de lata e as mochilas e sentaram-se sob o toldo da carreta. 87 IX A luta. Os pinheiros e a mata de erva-mate. A venda do campo. Um reencontro indesejável. Um inimigo oculto. Águas furtadas. Joãozinho é introduzido na nova profissão. O marujo baiano sedento de sangue. Joãozinho quer deixar a redondeza sinistra. Sua amarga saudade do lar........ Passando o carro pelo subúrbio, as casas foram, aos poucos, desaparecendo. A poeirenta estrada conduzia-os ao campo. Cá e lá via-se um bosque na verde paisagem da colina. Os cumes das negras e sérias florestas de pinheiros erguiam-se sombrios no horizonte. O céu estendia-se, cinzento e baixo, sobre o imenso campo onde alguns cavalos e bezerros pastavam. De vez em quando os carros de transporte, que iam um atrás do outro, passavam por quintais isolados e por pequenos lugarejos. Para o descanso do almoço, os carreteiros paravam num bonito gramado, próximo a uma pequena corrente de água. Os cavalos eram desatrelados e rolavam imediatamente, gemendo e fungando, na poeira da estrada ou na grama. Então levantavam-se sacudindo a poeira do pêlo e começavam a pastar nas proximidades. Os carreteiros juntavam lenha seca e acendiam uma fogueira na qual esquentavam o feijão, preparavam o café e fritavam a carne. O velho Tom convidou seus passageiros a comerem com ele. Todos sentaram-se em círculo, ao redor do fogo, e começaram a comer. Antes disso, os carreteiros colocaram milho e palhiço nos cochos de madeira que estavam presos em ambos os lados de cada carro. Com o barulho da comida caindo nos cochos, os cavalos aproximavam-se e tomavam seus lugares para comer. Após duas horas de descanso no campo livre, os cavalos eram novamente atrelados e a viagem continuava. Entretanto, o céu escurecia. Uma forte chuva caía no toldo sob o qual viajavam José Cidral e Joãozinho. A estrada ficava cada vez mais acidentada e confusa, e agora entravam pela mata de pinheiros 88 sob cujos troncos enormes e aprumados brilhava, na chuva, a folhagem verde e suculenta dos pés de mate. Já era noite quando as carretas, que andavam devagar, subiram a última encosta. Via-se, ao pôr do sol, as casas brancas de madeira e os galpões que pertenciam à Casa Branca. A chuva cessara. Os fortes estalos de chicote contribuiam para que, os carros de transporte fizessem um grande ruído no pátio em frente à venda. Diante da comprida casa estendia-se uma grande varanda feita de grossas vigas. À sua frente encontravam-se encaixilhados muitos postes, nos quais se amarravam cavalos selados. Para chegar à varanda precisava-se subir alguns degraus. Na loja, onde tropeiros e habitantes da mata se empurravam, havia três portas duplas abertas. A esta espaçosa loja anexavam-se os escritórios à esquerda, e as salas à direita. De ambos os lados do grande pátio erguiam-se os armazéns, os galpões e os estábulos. Todos eram feitos de tábuas de pinheiros e cobertos com ripas cinzentas também de pinheiro. Um pouco abaixo da estrada, no pasto cercado, ficava o rancho para os tropeiros que pernoitavam ali. Ao redor de uma fogueira vermelha alguns homens acocoravam-se. Eles vinham vender seu mate e fazer compras. Atrás das construções da venda de Casa Branca erguiam-se montanhas recobertas por flores. Do outro lado, estendiam-se também escuras elevações arborizadas. Quando as carretas pararam em frente da venda o patrão da loja, Rodrigo, saiu para o terraço. Olhou atentamente o velho e o garoto que desciam da carreta do velho Tom, pois sabia que o novo pricipiante deveria chegar hoje e receava que o menino da mata não se tornasse um bom aprendiz. José Cidral subiu ao terraço seguido por Joãozinho, e ambos cumprimentaram Rodrigo estendendo-lhe a mão. - O senhor é o patrão da venda? - perguntou o velho Cidral. 89 - Sim! - replicou Rodrigo e seu rosto sério e severo alegrou-se um pouco. - E o senhor é Cidral, o padrinho de João Soares Pilz, meu novo aprendiz, não é? - Tá certo! - concordou o velho Cidral contente. - Aqui está o menino. Oxalá o senhor fique satisfeito com ele! Eu peço que o senhor faça de meu afilhado um bom comerciante. Aqui está para o senhor uma carta de seu patrão, o senhor Bark. Rodrigo pegou a carta e a leu rapidamente, enquanto os carreteiros descarregavam a carga. Então levantou sua robusta figura e chamou com voz de comando: - Salvador, venha cá! Um empregado solícito saiu da loja. Porém, difícil é descrever o espanto do velho Cidral e o susto de Joãozinho, quando reconheceram o mau colega de escola, Salvador, que outrora, na coleta do cipó, pregara uma peça cruel em seu inimigo Joãozinho! Após a briga no fandango Antonio Zerino, Bento Quadra, com Salvador e seu pessoal, haviam desaparecido da região. Agora Joãozinho encontrava-se, aqui em Casa Branca, novamente com seu inimigo. E ele começava a sentir quão sinistra essa região se tornaria para ele. Salvador também reconhecera imediatamente os conterrâneos. Porém, demonstrou tanta alegria e surpresa com o encontro que os recém chegados sentiram que sua desconfiança desaparecia. Talvez o rapaz, após aquela briga, tivesse se regenerado nos últimos anos. Ele cumprimentou os dois conterrâneos com um aperto de mão e palavras amigas e colocou-se, atencioso, diante de seu patrão. - Salvador, disse Rodrigo, - você agora já está meio instruído! Conduza o novo aprendiz para o quarto no sótão e mostrelhe os afazeres que deverá desempenhar. Salvador disse delicadamente - Sim, senhor Rodrigo! - e voltou-se amigavelmente para Joãozinho. Conduziu o menino pela loja e pelo depósito dos fundos até uma estreita escada de madeira que dava no sótão. Por toda parte estavam empilhados caixotes e caixas vazias e cheias, grandes montes de esteiras, apetrechos para sela e sapatos. Entraram num pequeno quarto do lado esquerdo da cumeeira 90 da casa. As paredes do quartinho eram de tábuas velhas e toscas. No canto, algumas tábuas pregadas faziam as vezes de um mesa de parede que tinha como assento um pequeno banco de madeira. Sobre um caixote vazio, no canto em frente, havia uma bacia de lata. Toda a sala estava cheia de teias de aranha e parecia bem pouco confortável e acolhedora. Salvador dirigiu-se para a cumeeira e escancarou uma pequena abertura, para que a luz crepuscular entrasse no recinto. Aqui eu morei por quase dois anos, pois fui seu antecessor, agora sou um autêntico caixeiro e tenho um quarto melhor. Sem dizer uma palavra, Joãozinho colocou sua mala de lata no chão e sua mochila sobre o enxergão. Sentia-se terrivelmente deprimido e triste. Na verdade, não estava acostumado a instalações melhores, mas este quarto parecia-lhe tão abandonado e sinistro que só com muito esforço conseguiu reprimir o choro. Sua casa, onde seus irmãos davam vida ao quartinho simples, onde desde sua infância conhecia cada cantinho, era um paraíso comparado a este lastimável quarto de sótão. Salvador perguntou desembaraçadamente por conhecidos da terra e contou que conseguira um bom emprego aqui em Casa Branca, há dois anos. Então saíram do quarto caminhando ao longo do armazém e entraram no quarto espaçoso de Salvador, mobiliado com mais conforto mas, que pela desordem ali reinante, também não despertava uma impressão mais amável. - Agora, quero lhe mostrar os galpões e os depósitos -, disse Salvador descendo a escada de madeira. Conduziu o novo aprendiz pelo armazém de víveres, que confinava com a venda, e mostrou-lhe também as altas pilhas de sacos com farinha de trigo, mandioca, arroz, café, açúcar, feijão e milho. Numa repartição à parte ficava o depósito de sal. Ali estava o sal grosso que brilhava de tão branco, acumulado até o teto. Do lado, os sacos repletos de sal, como também grandes camadas de toucinho salgado e alguns fardos de carne seca. Depois saíram do depósito e dirigiram-se, atravessando o pátio, para o galpão de erva-mate. Uma tropa de burros acabara de descarregar os cestos com a erva crua e dirigia-se para o rancho. O 91 empregado do galpão de erva-mate, um rapaz amarelo e com uma aparência horrível, queria pôr fim ao trabalho do dia e irritou-se com a visita indesejável. Do seu rosto, de um tom verde-acinzentado pela poeira da erva, destacava-se um brilho no branco dos olhos pérfidos. Os dois garotos deram uma olhada no interior do galpão, e avistaram, no escurecer, grandes montes de chá verde, altas pilhas de cestos cheios e muitos sacos repletos de erva mate. - Vamos saindo! Eu quero fechar o portão! - gritou o trabalhador furioso, enquanto ia empurrando os dois para fora. Cuidado, Jeca! Não seja atrevido! Este aqui é o novo aprendiz, a quem, sob ordem do patrão devo mostrar o galpão de erva, - gritou Salvador para ele. Jeca cuspiu habilmente por cima da cabeça dos dois garotos, virou-se e fechou o portão do galpão, rindo ironicamente. Os dois atravessaram o pátio já quase no escuro. Na venda, brilhavam as luzes amarelas das lamparinas de petróleo. - Esse Jeca Baiano, nosso ensacador de erva-mate, é um cachorro sem vergonha! - resmungou Salvador. - Você viu como ele cuspiu sobre nossas cabeças? O sujeito era marinheiro ou policial e é o arruaceiro mais perigoso de toda a região. Traz no bolso sua navalha de barba, está sempre pronto a rasgar a barriga de alguém. Dizem que ele já matou duas pessoas. Tome cuidado com ele, Joãozinho! Joãozinho estava cada vez mais desanimado. Não, nessa região inquietante ele não queria ficar! Já a companhia de Salvador era-lhe suspeita, apesar de sua aparente amabilidade. E agora, deveria ainda trabalhar e comer na mesma mesa com um assassino. Não, isto o padrinho não poderia exigir dele. Joãozinho preferia ser alvo de risadas em sua terra e continuar a vida inteira sendo camponês. Logo que visse o padrinho, iria dizer-lhe que não ficaria ali de maneira alguma. Amanhã cedinho voltaria com seu padrinho para a terra natal. Os dois jovens atravessaram o grande pátio e entraram no estábulo. Ali estavam doze cavalos puxadores que trituravam e comiam agradavelmente o milho. Numa pequena repartição, ao lado, 92 pateavam dois maravilhosos e esbeltos cavalos de corrida. - Estes são os dois cavalos de corrida do patrão, - disse Salvador. - O patrão mesmo organiza corridas e, nessas ocasiões, aparecem pessoas de todo lugar e nós fazemos bons negócios. A pista fica atrás da encosta, ao lado da estrada. Joãozinho mal ouvia. Em sua mente, as perguntas rolavam incessantemente. Como vou dizer ao padrinho que quero voltar para casa? Quem me garante que vou tornar-me um homem respeitável aqui no meio de arruaceiros e criminosos? Será que também não posso ganhar dinheiro na minha terra? Eles deixaram o estábulo e atravessaram o pomar passando por pessegueiros e macieiras para chegarem numa espaçosa cozinha. Lá fora estava escuro e seus olhos se ofuscaram um pouco com o brilho forte de duas lamparinas dependuradas. Uma negra gorda, chamada Luísa, trabalhava no enorme fogão. Sob as lamparinas, estendia-se uma comprida mesa de comida, em que sentados, em bancos de madeira, os carreteiros, trabalhadores e rapazes jantavam. Havia um conversar e rir altos, quebrados só por um momento, quando Salvador e Joãozinho tomaram seus lugares junto à mesa. - Onde está o padrinho Cidral? Joãozinho perguntou, baixinho, a seu companheiro. - Provavelmente está comendo com o patrão e nem está mais pensando em você! disse Salvador rindo. - Amanhã você terá que se virar sem ele e, depois, para sempre! Porém, assim que terminaram a refeição, Joãozinho foi chamado por um empregado e conduzido à sala de refeições onde Rodrigo os empregados e Cidral já tinham terminado o jantar. A sala era bonita, guarnecida de móveis e cortinas e sobre a comprida mesa havia uma toalha branca. Os três jovens funcionários saíram, um após outro, e deixaram Rodrigo a sós com seus hóspedes. Joãozinho aproximou-se de seu padrinho. Olhou-o com olhos suplicantes e já abria os lábios trêmulos para dizer-lhe que não queria ficar em Casa Branca, quando Rodrigo o chamou: 93 - Venha cá, Joãozinho! - O garoto ouvia hesitante. - Olheme bem nos olhos! - animou-o o patrão. Joãozinho fitou um par de olhos claros e bons, em cujo castanho brilhava humanitarismo e tristeza. Estes olhos mergulharam Joãozinho, examinando-o. O patrão, profundamente na alma de homem jovem, de uns trinta anos, cujas feições só se iluminavam ao falar, disse: - Como o senhor Cidral contou-me, você quer estudar e ganhar dinheiro para tornar-se um homem ilustre e capaz, e poder aliviar a difícil vida de sua mãe e de seus irmãos. Isto é louvável de sua parte, meu filho! Você nunca ficou longe de sua casa e no começo vai sofrer muito com as saudades. - Então, cerre os dentes e mostre que você é um homem! Não deixe que os outros percebam alguma coisa! Pense sempre que seis meses passam depressa. Eu lhe emprestarei um cavalo e você irá visitar sua família. Daqui até sua casa não é muito longe, como a viagem de trem deixou transparecer. Um caminho que passa pela campina conduz ao porto de Guaratuba através da serra. No meio do caminho há um atalho, à esquerda, que vai para a região de Palmital. Em dois dias de viagem intensa você poderá estar em casa. No entanto, o amigo Cidral precisa voltar e passar por Curitiba para pegar o trem porque deixou os cavalos na cidade do porto. - Rodrigo deu ao velho um cigarro e acendeu um para si mesmo. Joãozinho respirou fundo. O sangue subiu-lhe ao rosto. Ele poderia agora envergonhar o padrinho pedindo que o levasse novamente para casa? O que o senhor Rodrigo pensaria dele, depois que o padrinho o elogiara tanto? Pelo menos seis meses ele teria que ficar. Então, quando pudesse ir para casa, para uma visita, poderia dizer à mãe que não queria mais ficar longe deles. Rodrigo olhou para ele e disse: - O Dr. Bark deseja que você adquira aqui mais noções escolares para, um dia, poder preencher, condições para empregos melhores. Você terá, portanto, todas as noites, depois de concluído o trabalho, duas horas de aula particular comigo, desde que você seja aplicado e estudioso. Dependerá só de você progredir mais rapidamente que outros aprendizes. Você quer prometer que se esforçará e que será sempre 94 aplicado, atencioso e, antes de tudo, honesto? - Estendeu-lhe a mão, que Joãozinho segurou e murmurou: - Eu prometo! O velho Cidral acenou com a cabeça, calmamente, como se quisesse dizer: - O que o menino promete, ele cumpre! - Mais uma coisa, - continuou Rodrigo. - O senhor Cidral me contou as peças que o nosso instrutor de aprendiz, Salvador, lhe pregou durante a época da escola. Aqui, você não tem que temê-lo, mesmo que ele seja maior e mais forte que você e que seja ele a ensinar-lhe o trabalho. Você está sob minha proteção. Salvador também não cometeu, aqui, nenhum ato que pudesse comprometê-lo a não ser que gosta de mentir. - Rodrigo jogou a cinza do cigarro e Joãozinho aproximou-se de seu padrinho. - Agora, despeça-se já de seu padrinho! - disse o patrão, pois amanhã quando você se levantar, ele já estará a caminho de Curitiba. - Ele contará para sua mãe que você estará aqui trabalhando para ela e que prometeu tornar-se um homem corajoso. - Todo mês você poderá escrever para ela. Os dois se abraçaram. O velho Cidral procurou esconder sua emoção tossindo, porém Joãozinho não conseguiu mais reprimir seu forte soluçar. Com palavras carinhosas o velho procurou acalmar o garoto. Joãozinho saiu dali chorando e subiu a escada de madeira em direção do sótão, lugar que lhe causava pavor. Uma lanterna iluminava-o com uma luz tênue e fraca que vinha do armazém. 95 X Joãozinho precisa trabalhar árduamente. Os cavalos de montaria. Através do conhecimento da língua alemã ele consegue a colocação de empregado. O armazém de erva-mate. A luta de Joãozinho com seu inimigo. A derrota sangrenta. A capoeira brasileira supera a luta jiu-jitso japonesa... Na manhã seguinte , Joãozinho ao ser acordado com um bater forte na porta do quarto, não sabia bem onde se encontrava. Então, reconheceu a voz de Salvador. - Joãozinho, levante! Para o trabalho! E de repente, com um enorme peso no coração, reconheceu que estava sozinho e abandonado, numa casa estranha, com pessoas estranhas... longe de seu lar. Porém Salvador não lhe deu tempo para meditar. Abriu a porta com um empurrão e gritou impaciente: -Vamos, lave-se e vista-se rápido! O que vai virar isso, se o aprendiz mais novo dormir tanto tempo! O patrão irá estranhar! Em poucos minutos Joãozinho estava pronto e desceu, apressado, para a venda. Salvador mandou-o limpar o assoalho, que estava todo sujo com pontas de cigarro, pedaços de papel e cascas de fruta. Ele precisava buscar água, tirar o pó, colocar as mercadorias em ordem e limpar a balança. Quando os primeiros tropeiros entraram, Salvador sentouse no balcão, balançando as pernas e conversando com os fregueses enquanto, para se fazer de senhor, dava sempre outras ordens ao novo aprendiz. Então, os empregados mais velhos começaram a sair da sala de refeições e dirigiram-se para a loja. Salvador pulou rápido do balcão e começou a trabalhar. O chefe dos caixas, Basílio, rapaz desembaraçado de mais ou menos vinte e cinco anos, bem barbeado e vestido, aceitou amávelmente o cumprimento de Joãozinho: - Veja só nosso novo aprendiz! disse. - Bem, você precisa crescer bastante ainda no ar fresco do planalto! - Então voltou-se para os fregueses. Os outros dois empregados, Vitorino e Carlos, trajavam-se de maneira simples e tinham aproximadamente entre dezenove e vinte 96 anos. Ambos estenderam a mão para Joãozinho e disseram-lhe palavras amáveis. Joãozinho foi mandado para a cozinha tomar café. Naquela manhã ainda não havia comido nada. Porém, mal sentara-se à mesa, comera um pedaço de pão e tomara uma caneca de café, quando Salvador já gritava para dentro da cozinha: - Ande logo! Nós precisamos buscar os cavalos de corrida no pasto! Joãozinho parou de tomar café e acompanhou-o ao quintal. Luísa, a negra gorda, gritou furiosa para fora da janela da cozinha: Dê tempo para que o menino possa tomar café direito! - Salvador ria e conduziu o garoto pelos galpões e estábulos até o pasto, onde os dois cavalos de corrida e o cavalo de montaria dos empregados já vinham ao encontro deles. Os animais foram levados para o estábulo. Enquanto comiam no cocho, Joãozinho tinha que escová-los com a brossa, e Salvador instruía-o em tom de comando, fumando um cigarro sem ajudar no trabalho. - Duas vezes por semana os cavalos de montaria são levados para o bebedouro e lavados! Entendido? Joãozinho mal acabara esse trabalho, quando Salvador já gritava para ele: - Agora para o galpão de sal. Mostrou-lhe como se pesava o sal, como este era despejado nos sacos brancos e costurados. Então mostrou-lhe um depósito de toucinho velho que estava cheio de bichos. Joãozinho deveria, com uma faca e um pedaço de pau, tirar os bichos. Sentiu um nojo terrível mas pegou o trabalho fétido com coragem. Salvador deixou-o sozinho no depósito de sal, pois fora chamado para almoçar. Na cozinha reuniam-se à mesa, novamente, os mesmos camaradas. Logo após a refeição Joãozinho recebeu novas instruções de trabalho. Foi com muito cansaço que, após esse primeiro dia de aprendizagem, recolheu-se para dormir. Também nos dias seguintes Joãozinho era impelido por Salvador de um serviço para outro. O feijão, o milho ou as batatas precisavam ser ensacados, o couro cru tinha que ser arrastado para o celeiro; o estábulo tinha que ser lavado; o sótão arrumado e limpo. No pomar, Salvador gostava de fazer o novo aprendiz trabalhar sob o sol 97 mais quente do dia. Ali Joãozinho tinha que cavar, capinar, adubar as plantas. Nessas ocasiões, Salvador procurava uma sombra e fumava. Por isso Joãozinho trabalhava, com ódio do antigo companheiro de escola. Porém, essa perseguição no trabalho era um bom remédio para a saudade que o agitava. Assim, não tinha tempo para refletir e remoer-se, pois à noite estava sempre tão cansado que, freqüentemente, seus olhos se fechavam durante as aulas particulares com Rodrigo. Então, o "professor" o mandava dormir sem ministrarlhe a aula. Joãozinho aborrecia-se com o fato de que Salvador não o deixava entrar na venda quando havia fregueses. Tinha que fazer apenas os serviços sujos. Joãozinho, contudo, gostava de se demorar na venda, ali onde era fresco, e adoraria ajudar a vender. Dos empregados, apenas Vitorino se preocupava com o novo aprendiz e o animava com palavras amáveis. Mas para ele, Joãozinho não queria queixar-se de Salvador. Um dia apareceram colonos poloneses que queriam estabelecer-se na região. Eles compreendiam apenas polonês ou alemão. Como na loja todos só entendiam o português, não sabiam o que fazer com os polacos. Então, Basílio, o chefe de pessoal, lembrouse que o novo aprendiz fora aceito sob a condição expressa de saber falar alemão. - Mas onde que esse menino se meteu? Por que a gente não o vê aqui na venda? - gritou. Joãozinho foi chamado. Veio suando, do pomar. Basílio gritou com ele: - Você deve ajudar aqui na venda, e não ficar brincando lá fora. - Agora, mostre que você entende alemão e atenda esses colonos! Joãozinho estava muito feliz e se esforçava para compreender os novos fregueses e servi-los bem. Porém, quando os colonos saíram com suas compras e Salvador o mandou de volta para o pomar, Vitorino deu-lhe secretamente um conselho. O garoto reuniu suas forças e entrou no escritório, onde o patrão e Basílio estavam sentados junto à suas escrivaninhas. Ele ficou parado na porta e admirava tanto a máquina de escrever que Rodrigo olhou e sorria com o rosto abobalhado do menino. - Então, o que você quer aqui? perguntou. Joãozinho contou-lhe, em poucas palavras, que ele nunca 98 podia ficar na loja, que era usado apenas para fazer os serviços pesados e que, por isso, à noite ele estava sempre cansado para as aulas. Nas primeiras semanas ele acreditava que teria que aprender a fazer esses serviços sujos, mas Salvador, de propósito, não o deixava entrar na venda... Rodrigo ouvia atentamente e mandou chamar Salvador.Escute, disse, - o novo aprendiz já conhece agora todos os serviços com os quais sujamos as mãos. A partir de agora, ele deverá se ocupar da venda. Os serviços engordurados o peão poderá fazer. Só que, se na hora da necessidade faltar pessoal todos vocês terão que ajudar. Joãozinho pediu para continuar a cuidar dos cavalos de montaria, o que lhe foi concedido. Também gostava de trabalhar no pomar, quando não estava tão quente, acrescentou. O patrão alegrava-se com isso. Os dois aprendizes deixaram então o escritório. Quando estavam na venda, Salvador olhou ao redor cuidadosamente. Então esfuziou furioso para Joãozinho: - Você me difamou junto ao patrão! Espere, essa você me paga! Pelo conhecimento da língua alemã, a presença de Joãozinho tornava-se cada vez mais imprescindível na venda. A região estava sendo povoada por colonos que não sabiam ainda falar o português. E, por outro lado, os carreteiros também gostavam de falar alemão. Salvador invejava o novo aprendiz pelas suas noções de língua, que lhe davam preponderância sobre os outros empregados como Vitorino e Carlos. Sua hostilidade contra o garoto era ainda atiçada pela inveja. Esse garoto tinha, todas as noites, aulas particulares com o patrão. Esse Joãozinho tinha que estar sempre em seu caminho? Por que o patrão não dava aulas para ele, o instrutor de aprendiz? Tudo isso levava a crer que Joãozinho logo teria um emprego melhor. Salvador espumava de ódio, quando pensava que Joãozinho poderia passar-lhe à frente e, talvez ser ainda seu superior. Não, isto nunca mais poderia suceder! Pensou, então, em pedir conselho a seu irmão Antônio Zerino que trabalhava com mate nas proximidades. 99 Entretanto, procurava intimidar o rival com todos os golpes imagináveis para prejudicá-lo no emprego. Escolhia os trabalhos mais difíceis para Joãozinho e trabalhava junto com ele para que este não se recusasse. Porém, por fora, mostrava-se companheiro e amável para com ele, principalmente quando outros podiam ouvi-los. Joãozinho não deixava que Salvador o desconcertasse. Trabalhava de manhã à noite sem parar, não temia trabalhos pesados e preocupava-se principalmente com a venda que trazia tão limpa a ponto de chamar a atenção do patrão. A partir do dia em que Joãozinho não precisou mais pegar tanto no trabalho pesado, sentiu-se mais disposto para as aulas particulares. Aprendia com mais facilidade e fazia progressos. Aos poucos, reconhecia quão pouco aprendera lá na escola da mata. Assim, passsaram-se os três primeiros meses longe de casa e transcorreram mais depressa do que a princípio ele imaginara. Mas, mesmo assim, contava as semanas e meses que ainda faltavam até que pudesse fazer a visita à família, como lhe fora prometido. Um dia o galpão de mate estava repleto, pois ultimamente, muitas tropas trouxeram mate das matas. Agora vinham os carreteiros em grande número, para levar o chá ensacado até Curitiba. Porém, sem ajuda, trabalhadores do depósito não conseguiam atender as exigências. Então, os dois aprendizes foram mandados, pelo patrão, ao depósito de mate para auxiliar na costura dos sacos que já estavam cheios. Salvador andava amuado. Ele já se sentia como caixa, de quem não se poderia mais exigir serviços poeirentos. Com o rosto transfigurado pela ira foi até o depósito onde Joãozinho, cuidadosamente, costurava um saco de erva mate. Quando, com negligência, finalmente começou a ajudar na costura, entre os trabalhadores e carreteiros no depósito empoeirado, resmungou, maldições a meia voz. Então começou a ocupar-se de um saco de mate que estava ao lado de Joãozinho. Este, sem querer, bateu-lhe com o cotovelo na cabeça. Imediatamente, Salvador deu um soco tão forte na nuca de Joãozinho, que este caiu de cabeça para baixo no meio do chá que estava ainda por ser ensacado. Todos os 100 trabalhadores caíram em altas risadas. Salvador era o que mais se divertia. Todo aquele riso irritou o orgulho de Joãozinho. Assim, saltou rapidamente, arremessou-se contra o adversário e aplicou-lhe um soco tão violento que Salvador, não esperando por aquela reação do menino, caiu desastradamente com a cabeça no meio dos sacos de mate, e as pernas agitando-se no ar. A risada dos empoeirados companheiros era estrondosa, principalmente a de Jeca, o baiano que se curvava de tanto prazer. Porém, mal Salvador se levantara, já pulava, vermelho de cólera, sobre Joãozinho, a fim de castigá-lo. Agora chegara o momento de mostrar ao garotinho quem era o mestre ali. Contudo a coisa não era tão simples como imaginara. Agarrou Joãozinho pela barriga. No instante seguinte, os dois lutadores rolavam na poeira do mate. Joãozinho defendia-se valentemente apesar de ser mais fraco que seu adversário. Numa luta violenta de murros e socos, os dois brigavam, enfurecidos, em cima dos chão, levantavam-se e verdes montes de erva-mate. Caíam no atarracavam-se de joelhos. Os outros trabalhadores acompanhavam a luta com gritos e berros animados, pois isso os encantava. Contudo, Salvador finalmente conseguira dominar o garoto já sem fôlego. Com olhos vermelhos e furiosos olhava para o menino que estava debaixo dele e ajoelhou-se sobre o peito que arfava. Com a mão esquerda apertava o pescoço de Joãozinho enquanto, com o punho direito, batia em seu rosto que ia inchando e pegando uma tonalidade azulada. Quando o nariz do menino começou a sangrar, Jeca, o baiano, aproximou-se e arrancou o furioso Salvador de cima de sua vítima e lançou-o num canto: - Agora chega! -, gritou em tom ameaçador, - deixe o menino em paz! Salvador, lançando um olhar irônico para o menino que sangrava, voltou para seu trabalho. Joãozinho saiu para lavar o sangue que escorria. Conseguiu reter as lágrimas com muito esforço. Aquele choro preso na garganta teimava em explodir. Mas Joãozinho cerrava os dentes, como o patrão lhe ensinara, pois queria mostrar que era homem e que não se lamentaria por sair machucado de um briga. Os outros não deveriam perceber quão profundamente a derrota o afligia e quão 101 vulnerável a saudade do lar o tornava. Depois de lavar seus ferimentos no riacho, voltou para o depósito de mate e trabalhou silenciosamente ao lado do outro. Seu rosto estava muito inchado e doía muito. Salvador arrumou um pretexto para não se ocupar por mais tempo com aquele serviço sujo no depósito. Uma hora antes de terminar o dia de trabalho, deixou seu lugar e saiu. Para satisfação de Joãozinho, ouvia que Jeca e alguns dos presentes não falavam bem de Salvador. Contavam como o rapaz, freqüentemente, destratava os carteiros e os trabalhadores. Quando chegou a hora de comer, todos saíram do depósito,com exceção de Joãozinho e Jeca Baiano, que tiveram que varrer o lugar. De repente, Jeca guardou sua vassoura e disse para Joãozinho: - Agora, preste atenção! Salvador vai pegar você logo, logo, de novo. - Ele é mais forte que você. Mas, você é mais ágil. Eu quero lhe ajudar. - Vou-lhe ensinar a lutar capoeira e pegar as principais manhas. Joãozinho moreno. olhava desconfiado para o rapaz baixo e Mas encontrou um olhar, que, apesar de parecer pérfido, refletia astúcia e amabilidade para com ele. E o antigo marujo da Bahia mostrou-lhe então, como poderia pegar um adversário, e quando teria que desviar-se dele. Ensinou-lhe como escapar do adversário com a cabeça abaixada, como abalroá-lo com a cabeça no baixo-ventre, como atirar-se oportunamente no chão, ficar de cócoras enquanto o adversário tropeça sobre a gente ou tenta inutilmente agarrar-nos no ar. Como, também, com um rápido manejo atingimos o jarrete do adversário, derrubando-o, ou quando colocamos uma perna na sua frente. Ele saltava de um lado para outro diante de Joãozinho, mostrando-lhe tudo. Então era a vez de Joãozinho tentar mostrar os truques que o baiano lhe mostrara, aplicando-os neste. Joãozinho , que na época da escola já gostava de lutar com outros meninos, mostrou-se tão hábil que o baiano, entusiasmado, deixou-o exercitar tudo de novo. Os dois, com seus saltos e lutas, nem perceberam que escurecera, até que ouviram a voz estridente da gorda Luísa chamando: - Jeca, Joãozinho, onde vocês estão? Quem não vem, não come! Você estão pensando que eu sou palhaça? 102 Também nas noites seguintes, sempre se achava uma meia horinha que o baiano aproveitava para treinar seu aluno na arte brasileira da capoeira. Ao mesmo tempo, instigava-o a não tolerar nada da parte Salvador. Dizia ao garoto: - A arte brasileira de luta supera a inglesa, a americana e a japonesa. Em São Paulo, um simples lutador de capoeira, sem noções desportivas, derrotou três vezes um famoso lutador francês em campeonato público. Os jornais trouxeram, há pouco, notícias entusiásticas sobre essa luta, que causara preocupação no mundo do esporte. Mais tarde, este mesmo lutador de capoeira bateu, com sua arte brasileira, um lutador japonês de jiujitsu. - Ha, ha, ha, sim, nós brasileiros superamos os outros. Dia após dia, Joãozinho ganhava em força e habilidade. Após o dia o trabalho ia, às furtadelas, ao depósito de mate para medir forças com o baiano na luta brasileira. A comida forte, o ar seco e saudável do planalto, como também os esforços diários com os cavalos de corrida, ajudavam no fortalecimento dos músculos de Joãozinho e desenvolviam-lhe sua agilidade. 103 XI De como Joãozinho imagina sua volta para casa. O inventário e o balanço na venda. Joãozinho resiste a uma tentação. Um domingo na venda do campo. As corridas de cavalos são combinadas. O cachola e o bacará. Dois recentes e desagradáveis conhecidos preocupam Joãozinho: o segundo ringue..... Os dois aprendizes não deixavam transparecer o quanto se odiavam. Na presença de outros eram amáveis entre si. Porém, Joãozinho estava sempre atento a Salvador. Percebia como este, pelas suas costas, procurava ridicularizá-lo perante os fregueses. Às vezes, quando estava ocupado arrumando as estantes de tecido e, portanto, de costas para os fregueses, ouvia suas altas gargalhadas. Quando se virava rapidamente, via ainda as caretas que Salvador lhe fazia e, então, agia como se estivesse com dor de dente. Aí, sim, é que os fregueses davam boas risadas. Isto o irritava profundamente. Ele não queria ser alvo de piada para outros. Mas, como poderia obrigar seu inimigo a parar com tais maldades? O trabalho diário, a raiva e as muitas silenciosas lágrimas de saudade faziam passar as semanas e os meses. O dia em que Joãozinho poderia selar o cavalo e ir para casa aproximava-se cada vez mais. Oh, ir para casa, ver a mãe... chegava a doer-lhe o peito, quando pensava nisso! Ver sua Maria, Margarida, Pedro e Francisco! Oh, não dava para imaginar! Rever a bela Anita e seus pais, o padrinho e sua bondosa mulher, Valente e o papagaio, e todos aqueles lugares familiares em casa e no jardim... tudo se misturava numa lembrança feliz. Como Valente saltaria sobre ele, uivando de alegria! E como Jacó assobiaria no seu poleiro, batendo com as asas e tagarelando: Louuco! Forraa! Pão! Quanto mais o dia se aproximava, tanto mais os pensamentos de Joãozinho se ocupavam da viagem. Escrevera duas cartas para casa, porém não recebera nenhuma resposta. À noite, antes de adormecer, rezava pela mãe e pelos irmãos e imaginava sua alegria, quando voltasse para casa. Com muita 104 economia, conseguira guardar uma quantia de mais de cem mil-réis. Como a mãe se surpreenderia, quando Joãozinho colocasse todo esse dinheiro em suas mãos! Ele via claramente os olhos escuros e brilhantes de sua mãe. Alguns dias antes da partida de Joãozinho, veio uma ordem do Dr. Bark para Rodrigo começar o balanço desse ano imediatamente, pois estavam previstas mudanças nos negócios. A notícia se espalhou rapidamente entre os empregados e trabalhadores. Salvador não conseguiu disfarçar a satisfação ao comunicar a Joãozinho que poderia, provavelmente, esquecer sua viagem para casa. - No balanço - disse ele - todos os empregados têm que trabalhar dobrado. Ao lado do trabalho diário normal, como atender à freguesia, comprar, pesar, ensacar, carregar o mate, milho, fumo, o feijão e os couros, ainda toda a provisão de víveres tem que ser pesada, todas as peças de tecido medidas, todos os objetos têm que ser contados, até os botões e agulhas. Tudo é anotado certinho e calculado. É um trabalho terrível e ainda aproveita-se para fazer um boa limpeza em tudo. Ele espreitava o menino que empalidecera muito, com visível tristeza. - Você não precisa esperar pelo balanço - continuou amavelmente. - Eu, no seu lugar diria: - Foi-me prometida uma visita para casa após seis meses de trabalho, e eu vou. - Eles precisam deixar você viajar, acredite nisso! Eles costumam manter a palavra. Continue firme com a idéia e não se deixe persuadir! Certamente, sua mãe está esperando você! - Bateu-lhe nos ombros amigavelmente e foi para o trabalho. Joãozinho também aproximou-se do balcão para atender os colonos que entravam. Porém, estava perturbado. Pensamentos penosos ocupavam-lhe a mente. O que deveria fazer, se o patrão o intimasse para ficar? Abriu obstinadamente os lábios. Queria insistir em sua viagem. Salvador tinha razão: eles tinham que manter sua promessa! Tanto o Dr. Bark como o senhor Rodrigo prometeram-lhe isso. Então tinham que mantê-la, pois sua mãe esperava por ele. Salvador, que já terminara seu trabalho, aproximou-se dele. 105 - Não amoleça. Não se deixe convencer! Um balanço assim pode demorar alguns meses. - E quem sabe o que poderá acontecer então? Daí você não poderá ir de jeito nenhum! Nessa mesma noite, quando Joãozinho estava no escritório do patrão fazendo uma tarefa escrita, Rodrigo começou a falar com voz séria: - Nestes dias vamos começar nosso balanço, que antes era feito no final do ano. Para esse trabalho precisamos de todos. Precisamos muito de você também. Nessa oportunidade você poderá de conhecer todas as mercadorias e seus preços, treinar-se nos cálculos e, acima de tudo, aprender uma das funções mais importantes de um comerciante, que é o balanço de produtos. - Ele tirou um cigarro do estojo, bateu-o nos dedos e acendeu-o. Joãozinho olhava calado para seu caderno. Parecia que tinham-lhe cravado uma faca no peito. Ele deveria pedir ao patrão para adiar sua viagem para casa até o término do balanço? Mas, e a mãe! Ela esperava por ele. E se não fosse agora, outros contratempos poderiam surgir. E, talvez, não pudesse sair de maneira alguma. Ficar firme, era o que Salvador lhe conselhara. Rodrigo aproximou-se dele. - Você pode viajar e deixar-nos aqui sozinhos com o trabalho, pois você tem minha palavra. E eu mantenho minha palavra. Mas, se você se oferecer voluntariamente para ficar e ajudar até o final do balanço e, só então, fazer sua viagem, levarei isto muito em conta, pois sei o quanto será difícil para você. Em contrapartida, prolongarei suas férias... - O balanço demora muito? - perguntou Joãozinho hesitante. Em seu rosto sincero Rodrigo podia ler a difícil luta, entre a obrigação e a saudade, que se travava no interior do menino. - Pelo menos seis semanas, até que você possa viajar, respondeu Rodrigo. Então acrescentou suavemente: - Há momentos na vida das pessoas em que se debatem entre o cumprimento do dever e a diversão. Porém, quem negligencia a obrigação não consegue mais sentir a verdadeira alegria, ao preferir a diversão. Joãozinho continuava sua luta interior. Mas fora acostumado, desde pequeno, a cumprir seu dever. Já pressentia que se fosse abandonar 106 os colegas agora e viajar, não teria muito prazer nisso. Então, era cerrar os dentes e fazer o que era, nesse caso, sua obrigação! - Eu só vou viajar quando o balanço estiver pronto!, disse em voz alta. - Você está agindo certo! - disse Rodrigo, alegre. - Você não vai se arrepender! Escreva já uma carta para sua mãe. Pode escrevê-la aqui mesmo na mesa. As aulas precisarão parar até sua volta, pois durante o balanço não há tempo para mais nada. No dia seguinte, ao comunicar sua decisão aos outros, Salvador aproximou-se dele e disse-lhe em voz baixa: - Seu burro! Porém, o balanço começara. Quando se estava justamente pesando uma pilha de sacos cheios de víveres, chegavam tropeiros que precisavam ser atendidos primeiro. Uma interrupção atrás da outra. Os trabalhos diários e os fregueses exigiam tempo. E, assim, o balanço estendeu-se por semanas. Joãozinho ajudava assiduamente, quando terminava de limpar a loja e cuidar dos cavalos de corrida. Num domingo de manhã, no meio do trabalho, chegou um grupo de cavaleiros diante da venda. Rodrigo saiu pessoalmente ao terraço para cumprimentar os recém-chegados que faziam parte de seus melhores fregueses. Eram os três irmãos Cruz, abastados fazendeiros, que possuíam grandes rebanhos de gado e muitos campos de mate. Estavam acompanhados por alguns outros fazendeiros e moradores vizinhos. Todos estavam no terraço e examinavam o novo cavalo de corrida de Joaquim da Cruz, um magnífico cavalo branco acinzentado, quando Joãozinho se aproximou montado no cavalo negro, o melhor cavalo de corrida de seu patrão. O cavalo estava úmido do banho e Joãozinho cavalgava-o num trote elegante para deixá-lo secar. O pêlo preto do nobre e fogoso animal brilhava no sol da manhã. Todos olharam com prazer para o cavalo ligeiro, que o menino segurava tão bem pelas rédeas, seu vigoroso pescoço com a crina negra que caía soberba e as pernas fortes que saracoteavam. Joaquim da Cruz sabia que seu novo cavalo de montaria era um bom corredor, que já ganhara muitas corridas. Ele viera com seus irmãos até Casa Branca 107 para induzir Rodrigo a uma corrida que, pensava, certamente ganharia. - Seu cavalo morzelo está em boas condições -, disse para Rodrigo, que secretamente se alegrava com os bons cuidados que Joãozinho dispensava ao cavalo. - Mas contra o meu novo cavalo o senhor não se arriscaria, hem? - No rosto sério de Rodrigo oscilava um riso manhoso. - Isso depende! replicou. - Quais são as condições? Começou uma conversa confusa e excitante. Entraram na venda falando e rindo, todos ao mesmo tempo. Joaquim da Cruz pediu cerveja para todos. Quando Joãozinho, após cuidar dos cavalos, entrou na venda, o ambiente estava muito animado e já estavam tratando da corrida. Depois do muito falar, foi ajustada a aposta. Pela aparência de Rodrigo, ele a fechara com boas condições. A corrida deveria ser dentro de dois meses, por ocasião da festa da igreja no lugarejo vizinho. Durante estes dois meses, os cavalos de corrida poderiam ser exercitados e treinados. A venda vinha se enchendo, aos poucos, com os fregueses de domingo, que vinham, parte a pé e parte a cavalo, das matas de erva-mate e dos campos próximos. Eles se misturavam aos fazendeiros no comprido balcão, bebendo vinho, cerveja ou pinga, fumando, cuspindo, e ouvindo curiosamente. Alguns davam palpite nas negociações da próxima corrida, pela qual havia um visível interesse coletivo. Joãozinho ajudava os outros empregados a atender os fregueses, dos quais alguns faziam compras e outros pediam sardinha com pão. De repente, surpreendeu-se. Daquele grupo apinhado de pessoas, diante dele destacou-se um rosto conhecido que se debruçou sobre o balcão sorrindo ironicamente para ele. - Você não me conhece mais, Joãozinho? - Bento Quadra! - disse Joãozinho, controlando seu espanto. - Sim, sou eu, - ria o ruivo, - e aqui está mais um conhecido... - Antonio Zerino saiu da multidão com seu rosto terrível e amarelo. Seu olhar vesgo e duro fixou-se em Joãozinho. Ambos estenderam a mão sobre o balcão para cumprimentar o menino, 108 amavelmente. Parecia que se alegravam em encontrar um conterrâneo por ali. - Estamos aqui no planalto, com Salvador, e somos agora quatro camponeses da planície de Palmital. Precisamos nos manter unidos! Um precisa ajudar o outro! Então podemos conseguir muitas coisas! - Olhava interrogativamente para Joãozinho. Este acenou mecanicamente com a cabeça mas nem pensava sobre aquilo que diziam. Apenas um grande mal-estar tomava conta dele, quando olhava aqueles dois sujeitos. Já sabia há muito tempo, através de Salvador, que eles ajudavam na colheita da erva-mate do "Major" Silva, ali da região. Bento Quadra aproximou-se do balcão, colocou alguns sacos brancos sobre ele e curvou-se para falar em voz baixa com Joãozinho. Ele não queria que as pessoas que estavam ali percebessem e ouvissem o que pretendia de Joãozinho. - Eu preciso de alguns mantimentos, duas camisas, um chapéu e um par de sapatos. Veja as coisas e anote a importância no livro. Eu pago quando tiver dinheiro. Meu sobrinho, Antonio Zerino, também quer comprar fiado alguma coisa. Joãozinho coçou a cabeça. Ele só poderia vender fiado para os fregueses que o patrão designasse. Então sussurrou: - Preciso perguntar primeiro ao patrão. -Besteira- resmungou Bento Quadra. -Quem muito pergunta tem muitas respostas. Nós somos pessoas corretas e trabalhamos na região. Você nos conhece, Joãozinho, você sabe que nós não vamos fugir, mas pagar tudo honestamente. - Olhou para seu sobrinho Salvador que tinha outros fregueses para atender. Por um instante, Salvador veio até eles. - Você pode vender fiado para meu pessoal. Eles vão pagar dentro de duas semanas, sussurrou. - Mas eu prefiro perguntar primeiro ao senhor Basílio, respondeu Joãozinho embaraçado. - Não é necessário! disse Salvador irritado, - dê os mantimentos sob minha responsabilidade. Então isso, deixou-os e voltou a atender os fregueses que esperavam por ele. 109 Joãozinho atendeu primeiro Bento Quadra e, depois, seu sobrinho Antonio Zerino, anotando tudo no caderno de rascunho. Acrescentou ainda uma observação: - Pôr na conta de Salvador, com sua ordem! Nesse meio tempo aumentara ainda mais o tumulto na venda. Muitas apostas tinham-se realizado. Muitos apostavam no cavalo branco, outros no cavalo morzelo. Desafios engraçados saíam de um grupo para outro. Um burburinho enchia o ambiente. Rodrigo teve que convidar para o almoço os irmãos Cruz e alguns fazendeiros vizinhos, enquanto os outros continuavam a vociferar e a beber. Alguns jovens estavam lá fora, no pátio, brincando com pedaços de pau e moedas que, juntos, atiravam para cima. Se a moeda caísse do lado do brasão gritavam "Cruz!" e, caso contrário, berravam "Chapa!" Grandes somas eram apostadas nesse jogo, chamado "Cachola". Os grupos que jogavam cartas estavam sentados no chão, onde o barulho e a exaltação imperavam. Freqüentemente, nesses jogos apostava-se dinheiro, o que desencadeava brigas violentas, onde a faca e a pistola eram imprescindíveis. Nesse domingo tudo transcorreu sem derramamento de sangue. Porém, o balanço não progredira nem um pouco. Na manhã seguinte Joãozinho estava no estábulo, escovando os cavalos de montaria, quando Salvador entrou e disse irado: - Você escreveu naquele caderno de rascunho, junto com as compras de meus parentes, "Com ordem e garantia de Salvador". Isso não era necessário. Você vai apagar isso, entendeu? - Não! - disse Joãozinho resistindo: - Vai ficar escrito! E se você apagar eu escrevo de novo, pois você se responsabilizou. - Mentira!, - gritou Salvador, furioso, e aproximou-se ameaçador. - Você é um mentiroso! - gritou Joãozinho para ele. No mesmo instante, Salvador levantou a mão para dar-lhe uma forte bofetada. Porém, antes que sua mão tocasse na cara de Joãozinho, este se abaixara e a mão de Salvador bateu com toda a 110 força contra a viga. - Ai, que dor! - gritou, pulando numa perna só, e apertando a mão na boca. Isso provocou em Joãozinho um acesso de riso. Então Salvador esqueceu momentaneamente sua dor e atirou-se com ódio sobre ele. Suas mãos procuravam-lhe o pescoço e gritava ofegante: Agora vai passar sua vontade de rir, seu pilantra!... - Graças às aulas de aprendizagem com o baiano, Joãozinho livrou-se agilmente daquele ataque ameaçador e alcançou a porta. Pulou para fora rapidamente e escapou pelo pátio dando longos saltos até o depósito de mate em cuja porta Jeca Baiano aparecera. Joãozinho, com medo daquele furioso que corria atrás dele, procurou escapar entrando no depósito. Já sentia a respiração quente de Salvador em sua nuca e já se via, em pensamento, atirado ao chão e espancado. Então percebeu, assustado, que Jeca Baiano dava-lhe um sinal. Compreendeu imediatamente o professor e, no meio da corrida, deixou-se cair de joelhos, ao mesmo tempo abaixando a cabeça na terra. Nesse instante Salvador, furioso, tropeçou sobre o obstáculo inesperado e voou sobre as costas de Joãozinho, caindo na areia. Como um relâmpago, Joãozinho pulou nas costas de Salvador que estava estendido e apertou seu rosto na terra, com toda a força. Você quer paz ou briga? - gritou para ele. - Salvador pediu paz, humildemente, para poder levantar-se. Os espectadores, que estavam na porta aberta do depósito, ficaram em profundo silêncio. Jeca Baiano olhava triunfante para os trabalhadores. Salvador, mal se vira livre da opressão de Joãozinho, e novamente em pé, atirou-se furioso contra ele. Julgava poder humilhar novamente aquele adversário fraco, como há algumas semanas no depósito de mate. Não sabia que Joãozinho, desde aquele dia, tivera um mestre e um tempo de treino na arte baiana, a capoeira. Daí, ele pegar pesado e descuidadamente no adversário. Este escapou de seu braço com uma rápida abaixada. Salvador, com as mãos estendidas continuou cambaleando mais alguns passos. Antes que pudesse procurar pelo adversário, este aproximou-se com a cabeça baixa, abalroando-o tão violentamente no ventre que prostou no chão. 111 Imediatamente o vencedor atirou-se sobre o vencido, batendo-lhe energicamente com os punhos, para castigá-lo. Quando Salvador gemeu pedindo misericórdia, Joãozinho soltou o rapaz, do qual escorria sangue pelo nariz e pela boca. De longe, Salvador ameaçava e gritava: - Nós vamos acertar as contas, seu cão danado! Mas Jeca Baiano caiu numa grande gargalhada. - Muito bem! Parabéns, Joãozinho! - gritou. - Agora ele vai lhe dar sossego! Você é melhor que ele! 112 XII A preparação para a volta ao lar. Os presentes e as economias. A cavalgada pela floresta e montanhas. O assalto dos ladrões. Joãozinho em risco de vida. Uma boa lembrança na hora certa. O alojamento noturno. O segundo assalto... Após esse duelo, por muitos dias Salvador não falou, nem uma palavra com Joãozinho, e mostrou-lhe declaradamente o ódio que sentia. Agora,finalmente, Joãozinho não era mais incomodado por ele com as alusões, os trabalhos desagradáveis que lhe impunha e suas caretas. - É melhor uma inimizade declarada do que uma falsa amizade- pensava e dava-se por satisfeito. Contudo, quanto mais o fim do balanço se aproximava e conseqüentemente a viagem de Joãozinho para casa, tanto mais Salvador começava a sentir-se satisfeito, e até parecia ter esquecido a derrota. Aos poucos tornavase novamente amável com Joãozinho e gracejava com ele. Às vezes até comentava quão feliz a mãe e os irmãos de Joãozinho ficariam quando ele chegasse para visitá-los. Que alvoroço seria, quão feliz então se sentiria o visitante. Com essa conversa, o rosto de Joãozinho resplandecia. Ele não poderia mais odiar Salvador, pois o dia da viagem estava cada vez mais próximo. Contudo, mais uma vez, teve que duvidar da sinceridade de Salvador. Três dias antes do dia determinado, o rapaz pediu inesperadamente dois dias de férias. Segundo ele, precisava, incondicionalmente, visitar seu irmão Antônio Zerino e o tio Bento Quadra. Os dois trabalhavam numa floresta de erva-mate, de um fazendeiro. Entretanto, prometera voltar pontualmente para que Joãozinho pudesse viajar. Este suspeitava de mais uma maldade de Salvador, para frustrar sua viagem ao lar. Também seu amigo secreto, Jeca Baiano, farejava alguma perfídia do rapaz. Todavia, Salvador voltou depois de dois dias e Joãozinho pôde preparar sua viagem. Na noite antes da partida, comprou presentes na loja. Escolheu bonitos lenços para a mãe e as irmãs e também alguns adornos e sabonetes. Para os irmãos escolhera bons 113 canivetes. Para o padrinho Cidral, levava um cachimbo de madeira dura e escura. O cachimbo, de tubo grosso e retilíneo, tinha a forma de uma pequena pistola. Ele sabia que, com este presente, daria uma grande alegria ao padrinho Cidral. Para Anita e seu mestre também escolhera algumas lembranças. Arrumou tudo na mochila, com o coração feliz. Apenas o cachimbo colocara no bolso da calça. O patrão chamou-o ao escritório. Joãozinho atendeu o chamado, pois sabia que agora receberia seu dinheiro economizado. Quando fechou a porta de vidro atrás de si, e entrou no quarto do patrão, Salvador plantou-se junto à porta para escutar. Rodrigo conversou amigavelmente com Joãozinho e deulhe cento e sessenta mil-réis em muitas notas. - Veja, - disse sorrindo, - quanto dinheiro você economizou nesses nove meses e ainda está levando presentes para casa. O que você vai fazer com esse dinheiro? Os olhos de Joãozinho brilharam. - Esse dinheiro é da minha mãe. Ela poderá comprar uma vaca leiteira! - disse feliz. Oh, ele imaginava a grande alegria da mãe quando colocasse, de uma só vez, tanto dinheiro em suas mãos! Rodrigo sorria: - Como cavalo de montaria você pode pegar meu rosilho, pois sei que você cuidará bem do animal, e montar você aprendeu aqui. - O animal é ligeiro e um pouco medroso. Agora, para nossa corrida, você já estará de volta. Salvador deverá montar o cavalo morzelo na corrida. Você acha que ele monta bem? Joãozinho respondeu afirmativamente. Salvador já montara muitas vezes em corridas. Os dois garotos, às vezes, colocavam o Naturalmente, rosilho o último para correr sempre contra ganhava o cavalo quando morzelo. montado por Salvador. - Agora vá descansar e procure dormir um pouco -, disse Rodrigo. - Mas, quero explicar-lhe mais uma vez o percurso que você terá que fazer através de uma trilha deserta para poder chegar direitinho em casa. Joãozinho ouvia e gravava todas as particularidades. Então, despediu-se e agradeceu ao patrão. 114 Assim que Salvador ouviu tudo, afastou-se do canto onde espreitava. Joãozinho ainda despediu-se de todos os empregados e foi para seu quarto no sótão. Em virtude da feliz agitação não conseguia pegar no sono. Às duas horas da madrugada, levantou-se silenciosamente e foi buscar o rosilho no pasto para levá-lo ao estábulo. Às quatro horas da manhã estava cavalgando pela mata adentro. A negra Luísa dera-lhe um saquinho com passoca de carne de frango que daria para dois dias. Ao nascer do sol, acabara a estrada na mata e Joãozinho começava a cavalgar na verde campina livre, cuja grama brilhava como prata no sol da manhã. Aqui e lá levantavam-se, em pequenas colinas verdes escuros bosquinhos que eram chamados capões. O céu e recobria-se com um véu de nuvens brancas e leves. Um bando de papagaios verdes voava grasnando alegremente de um capão para outro. Rosilho andava ligeiro e Joãozinho não precisava incitá-lo. Assim que levantava a mão com o chicote, já o animal disparava como uma flecha. Quando passava por uma fazenda ou alguma casa, Joãozinho deixava a rédea solta para que o cavalo troteasse e saltasse, como os cavaleiros treinados o faziam. Sua alma estava feliz e os pensamentos corriam à sua frente. Voltava a imaginar os rostos felizes dos irmãos e da mãe, quando tirasse os presentes da mochila. Colocou a mão para trás, para ver se a mochila ainda estava lá. Então apalpou o bolso da calça onde guardava o grosso cachimbo de madeira do padrinho Cidral. Na mochila, o cachimbo poderia se quebrar-se. Assim, continuou cavalgando até que o sol lhe apontasse a hora do almoço. Joãozinho tirou a sela do cavalo, junto à um riacho rumorejante, e amarrou-o na corda para pastar. Esticou-se na grama sob a sombra de uma frondosa sapupema, ao lado da água refrescante, e fez sua refeição. Depois de uma hora de descanso, continuou a viagem. As colônias ficavam cada vez mais raras. Saindo da campina livre, ele se embrenhava agora nas vegetações selvagens. O caminho tornava-se estreito e acidentado. Grandes pedaços de rochas 115 negras saíam da terra. Troncos de árvores carbonizados e definhados estendiam seus galhos secos no ar nebuloso. Durante longo tempo não se passava por nenhuma casa. Sombras escuras de montes negros surgiam, saindo da névoa. O garoto começou a sentir medo. Mas este caminho pela mata encurtava a distância para casa. A viagem, passando por Curitiba e depois de trem até a planície, custaria muito dinheiro e levaria muito tempo. O que poderia acontecer-lhe aqui nesse lugar solitário? Não se ouviam sons humanos e provavelmente também não haveria animais selvagens. O atalho conduzia novamente para a densa floresta. A neblina sumia. À frente, estendiam-se altas montanhas e ouvia-se o barulho de água caindo. A trilha, em alguns trechos, tornava-se acidentada e conduzia lentamente morro abaixo. O cavalo conseguia andar apenas cuidadosamente. Joãozinho percebia que estava passando pela serra. Rodrigo dissera-lhe que só chegaria à morada do velho Cordeiro ao cair da noite. Ali deveria pernoitar. Então o velho Cordeiro, um freguês de Casa Branca, lhe mostraria, na manhã seguinte, o caminho à esquerda, descendo por um barranco, que conduzia para a planície de Palmital. O dia findava quando Joãozinho entrou numa espessa mata de bambu, cujos os tubos quebravam-se sob os cascos do cavalo. O caminho estava meio escuro sob os arqueados bambus que cercavam o cavaleiro por todos os lados. De repente, Joãozinho avistou, para seu grande espanto, algo deslizando à sua frente. Não seriam duas figuras suspeitas que estavam ali se arrastando pelo bambuzal? Joãozinho sentia que o coração parava de bater por instantes. Será que eram ladrões que queriam roubar-lhe o dinheiro ganho com tanto sacrifício? Ou até mesmo atentar contra sua vida? - Querido Deus, me ajude! - pedia Joãozinho. O cavalo espantou-se. No mesmo instante saíram do bambuzal duas figuras disfarçadas. Seus rostos tinham sido escurecidos com ferrugem. Um deles, que tinha um pano preto 116 amarrado diante dos olhos, pulou sobre as rédeas do cavalo, fazendoo parar. O outro ficou ao lado de Joãozinho ameaçando-o com um pedaço de pau. Disfarçando a voz, os dois resmungaram: - Passe o dinheiro ou você morre! O menino estava pálido de susto e tremia. - Sim, eu dou o dinheiro a vocês, mas não me façam mal. - Eu quero ir ver minha mãe! Uma dor indescritível cortava-lhe o coração, porque agora não poderia mais levar o dinheiro para sua mãe comprar a vaca leiteira. Pôs a mão no bolso onde tinha amarrado o dinheiro. Então, seus dedos trêmulos apalparam o cachimbo e imediatamente recordou-se da estória que o mestre da escola da mata uma vez lhe contara. Com uma inspiração repentina, arrancou do bolso o cachimbo, que parecia uma pistola, e debruçando-se para a frente, apontou o cano do cachimbo no rosto daquele que segurava o cavalo e gritou como um desesperado: - Solte! Eu atiro! - Com mil demônios, ele tem uma pistola, - gritou o homem saltando para o lado. Com um rápido movimento de braços Joãozinho passou a imitação de pistola diante dos olhos do cavalo,fazendo com que se assustasse e disparasse deixando os dois sujeitos para trás. Tudo isso aconteceu tão depressa que Joãozinho nem tivera tempo para pensar. Com a rédea solta, o cavalo assustado passou por bambus e matagais, sempre morro abaixo, até que o cavaleiro conseguiu fazê-lo parar diante da morada do velho Cordeiro. A humilde cabana do velho Cordeiro ficava na encruzilhada onde, à esquerda, estava o caminho que Joãozinho deveria tomar. Já escurecia quando desceu do trêmulo cavalo. As pessoas da mata, que o conheciam como empregado da venda de Casa Branca, receberam-no com hospitalidade. Porém perceberam, pelo seu modo excitado, que alguma coisa ruim acontecera-lhe no caminho. Depois que o jovem hóspede comera e bebera alguma coisa, perguntaram-lhe pelo ocorrido. Joãozinho contou-lhes do assalto e como se livrara dos ladrões, com o cachimbo que parecia uma pistola e pela rapidez de seu cavalo. 117 O velho Cordeiro e sua mulher balançavam a cabeça espantados e, assim mesmo, riram do engano dos ladrões. - Aqui, nesse deserto, não há nada para roubar, - disse o homem, pensativo. - Têm que ser sujeitos que já sabiam que você passaria com dinheiro por essa região deserta! Eles falaram ainda por muito tempo sobre o assalto e se divertiram com os ladrões que correram de um cachimbo. Porém, lá fora, estavam duas figuras disfarçadas que, na escuridão da noite, seguiram o cavaleiro. Espreitavam através das fendas de palmito e ouviam como eram motivo de escárnio. Logo desapareceram, morro abaixo, no barranco atrás da morada do velho Cordeiro. Na manhã seguinte, Joãozinho aprontou-se ao raiar do dia e partiu. Quando agradeceu ao velho Cordeiro e sua mulher pela hospitalidade, o velho aproximou-se com uma pequena pistola e disse: - A pistola está carregada com chumbo. Leve-a! A gente nunca sabe o que pode ainda lhe acontecer! Ao passar pelo escuro barranco atrás da cabana do Cordeiro, Joãozinho sentiu medo. Enfiou no cinto a pistola, pronta para atirar. Atirar, aprendera ainda pequeno, quando acompanhava seus irmãos pela floresta. O vento da manhã sussurrava sinistramente na mata escura. Na parte mais profunda da garganta da mata, a trilha estava lamacenta. O cavalo caminhava lentamente. Então, a trilha conduziu novamente morro acima. O cavalo arrebitou as orelhas e fungou. Como que saindo da terra apareceram no caminho, de repente, os dois sujeitos disfarçados. Como um raio, o cavalo virou-se, tentando voltar em disparada. No mesmo momento, um dos dois ladrões saltou e segurou pelas rédeas o animal que fungava ferozmente. O outro aproximou-se com um salto e gritou: - Desça do cavalo e passe o dinheiro! Joãozinho arrancou a pequena pistola do velho Cordeiro do cinto. Com o dedo no gatilho gritou, rouco de medo e preocupação: Solte! Vou abrir fogo! 118 Os dois sujeitos puseram-se a rir ironicamente: - O cachimbo não vai lhe ajudar pela segunda vez, seu mocinho! Passe o dinheiro! Um tiro saiu da pistola. Os grãos de chumbo voaram no rosto daquele que segurava o cavalo. Com um grito de dor, pôs-se em fuga. O cavalo disparou a galope morro acima, na direção da cabana do Cordeiro. Antes que Joãozinho chegasse à cabana, encontrou o velho Cordeiro e sua mulher que, ao ouvirem o tiro, saíram para ajudá-lo. O homem estava armado com uma espingarda e sua mulher com uma foice. Joãozinho, em sua companhia, cavalgou até o local do assalto. Nesse ínterim, já a alvorada se instaurara. Encontraram no caminho apenas um lenço ensanguentado e uma pista de sangue, que conduzia mata adentro. Os dois velhos aconselharam ao garoto, que continuasse sua viagem. Joãozinho deixou que lhe carregassem a pistola novamente e despediu-se, pela segunda vez, dos dois velhos. No caminho, meditou bastante. A voz do ladrão, que ficara a seu lado, lembrava-lhe Bento Quadra. Será que ele ficara sabendo de sua viagem para casa através de Salvador e combinara o assalto com Antônio Zerino? O outro sujeito não escondera os olhos? Talvez quisesse apenas ocultar seu olhar vesgo. 119 XIII A capela da mata. Joãozinho agradece a Deus pela sua salvação milagrosa. Avista-se o lar. O que Anita vai dizer? A alegria do professor da mata, o júbilo da mãe e dos irmãos. A concretização de um profundo desejo da mãe. Joãozinho vive um momento inesquecível. Jacó, o papagaio, e "Valente". O cumprimento dos padrinhos. A alegria na terra natal... Joãozinho cavalgou durante muitas horas até chegar novamente a uma região mais movimentada. A serra ficara atrás dele. No final da tarde, reconheceu a capela da colina, que não ficava muito longe da casa do professor da mata. Cavalgou morro acima, desceu do cavalo e entrou naquele recinto sagrado para agradecer a Deus por ter-se salvado da tocaia. Naquela região, o pastor ia apenas duas vezes ao ano para realizar o culto na pequena capela de madeira. Por isso, Joãozinho viera poucas vezes à igreja, quando pequeno. Logo Joãozinho prosseguiu a viagem. Aos poucos, o caminho conduzia ao trecho conhecido que levava para sua casa. Cavalgava pelo trecho em que passara quando partira. Agora via o telhado da escola e seu coração começou a bater com muita força. Será que Bento Damásio se alegraria ao vê-lo? O que Anita diria? Ao aproximar-se, ouviu o som monótono dos alunos que liam o alfabeto em voz alta. Ressoava como o canto uniforme dos macacos da floresta. Num rápido galope, avançou até a porta aberta da escola. O barulho da leitura monótona cessou de repente. Porém, no momento seguinte já se ouvia um zumbido como de um enxame de abelhas. Todos os alunos levantarando e empurravam o professor até a porta. O velho Bento Damásio arregalou os olhos ao ver seu antigo aluno: - Olá, é o Joãozinho, ou eu não estou enxergando direito? De onde você vem, assim tão de repente? - Há muito tempo que sua mãe espera por você. Mas, desça e deixe-me dar-lhe um abraço!- Bento Damásio sorria mas, ao mesmo tempo, estava tão emocionado que parecia querer chorar. Para disfarçar sua comoção 120 dirigiu-se para a porta interna da casa e chamou: - Oh, mãe, Anita! Venham ver quem chegou! Joãozinho descera do cavalo e abraçou seu velho professor diante da porta. Então Anita apareceu, e Joãozinho foi depressa ao seu encontro. Como ela estava bonita com seus cabelos pretos encaracolados! Sorria para ele, e ambos estenderam as mãos olhandose nos olhos, cheios de contentamento. Ela achou que ele crescera muito e que estava com uma aparência sadia. - Isso é o ar saudável do planalto, - disse Bento Damásio. Como seus alunos estavam todos de pé ali, ele aproveitou para explicar que o Brasil era um país feliz, pois possuía diversos climas, um perto do outro. Assim, com um dia de viagem poderia sair-se de um clima tropical para um mais temperado, isto é, da planície para a serra. Então mandou os alunos, que olhavam embasbacados, de volta para a sala e passou-lhes atividades afim de entretê-los. Joãozinho foi levado para a sala de estar, onde foi servido de comida e bebida. Durante a refeição perguntou pela mãe e pelos irmãos, recebendo uma resposta satisfatória, pois todos estavam bem de saúde. Joãozinho teve que contar todas as novidades, respondendo a muitas perguntas. Até sobre o assalto que sofrera no caminho, e o cachimbo que fizera as vezes de uma pistola, teve que relatar para seu antigo mestre. Ao ouvir essa estória, Bento Damásio ria muito e lembrou-se de, uma vez, ter lido uma estória parecida para Joãozinho. E no momento do perigo Joãozinho, inconscientemente, se recordara da estória, o que salvou. - Pra você, tudo sempre acaba bem. Você continua sendo ainda o Joãozinho Felizardo! - disse rindo o professor. Depois de descansar uma hora, o garoto montou seu imponente cavalo e saiu dali, admirado pelos alunos da escola. Antes de partir, dera os pequenos presentes à Anita e a seus pais, que agradeceram muito pela lembrança. Seu coração batia forte e feliz por estar cavalgando pelo velho caminho que levava à escola, caminho que fizera diariamente durante quatro anos, com o Mico. Cada 121 arbusto, cada riacho, cada árvore, as casas e as montanhas, as encruzilhadas, tudo parecia dizer-lhe: -Você está novamente em sua terra! Pedestres e cavaleiros que encontrava cumprimentavam-no como a um velho conhecido. A alguns teve que apertar a mão. Todos olhavam para ele admirando sua boa roupa e o belo cavalo. Joãozinho sentia-se muito importante. Finalmente, seu cavalo cruzou a grande figueira da estrada, pela qual passara há nove meses, com o padrinho, em direção a um mundo desconhecido. Agora, eram apenas alguns passos até a casa da mãe. Assim, soltou as rédeas do cavalo. Já estava escuro quando viu o frontão do telhado escurecido pela plantação. Desceu silenciosamente do cavalo e o conduziu pelas rédeas. Ele queria aproximar-se secretamente para surpreender sua família. O coração batia violentamente de felicidade. Quando estava mais perto da casa, ouviu vozes e viu um clarão de luz que saía da cozinha. Joãozinho amarrou o cavalo no tronco de uma laranjeira e arrastou-se, no escuro, ao longo da parede da casa até chegar à da cozinha, de onde pôde espreitar o interior através dos troncos de palmito. Então, o cachorro fez um grande barulho na cozinha e começou a uivar. Francisco e Pedro saíram do paiol e tentaram acalmá-lo, pois acharam que o cachorro tivesse farejado um animal selvagem. Joãozinho via a mãe lá dentro, iluminada pela chama do fogão. Ele achava que ela ouviria o bater de seu coração pela parede de palmito. A mãe levantara a cabeça, com o barulho e o uivar de Valente, olhando para Margarida que trabalhava a seu lado. - Toda vez que o cachorro faz esse barulho, eu tenho que me lembrar do meu Joãozinho. Ah, se esse menino voltasse para casa... Lá fora, junto à parede da cozinha ressoou um grito inarticulado, meio de choro, meio de alegria. - Joãozinho! - gritou estridentemente a mulher, indo para fora. Logo, mãe e filho abraçavam-se fortemente. Margarida e Maria, 122 com gritos de alegria, seguiram a mãe, no escuro, para poder abraçar o irmão. Francisco e Pedro juntaram-se a elas, gritando de contentamento. E Valente arrastava sua corrente uivando e latindo como louco. Joãozinho foi conduzido jubiloso para a cozinha, abraçado por todos. A mãe derramou lágrimas silenciosas de felicidade e Maria não queria mais soltar o irmão que voltara. Finalmente, os irmãos saíram para desencilhar e tratar do rosilho. Podiam ouvir-se as palavras de admiração deles pela sela e pelo cavalo. Margarida tinha que servir a refeição. Durante o jantar, Joãozinho quase não teve descanso, pois precisava responder às intermináveis perguntas. - Deixem-no comer primeiro! - interrompia a mãe e olhava para seu filho mais novo com olhos brilhantes. Ele estava sentado à mesa como um rei que voltava, vitorioso, de uma batalha. Os olhos de seus familiares brilhavam durante seu relato. Após a refeição, buscou a mochila e distribuiu os presentes. Todos alegraram-se tanto que seria impossível descrever! A mãe olhava com olhos cintilantes para o filho que presenteava a todos tão ricamente. No meio do regozijo, Joãozinho perguntou de repente: Vocês já conseguiram uma vaca leiteira? Vocês sempre falavam disso antigamente. Pedro e Francisco riram e fizeram um movimento com os dedos, de quem está contando dinheiro, dizendo: - Ainda falta muito disso! - E Margarida disse amargamente: - Nós nunca vamos conseguir reunir tanto dinheiro, pois sempre surgem outras despesas. - Uma boa vaca leiteira custa pelo menos cento e cinqüenta mil-réis. A mãe balançava a cabeça e suspirou: - Sim, eu desejo há muito tempo uma boa vaca leiteira. Mas, o dinheiro nunca é suficiente! Joãozinho pôs a mão no bolso da calça, tirou o lenço onde embrulhara o dinheiro e tirou-o. Aproximou-se rapidamente da mãe, ajoelhou-se diante dela e colocou três belas notas de cinqüenta milréis em seu colo. Sua voz quase sumiu: - Aqui, você tem o dinheiro para comprar a vaca, minha mãezinha! 123 Fez-se um grande silêncio. Por um momento, pôde-se ouvir nitidamente o cantar de milhares de grilos lá fora, na mata. Todos ficaram pasmos de espanto e felicidade. A mãe colocou as mãos no rosto e chorou. Há muito tempo que nutria esse sonho, agora realizado por Joãozinho. Os irmãos davam gritos de prazer. Todos acercaram-se da mãe e expressaram sua felicidade. Maria, por exemplo, dançava ao redor da sala e cantarolava: - Uma vaca, uma vaquinha colorida, uma vaquinha de leite! A mãe acabou rindo por entre lágrimas, e colocou a mão sobre a cabeça de Joãozinho. De seus olhos caíram lágrimas de contentamento e perguntou: - Você ganhou todo esse dinheiro nesses nove meses e de maneira honesta? Joãozinho respondeu com voz um pouco presa: - Sim, mãe! Eu sempre economizei para que pudesse lhe dar esta alegria. Então, a mãe puxou aquele menino crescido para seu colo, como fazia quando Joãozinho era pequeno, e apertou-o junto ao peito beijando-o. Este foi o momento mais belo na vida de Joãozinho, e toda a saudade, o árduo trabalho, suas preocupações desvaneceram-se diante desse momento feliz. Confuso, desceu do colo da mãe e saiu para ver o fiel Valente que uivava. Com um grande salto, Valente foi ao seu encontro, e comportando-se como louco quando Joãozinho começou a falar e a acariciá-lo. Ele pulava em Joãozinho e tentava lamber-lhe o rosto e as mãos, uivando e latindo muito. Sua felicidade não tinha limites, mas chamaram Joãozinho para dentro. O padrinho Cidral e sua mulher tinham vindo visitá-lo. Eles souberam de sua chegada por vizinhos que o encontraram no caminho, e queriam vê-lo. Joãozinho entrou e abraçou seu padrinho que, orgulhoso, olhava para o rapaz. Então começaram as perguntas que Joãozinho ia respondendo, até que presenteou a madrinha com o lenço de pescoço e o padrinho com o cachimbo. Os dois velhos estavam emocionados e alegraram-se sinceramente com a atenção de Joãozinho. Agora Joãozinho contou a estória do assalto e de sua salvação pelo cachimbo 124 que parecia uma pistola. Também falou de sua suspeita sobre Salvador e seus parentes Bento Quadra e Antonio Zerino. Então, a mãe ficou com medo. Assustada, pousou os olhos no menino que escapara, por milagre, do grande perigo. Um arrepio percorria-lhe o corpo, quando pensava na viagem de volta de seu filho. Ela pediu ao padrinho Cidral que acompanhasse o filho até Casa Branca, com o que este, após refletir um pouco, concordou. Então, radiante de felicidade mostrou-lhe o dinheiro que Joãozinho economizara para que ela pudesse comprar a vaca leiteira. O velho arregalou os olhos: - Vejam! Isto realmente me alegra! Vocês estão vendo como foi bom levar o menino para a região montanhosa?... Um dia ainda ele vai me agradecer quando for homem adulto! - Olhava orgulhosamente para sua mulher. O menino podia alegrar-se em ter um padrinho assim. Ficaram todos conversando por muito tempo e separaramse só depois da meia-noite. Estar em casa! Como os dias passaram depressa para Joãozinho. A mãe preparava seus pratos prediletos e o mimava Maria não saía de seu lado o dia todo, e todos procuravam fazer-lhe um agrado. Ele brincava com o papagaio, com o Valente e com o gato. Foi ver os porcos, o quintal e todos os seus lugares preferidos na mata e atrás da casa. Foi passear com o Mico e visitou o mestre da escola e sua família. Também conversava por longas horas com Anita. Enquanto isso, os irmãos compraram, do rico senhor Gomes, uma excelente vaca leiteira. Foi uma gritaria e risadas quando a vaca malhada entrou no quintal com seu bezerrinho. Todos ficaram ao redor da mãe, quando ela começou a tirar o leite da vaca que comia vagarosamente o capim que Pedro e Francisco trouxeram. Depois que a mãe enchera um grande balde de leite espumante, deixaram que o bezerro mamasse, pois ele também deveria ter sua parte. A vaca leiteira revelou-se logo um animal lucrativo, pois dava tanto leite que podiam vender manteiga e queijo na venda. Além disso, o estrume do estábulo servia como esterco para a plantação que, assim, produzia mais. 125 XIV O retorno à loja de Casa Branca. A preparação dos cavalos de corrida. A pista. O erro de Joãozinho: ele deve pagar para outros. Ele cai em desgraça junto ao patrão. A serraria na mata de pinheiros. O mate-chimarrão. A cuia e a bomba... Joãozinho retornara à Casa Branca em companhia do padrinho. Todos o cumprimentaram amavelmente; até Salvador veio ao seu encontro, tão alegre e despreocupado que Joãozinho chegou a duvidar se não fora injusto em sua suspeita. Porém, não comentou nada sobre o assalto. Contudo, o velho Cidral relatou a Rodrigo o perigo pelo qual Joãozinho passara e sua suspeita em relação aos dois parentes de Salvador. Rodrigo balançou a cabeça, pois acreditava que os dois ladrões disfarçados poderiam ser quaisquer vagabundos, como há tantos por aí, em toda parte. Para ele, não se deveria desconfiar dos parentes de Salvador sem saber algo de mais concreto. Na manhã seguinte o velho Cidral voltou para casa. Joãozinho procurava lutar contra a saudade, aprofundando-se no trabalho. Na loja, entre os empregados, o assunto principal era a corrida de cavalos que se aproximava. Também não se falava de outra coisa que não fosse o carreiramento, durante as refeições, nos depósitos, no estábulo ou no trabalho. Rodrigo chamou o conhecido treinador de cavalos João das Neves, e seu filho, para prepararem seu cavalo para a corrida. Com uma alimentação apropriada, um massagear diário dos músculos, banhos pontuais, fricções e cavalgadas, os músculos e os tendões do cavalo eram fortalecidos. A água e a gordura desnecessárias eram retiradas do corpo dos animais através desse processo e sua força e agilidade aumentavam dia após dia. Os dois treinadores guardavam os animais a eles confiados, dia e noite, tanto no estábulo como no pasto. Segundo eles, há pessoas maldosas que, por terem apostado seu 126 dinheiro no cavalo adversário, poderiam, então, colocar alguma coisa na comida do cavalo morzelo de Rodrigo para enfraquecê-lo. Como cavaleiro da corrida Rodrigo escolhera o robusto e flexível Salvador, no qual depositava absoluta confiança nessa arte. Diariamente, em horas pré determinadas, ele ia ter com o cavalo, e levava-o sem sela até a pista, para deixá-lo galopar ali muitas vezes. Após algum tempo, Joãozinho recebeu do patrão o encargo de participar da galopada com o rosilho, a fim de estimular a rivalidade entre os cavalos. Isto era um grande divertimento para os rapazes. Os cavalos saíam do estábulo saracoteando e dirigiam-se para o livre e amplo gramado, que ficava atrás da venda, do outro lado da estrada. Rodrigo e o treinador João das Neves seguiam a pé, pois a pista não era muito longe dali. Lá em cima, no começo da pista de terra negra encravada entre o campo verde, os dois rapazes conseguiam, com muito sacrifício, refrear seus fungantes e fogosos animais. Deixavam que os animais dessem o arranque de saída para, depois de alguns saltos, fazê-los retornar. Com isso, os animais se tornariam flexíveis e prontos para a partida, pois devido à pequena extensão da pista, o que importava era o salto de partida do cavalo. Após repetir muitas vezes o exercício, João das Neves soltou um grito estridente, que era o sinal para os dois cavaleiros deixarem seus cavalos disparar. Ouviam-se gritos e barulho de chicotadas no ar para acelerar o percurso dos animais na pista. As coxas comprimiam-se no corpo esbelto do cavalo, os cabelos da crina voavam ao vento, com os saltos os flancos dos animais sem ferradura, eram secretamente incitados. Lá em baixo, no final da pista, os cavalos passavam correndo muito além da demarcação, até que os rapazes quisessem fazê-los parar. Nestes ensaios, o cavalo morzelo revelou-se muito superior ao rosilho, que também era cavalo de corrida. Com isso, Rodrigo estava muito seguro da vitória e aceitava qualquer aposta. Quanto mais o dia da corrida se aproximava, mais nervoso ficava a comunidade da região. Ali não havia nenhuma pessoa, por mais pobre que fosse, que não apostara, provavelmente, quase dois mil-réis em seu cavalo preferido. E Salvador, como os outros 127 empregados, apostara suas economias no fogoso cavalo morzelo, pois a vitória deste era quase certa. A agitação tornou-se, no final, tão visível, que o trabalho foi deixado de lado. Rodrigo julgou necessário advertir seus empregados a não abandonarem suas obrigações por causa da corrida Uma tarde Joãozinho foi chamado ao escritório. Rodrigo colocou diante dele o caderno de rascunho com um gesto violento e uma expressão sombria, remungando: - Você vendeu fiado a dois fregueses, sem perguntar a mim ou ao senhor Basílio, como era sua obrigação. - Por que você menospreza minhas ordens? -Como você pôde vender fiado para vagabundos como Bento Quadra e Antonio Zerino? Joãozinho gaguejou uma explicação e referiu-se a Salvador. Rodrigo não deixou nem que ele terminasse e acrescentou furioso: - Quem entregou a mercadoria? - Quem anotou a importância no caderno de rascunho, você ou Salvador?...Não empurre sempre a culpa para os outros, isto não é papel de homem. - Eu proíbo você, pela última vez, de vender fiado sem minha autorização. Se a dívida dos dois não fôr paga até o final do mês; então será descontado de seu ordenado. Entendido?... Agora volte ao trabalho! A porta do escritório bateu com força atrás de Joãozinho. O rapaz entrou na loja profundamente abatido, e Salvador, novamente trabalhando perto da porta, esforçou-se para dissimular sua alegria maliciosa! Joãozinho não se afligia apenas com o possível prejuízo de dinheiro mas, muito mais, com a maneira dura com que o patrão o tratara. Será que alguém o difamara para o patrão? Aproximou-se irritado de Salvador: - Quando o seu pessoal vai pagar o que está devendo aqui? - Agora eu que vou ter que assumir o que você endossou! - Não tenha medo! - disse Salvador rindo maliciosamente. - Eles vão fazer a colheita do mate para os colonos poloneses, que não entendem nada de mate. Em alguns dias, a erva estará pronta. Eles virão aqui para pegar a sacaria. Quando a erva estiver aqui, você desconta a dívida. 128 Joãozinho respirou aliviado. Realmente, após alguns dias, Bento Quadra e Antonio Zerino apareceram na loja. Quando Joãozinho olhou para seus rostos sinistros, lembrou-se imediatamente do assalto. Todavia, os dois sujeitos pareciam muito despreocupados e cumprimentaram-no como sempre. Bento Quadra tinha, na verdade, algumas cicatrizes e manchas vermelhas no rosto escuro. Joãozinho perguntou sobre isso e recebeu como resposta que ele tivera varíola, daí as manchas no rosto. Também desculpou-se pela longa ausência, culpando a doença. Disse que Antônio cuidou dele mais de um mês até que pudesse voltar ao trabalho. Porém Joãozinho pensava: as cicatrizes são resultado dos grãos de chumbo, e durante esse mês, Bento Quadra devia estar fazendo curativos! Hoje, os dois queriam levar vinte sacos grandes e bons para colocar o mate que trariam, no domingo, para vender em Casa Branca. A dívida poderia ser então descontada. Antes que Joãozinho lhes desse os sacos vazios, foi ao escritório e pediu autorização a Basílio. Este pensou por um instante e disse: - Esses sujeitos provavelmente venderão a erva-mate em outra venda. Mas Salvador é parente deles e eles, possivelmente, trarão a erva. Dê-lhes os sacos, mas pergunte-lhes quando a erva estará pronta, pois podemos emprestar os sacos apenas por alguns dias. Joãozinho conversou com os dois que lhe explicaram, com detalhes, onde trabalhavam na mata e quando pensavam em trazer a erva mate. Então partiram com dois grandes pacotes de sacos novos. Joãozinho via-os partir com o coração pesado. À noitinha, Joãozinho foi ao depósito de mate, onde trabalhava seu amigo Jeca Baiano. Este, assobiando varria o depósito e seu rosto amarelo-escuro estava verde acinzentado do pó de mate. Os olhos negros destacavam-se sinistramente do rosto escuro. Quando Joãozinho entrou no depósito, jogou longe a vassoura e, ao mesmo tempo, estendeu uma perna na frente do rapaz para que este tropeçasse. Imediatamente Joãozinho parou o ataque com um salto de lado, com o qual atingiu o baiano nas costas. Ambos riram. Mas 129 Joãozinho não estava disposto a lutar. Contou ao baiano sua preocupação e receio de que os dois vigaristas não pagassem a dívida e também não troxessem de volta os sacos de mate. Ele teria todo o prejuízo e, ainda por cima, a ira do patrão contra si. Jeca Baiano limpou a poeira verde do rosto amarelado com mão peluda, cuspiu longe, pensativamente, e mascou um pedaço de fumo de corda. - Quando eles pretendem estar prontos com o mate? perguntou depois que deu uma boa cuspida. Joãozinho contou que queriam trazer o mate domingo. A tropa do velho Silva transportaria o carregamento. Jeca Baiano refletiu por um tempo e disse: - Você tem que ficar de olho neles até domingo. Vá ao senhor Basílio e explique-lhe que você gostaria de buscar pessoalmente o mate, que está em nossa sacaria, porque você não confia naqueles sujeitos. Você pede permissão para ir até lá, já na sexta-feira de tarde. Eu vou sábado à tarde com nossos dez burros e um ajudante. E no domingo de manhã nós traremos a erva para cá. Joãozinho hesitou: - Os sujeitos poderiam ficar furiosos e fazer-me algum mal? - Não tenha medo - tranqüilizou-o o baiano. - Se você for com ordem do patrão e explicar-lhes que você gostaria de conhecer a produção de mate na mata e, assim, aproveitar para acompanhar a erva até nosso depósito, eles não poderão arrumar nenhuma desculpa. E também não lhe farão nenhum mal pois teriam que se ver com o patrão, que é comissário de polícia aqui. Joãozinho seguiu o conselho do baiano e recebeu permissão de Basílio para, já na sexta-feira, pôr-se a caminho da fazenda de poloneses. Basílio dizia para os outros empregados que Joãozinho fora à fazenda dos Lima executar uma ordem. Joãozinho cavalgou pelo campo de grama amarelada pela última geada e onde passavam também as carretas. Aqui, nas montanhas, sentia-se mais o inverno do que na quente planície. Pela manhã campo estava, freqüentemente, coberto de geada, cujos cristais de gelo cintilavam ao sol matutino. As copas das árvores 130 estavam sem cor. Algumas derrubavam todas as folhas como a macieira, o pessegueiro, a pereira e a ameixeira. A trilha entrava agora numa sombria floresta de pinheiros, tão aprumados para o céu que pareciam sublimes colunas de um templo. As copas rasas, em forma de guarda-chuva, erguiam-se no ar, sérias e festivas, com suas pontiagudas cristas verde-escuro. Um sussurrar parecido com o de um órgão ressoava pela floresta. Nos íngremes troncos dos pinheiros pululavam brotos de samambaias imensas com seus troncos felpudos, samambaias menores, taquaras, amoreiras, cactos, abacaxis selvagens, araçás e outros rebentos. Cá e lá havia um cedro nodoso, uma enorme imbuia, uma tarumã ou canela. Porém, por toda parte, vislumbravam-se os finos troncos cinzentos dos pés de mate, cuja folhagem verde suculenta parece-se com a da laranjeira. A noite aproximava-se, quando Joãozinho chegou à casa do velho Lima. O velho estava sentado na varanda de madeira e sugava mate quente de um recipiente em forma de abóbora. Ele insistiu muito até que Joãozinho desceu do cavalo e aceitou um chimarrão. O velho despejava água fervente da chaleira na cuia cheia de folhinhas do chá verde. Para experimentar, ele deu algumas puxadas pelo caninho prateado, a bombilha, e passou, então, a cuia e a bombilha para Joãozinho. Este bebia cuidadosamente aquela estimulante bebida quente e amarga. Depois que esvaziou algumas cuias, o velho Lima mostrou-lhe o caminho que o levaria à serraria dos colonos poloneses e, dali, para a plantação de mate. Após meia hora de cavalgada, Joãozinho ouviu o rumorejar do rio do moinho e um sibilar e ofegar apressados da serra. Cavalgou até o galpão aberto, onde funcionava a serraria. A grande roda de madeira girava rangendo sob o choque do grande volume d'água. Ligada a essa roda d'água, girava, lá dentro, uma roda motriz que mantinha a serra em movimento. Um tronco de pinheiro descascado, de quatro metros, movia-se sobre a armação, em direção aos rápidos dentes da serra onde era cortado em forma de tábuas. Havia grandes pilhas de tábuas e pranchões por toda parte. Muitas pessoas trabalhavam por ali, e 131 uma carreta puxada por quatro animais trazia uma nova remessa de pinheiros. Joãozinho teve que descer do cavalo e gritar alto para que pudesse ser entendido no meio daquele barulho. O polonês ficou desconfiado quando soube dos propósitos de Joãozinho. Mas, mesmo assim, explicou o caminho que deveria tomar para chegar à plantação de mate-carijo. Seguindo o conselho, Joãozinho desencilhou o cavalo e levou-o ao pasto, pois na mata o animal poderia escapar-lhe. Seria melhor que fizesse a pé o trecho que restava. 132 XV A sinistra massa intransponível da mata à noite. O inverno brasileiro nas montanhas. Joãozinho descobre um complô e recua furtivamente. As matas de erva-mate do Paraná e as matas de borracha do Pará. Como é produzido o mate bruto? Um mate-carijo. Barbaquá, congoinha e caúna. O churrasco de paca... Entretanto já era quase escuro. Joãozinho caminhava com muito medo para dentro da sombria mata. Estava mais propenso a dar meia volta e pedir pousada ao polonês do que prosseguir, porém dizia para si mesmo que isto seria covardia e, ainda por cima, uma negligência de sua obrigação. Se não vigiasse aqueles dois fregueses suspeitos durante a noite, eles poderiam carregar o mate já pronto e levá-lo para uma outra venda, e ele teria o prejuízo e o escárnio dos colegas. Em conseqüência, seu patrão ainda questionaria muito seu talento para negócios. Portanto, adiante! O caminho conduzia-o através de um sinistro taquaral sussurrante. O rapaz assustava-se com cada rangido ou estalido do bambu que se quebrava. Um galho que estava dependurado gemia com o vento. Uma coruja saiu voando de seu esconderijo, com um grito dissonante. Aos poucos ia esfriando e escurecendo na mata. As estrelas cintilavam sobre a folhagem da mata como se também estivessem tremendo de frio. Morcegos deslizavam ao redor da cabeça do rapaz, que mal enxergava vestígios do estreito caminho. Caminhando, aos poucos ia novamente se aquecendo. Procurava, com pensamentos positivos, estimular sua coragem que esmorecera. O que poderia acontecer-lhe? Ele viera, como empregado da firma, para cumprir uma tarefa. Eles não poderiam fazê-lo desaparecer sem deixar pistas, pois todo mundo sabia que tinha vindo ao encontro dos dois apanhadores de erva no carijo. Exigir-se-ia que prestassem contas, se atentassem contra a vida dele. E finalmente... esticou seus jovens braços musculosos... ele era um homem e não um covarde! Em frente! 133 Joãozinho logo avistou as chamas vermelhas de uma fogueira dentro da mata. Ficou parado por um instante para reunir todas as forças antes de surpreender os trabalhadores suspeitos, ali no carijo. Ouviu, de repente, altas vozes de uma conversa perto de onde estava. Os dois homens deviam estar ali, ao lado dele, na mata. Não estavam na claridade da fogueira e agora não perceberam a aproximação de Joãozinho. Também não suspeitavam que, ainda ao cair da noite, aparecesse um visitante. Conversavam sem nenhum cuidado. Joãozinho queria anunciar sua presença com um cumprimento, quando uma frase perceptível da conversa deles fez com que se calasse. Agora, ouvia assustado o que os dois homes discutiam, protegidos no escuro da mata de bambus. - Mas Salvador é realmente capaz de reter, aos poucos, o morzelo na corrida, sem causar suspeita? A voz do interrogador soava conhecida ao rapaz. - Lógico que ele consegue - dizia a voz de Bento Quadra, que Joãozinho reconheceu claramente. - Ele mesmo apostou quarenta mil-réis no morzelo e exige trezentos mil-réis se tiver que fazê-lo perder. - A metade disso ele quer adiantado, para que ainda tenha tempo de apostar o dinheiro no cavalo de Joaquim da Cruz. O restante, o senhor poderá pagar no final da corrida. A outra voz começou a regatear, pois não queria pagar tanto assim. Bento Quadra esclareceu ao desconhecido que ele e seu pessoal poderiam, assim, apostar mais dinheiro no cavalo de Joaquim da Cruz, reembolsando todas as despesas e poderiam ainda ganhar muitos milhões, sem perigo de perder, nessa corrida com Salvador. Porém, o desconhecido considerou que ainda poderia haver algum contratempo e, além do mais, não sabia se poderia confiar plenamente em Salvador. Bento Quadra acalmou-o quanto a isso e fecharam o acordo em duzentos e quarenta mil-réis. Joãozinho estava mudo e imóvel, sem se mostrar. Parecia que estavam tão próximos dele, que receava pudessem ouvir o bater rápido de seu coração. Ele não poderia deixar que percebessem sua presença, senão sua vida correria perigo. 134 Os dois sujeitos saíram do bambuzal para a claridade da fogueira, onde Antonio Zerino mexia com uma panela. Joãozinho, trêmulo e cauteloso, espreitava-os através da mata, e reconheceu no desconhecido o velho Mendes, sogro de Joaquim da Cruz. Os dois homens se aproximaram de Antonio Zerino e começaram a conversar. Joãozinho viu quando o velho Mendes entregou o dinheiro. Então os três trapaceiros congratularam-se e o velho Mendes levantou-se para ir embora. Joãozinho escondeu-se na escuridão do taquaral e ouviu ainda quando Mendes, voltando a cabeça, gritou para os dois: - Nem pensem em traição ou fraude, senão vocês vão conhecer o velho Mendes! Adeus! Então, tomou o caminho que ia para a mata. Aos poucos o som de seus passos foi desaparecendo no ruidoso bambuzal. Um forte tremor percorreu o corpo de Joãozinho, parte pelo frio, parte pela terrível aflição. A invisível mão da Providência colocara o rapaz na pista de uma infame traição. Como ele contaria a seu patrão o plano daquele moleque covarde? Rodrigo confiava muito em Salvador, e consideraria a informação de Joãozinho uma denúncia indecente. Salvador arranjaria uma desculpa e acusaria o denunciante da mentira como invejoso. Ele avisaria, a tempo, seus companheiros que tudo fora descoberto e deixaria, então, naturalmente, o morzelo ganhar a corrida. Porém ao denunciante caberia o desprezo geral por parte das pessoas decentes e, por parte dos trapaceiros, um ódio terrível. E se Joãozinho deixasse tudo correr como se não tivesse ouvido nada, os pilantras ganhariam imensas quantias de dinheiro graças à sua tramóia. Mas, se o morzelo não ganhasse seu patrão e os amigos deste perderiam grandes somas. Este raciocínio percorria a mente de Joãozinho como relâmpago, enquanto seus dentes batiam. Agora, os sujeitos não poderiam sequer saber, ou suspeitar, que ele ouvira sua insidiosa conversa. Com muito cuidado e bem devagar, começou a andar pé ante pé. Arrastou-se dali como um gato, sem ser percebido . Não precisava recear que aqueles sujeitos levassem o mate durante a noite, pois haviam planejado uma perfídia bem maior. Ele só resolveu voltar depois que estava fora do alcance da 135 voz daqueles homens. Até chegar ao moinho, já se esquentara com a corrida. Ao serrador do moinho aos seus empregados disse que não conseguira encontrar o caminho e gostaria, assim, de pernoitar ali no moinho para procurar o carijo na manhã seguinte. - Na luz do dia a gente é outra pessoa! - pensava Joãozinho no dia seguinte, quando iniciou o caminho em direção ao carijo, pela segunda vez, no sol dourado da manhã. Durante toda a noite pensou sobre o acontecido sem chegar a nenhuma resolução. Agora, deixava de lado, tudo o que o afligira ontem, pois queria executar sua missão de coração leve. Somente depois que a ervamate fosse entregue, é que ele veria o que fazer para impedir o infame plano. Bento Quadra e Antonio Zerino olharam surpresos quando viram Joãozinho saindo da mata, atravessando o livre campo em sua direção! Eles estavam sentados junto ao fogo para se aquecerem, pois geara novamente durante a noite. A grama cintilava, branca. Porém, onde o sol da manhã batia, brilhavam e reluziam muitas cores como milhares de diamantes. O céu estava claro e azul. Um bando de chupins pretos voavam gorjeando de árvore em árvore. Joãozinho dirigiu-se aos dois, cumprimentou-os amavelmente e foi convidado a sentar-se junto ao fogo. Comunicou então sua missão e acrescentou que ele próprio gostaria de conhecer a produção da erva-mate crua na floresta. O vesgo Antonio Zerino espreitava-o e trocou um olhar com Bento Quadra. Ambos apressaram-se em dar-lhe as boas vindas. Antonio ofereceu-lhe uma caneca de café quente e Joãozinho dividiu com eles o pão que trouxera. Após o café, Antonio Zerino e Joãozinho embrenharam-se na floresta para colher a erva dos últimos pés de mate, enquanto Bento Quadra colocava no fogo do carijo a erva colhida no dia anterior, para secar. Joãozinho estava ansioso para ajudar na colheita e na preparação do mate cru. As florestas de erva-mate e de pinheiros pertencem às riquezas que a benigna natureza despejou fartamente sobre o Brasil. Assim como as florestas de seringueiras dos estados do norte esperam 136 apenas pela mão humana para a colheita, sem até então ter necessidade disso, assim também cresciam selvagens as ricas florestas de mate aguardando o homem para entregar-lhe sua riqueza. A árvore da erva-mate cresce em grande quantidade no planalto do Paraná, em Santa Catarina e Mato Grosso do Sul. O principal estado de exportação é o Paraná. Na cidade portuária, Joãozinho já admirara os colossais depósitos de milhares de barris e sacos de erva-mate que aguardavam o navio cargueiro para levá-la para o exterior. Os felizes proprietários das florestas de erva-mate precisavam apenas tirar as plantas daninhas e os pequenos arbustos das proximidades do pé da erva e manter limpo o bosque. Com pouco trabalho de quatro em quatro anos podiam-se apanhar suas folhas para a preparação do verde chá. A época da colheita é nos meses de inverno, de junho a setembro. Escolhe-se também a fase da lua minguante como melhor época para o corte. Joãozinho logo galgava, com a mesma facilidade que Antonio Zerino, uma árvore de erva-mate após outra. Com o facão, cortavam-se os galhos verdes, cheios de folhas, até o cepo do pé e deixava-se apenas no cume um tufo de folhas verdes. Nus e desfolhados estavam ali os pés de erva-mate. Os ramos cortados eram carregados nas costas para o depósito central onde, atrás de um parapeito de troncos de árvores, crepitava uma fogueira. Neste fogo, as pontas dos ramos eram chamuscadas por alguns instantes, para preservar as folhas de uma fermentação rápida. Este processo chamase "sapecar". Os verdes ramos chamuscados eram empilhados uns sobre os outros, formando grandes montes que eram colocados sob um teto ou uma lona para protegê-los da umidade. Então, os ramos de mate já secos eram retirados daquela armação de secagem, o assim chamado carijo, e os chamuscados eram arrumados ali. Essa armação, o carijo, que os trabalhadores da mata utilizavam, era feita de finos troncos de árvores, de mais ou menos de dois metros de altura e largura, e três metros de comprimento, aproximadamente. Debaixo desta armação, ardia um fogo, em brasa, de ramos de pinheiros, para que a folhagem do mate, 137 que descansava sobre a armação, fosse secando aos poucos com o calor que emanava dali. Era necessário tomar muito cuidado, a fim de que o mate seco não pegasse fogo. Os ramos já secos eram espalhados sobre um pedaço de terra, batida e bem limpa, e a folhagem picada era molhada com pedaços de pau até que sobrasse apenas um monte verde de galhos e pedaços de folha sobre o chão. Este monte era peneirado para retirarse os pedaços maiores de madeira e, então o chá-cru de erva-mate estava pronto para ser ensacado. No entanto, os grandes produtores de mate de outras regiões já haviam trocado essa maneira primitiva de preparação do mate por uma mais moderna. Possuíam, em suas coberturas para mate, instalações práticas com as quais era-lhes possível entregar um chá de melhor qualidade. Havia galpões cobertos para secagem; fornos próprios para tal finalidade (os assim chamados fornos de barbaquá) nos quais o mate ficava completamente livre de fumaça; debulhadoras com noras e máquinas de peneirar acionadas juntamente com construções apropriadas. Assim, estavam eles em condições de produzir uma qualidade de chá melhor do que a dos pobres habitantes da mata. Joãozinho trabalhou o dia todo com os parentes de Salvador na mata de erva-mate. Tudo era novidade para ele que, trabalhando, quase esquecera a conversa que ouvira na noite anterior. Os dois sujeitos estavam muito cordiais para com ele. A todo momento, sentavam-se junto ao fogo e bebiam um chimarrão. Enchiase a pequena cuia redonda de folhas de mate, sobre as quais despejava-se água fervente, colocava-se o caninho de sugar, ou bombilha, e chupava-se com prazer aquela bebida amarga e quente. Isto era sempre seguido de um cigarro de palha de milho. Joãozinho também experimentou fumar. Na hora do almoço e do jantar fazia-se um delicioso churrasco de uma paca que Bento Quadra matara e colocara para assar no espeto sobre o fogo. Os dois habitantes da mata mostravam-lhe também a erva-mate de má qualidade com que os compradores de mate eram comumente enganados. 138 Faziam parte desse gênero de erva a congoinha de folhas estreitas e sabor amargo; a caúna com suas folhas largas; a orelha de Mico; o pêssego bravo; o pasto de anta e outras árvores cuja folhagem é parecida com a do mate, mas cuja ingestão é prejudicial à saúde. Ao escurecer, aproximou-se a tropa de burros de Casa Branca. À frente, na égua de guia, vinha o madrinheiro, um menino de porte médio. Os burros, munidos de cangalha, seguiam, enfileirados, o sino da égua de guia. Para evitar que os burros fujam durante a noite, é suficiente que se amarre a égua de guia no laço, para pastar, ou que se prenda suas patas dianteiras nas manilhas. Enquanto a égua estiver ali os burros não vão embora. Atrás da tropa vinha Jeca Baiano, estalando seu curto chicote. Quando viu que Joãozinho estava bem e que sentava-se junto ao fogo, sorriu com ironia e cuspiu atrevidamente em grande curva sobre a cabeça de seu animal. Os burros foram soltos, a égua foi amarrada no laço, e todos ficaram acocorados até tarde ao redor da fogueira. Ali, a próxima corrida de cavalos, o preço da erva-mate e a colheita do milho eram assunto para as conversas. Sob o telhado de folhas, junto ao quente carijo, os cinco homens passaram essa noite de inverno clara e fria. Na manhã seguinte, o chá ensacado foi colocado nos burros para ser levado até a venda de Casa Branca. Atrás da tropa, junto com Joãozinho e Jeca Baiano, cavalgava o polonês, que queria assegurar-se de sua parte do mate. Bento Quadra e Antonio Zerino iam a pé. Com as calças arregaçadas, revelando suas pernas morenas e musculosas, caminhavam mais depressa que a tropa com sua carga. Chegaram bem antes desta em Casa Branca e tiveram tempo para combinar seus planos sinistros com Salvador. Joãozinho ficou feliz quando o chá foi descarregado, pesado, revisto e calculado. Agora, poderia riscar do livro a dívida de Bento Quadra e Zerino, pela qual era responsável. Nunca mais venderia alguma coisa fiado para um freguês sem antes perguntar ao patrão. 139 XVI A perplexidade de Joãozinho numa perfídia. Os perigos. As opiniões contrárias. A preparação para a carreira. O treinador de cavalos. Uma trapaça. O feiticeiro. As magias e os golpes perigosos. A festa da igreja no campo. A bebida fatídica... Assim que os parentes de Salvador e os outros compradores partiram e aquele final de domingo ainda pudesse trazer um pouco de tranqüilidade para os empregados, aflitos pensamentos assaltaram novamente a mente de Joãozinho. O que deveria fazer? Será que, para ele, calar não seria melhor? Já refletira muito sobre isso e sabia que, assim que levasse ao conhecimento do patrão a traição planejada, este pediria explicações a Salvador. O rapaz, então, simplesmente negaria tudo e daria um sinal para seus companheiros para que a perfídia não se realizasse. Ninguém poderia provar nada contra ele e Joãozinho seria o único prejudicado. Seu patrão que, mesmo sem isso, já parecia estar do lado de Salvador e contra Joãozinho, provavelmente o colocaria para fora de casa pela pretensa calúnia e Salvador triunfaria. Joãozinho precisava de uma pessoa, a quem pudesse confiar seus pensamentos. Ele não tinha ninguém em Casa Branca, a não ser Jeca Baiano, com quem gostaria de aconselhar-se numa situação tão difícil. Hesitante, procurou pelo baiano em seu quarto. Felizmente o moreno rapaz estava sozinho. Estava deitado no catre com uma roupa limpa de domingo, e tinha ao lado uma pequena chaleira de água quente, com a qual, imediatamente, preparou o chimarrão para Joãozinho. Assim que o rapaz sugou, devagarinho, a bebida quente pelo caninho de metal, seu coração tornou-se mais leve, pois o prazer do mate dá coragem. Devolveu a cuia ao baiano, que, por sua vez, saboreou a quente infusão. Joãozinho aproveitou o silêncio para, sussurando, relatar ao companheiro a conversa que, ouvira, entre Bento Quadra e o velho Mendes. O baiano ouvia excitado. Parecia que seus olhos negros como azeviche piscavam depois da narração. Joãozinho acrescentou também à narração os motivos pelos quais não 140 se dirigia simplesmente a Rodrigo e levava-lhe ao conhecimento a pretensa traição de Salvador. O baiano deixou que a bombilha afundasse devagar na cuia vazia e colocou-a de lado. Pensativamente, cortou, para mascar, um pedaço de tabaco do rolo negro brilhante, e empurrou-o silenciosamente para a boca. Alí dentro, o tabaco mudava de um canto para outro. Por isso o rapaz cuspia violentamente em todas as direções, e Joãozinho, cuidadoso, ás vezes precisava escorregar de lado para se proteger. - Nós precisamos neutralizar Salvador na hora da corrida, disse finalmente o baiano com cara sinistra. - Pelo amor de Deus, sem ato de violência, pediu Joãozinho, preocupado. - Hm, sem violência provavelmente não vai ser possível, respondeu o baiano. A gente poderia atrai-lo até aqui, amarrá-lo e amordaçá-lo...Porém, como não temos provas das suas maldosas intenções, isto pegaria mal.E depois da corrida teríamos que soltá-lo novamente. - Não, não - disse Joãozinho balançando a cabeça. - E quem vai montar o morzelo para a corrida, se nós neutralizarmos Salvador? - Após essa pergunta fundamental, o baiano cuspiu, em grande escala, num canto do quarto. Ambos entreolharam-se indecisos. Finalmente Joãozinho disse: -O patrão encontrará para Salvador, nos dias de corrida, um substituto... em caso de necessidade eu me ofereço. - Você se atreve a cavalgar e a ganhar? perguntou o baiano, cético. Joãozinho acenou com a cabeça consciente de si. Ele montara o morzelo, na pista de corrida, naqueles dois dias em que Salvador fora visitar os parentes na floresta... - Então eu sei o que vou fazer! - resmungou o baiano decidido. - O que você vai fazer? - gritou Joãozinho assustado. - De vez em quando, vou convidar Salvador para um quentão de cachaça, para conseguir sua confiança. Você pode 141 participar também. No inverno, essa bebida esquenta o estômago. No dia da corrida, eu o convido duas horas antes dela e coloco um pó baiano em sua caneca. - Mas não é veneno? - gritou Joãozinho horrorizado, lembrando-se que Salvador lhe contara que o baiano era um matador. - Psiu! - ria o rapaz moreno e balançava negativamente a cabeça de negros cabelos crespos, - É apenas um terrível laxante, eficaz. -Assim que Salvador engolir o pó, e duas horas se passarem, ele precisará correr e depois de novo... e não poderá participar da corrida nem realizar a traição. Os dois riram muito. Imaginavam o caso tão claramente, com todos os detalhes, que não podiam mais parar de rir, até que foram chamados para o jantar. Já na noite seguinte, o ensacador de mate convidou os dois aprendizes para o quentão em seu quarto. Estava muito frio. Um forte vento nebuloso soprava sobre o campo. Assim, esse convite era bem vindo aos dois rapazes. Salvador sentia-se muito lisonjeado em ser aceito como terceiro elemento nessa relação de amizade que observara freqüentemente. Dois dias depois apareceu mais uma possibilidade para Joãozinho montar o morzelo. Salvador, que caíra nas graças do patrão, pediu-lhe permissão, na quarta-feira, para visitar seu irmão Antonio Zerino. Prometeu, contudo, estar de volta ainda no mesmo dia. Assim, obteve permissão para ir. Porém, como a preparação do cavalo de corrida não podia ser dispensada nem um dia, Joãozinho foi incumbido de fazer os exercícios com o morzelo, saindo do ponto de partida e descendo galopando a pista de corrida. Como adversário, Carlos, o filho do treinador, montaria o rosilho. Rodrigo só permitiu de má vontade que Joãozinho fosse o substituto. Desde a volta de Joãozinho da visita à sua casa, alguém deve ter-lhe dito alguma coisa que, em seu julgamento, prejudicava o rapaz. Ele e João das Neves observavam como Joãozinho, habilmente, virava o morzelo que, ao ouvir seu grito disparava na pista. Carlos, 142 com o rosilho, seguia o morzelo com a diferença de um cavalo de comprimento. - O jovem monta bem! - disse João das Neves, apontando para Joãozinho que saia em disparada. Rodrigo balançou a cabeça sombrio: -Salvador monta bem melhor, ele domina melhor o cavalo na largada. Dito isso, dirigiu-se para casa. No caminho, pensou quão grande desapontamento esse rapaz lhe causara. Da sua sala de estar sumira, após a viagem de Joãozinho, o velho relógio de prata que herdara de seu pai. O relógio não era de muito valor, mas era de grande estima. Estava pendurado na parede, junto à sua escrivaninha. Desde que o rapaz partira para visitar seus familiares, o relógio sumira da parede. Rodrigo procurou por toda parte, e perguntou por ele aos rapazes e a Salvador. Este último esclareceu-lhe, depois de muito relutar, que parecia recordar-se vagamente que Joãozinho dissera-lhe, uma vez, que ficaria bem se aparecesse em casa com um relógio de bolso. Seus antigos colegas de escola admirar-se-iam muito com isto. Talvez Joãozinho tivesse levado o relógio apenas para vangloriar-se, e depois o trouxesse de volta. Ele, Salvador, era seu amigo de infância e precisava confessar que o rapaz sempre gostou de ostentação. Joãozinho também lhe revelara que Rodrigo dissera que ele, Joãozinho, logo dominaria os outros empregados. Porém, Rodrigo não poderia deixar que Joãozinho soubesse que, Salvador, lhe contara essas coisas, pois só o fizera por gratidão. Rodrigo sorriu, então, amargurado. Então, Joãozinho retornara à Casa Branca! Contudo, o relógio prateado continuava sumido. Dia após dia, Rodrigo esperava pela confissão de Joãozinho e, também todos os dias decidia pedir explicações ao rapaz desonesto. Porém, continuava a esperar e a observar o rapaz para surpreendê-lo em alguma deslealdade e tocá-lo dali. Não gostava mais do rapaz e o tratava, a partir de então, com rudeza. Por isso ficou contrariado no dia em que Joãozinho teve que montar o morzelo, no treino, no lugar de Salvador. 143 Chegou à Casa Branca irritado. Seu primeiro olhar foi para a parede. Porém, o relógio de bolso não estava pendurado no gancho. Ele cerrou os punhos com raiva. Salvador voltara à noite de sua viagem e poderia, na quinta-feira, reassumir o treino do morzelo, o que era uma tranqüilidade para Rodrigo. O sábado, véspera da corrida, trouxera uma verdadeira migração para Casa Branca, como também para o pátio da igreja que ficava uma meia hora distante dali, num lugarejo. Todos os galpões de Casa Branca e as poucas casas agrupadas ao redor da capela estavam ocupados, pois a festa da igreja, associada à sensacional carreira, atraía pessoas de longe. Quase todos os partidários de Rodrigo, que apostaram no morzelo, pernoitaram em Casa Branca, enquanto os amigos de Joaquim da Cruz armaram suas barracas claras no campo. As fogueiras vermelhas chamejavam ao findar do sábado. Por todo lugar havia pessoas nervosas reunidas, sentadas ou de pé, e falando da grande corrida do dia seguinte. Rodrigo fazia esplêndidos negócios. Na venda de Casa Branca havia um tumulto terrível. As pessoas apertavam-se e se empurravam diante do longo balcão. A maioria dos recém-chegados aproveitava a oportunidade para providenciar suas compras para um longo período de tempo. Rodrigo, Basílio, Vitorino, Carlos e os dois aprendizes corriam atrás do balcão para satisfazer todos os fregueses. Salvador e Joãozinho corriam de um armazém para outro, a fim de buscar novas mercadorias. Grandes pilhas de gêneros, caixas de chapéu, sapatos, pratos de lata, panelas de ferro, ferramentas e armas estavam espalhadas sobre o tampo do balcão. Salvador e Joãozinho eram chamados constantemente para dar uma rápida ordem nas coisas. Bento Quadra e Antonio Zerino também encontravam-se entre a multidão. Procuravam chamar a atenção de Rodrigo e do povo com altas palavras de elogio para o morzelo. - Todo meu dinheiro apostei no morzelo de Rodrigo, - gritou Bento Quadra agindo como se não soubesse que Rodrigo o ouvia. - Esse cavalo vai passar pelo nariz do cavalo branco de Joaquim da Cruz logo no primeiro salto, ha, ha, ha! 144 As pessoas que apostaram no cavalo branco já perderam seu dinheiro! Vocês vão ver só! Joãozinho contorcia-se de raiva ao ouvir esses falsos alardes, pois sabia que todo esse falatório dos dois malandros era apenas espalhafato, ou, como se dizia, "fita" ou "para inglês ver", para assegurar o logro de seus comparsas. Na realidade, Bento Quadra e seus dois honrados sobrinhos apostaram todo o seu dinheiro no cavalo branco, que, pela traição de Salvador, teria que ganhar. De repente, o coração de Joãozinho parou. Não ouvira ele a voz clara de seu velho mestre da floresta no meio da multidão? Os recém-chegados já abriam passagem entre aquele tumulto e quem poderia descrever a felicidade de Joãozinho... Felizes, seu padrinho Cidral, seus irmãos Francisco e Pedro e o velho Bento Damásio estavam diante do balcão estendendo-lhe as mãos. - Sim, você está pasmo e perdeu a fala, - disse Bento Damásio rindo e engasgando com o riso comovido. Você não esperava por nós hoje. Agradeça ao seu padrinho! Ele é que nos contou da grande corrida. E como queríamos conhecer uma festa de igreja e uma corrida aqui do planalto, viemos. Seu padrinho providenciou-nos montaria. Hoje é a segunda noite que não estou com minha velha e com Anita. Mas o essencial, o principal motivo pelo qual viemos, qual será, hem? Sorrindo feliz, ele olhou para seu antigo aluno, de quem sempre tivera muito orgulho. - O motivo é você, meu Joãozinho, nosso Joãozinho Felizardo, ha, ha, ha! - Ele passou as mãos furtivamente sobre os olhos, pois via lágrimas de alegria brilharem nos olhos de Joãozinho. Assim, apesar do tumulto e barulho, trocaram rápidamente algumas palavras. Joãozinho perguntou de sua família e seus irmãos contaramlhe, radiantes, do rico rendimento de leite da vaca. Então Joãozinho passou novamente a atender os fregueses da venda. Porém, assim que teve um tempo livre, arrumou um lugar no chão do depósito para seus hóspedes pernoitarem. Apenas para os dois velhos ofereceu sua própria cama. Estes discutiram, pois não 145 queriam tirar Joãozinho da cama, até que Bento Damásio aceitou, satisfeito, o oferecimento. Domingo, o dia da corrida, amanheceu maravilhosamente claro, nesse inverno. Os dois concorrentes, Joaquim da Cruz e Rodrigo, mandaram examinar e limpar a pista de corrida. Por toda parte, pessoas trabalhavam erguendo as barracas, e abrindo as cabanas de folhas para ventilá-las. De repente, todos correram para a pista. - Os feiticeiros, os mágicos, estão chegando para a corrida! - gritavam indo a seu encontro. Cada um dos dois partidos tinha encomendado feiticeiro da floresta. Rodrigo também não poderia privar-se desse velho costume, pois tanto seu dinheiro como o de seus partidários tinha sido apostado no morzelo. Se, por acaso, seu cavalo fosse derrotado, poderiam culpar seu feiticeiro por não ter feito nada contra a magia do adversário. Primeiro veio o feiticeiro do partido do cavalo branco. Era um negro muito velho de melenas brancas. Dizem que ele já era crescido quando o raptaram na África e o trouxeram para o Brasil. Por isso, entendia das verdadeiras mágicas africanas. Devagar e solene, desceu pelo lado esquerdo da pista onde o cavalo branco deveria correr. O negro ancião ornara a velha cabeça enrugada com ramos e brotos de árvore de um verde-acinzentado. No pescoço trazia amuletos sagrados como correntes de dente de onça, sementes brancas chamadas de “pérolas de bugre” e outras coisas misteriosas. Murmurava para si fórmulas sinistras de juramento, e continuava caminhando pé ante pé. Com um bastão branco, que segurava na mão direita, espetava aqui e acolá a negra terra do campo para ver se os adversários não fizeram ali covas secretas. Talvez eles também tivessem enterrado um sapo ou três caracóis. Daí o cavalo tropeçaria ou ficaria impossibilitado de correr. De repente, o feiticeiro jogou-se ao chão e, sob o calar respeitoso dos espectadores, fez suas pantomimas. No local de largada dos cavalos fez sinais misteriosos, deitou-se no chão e, ali parecia ouvir algo. Então, tocou o chão com seus amuletos e finalmente caminhou, seguido de seus 146 admiradores, até o estábulo do cavalo branco para ali, sem espectadores, "fechar" para a vitória o cavalo de corrida de Joaquim Cruz. Agora, era a vez do outro feiticeiro, aliciado por Rodrigo, demonstrar suas atividades na pista. Era um mulato velho com um rosto esperto, que franzia seriamente. Quando iniciou sua charlatanice, no lado direito da pista, Rodrigo teve que conter a custo um riso de escárnio. Ele não era supersticioso e sabia que nenhum homem era capaz de uma magia verdadeira. Estes mágicos da floresta eram embusteiros, ou talves eles próprios acreditassem em suas mágicas bobas. A propósito, recebiam uma quantia razoável em dinheiro e comida de graça por suas artes de feitiçaria. A metade do dinheiro, pediam adiantado. Se o cavalo por eles "fechado"pela mágica, perdesse, então era sumir na mata o mais depressa possível senão apanhariam. Após as bruxarias dos feiticeiros, ficavam sempre alguns guardas junto à pista, até a hora do início da corrida. O resto do povo deslocava-se agora, em grandes grupos a pé ou a cavalo, até a igreja do lugarejo próximo. No alto da capela os foguetes sibilavam no ar e as bombas estouravam uma após outra. Levantavam-se altos mastros com bandeiras brancas, sobre os quais era colocado o espírito sagrado na figura de uma pomba. Bandeiras coloridas e flâmulas balançavam ao vento da manhã. O pátio e o interior da capela estavam enfeitados com guirlandas de folhagem verde, flores de papel, troncos pequenos de palmeiras com lampiões coloridos, folhas de samambaia e correntes de papel. A multidão aglomerava-se no interior e no pátio da igreja. Os seis músicos, trazidos da cidade, tocavam uma solene marcha fúnebre, quando o festeiro e a festeira entraram na igreja atrás do sacerdote, saindo da sacristia. Estes festeiros, aos quais cabia a preparação e as despesas da festa, eram hoje as pessoas mais importantes. Todo ano, eram escolhidos ou sorteados pelo padre entre as famílias mais ilustres. Reinava um grande silêncio quando começou o serviço religioso. A voz do sacerdote chegava até o pátio. 147 Junto ao portal da igreja estavam os conterrâneos de Joãozinho e seus irmãos. Bento Damásio e José Cidral escutavam atentamente o teor da santa missa. Ao lado deles estavam Bento Quadra, Antonio Zerino e Salvador. Estes cumprimentaram seus conterrâneos com alegria, apesar de o mestre da floresta mostrar-lhes claramente sua antipatia. Porém, os trapaceiros agiam como se o mestre e Cidral fossem seus grandes amigos. Após a missa, a forte voz do padre elevou-se um pouco, para o sermão. Salvador olhou para o sacerdote e estremeceu, pois sua consciência pesada não lhe dava paz. Parecia-lhe que os olhos do padre olhavam para ele, transpassando-o. Após o culto havia ainda uma procissão, que se estendia ao redor do lugarejo. As crianças pequenas vestidas de branco e ornadas com asas como "anjos", iam à frente. Seguiam-se as "virgens", as mocinhas vestidas de branco.Então vinha a banda de música e, sob o baldaquim, caminhava solenemente o sacerdote seguido de seus acólitos. Carregavam-se bandeiras e imagens de santos. A multidão caminhava devagar, rezando. Já era quase hora do almoço quando a festa sagrada terminou. A multidão dirigiu-se para as casas e barracas. Salvador apressou-se para almoçar em Casa Branca, pois às duas horas começaria a corrida. Passou pela porta aberta do quarto do baiano que preparava, lá dentro, sossegadamente, um "quentão". O aroma gostoso de gengibre e cachaça entrou-lhe pelo nariz. Jeca Baiano sorriu-lhe convidativamente: - Então, você tambem aceita um pequeno gole antes do almoço? A comida fica ainda mais saborosa. Salvador entrou hesitante. Quanto mais se aproximava a hora da traição, mais seu coração batia cheio de medo. Assim, veio-lhe a esperança de que, com o quentão do baiano, se sentisse melhor. - Mas eu posso ficar só um instante, - disse sentando-se no banquinho, e olhando para o Baiano que segurava um pedaço de brasa sobre a pinga. - Já está pronto! - disse este, - mas veja se vem vindo alguém. 148 Salvador levantou-se e olhou apressadamente para fora. Nos últimos tempos, vivia com medo. O Baiano, bem depressa, aproveitou para colocar um pó na caneca de Salvador. Agitou um pouco o líquido até que Salvador voltou e sentou-se novamente. Ambos pegaram as canecas fumegantes. - Saúde! - sorriu ironicamente o moreno baiano, e saudando seu hóspede. Então, esvaziaram as canecas e dirigiram-se, juntos, para almoçar. 149 XVII A carreira no campo. Os cavaleiros adversários. A suspeita de Rodrigo. Um acidente inesperado causa grande preocupação. Joãozinho como indivíduo necessário. A força de vontade dá a vitória. A batalha na pista. Os mortos e feridos. O baiano desaparece... Já eram duas horas. As pessoas, excitadas e em trajes de festa, esperavam com interesse, aglomeradas no gramado ao lado da pista. A qualquer momento, os dois corredores principais do dia deveriam aparecer. Todos procuravam bons lugares para poderem assistir à corrida. Dos dois lados da pista, a multidão apinhava-se. Todos os homens, desde garotos a partir de dez anos, carregavam suas armas habituais, a pistola e a faca. Ninguém estranhava esse costume. Um homem tem que saber defender-se e, para tanto, exercitar-se com as armas. Atrás dos homens estavam as mulheres e as crianças, sentadas ou de pé no gramado. Nas cabanas de folhagens, algumas mulheres preparavam churrasco, frango assado, pão de trigo, doces e bebidas. Nas barracas havia comida e bebida para vender. Ali, e junto à pista, as apostas ainda continuavam. Os abonos dos torcedores eram entregues a um homem de confiança que passaria o montante, depois da corrida, ao vencedor. Alguns homens subiam e desciam a pista agitando no ar de dinheiro em notas para desafiar pessoas a apostarem. Na beira do bosque que circundava o grande gramado, centenas de cavalos estavam amarrados aos troncos. Dentre esses, encontravam-se animais que disputariam, ainda hoje, com outros cavalos, depois da corrida principal. Finalmente, ouviram-se sons retumbantes. Os seis músicos conduziam os juízes e os dois competidores, Joaquim da Cruz e Rodrigo, que amigavelmente. se aproximavam devagarzinho, conversando 150 Assim que os músicos chegaram à parte superior da pista, cessou a música. Em voz alta, o árbitro fez a leitura do contrato escrito, ajustado entre Joaquim da Cruz e Rodrigo, o vendeiro. Assim, os dois cavalos com seus cavaleiros teriam que chegar, pontualmente às duas horas da tarde, e colocar-se na cabeceira da raia para começar a corrida dentro de vinte minutos. O árbitro/juiz daria o sinal quando os dois cavalos estivessem em posição, isto é, com os rabos voltados para o ponto da chegada da raia. Então os cavaleiros teriam que virar seus animais com as cabeças voltadas em direção do ponto de chegada e disparar pela pista. O contrato estabelecia que apenas impedimentos de força maior seriam motivos para não haver corrida. Perderia quem não estivesse presente e quem não disparasse ao sinal do gritador. Mal acabara o aviso, já se ouvia uma gritaria louca que revelava a chegada dos cavalos de corrida. Cada torcedor, dos dois partidos, procurava gritar mais alto que o outro. - Viva o cavalo preto! - gritava o pessoal de Rodrigo. - Viva o tordilho! - desafiava o pessoal de Joaquim Cruz. Os magníficos cavalos, seguros em rédeas curtas por seus jovens cavaleiros, aproximavam-se marchando orgulhosamente. As fortes crinas balançavam soberbamente do pescoço curvado. As pequenas orelhas voltavam-se, excitadas, em todas as direções. Os brilhantes olhos saltados faíscavam. Os cavalos espumavam no freio. Lado a lado, os dois cavaleiros dirigiam-se para o ponto de largada da raia. Traziam seus cabelos amarrados com um lenço colorido. O extremo inferior da calça era amarrado sobre a barriga da perna e dos pés. Os dois rapazes estavam sentados sobre os esbeltos e lisos dorsos dos cavalos, sem sela. O árbitro olhou para o relógio. Eram exatamente duas horas. O gritador tomou seu lugar. O juíz estava no local da chegada, que fora demarcado com bandeirinhas de papel. Joãozinho, muito preocupado, estava parado ao lado do velho Cidral e do mestre, e observava o rosto vermelho de Salvador 151 cujos olhos inquietos dirigiam-se de um lado para outro. -Será que o pó não fez efeito? - pensava com medo. - Os dois já irão disparar e a perfídia triunfará. O senhor Rodrigo e todos os seus amigos perderão o dinheiro! Enquanto isso, os dois competidores deixavam seus cavalos dar uma arrancada e os traziam de volta para o começo da pista, no meio do galope. Os saltos dos animais fogosos tornavam-se cada vez mais furiosos. Os cavaleiros mal conseguiam segurá-los. Os gritos e o barulho da multidão, de ambos os lados, circundavam os cavaleiros, que se observavam mutuamente, prestando atenção ao gritador para não perderam o sinal de largada. O alinhamento dos dois cavalos ainda não estava certo. O gritador não queria favorecer a nenhum dos animais. Joãozinho viu que o rosto de Salvador mudara de um vermelho escuro para um cinza pálido. A qualquer instante soaria o grito de largada. O coração do rapaz batia violentamente. O relógio marcava duas horas e quinze minutos. Agora parecia que os dois cavalos estavam alinhados... Será que a maldade venceria? O gritador abriu a boca para dar o sinal de largada. Porém, fechou-a, em seguida, com olhos escancarados. Todos esticaram os pescoços para ver o que estava acontecendo. Repentinamente, Salvador se deitara sobre o pescoço de seu cavalo e gemia horrivelmente. Seu corpo curvado confrangia-se. Com a rapidez de um relâmpago, desceu do cavalo e, antes que alguém pudesse impedi-lo, correu precipitadamente para dentro da floresta. As pessoas presentes ficaram, a princípio, mudas. Em seguida, começaram a gritar furiosas. O árbitro procurou, em vão, estalelecer a ordem. Joãozinho, ao ver Salvador descer do cavalo, enfiou-se habilmente pela multidão e segurou o cavalo negro pelo freio. Rodrigo e João das ameaçadoramente selvagemente. Neves pela entreolharam-se multidão que perplexos, gritava e cercados gesticulava 152 Porém, Rodrigo não prestava atenção aos gritos ameaçadores de seus próprios partidários. Com muita estranheza, observou a conduta selvagem e incompreensível de seu adversário, o velho Mendes. O velho homem arrancava os cabelos e gritava como que possuído pelo demônio: - Salvador, Salvador! O que significa isto? O que esse moleque traiçoeiro está fazendo? Deus, oh Deus! Salvador, volte! Você precisa montar o cavalo preto! Trapaceiros! Vocês três são! Onde está Bento Quadra, o patife? Salvador deve montar! Está em cima da hora! Olhem, ali estão correndo os ladrões que me enganaram! Realmente, Bento Quadra e Antonio Zerino corriam rapidamente atrás de seu parente que sumira na floresta. Uma suspeita terrível tomou conta de Rodrigo. Por que justamente o sogro de seu adversário desesperava-se com a fuga de Salvador? O que o velho Mendes tinha a ver com o seu cavaleiro? Os adversários não deveriam estar alegres, pelo fato de seu cavaleiro ter abandonado a corrida no último instante? Ou seus adversários, o velho Mendes e família Cruz, tinham subornado Salvador?... Será que eles seriam tão perversos?... Rodrigo estava desconcertado. Desencantado, olhou para o velho Mendes que se lamentava e que procurava, em vão, acalmar seu pessoal. Porém, o árbitro aproximou-se rapidamente e segurou o relógio diante de Rodrigo -Senhor Rodrigo, dentro de três minutos vence a hora estabelecida no contrato. Então o gritador dará o sinal de largada. O cavalo branco correrá sozinho na pista e ganhará a corrida. Então, apresse-se! Eleja um novo cavaleiro! Rodrigo olhou furioso para o círculo de conhecidos. Todos gritavam para ele. Todos eram lentos e robustos, muito mais pesados que Salvador ou o cavaleiro adversário. Dentre eles, não poderia escolher nenhum para montar o cavalo negro. João das Neves disse em seu ouvido: - Deixe Joãozinho montar! Rodrigo deu um passo para trás e olhou, sinistro e desconfiado, para o rapaz que parecia pedir-lhe com os olhos que o 153 deixasse tentar. Mas, será que deveria confiar no rapaz que odiava desde esse que voltara da sua visita à família? Esse "fanfarrão", como Salvador o descrevera, esse rapaz mal agradecido, que lhe roubara o relógio de bolso prateado? Provavelmente esse "Joãozinho fanfarrão" o ridicularizaria ou o trairia. Porém, não era hora para hesitações. Precisava arriscar-se com ele, pois na emergência não havia nenhum outro montador disponível com tão pouco peso. Então, ele fez um sinal afirmativo para o rapaz. No instante seguinte, Joãozinho já estava sobre o dorso liso do brilhante cavalo preto, que se empinava, com o pouco peso do montador. Assim que Joãozinho virou o animal para que se alinhasse, cauda com cauda, freio com freio, ressou o brado, o sinal do gritador para a largada. Rápidos como relâmpagos, os dois rapazes puxaram seus cavalos para fazerem a volta até a posição de largada. Com saltos violentos, o cavalo branco tomou a dianteira e corria, quase à distância de um cavalo, à frente de morzelo, que não tinha largado tão bem. Com olhar sinistro, Rodrigo acompanhava seu cavaleiro desajeitado. O pessoal de Joaquim da Cruz vibrava gritando alucinadamente, estimulando o cavaleiro do cavalo branco : - Viva o tordilho! - Ele está vencendo, ele está vencendo, hiu, hiu! O velho Mendes dançava como um louco, batia as mãos nos joelhos, chorava e ria de alegria. Joãozinho, com ódio contido, via o cavalo branco tomando a liderança. Porém, ele tinha uma férrea força de vontade. O morzelo precisava alcançar o cavalo branco! Mais deitado do que sentado no dorso do animal, gritava palavras vibrantes no ouvido do cavalo e trabalhava, como louco, com seus calcanhares e o chicotenos flancos e coxas do animal. Mas a vantagem que o cavalo branco havia conseguido na largada, era agora recuperada pelo morzelo, aos poucos, apesar de curta distância. Era como se a forte vontade de vencer do rapaz contaminasse o fiel animal, que, assim, dava tudo de si. A uma distância de mais ou menos duzentos metros, o morzelo alcançou o 154 cavalo branco, correndo agora lado a lado com este, na direção do ponto de chegada. Os partidários de Rodrigo rejubilavam-se, de todos os lados gritando palavras de estímulo para Joãozinho e o morzelo, enquanto os partidários de Joaquim da Cruz ameaçavam, com os punhos e palavras de provocação, o cavaleiro do cavalo branco. O velho Mendes saiu, de repente, de seu delírio de vitória para encolherse, imóvel. - Isto não vale, isto é contra o contrato! - gritou. - O menino não poderia montar. Fraude, traição! Onde está Salvador? Onde se enfiou Bento Quadra? Porém todo o seu resmungar, e todos os rostos furiosos e decididos do partido do cavalo branco, não ajudaram este a vencer. O morzelo o ultrapassou numa rápida carreira e, com a diferença de mais que meio cavalo de comprimento, foi o primeiro colocado no ponto de chegada. Alguns torcedores do cavalo derrotado gritaram: - Empatou, empatou! - como se ambos os cavalos tivessem passado, simultaneamente, pelo ponto de chegada. Porém, não havia nenhuma possibilidade de encobrir a vitória do morzelo. O juíz decidiu, e os torcedores do cavalo branco perderam todo o dinheiro apostado. Joãozinho cavalgou mais um longo trecho no campo até conseguir acalmar o cavalo enfurecido e trazê-lo de volta para a linha de chegada. Cabisbaixo o, cavaleiro do cavalo branco foi-se embora dali. Joãozinho e o morzelo vencedor foram acolhidos com júbilo pelos partidários do cavalo e pelos empregados de Casa Branca. João das Neves, o treinador do morzelo, acenou-lhe gritando palavras de entusiasmo. - Viva o cavalo preto, viva Joãozinho! - gritavam os amigos de Rodrigo. O olhar de Joãozinho procurava o patrão. Então, viu que este o olhava com mais amabilidade do que nos últimos tempos. Porém, ainda permanecia aquela reserva nos olhos dele. Bento Damásio, o velho Cidral e os irmãos de Joãozinho apertavam-se por entre a multidão para chegarem junto ao morzelo onde, orgulhoso, Joãozinho estava. Com voz clara, Bento Damásio gritou radiante para Joãozinho, sua voz ressoando através do tumulto: - Joãozinho Felizardo! 155 - O velho Cidral alisou a barba grisalha, sorrindo para Joãozinho. Ele apostara cem mil-réis no morzelo e passara um medo enorme de perder seu dinheiro. Agora guardava no bolso o dinheiro ganho com a aposta, sorrindo satisfeito. Francisco e Pedro olhavam admirados para o "irmãozinho" que, aqui, desempenhava um papel importante. Os olhos de Joãozinho brilhavam, úmidos de alegria. A perfídia de Salvador fora evitada, e assegurada a vitória do patrão. Seus lábios murmuravam uma curta oração de agradecimento enquanto olhava para o céu azul. Nesse momento alguém bateu-lhe na perna. Era Jeca baiano, que lhe sorria ironicamente, dizendo: - O pó baiano foi bom, não? Você viu como o sujeito correu para dentro da mata? - Uma grande alegria tomava conta do baiano. Porém, já era empurrado pela multidão que queria se aproximar de Joãozinho. O tumulto e a gritaria aumentaram sensivelmente. Os ânimos estavam muito alterados e ouviam-se gritos provocadores. Muitos partidários do cavalo branco protestavam contra a decisão do juíz. As palavras que lançavam uns contra outros, tornavam-se cada vez mais ásperas, e a multidão que se aglomerava estava cada vez mais excitada. De repente, ouviu-se o forte estalido de um tiro e uma gritaria estridente, seguida de outros tiros. Fumaça de pólvora emanava das armas e seu cheiro era muito forte. Desenvolveu-se um autêntico combate em que a pistola e o facão desempenhavam papel importante. A gritaria das mulheres e crianças que fugiam abafava o barulho da luta. João das Neves pulou, atrás de Joãozinho, na garupa do morzelo que se assustara com o estouro das pistolas. Joãozinho, a seu pedido, conduziu o cavalo para fora da multidão a fim de levá-lo para um lugar seguro. Assim que o morzelo se viu em campo livre disparou, a galope, para o estábulo. Atrás deles, ressoava o barulho da luta na pista de corrida. 156 XVIII O ferido na maca. Joãozinho sente-se como criminoso e quer confessar tudo. A confissão de um moribundo. O inocente é alvo de suspeita. O relógio reencontrado. O agradecimento de Rodrigo. Um enterro... Após terem colocado o cavalo de corrida em lugar seguro, os dois puseram-se a caminho o mais depressa possível, para buscar o rosilho que ficara amarrado num tronco de árvore. No meio do caminho encontraram uma multidão onde alguém carregava uma maca, na qual descansava o corpo de um homem, morto com tiro pelas costas. Joãozinho olhou timidamente para a maca e pulou para trás horrorizado. A vítima era Bento Quadra. Estava deitado, com palidez mortal, de olhos fechados, e não emitia mais nenhum som. Joãozinho parou um conhecido para saber como acontecera a desgraça. Imediatamente, formou-se um grupo de pessoas a seu redor, o vencedor da corrida. Todos procuravam relatarlhe os acontecimentos desse curto espaço de tempo, mais ou menos há meia hora. Porém, todos falavam ao mesmo tempo e Joãozinho acabou compreendendo apenas os atos mais violentos. Bento Quadra fora atingido mortalmente. Suspeitava-se que fora o velho Mendes quem dera o tiro enquanto Bento Quadra se ocupava do moribundo Salvador. Joãozinho sentiu um calafrio ao ouvir essa notícia. Bento Quadra, um defunto, e Salvador, agonizante. Deus, se o doente morrer com o pó do baiano! Talvez houvesse veneno naquele laxante. Então, ele seria cúmplice dessa morte! Como que perseguido pelas Fúrias, Joãozinho saiu correndo. João das Neves ficou para trás, para saber de tudo. Além de Bento Quadra, havia mais duas pessoas muito feridas que caíram no campo de combate, e inúmeras pessoas com ferimentos leves. Enquanto isso, Joãozinho corria, com olhar fixo para diante, até a pista de corrida onde, em um tronco de árvore, o rosilho estava amarrado. Então, encontrou os irmãos Francisco e Pedro e o mestre da escola, que cuidaram do cavalo para ele. 157 Para seu tormento, contaram-lhe da secreta doença que tomara conta de Salvador. Antonio Zerino, o irmão de Salvador, havia gritado para todos que seu irmão fora envenenado. Logo após o almoço. Salvador começou a sentir náuseas, porém continuara valente, até que uma terrível dor abdominal o tirara de cima do cavalo e o fizera correr para dentro da mata. O assassino de seu irmão estava em Casa Branca. Porém, ele deixaria que tudo se esclarecesse diante do tribunal. Bento Damásio e os irmãos de Joãozinho narravam isso ao pálido rapaz. Todos saíram juntos da área da corrida, onde podia-se ouvir o gemer dos feridos em algumas barracas. Grupos de pessoas conversavam, excitadas, por toda a parte do vasto gramado em que se desenrolara a luta. De volta à venda, Joãozinho foi logo muito requisitado pelos fregueses e não pôde ocupar-se de seus irmãos e hóspedes. As pessoas apertavam-se junto ao balcão e pediam bebidas, pão, lingüiça e sardinhas. Todos os empregados tinham tanto trabalho que não tinham nem uma pausa para descanso. De repente, instaurou-se um grande silêncio na venda. Todos olharam para fora. No silêncio, ouviu-se uma voz que dizia: Eles estão trazendo o moribundo, o Salvador. - Ele quer morrer em sua cama. O padre vem atrás. - Ele deverá dar ao moribundo a extrema-unção. Joãozinho parecia prestes a desmaiar. Com olhos arregalados, apoiou-se no balcão. - O que você tem, Joãozinho? - gritou o padrinho Cidral, que se aproximara e observava o rapaz. - Você está doente? Responda! Joãozinho indicou a porta com um frágil movimento. Ali aglomerava-se, respeitosamente, uma multidão. Os homens que carregavam o doente faziam barulho para entrar na venda. Sobre duas varas estenderam uma lona, a ali, Salvador estava deitado. Com uma expressão sinistra, seu irmão Antonio Zerino o acompanhava. Seu olhar vesgo pousou ameaçadoramente em Joãozinho, que estava pronto para precipitar-se à frente e declarar-se assassino. Os homens que carregavam o doente 158 atravessaram a venda e o depósito, subindo, com sua carga, a rangente escada de madeira que levava para ao quarto de Salvador. Logo após, chegou o sacerdote que fizera o culto na capela, com seus acólitos. Eram seguidos por mulheres rezando e todos subiam a escada para onde o doente estava sendo levado. Do lado de fora, onde numerosos cavalos estavam amarrados junto ao terraço, novas pessoas continuavam a entrar na venda. Procurava-se fazer com que elas não fizessem muito barulho. Porém, pediam pão e bebida. Joãozinho foi arrancado violentamente de seu entorpecimento, pois precisava atender os fregueses. De repente, alguém desceu as escadas, alarmado e apressado, entrando na venda: - Onde está o senhor Rodrigo? Salvador está morrendo e quer dizer ainda algo para o patrão -. Joãozinho deixou cair o metro e a tesoura, recostou-se na prateleira e caiu num choro desconcertado, acompanhado pelas mulheres e crianças presentes. Porém, agora o choro de Joãozinho era desesperado, pois tornara-se um assassino e nunca mais teria um momento de paz em sua vida. Era cúmplice do que estava acontecendo a Salvador. Queria subir as escadas e pedir perdão ao moribundo. Já estava voltando as costas para a venda, para ir ao depósito e subir as escadas, quando Rodrigo, que passava apressadamente, o chamou de volta. - Agora que a venda está cheia de gente, você quer sair, seu irresponsável! Volte ao trabalho imediatamente! Os fregueses estão esperando! Dizendo isto, subiu rapidamente a escada de madeira. Antonio Zerino, o vesgo, passou por ele violentamente, descendo as escadas. Rodrigo olhou, mal humorado, para aquele que descia, furioso, ao seu lado. Lá em cima, no quarto de Salvador, o padre sussurrou a Rodrigo que o doente já se confessara. Antes que ele, como sacerdote, pudesse dar-lhe a absolvição, o moribundo deveria reparar a falta, da qual se arrependera, junto ao patrão, a quem prejudicara. O próprio doente assim o desejou. Rodrigo aproximou-se, profundamente comovido, da cama de Salvador. O doente estava pálido e frouxo, sobre travesseiros. 159 Rodrigo segurou sua mão. - Você tem alguma coisa para me dizer, pobre coitado? Crie coragem... Salvador abriu os olhos e seu rosto parecia ainda mais pálido. Abriu os lábios secos e sem cor e começou a sussurrar precipitadamente: - Eu disse mentiras ao patrão sobre Joãozinho. O relógio prateado fui eu mesmo que tirei do gancho e escondi atrás do guarda-roupa. Eu não o roubei. Eu só queria prejudicar o meu inimigo... - Salvador parou, pois viu que a expressão de Rodrigo tornou-se tremendamente sinistra e sentiu que ele soltava sua mão. Rodrigo queria sair dali. O sacerdote aproximou-se da cama do doente. Então, este continuou a falar apressadamente: - Eu fui persuadido pelo meu tio para que hoje segurasse o morzelo na corrida, para que o cavalo perdesse. O velho Mendes subornou-nos com dinheiro... Eu não queria, certamente que não... eu me recusei... acredite em mim, senhor Rodrigo! Não, eu resisti ao máximo! Aí, meu tio, Bento Quadra, ameaçou que me mataria... e meu irmão convenceu-me que não haveria inconveniente nenhum, pois coisas assim aconteciam freqüentemente nas carreiras... então eu cedi! Salvador começou a choramingar, - Eu me arrependo meu patrão, o senhor sempre foi tão bom comigo!... mas agora eu tenho que morrer!... o senhor pode me perdoar? Deus castigou-me! Alguém deu veneno para mim... Antonio disse... O meu patrão vai me perdoar? O sacerdote aproximou-se e colocou a mão sobre a testa do doente que respirava com dificuldade. Então, olhou seriamente para o sombrio Rodrigo. Este aproximou-se novamente da cama, pegou na mão de Salvador e disse com voz triste: - Salvador, eu lhe perdôo, em meu nome e em nome de Joãozinho a quem você prejudicou! Eu lhe perdôo como imploro o perdão divino para mim! - Amém -, disse o sacerdote, e deu a absolvição ao doente. Rodrigo saiu silenciosamente do quarto. No depósito, encontrou o curandeiro Sebastião Ribeiro, que casualmente também viera para a corrida, e que fora mandado por Antonio Zerino para cuidar do doente. 160 Rodrigo passou calado por ele e desceu as escadas pensativamente. Na venda, chamou Joãozinho. E quando este se aproximou trêmulo, disse-lhe: - Venha comigo para o escritório!" -. Olhou em volta, onde poucos fregueses ainda circulavam e dirigiu-se para a porta de vidro de seus aposentos. Joãozinho pensou: - Agora está tudo perdido! O patrão pensa que sou cúmplice na morte de Salvador. Preciso confessar-lhe tudo! Então, uma grande paz tomou conta dele. Hesitante, entrou no quarto em que, antes de sua viagem para casa, tinha aulas noturnas com Rodrigo. Ao entrar no escritório, viu Rodrigo que estava atrás do guarda-roupa, afastado da parede, segurando na mão e, comovido, observando um relógio de bolso prateado. A corrente do relógio, pendurada, tremia numa oscilação excitante. Rodrigo estava muito comovido. Agora, pendurava novamente aquele relógio simples no gancho, de onde sentira, por muito tempo, sua falta. Joãozinho aproximou-se dele, olhou-o timidamente nos olhos e disse: - Preciso confessar-lhe que sou culpado do triste fim de Salvador. Rodrigo recuou perplexo. Seus olhos sombrios olharam fixos para o rapaz, que continuou gaguejando: - Salvador queria cometer uma fraude na corrida de hoje. Ele foi subornado pelo velho Mendes. O morzelo deveria perder. Eu ouvi, casualmente, o complô entre Bento Quadra e o velho Mendes. E para impedir a perfídia, não sabia o que fazer. Assim eu aceitei o plano que Jeca Baiano propôs. Ele queria dar ao Salvador um forte laxante baiano, para que ele não pudesse cavalgar. Eu... eu... - nesse momento, o sentimento de culpa dominou o rapaz que continuou a falar chorando: - eu tive medo que o baiano colocasse veneno no pó... ele deu sua palavra que não faria isso! Rodrigo ouviu com grande espanto o relato de Joãozinho e admirou, em silêncio, a cautela e lealdade do rapaz. Os olhos desse homem sério umedeceram-se quando se lembrou do quanto fora injusto para com aquele rapaz honrado que, pela calúnia de Salvador, quase o mandara embora dali. Ele colocou o braço sobre os ombros do rapaz soluçante e consolou-o: - Não chore! Você fez sua obrigação! Talvez a poção do 161 baiano fosse muito forte... você não tem culpa e não é responsável pelas conseqüências. Joãozinho sentiu que se livrava de um grande peso. Enxugou os olhos e olhou aliviado para Rodrigo, que se curvava sobre ele. - Dê-me sua mão, meu rapaz corajoso! Você evitou pela sua fidelidade um pérfido golpe do meu adversário... e conseguiu com isso uma brilhante vitória para o meu morzelo! Então, tirou seu relógio de ouro do bolso da calça, desatou a corrente dourada e colocou o relógio e a corrente na mão do consternado e feliz rapaz. - Dou-lhe este relógio de ouro de presente, para que você se recorde deste ato honrado. O presente deverá demonstrar-lhe apenas minha gratidão exterior, pois minha gratidão verdadeira e profunda consistirá em nunca mais duvidar de sua fidelidade e sinceridade. Joãozinho estava tão comovido que não reparou no sentido das últimas palavras. Rodrigo não contou-lhe a calúnia de Salvador e a suspeita contra ele. Abraçou mais uma vez seu aprendiz e disse: - A partir de amanhã vou dar-lhe novamente aula noturna, que há tempo não temos mais. Então mandou chamar os irmãos de Joãozinho, o velho Cidral e o mestre de escola, Bento Damásio, para contar-lhes, com todos os detalhes, com que esperteza e fidelidade Joãozinho agira para proteger seu patrão dos prejuízos. Para concluir, disse-lhes: - Quando vocês chegarem em casa deverão contar tudo à mãe de Joãozinho e dizer-lhe, de minha parte,que ela pode orgulhar-se de seu filho! No dia seguinte, foi o enterro de Bento Quadra no pequeno cemitério ao lado da capela. Apenas poucas pessoas acompanhavam o funeral, pois a maioria dos participantes da corrida e da festa já voltara para casa. Nem mesmo os dois sobrinhos do arruaceiro assassinado estavam presentes, pois Salvador não morrera, mas estava muito fraco para levantar-se. Recuperava-se lentamente, com o tratamento do curandeiro. Seu irmão, Antonio Zerino, sumira da região desde a confissão de Salvador que o expunha como ladrão. Provavelmente receava também encontrar-se com o velho Mendes. 162 Mas, Jeca Baiano também sumira, desde a corrida. Será que ele ficara com medo pelo fato de Salvador quase ter morrido? Ou será que tomara parte no tiroteio? Falava-se muita coisa sobre ele mas, mesmo, livrou-se da investigação judicial. Joaquim da Cruz veio, logo após a corrida, para explicar solenemente a Rodrigo que não tomara parte na patifaria de seu sogro, o velho Mendes. Ele ficara sabendo dessa perfídia há apenas alguns dias e, imediatamente, pediu explicações ao sogro. Após uma cena violenta, tocara-o de sua casa e não queria mais ter ligações com um sujeito tão infame. Rodrigo ouvia o relato com satisfação. Disse a seu adversário que se alegrava em poder continuar a vê-lo como amigo e homem de bem, a quem sempre estimara. Os dois homens se abraçaram e continuaram amigos. O velho Mendes tornou-se, antes do júri, o presumível assassino de Bento Quadra. Porém, por falta de provas, foi absolvido. Contudo, a partir daí sua reputação caíra, e precisou vender sua casa e terras para procurar a felicidade em terra estranha. Salvador também foi embora, assim que recuperou um pouco suas forças. Deixou, voluntariamente, seu emprego em Casa Branca, onde todos os dias seria lembrado por sua traição. Ninguém mais confiava nele. Todavia, o desaparecimento de Jeca Baiano sensibilizou muito Joãozinho. Sentia falta, com freqüência, de seu mestre de lutas e conselheiro. 163 XIX A ascensão de Joãozinho. Ele toma conhecimento dos grandes homens do povo português, brasileiro e alemão. Ele treina futebol. O banco de jardim sob o cipreste. O tempo de aprendiz chega ao fim. A cavalgada para Curitiba. O Hino Nacional. Uma bonita menina curitibana. As perspectivas de viagem....... Após esses acontecimentos, o prestígio de Joãozinho na venda de Casa Branca estava assegurado para sempre. Rodrigo não relatou apenas aos empregados, Basílio, Vitorino, Carlos e aos demais, a fidelidade e a cautela de Joãozinho, mas também a seu patrão, Dr. Bark, e a seus funcionários, em Curitiba. Um novo aprendiz veio para a venda e Joãozinho foi promovido a instrutor de aprendizes, com salário dobrado. Porém, continuava, apesar da boa sorte, o menino modesto e sensato. A partir de então começou, sob ordem expressa do patrão, a tomar as refeições em companhia de Rodrigo e dos empregados, ao invés de tomá-las na cozinha entre aprendizes, carreteiros e peões. Na sala de refeições do patrão, a mesa era posta e ele sentava-se entre Carlos e Vitorino, enquanto Basílio e Rodrigo sentavam-se na extremidade superior. Eles tratavam o atual instrutor de aprendizes com igual idade, e isto fez com que Joãozinho, aos poucos, tivesse comportamento espontâneo, não forçado. Logo ligou-se muito a Vitorino, apesar deste ser cinco anos mais velho do que ele. Graças às conversas durante as refeições, e às aulas noturnas que Rodrigo lhe dava regularmente, no decorrer dos dois anos que se seguiram Joãozinho adquiriu bons conhecimentos. Agora, também tinha que trabalhar com a contabilidade da firma para que quando os quatro anos de aprendizado terminassem, fosse um jovem e educado e um bom comerciante. No tempo das aulas particulares que tivera com Rodrigo, Joãozinho conheceu nomes significativos da cultura do povo português, cujo sangue corria em suas veias, e também da cultura brasileira. Eles liam sobre os grandes descobridores como, Bartolomeu 164 Dias, Vasco da Gama, e Pedro Álvares Cabral, elevavam-se com a leitura de os "Lusíadas" de Luíz de Camões, estudavam as obras do escritor e poeta Almeida Garrett, de Guerra Junqueiro, de Eça de Queirós e estudavam a História de Portugal. Após essa visão retrospectiva dos grandes homens e da História de Portugal, Rodrigo disse uma vez: - É lamentável que nós, brasileiros, quando vamos para a Europa visitemos Paris, em vez de procurar descanso e instrução no país dos nossos gloriosos antepassados. Será que o povo brasileiro ama mais os franceses do que seu próprio povo de origem? A história do Brasil mostra que os franceses não são amigos sinceros, pois muitas vezes comportaram-se como inimigos do Brasil. Hóspedes franceses são homenageados no Brasil e aqui, proferem discursos aduladores. Mas, assim que voltam para a França, difamam nosso povo e nosso país ou ridicularizam-nos. Rodrigo falou-lhe também sobre grandes brasileiros como Sílvio Romero, José de Alencar, Gonçalves Dias, Tobias Barreto, Rui Barbosa, Olavo Bilac, Clóvis Bevilácqua, Barão do Rio Branco, e o Imperador Dom Pedro; sobre heróis da guerra do Paraguai como o Duque de Caxias e Floriano Peixoto, o "Marechal de Ferro", e personalidades brasileiras de renome internacional como Carlos Gomes e Santos Dummont. O professor também ensinava a seu aluno os grandes nomes da cultura alemã, do povo cujo sangue corre nas veias de muitos brasileiros de valor e de muitos descendentes desse povo honrado que trabalhou para o crescimento e o florescer do Brasil. Assim, Joãozinho tomou conhecimento de Berthold Schwarz, o inventor da pólvora; Johann Gutenberg, o inventor da arte de imprimir; o herói de guerra Frederico, o Grande; o rei dos filósofos, Emanuel Kant; o rei dos poetas e gênio mundial Wolfgang Goethe; o notável escritor Schiller; os gênios alemães da música, famosos no mundo todo, Beethoven e Wagner; Zeppelin, o inventor do balão dirigível que leva seu nome; e muitos outros grandes alemães. Rodrigo provava, com dados estatísticos, que o povo alemão era mais culto do 165 mundo, pois na Alemanha não havia analfabetos e em língua alemã era impresso o dobro de livros que na Inglaterra e na França juntas. Joãozinho também praticava habilidades desportivas. Corria a cavalo, lutava boxe com Vitorino, jogava futebol e praticava tiro ao alvo com os empregados, aos domingos, quando não havia ninguém na venda. Às vezes, Rodrigo convidava-o para caçar perdizes. Falava-se também no plano de uma grande caçada nas montanhas, onde havia antas e javalis e onde podiam ainda encontrar-se onças. Contudo, as atividades comerciais não permitiam muitos dias livres, como uma verdadeira caçada exigia. Nos dois últimos anos, Joãozinho fora apenas uma vez visitar a família na planície. Lá, a mãe ainda trabalhava com os filhos no cultivo da terra. Com os rendimentos do leite e da manteiga, a família já economizara tanto que pensava em comprar uma segunda vaca leiteira. A garrotada crescera e dentro de um ano talvez seria também uma vaca leiteira. Um segundo bezerro já corria atrás da vaca comprada por Joãozinho. Tudo isso Joãozinho ficava sabendo pelas cartas que recebia de sua casa. Preocupava-se freqüentemente com sua família que, apesar de trabalhar duro, progredia tão pouco. Ele gostaria de ajudá-la com suas economias, mas dava razão a seu patrão que o aconselhava a guardar seu dinheiro para que, ele próprio, pudesse ter um negócio. Então, estaria em condições de ajudar toda a família. Com pequenas quantias de dinheiro dadas como presente não conseguiria muito. A partir daí, Joãozinho economizava ainda mais em suas despesas e deixava seu ordenado na venda, onde rendia-lhe juros. A saudade da mãe e dos irmãos, de Anita e seus pais e do padrinho Cidral ainda não se apagara nele, mesmo que não mais o consunisse como nos primeiros tempos. Ainda havia momentos em que seu coração se apertava de saudade dos seus. No jardim havia um cipreste, ao lado de um pinheiro novo, guarnecido do chão até o cume com largas folhas pontiagudas. Ali, Joãozinho colocara um banco e à noite, quando não havia mais ninguém no jardim, sentava-se neste banco entre as duas sussurrantes àrvores. Então escutava a misteriosa canção que o vento 166 tocava nas murmurantes agulhas do pinheiro e nos sussurrantes galhos do cipreste, a eterna canção da separação... até que seus olhos se enchiam de lágrimas. Aí parecia-lhe, às vezes, que estava sentado em seu lugarzinho escondido no bambuzal e conseguia ouvir as vozes da mãe e dos irmãos nas proximidades. E então, de repente, recuperava os sentidos - Eles se encontravam longe, muito longe de você... e talvez você nunca mais os veja! Porém, toda vez que tinha esses pensamentos pessimistas reagia com grande força de vontade. Chamava a si sedutoras imagens do futuro, de como poderia ajudar sua família quando tivesse sua própria venda. A mãe e Maria morariam com ele, Margarida talvez se casasse e Francisco e Pedro poderiam ajudar na venda e com as carretas, e todos estariam novamente juntos, como no tempo de sua infância. Quando Joãozinho terminou seu período de aprendizagem, o patrão promoveu em sua honra uma pequena festa. Todos os empregados e serviçais participaram e o cumprimentaram. O rapaz sentia-se muito feliz por galgar a escada que conduzia ao êxito e a riqueza que, agora, estavam à sua frente. Nessa noite, antes de deitar-se, pediu permissão ao patrão para visitar sua família. Rodrigo deu-lhe consentimento, porém Joãozinho deveria primeiro ir a Curitiba para apresentar-se ao Dr. Bark como o mais novo funcionário. E, também, deveria trazer de lá grande quantia de dinheiro para a compra de mate. Vitorino ainda veio até o quarto de Joãozinho, aquele que fora de Salvador, enquanto o seu, no sotão, era agora de Paulo, o novo aprendiz. O quarto tinha uma cama, guarda-roupa, mesa, estante, duas cadeiras e lavatório. Era limpo e convidativo, com cortinas nas janelas e, sobre a mesa, uma lamparina de querosene que iluminava confortavelmente o ambiente. Os dois rapazes, que agora trabalhavam num mesmo nível, já eram, há muito tempo, grandes amigos, e estavam sentados junto à mesa falando da viagem de Joãozinho. Vitorino alisou seu negro bigode, pelo qual Joãozinho o invejava secretamente, pois ele próprio ainda não tinha barba. - Eu gostaria de ir com você para sua casa e 167 conhecer seus familiares - disse Vitorio naquela sua maneira calma mas acho que você prefere ir sozinho... eu só atrapalharia. Joãozinho acatou a idéia com entusiasmo e tentou persuadir seu amigo a fazer a viagem com ele. Após muita conversa, Vitorino prometeu pedir permissão ao patrão. Dois dias mais tarde Joãozinho, como novo funcionário aos dezoito anos, foi para Curitiba. Já fizera essa viagem duas vezes nesses quatro anos, mas mesmo assim conhecia apenas superficialmente os moradores da estrada. Quando entrou na cidade viu que muitas casas estavam com bandeira hasteada. Então lembrou-se esse dia era feriado republicano e que deveria procurar seu patrão em casa, pois todas as lojas estavam fechadas. Foi para a pousada onde pernoitara pela primeira vez com o padrinho Cidral, entregou seu cavalo ao serviçal e trocou de roupa em seu quarto. Após lanchar, caminhou pelas ruas, encontrando muitas pessoas em trajes de festa. A caminho da casa de Bark, chegou a uma grande e bonita praça onde enorme multidão estava aglomerada. Já ia dobrando uma esquina, quando parou de repente. A banda militar, parada no meio da praça, começou a tocar o Hino Nacional brasileiro. Oh! Como os sons retumbantes e imperiosos do suntuoso hino eletrizavam o jovem brasileiro! "Ta- ta- ta- ra- ra..." Ele arrancou o chapéu da cabeça como todas as pessoas e, emocionado ouvia os acordes. Seus olhos encheram-se de lágrimas e a pele de sua testa começou a arder. Os sons retumbates penetravam seu coração e satisfaziam-no com um orgulho indomável por ser filho deste país maravilhoso que é o Brasil. Os imponentes sons vinham a seu encontro, enquanto as verde-amarelas bandeiras balançavam triunfantes nos mastros. As estrelas prateadas na esfera azul da bandeira representavam os vinte e dois poderosos estados do Brasil país que se estende desde o Amazonas até a Argentina, na América do Sul. Com forte brilho em seus olhos azuis, após os últimos acordes do hino Joãozinho continuou seu caminho até chegar à casa do rico doutor Bark. Intrépito, apertou o botão da campainha elétrica. 168 Uma bela mocinha de aproximadamente catorze anos, após alguns instantes abriu, a porta da casa e perguntou-lhe o que desejava. Ele respondeu que precisava falar com o patrão e disse seu nome: João Soares Pilz. Aí, a jovem atrevida de brilhantes, olhos cinzentos olhou para ele e disse: - Ah! talvez você seja o "Joãozinho feliz"...não... o "Joãozinho Felizardo" do qual papai já falou tanto? Aproxime-se por favor... Não,... como me alegro... eu já estava tão curiosa em conhecer o Jo... não... você. Ela estendeu-lhe a mão, mas a recolheu rapidamente, sacudiu seus cabelos loiros e seguiu pelo corredor a dentro. - Que menina bonita - pensou Joãozinho admirado, enquanto pousava agradavelmente seus olhos sobre a esbelta figura que andava à sua frente. E, mesmo sem querer, comparava-a com a pequena Anita de olhos escuros. Então ela abriu a porta da direita e deixou-o passar, bem por perto dela, para entrar no grande aposento do pai. Olhou-o sorrindo com os espertos olhos cinzentos e seus olhares encontraramse. Então, ela se retraiu. - Ah, o nosso recém-feito caixeiro! - disse Bark, divertido, de sua poltrona onde lia o jornal. Estendeu a mão para o jovem funcionário, que corava muito. Joãozinho teve que sentar-se a seu lado, e falar-lhe de negócios, responder a centenas de perguntas, até que começaram a conversar sobre coisas sérias. O velho senhor admirava, em silêncio, os conhecimentos do jovem. Lembrou-se quando Joãozinho viera um dia, há quatro anos e, verdadeiro matuto sentara-se à sua frente e arrazando a gramática como quem corta uma espécie de grama. Depois de uma hora, a menina loira enfiou a cabeça pela porta aberta e chamou-os para o café. Bark levantou-se, pegou seu jovem hóspede pelo braço e levou-o para a sala de refeições, onde a senhora Bark com a filha Emília e o filho mais novo, Mário, já os esperavam. Havia um bolo maravilhoso que Joãozinho adorou. Logo os donos da casa, ofereceram-lhe mais um pedaço de bolo mas ele esclareceu, sorrindo, que não aguentaria comer mais nada. 169 Durante o café, e depois também, Joãozinho teve que responder a muitas perguntas que a senhora Bark e a filha lhe faziam. Quantos anos tinha, onde morava sua mãe, como se chamavam seus irmãos, onde passara sua infância e outras perguntas do gênero. Joãozinho respondia com tanta vivacidade e graça que, por mais de uma vez, ecoaram altas risadas. Então o patrão voltou com ele para o escritório e disse-lhe que o escolhera para ir, nos próximos dias, para sua fazenda Lavrinha, que ficava numa região duvidosa de Rio Preto. O administrador da fazenda, um sujeito rude e resmungão de nome Fabrício, há muito tempo não dava notícias. Segundo os cálculos de Bark, ele já deveria ter trazido para Curitiba, há quatro meses, um rebanho de gado de corte para vender. Porém, Fabrício não mandar nem gado, nem dinheiro e nem notícia. Por isso, uma pessoa inteligente e de confiança precisava passar algum tempo na fazenda, colocar em ordem a contabilidade e prestar bastante atenção se Fabrício agia corretamente para com seu patrão. Joãozinho deveria, logo após voltar da visita a seus familiares, viajar com um peão para a região duvidosa de Santa Catarina, com plenos poderes como se o próprio Bark estivesse com ele. Ambos trataram de todos os pormenores até que a noite chegou. Na despedida, Bark deu ao jovem funcionário o pacote com o dinheiro para a compra do mate. A procuração da viagem para a fazenda seria enviada para Casa Branca, quando Joãozinho tivesse voltado da visita ao lar. O rapaz, despediu-se, com um aperto de mão, de seu patrão. Na porta da sala encontrou Emília que lhe abriu o portão, estendeu-lhe a mão e disse, sorrindo prometedoramente. Tomara que, a gente o veja logo de novo. Joãozinho corou de alegria, mas respondeu: - Tão breve não estarei de volta das duas viagens que farei. - Ah, você vai viajar? - disse ela, desapontada. - Que pena! Bem, boa sorte e um feliz regresso! Não nos esqueça! - Não, Emília, certamente que não! - gaguejou, muito feliz interiormente com sua familiaridade, e saiu. Contudo, quando chegou 170 na esquina claramente iluminada pela luz elétrica, voltou-se e viu que ela o seguia com o olhar. Em seu pequeno quarto na hospedaria, ficou deitado por muito tempo e sonhou acordado com a bela tarde e com os olhos cinzas e vivos de Emília. No dia seguinte, à noite, chegou são e salvo à Casa Branca, fez um relatório a Rodrigo e entregou-lhe o pacote com o dinheiro. Vitorino fora ao seu encontro no terraço, antes que pudesse descer do cavalo, para informá-lo, radiante de felicidade, que o patrão dera-lhe permissão para acompanhá-lo em sua viagem, já que no verão, não havia muito movimento na venda. Dois dias mais tarde, os dois amigos partiram antes do raiar do dia e trilharam o mesmo caminho que Joãozinho conhecia desde sua primeira viagem. Ambos estavam felizes com a viagem e quando deixaram o bosque para cavalgar no verde campo livre, a luz dourada do sol brilhava sobre a grama inerte formando ali uma onda suave. Os dois jovens começaram a cantar uma alegre canção, ao ar fresco da manhã. Seus cavalos deitavam as orelhas para trás, escutando, e relinchavam alto na dourada manhã acelerando o passo como se quisessem compartinhar da alegria de viver dos dois cavaleiros. Na hora do almoço, os dois descansaram sob a frondosa sapopema, ao lado do riacho, enquanto os cavalos pastavam. Então cavalgaram por muitas horas até chegarem à solidão das montanhas selvagens. Ao atravessar o denso bambuzal seco, Joãozinho mostrou ao amigo o local onde fora assaltado, pelos ladrões disfarçados. Eles se lembraram do assassinato de Bento Quadra e dos dois irmãos foragidos, Antonio Zerino e Salvador. Pernoitaram na cabana do velho Cordeiro e no dia seguinte, à tarde, chegaram à capela que ficava no alto da colina. Dali avistaram a escola que ficava mais adiante, no vale. 171 XX Em casa. A partida para a caça. O rancho na floresta virgem. Os rastros de anta, lontra e cateto. As estórias de caçadas com onça. O fatigante avançar na floresta montanhosa. Os enormes troncos de imbúias, canelas, perobas, sassafrás, cedros, tarumãs, araçás entre outros. A caçada de cateto. O fiasco de Joãozinho. Joãozinho foi recebido com muita alegria por Bento Damásio e sua mulher, como das outras vezes. Então Anita veio... seus grandes olhos escuros brilhavam como jóias, repletos de alegria. Os negros e encaracolados cabelos ainda caíam-lhe livres sobre os ombros arredondados. Vestia um avental branco que acentuava sua graciosa silhueta. Pela expressão luminosa do seu olhar constatava-se que Joãozinho ainda ocupava um espaço muito especial em seu jovem coração. Ele apresentou a todos seu amigo Vitorino, porém viu, para sua satisfação que Anita só tinha olhos para ele. Então a figura da bela Emília, que nos últimos dias ocupava seus pensamentos, desvaneceuse. Ao prosseguirem a viagem, Joãozinho orgulhava-se quando Vitorino elogiava a beleza de Anita, ao falar da família do mestre. Em seu contentamento começou a contar ao amigo sobre seu tempo de escola e de como Anita despertara nele a vontade de aprender a ler e escrever. Relatou também particularidades de suas idas a cavalo para a escola. -Aqui eu cavalgava uma vez com meu Mico quando ele se espantou com um tamanduá que zumbia na moita-. Continuou a falar da sua infância, alegrando-se com o interesse de Vitorino, até que avistaram, ao cair da tarde, o telhado cinzento da casa de sua família. Francisco e Pedro os viram de longe e começaram a gritar por eles até que toda a família estava diante da porta da casa. Gritos de alegria, risadas, choro, e todos falando ao mesmo tempo. Os cavaleiros quase foram arrancados de seus animais para serem abraçados. A mãe não se cansava, entre soluços, de abraçar e acariciar seu filho. Maria colocou-se suavemente entre seus 172 braços, os irmãos falavam sorrindo com ele, e Margarida acariciava seus ombros. Vitorino ficou parado, sorrindo, alisando seu negro bigode e, com admiração inconsciente, olhava para o rosto suave e corado da altiva Margarida. Ela tinha os mesmos olhos azuis de Joãozinho, mas ao redor de seu rosto oval caíam abundantes cabelos negros, brilhantes, que herdara da mãe. - Vocês chegaram em boa hora - disse Francisco mais tarde, quando estavam jantando. - Depois de amanhã vai haver uma grande caçada. Todos os filhos dos vizinhos irão participar. Nós queremos ir para as montanhas, onde um caçador viu rastros de uma onça. De qualquer maneira abateremos uma anta e alguns catetos. - Ora, ora! - objetou Margarida duvidando. Todos riram. Vocês vão participar, não? - disse Pedro entusiasmado. - Em três dias estaremos de volta. A mãe e as irmãs de Joãozinho protestaram, apreensivas. Elas não queriam abreviar ainda mais a curta estadia de Joãozinho no lar por causa de uma caçada. Contudo, Pedro e Francisco sabiam descrever de maneira tão atraente a futura caçada, que via-se claramente a vontade de participar, principalmente em Vitorino. Então a mãe cedeu. - Se isso fizer Joãozinho feliz nós não queremos segurálo! Amanhã teremos o dia inteiro para ficar com ele... e ainda o dia depois da caçada! O dia seguinte passou muito depressa. Joãozinho mostrou a seu amigo a plantação, os estábulos e todos os lugares preferidos de sua infância. Apresentou-o ao fiel Valente, ao resmungão "Jacob", levou-o até a vaca e os bezerros, à pocilga, e mostrou-lhe o balanço, de onde uma vez, a pequena Maria desaparecera. Margarida e Maria os acompanhavam, enquanto contavam muitas travessuras de Joãozinho. Joãozinho observava, satisfeito, como Vitorino gostava de olhar para os olhos azuis de Margarida, e sorria com seus botões. À tarde, visitaram o velho Cidral e sua esposa. Os dois velhos alegraram-se imensamente e não queriam depois nem deixar os jovens irem embora. Joãozinho ainda tinha que lhes pedir 173 emprestados animais de montaria para Francisco e Pedro para que eles não precisassem ir a pé para as montanhas. Enquanto isso, os irmãos estavam em casa ocupando-se dos preparativos da caçada. Gritaram de alegria ao verem Vitorino e Joãozinho voltando com os animais de montaria. Certamente a eles o velho Cidral não os teria emprestado. No dia seguinte, antes do raiar do dia, os quatro caçadores partiram. "Valente", o cão de caça que ainda continuava muito capaz, corria feliz à frente dos cavalos que fungavam. Na encruzilhada, junto à grande figueira, reuniam-se os homens e rapazes que iriam participar da caçada. Uma matilha de cães de caça acompanhava os caçadores munidos de espingarda e facão. Uma mula, com albarda para transportar para casa o animal selvagem caçado acompanhava o grupo. Não faltavam também víveres, utencílios de lata, ponchos e cobertores. Assim cavalgaram ao alvorecer, por caminhos ruins em direção da cadeia de montanhas. Ao pé da serra , nas proximidades de uma cachoeira, morava o último habitante. Ali deixaram os cavalos, os burros, as selas, e colocaram-se em fila indiana marchando para a selva. Atravessaram montanhas de mata cerrada, gargantas frias e sinistras, solo pantanoso e matas espessas, espinheiros e brenhas, íngremes rochedos, para adentrar as montanhas. Vitorino e Joãozinho, acostumados ao suave ar das montanhas, eram mais sensíveis que os outros caçadores ao calor sufocante da planície baixa. Se não estivessem acostumados a esforços físicos graças ao futebol, talvez tivessem que desistir e agüentar a troça. Sem descanso, prosseguiram avançando para dentro da espessa e solitária mata. À frente, iam os abridores de picadas que, a golpes de foice e facão, tinham que abrir uma trilha. Todos carregavam nas costas os víveres, armas, ponchos e utensílios para cozinha. Joãozinho sentia, cada vez mais, o peso da carga e sentiu-se aliviado quando chegou a hora do lanche e de um descanso, logo acima de um riacho sussurrante. 174 A caçada deveria começar a partir desse lugar. Alguns jovens colocaram-se já à procura de rastros de animais selvagens e sumiram com seus cachorros na densa floresta, enquanto os outros caçadores recolhiam lenha seca para acender o fogo e preparar a única refeição do dia. Outros começaram a fazer um rancho com galhos de árvores e palmitos, que serviria para o pernoite e para protegê-los de uma possível tempestade. Na hora do almoço, os rastreadores voltaram, com seus cães, para o acampamento. Sentaram-se cansados junto ao fogo e almoçaram. Durante o almoço, narraram cuidadosamente os resultados da investigação feita na floresta. Um vira pegadas recentes de catetos, outro descobrira rastros e fezes de uma anta, e um outro vira o lugar onde as corças e pacas bebiam água e onde encontrara também pegadas de uma lontra. Todos elogiavam o faro de seus cachorros. Eles ainda se vangloriavam quando Francisco e Pedro voltaram, com Valente, e relataram que, atrás das pegadas de um rebanho de javalis, encontraram rastros meio apagados de uma onça. Parecia não ser animal muito grande, considerando os sinais da pata. Todos ficaram muito animados com os resultados favoráveis da exploração que prometia uma caçada rica. Vitorino e Joãozinho, principalmente, estavam muito entusiasmados imaginandose já voltando como caçadores de onça. Então escutaram as estórias de Belarmino, que há dois anos participara de uma caçada de onças. Aquela vez, os caçadores perseguiram inutilmente a onça por muitos dias, até que conseguiram retê-la auxiliados por seus cachorros e também por Joaquim da Rocha, o mais experiente caçador de onça, antes que o animal morresse com um tiro certeiro. A maravilhosa pele foi dada a Joaquim da Rocha, e até hoje ocupa um lugar de honra em sua sala. Mal Belarmino acabara de falar dessa caçada, já outras estórias de caçadas de onça eram narradas. O velho José Cidral também conseguira uma bela pele de onça quando ainda era mais jovem. Todos reiteravam que a onça afastava-se dos homens, porém se fosse perseguida seria um adversário terrível. Seguiram-se estórias de pumas. Esta fera era mais freqüente do que a onça. A caça do puma era freqüentemente mais perigosa, principalmente se o animal 175 atacado não encontrasse saída para fugir. Havia pumas velhos que até tomavam a ofensiva. Após a refeição, iniciou-se a partida para a caçada. Os caçadores, com seus cachorros, dividiram-se em dois grupos. O primeiro grupo, sob o comando do caçador de onça Belarmino, subiu a colina da floresta ao longo do riacho murmurante. Eles queriam atravessar a água na parte de cima e então atravessar a espessa mata até o "castelo dos bugres", um penhasco visível bem ao longe. O outro grupo, onde Joãozinho e Vitorino estavam, deveria descer a garganta, atravessar o riacho em algum lugar e também escalar o "castelo de bugres". Assim, mantinha-se a água como base ou princípio, e caçavam-se os animais selvagens que se encontravam dentro deste triângulo. Apenas fatigante era agora avançar Joãozinho nessa e solidão Vitorino das percebiam montanhas. Os quão dois principiantes ficaram atrás dos companheiros. Por hora não se poderia mais pensar em caminhar a passos largos e rápidos. Arrastava-se de barriga ou de costas, segurava-se com a mão no capim baixo ou nas raízes, e descia-se com muito sacrifício a escura garganta. Assim, era preciso segurar a arma e passar por espinhos e brenhas. Aqui e alí um escorregava, outro pisava num ninho de formigas brancas, e um terceiro caía e ficava com os pés para cima, procurando um lugar seguro. Não era possível ver onde se pisava, ora em cima de serpentes venenosas ou aranhas do mato, escorpiões ou espinhos. Assim, os caçadores entraram aos poucos no coração da floresta. Vitorino e Joãozinho chegaram ao riacho bem depois dos outros, arranhados e esfolados. Felizmente usavam roupas velhas, emprestadas por Francisco e Pedro, para a caçada. De rostos vermelhos, arranhados e machucados estavam ali em farrapos, um diante do outro, dando altas risadas. - Se a gente aparecesse assim em Casa Branca! - Vitorino contorcia-se de tanto rir ao pensar nisso. - Ou ir para Curitiba à casa do doutor Bark, - dizia Joãozinho rindo muito, vestido com essa roupa suja e remendada. Porém, eles tinham que prosseguir, pois podia-se ouvir o murmurar dos outros na espessa floresta do outro lado da 176 água. Seguiram os galhos quebrados pelos homens da frente, as marcas de seus pés encontraram um vau onde podia-se atravessar o rumorejante riacho com mais facilidade. Segundo instruções do guia, Joãozinho ficou nas proximidades da água para cuidar dos animais selvagens que se aproximassem. Vitorino teve que avançar mais para dentro da mata e os outros a adentravam cada vez mais. Logo Joãozinho estava sozinho na verde floresta deserta. Ouvia ao longe, aqui e ali, o grito de algum caçador, um breve latido de cão, até que tudo que lembrava a caçada desapareceu. Ele ficou parado, para ouvir o barulho de dentro da mata que o cercava de todos os lados. Ouvia o bramar do riacho, que escondia suas águas sob a espessa folhagem, e deixava a água correr sobre cascalhos, misturando-se ao sussurrar majestoso da mata como uma canção fantástica. Enormes troncos de cedros, imbuias, canelas, sassafrás, perobas, araçás, tarumãs, e outras plantas cobertas de orquídeas e trepadeiras, estendem suas verdes copas sobre palmeiras, samambaias, abacaxis silvestres, cactos, amoreiras, plantas raras de folhas largas e outras mais. Joãozinho começou a percorrer sua área a fim de procurar rastros de animais selvagens nas proximidades. Sentia-se muito importante, como um verdadeiro procurador de trilhas e caçador de mata virgem. Contudo, um grande cansaço dominou-o, e acabou deitando-se sob uma árvore cujos galhos quase tocavam o chão, quase roçando sua cabeça. Sim, ali na sombra estava agradável! Ele ficaria bem quieto, à espera, e atiraria no animal selvagem que tentasse passar furtivamente por ali. Ouvia, lá da floresta, o assobio dos pequenos macacos pretos, os micos, a gralhada alegre dos papagaios verdes e o zumbido dos metálicos colibris cintilantes, tão pequenos como besouros, que mergulhavam seus finíssimos bicos nas flores perfumadas das orquídeas. Ao redor de sua cabeça, escaravelhos e mosquitos zumbiam, borboletas coloridas voavam sob os galhos e tudo era tão tranqüilo e sossegado ali na sombra... A partida de casa na madrugada, logo depois da meia noite, a longa cavalgada ao alvorecer e a fatigante caminhada pela 177 intransitável montanha, faziam sentir-se agora. Joãozinho acreditava que estava acordado, mas cochilava encostado na árvore... Assim passaram-se provavelmente algumas horas e o sol da tarde já enviava diagonalmente seus raios vermelhos pelos troncos da floresta, quando Joãozinho acordou com um barulho que se aproximava: -uik-uik-ai-au-au... gurr-rrr-pum-pum. Um grunhido selvagem, latidos roucos de cães, vozes humanas alteradas e alguns tiros... Joãozinho deu um pulo, assustado. A louca caçada desenrolava-se justamente no seu lugar de descanso. Ele ainda não acordara direito, os olhos ainda miravam inseguros e, nesse momento, saiu do capim baixo um rebanho de porcos selvagens. Na frente arfava um cachaço eriçado, com presas enormes, cujos pequenos olhos brilhantes procuravam como alvo o inesperado inimigo. Com um grunhido furioso, focinho aberto de onde a espuma babava, disparou furioso sobre o atônito Joãozinho. O rapaz agarrou instintivamente os galhos que tocavam sua cabeça e subiu, rápido como um raio, na árvore. A espingarda caíra no chão e o valente caçador balançava as pernas meio metro acima do focinho aberto que procurava por seus pés. Finalmente conseguiu colocar-se em segurança, enquanto o eriçado animal mordia furiosamente com as presas a casca da árvore como se quisesse subir nela para esmagar o inimigo fujão. Porém, os latidos roucos e os gemidos da matilha já se aproximavam, juntamente com os gritos furiosos dos caçadores que vinham atrás. Os javalis correram dali grunhindo e sumiram espesso capim, em direção da água. No instante seguinte, Joãozinho viu os cães com as línguas de fora correndo atrás dos animais e, em seguida, como loucos, um após outro, os quatro exaltados caçadores. Joãozinho, cuidadosamente, de cima da árvore, mostravalhes a direção tomada pelos javalis. Então eles pararam e olharam furiosos para ele, por não ter sido atento e nem ter atirado. Pensaram que Joãozinho escolhera a árvore propositalmente para ter uma visão melhor para atirar. 178 Continuando a correr, descobriram a espingarda de Joãozinho no chão e caíram na gargalhada. - Vejam o fino homem de colarinho, o homem de gravata - diziam rindo - que atira a arma no chão e foge do animal selvagem. Rindo muito e xingando, sumiram na espessa mata. Joãozinho desceu da árvore muito envergonhado, apanhou sua espingarda e seguiu-os, furioso. Ele se autocensurava. - Se eu tivesse ficado acordado, teria ouvido a tempo a aproximação da caçada e me teria ocultado atrás da árvore para poder mirar e atirar nos javalis com toda a calma. - Agora, irritava-se com sua prevaricação que levara seus companheiros a julgarem-no covarde. Ele sabia que não teria fugido se não o tivessem surpreendido dormindo. Mas ele não deveria dormir! No esporte e no jogo também precisavase ser leal. Tinham-lhe confiado o lugar próximo da água e era sua obrigação e dever combater o sono e ficar atento. Assim, ralhando consigo mesmo, tropeçava atrás dos outros e prometia a si mesmo agir de modo correto. Porém estava sem sorte e não teve oportunidade de dar nenhum tiro. Quando escureceu, arrastou-se desolado até o acampamento onde foi recebido com chuvas de piadas, gracejos, censuras e risadas. No chão estavam quatro catetos gordos, além de outras caças. Todos trouxeram alguma presa. Até Vitorino, que participava de uma caçada pela primeira vez, abatera um gordo jacu e dois urus. A noite toda, até a hora de dormir, Joãozinho teve que suportar a troça dos caçadores. Até mesmo seus irmãos, Francisco e Pedro, troçavam dele. Apenas Vitorino, a quem relatara exatamente o que acontecera, procurava defendê-lo. 179 XXI O jacu. O rastro de uma onça. O sacrifício de Joãozinho. O graxaim. Joãozinho vira motivo de chacota. A presa abatida. A febre. Margarida e Vitório......... Na manhã do segundo dia de caçada, Joãozinho acompanhava os outros caçadores com firmes propósitos de que faria o que fosse possível para voltar com mais glória e alguma caça. Novamente ficou sozinho na floresta, depois que os outros prosseguiram. Avançava devagarzinho na direção determinada, sempre atento para descobrir sons e pistas de algum animal selvagem. As copas das velhas árvores sussurravam baixinho, o bambuzal murmurava, e um pica-pau martelava a casca de uma peroba próxima. Da profundeza da mata ressoava o bater metálico de uma araponga, uma pomba que as pessoas chamam de "ferreiro da mata", enquanto que, da água, ouvia-se o chamar de um inambu. Além disso, reinava um silêncio profundo na floresta ensolarada e sentia-se a fragrância do mel, da baunilha e do heliotrópio. Joãozinho estava tentado a deixar-se levar pela magia da mata, porém lembrou-se do escárnio dos colegas e renunciou ao sono. Procurou ouvir atentamente os sons da floresta, até que uma rajada de vento trouxe-lhe o fraco estalido de um tiro de espingarda, revelando onde os outros se encontravam. Tomou a direção do tiro e, de repente, estremeceu. Bem próximo de sua cabeça ouviu um bater de asas. Um grande pássaro, parecido com o faisão, voou dali. Feliz, Joãozinho pensou, um “jacu”! Que bom se eu levasse isso para ser assado no acampamento! E arrastou-se cuidadosamente, mata adentro, para onde vira que o jacu pousara. Espiando para cima, descobriu o grande pássaro negro sobre o galho de um araticum. Não perdeu tempo, apontou, mirou e atirou. Porém, com um grasnar forte o jacu voou dali. Parecia um riso sardônico de uma rouca garganta humana. - Com mil raios! - gritou Joãozinho, furioso, e perseguiu o pássaro que parecia debochar dele. Quando o avistou novamente, pousado numa árvore frutífera, Joãozinho se acalmou e conseguiu derrubar o jacu com um tiro 180 certeiro. Em seguida atirou em mais algumas pombas. Por volta do meio dia, seus colegas perseguiam ainda uma corça, na qual ele não conseguiu atirar. Junto com outros caçadores, percorreu a intransitável floresta virgem até o rancho, onde os demais participantes da caçada chegavam aos poucos. A caça ainda era pouca e assim o jacu de Joãozinho não causou má impressão, uma vez que os outros não tinham mais que ele. Porém, esperava-se caçar algo maior até a noite. Após um pequeno descanso, todos voltaram para a misteriosa escuridão da mata virgem. Os últimos eram, como sempre, Joãozinho e Vitorino. Contudo, eles também tinham que se separar para manter a direção prescrita. Através de cerco e de um lento avançar, o animal deveria ser descoberto. Joãozinho escalou, de joelhos, uma escarpa na densa mata. Estava tomado por uma febre de caça e pressentia que hoje pegaria um grande animal selvagem. Andava cuidadosamente, examinando o chão. A elevação havia sido vencida, porém agora estendia-se à sua frente uma abrupta descida, fechada com bambu e arbustos. De repente, parou. Ali, no chão, num lugar sem folhas viu, atrás de recentes pegadas de corça, fracos sinais de patas de um jaguar (onça). Parou estarrecido e cravou o olhar no chão para certificar-se de que seus olhos não o estavam enganando. Não, não havia engano, uma corça passara por ali e uma onça a perseguia. Instintivamente olhou para todos os lados, para ver se a fera não estava por ali, estava pronta a saltar sobre ele. Uma grande agitação apossou-se dele e imediatamente examinou o rifle de dois canos que o padrinho Cidral lhe emprestara para a caçada. Um dos canos estava carregado com escumilha e, o outro, com bala. Empunhou o facão, para a frente, e continuou se arrastando com muito cuidado através do mato. Agora podia ouvir, da profundeza da mata, o latido distante dos cães. Talvez eles estivessem tocando a onça em sua direção. Apesar da ambição de ter uma gloriosa aventura com a fera e superar todos os caçadores, nesse instante desejava ardentemente que um de seus experientes irmãos 181 caçadores estivesse com ele. Com o coração batendo violentamente, procurava ouvir melhor o barulho que vinha de dentro da mata. Ali, onde estava, um quebrar e um barulho eram perceptíveis. Alguma coisa escura movia-se no solo sob o bambuzal. Rapidamente, Joãozinho colocou a arma à altura da face, mirou o melhor que as mãos trêmulas lhe permitiam e disparou. O tiro ressoou pela mata como um trovão. Mas, o que era isto? Um grito de dor, de voz humana, atingiu o ouvido do espantado Joãozinho envolto na fumaça de pólvora. Paralisado de susto, olhou para onde havia atirado. - Joãozinho,...você me acertou, - gemia Vitorino. Imediatamente, Joãozinho correu para aquele que estava caído e se atirou a seu lado, no meio do bambuzal. Ele não chorava mas seu coração parecia despedaçado. Vitorino gemia de dor, no chão, e procurava apertar o quadril esquerdo de onde o sangue escorria. Trêmulo, Joãozinho arrancou-lhe a roupa. Será que ele matara o amigo? De medo e desespero seus dentes batiam e, sem consciência disso, começou a gemer. Assim que a parte atingida do corpo de Vitorio foi desnudada, os dois jovens puderam constatar, com grande alívio, que a bala apenas arranhara o quadril e não estava ali encravada. Joãozinho esforçava-se para deter o sangue e pedia quase chorando: Vitorino, você não está zangado comigo, está? Eu pensei que fosse um jaguar... Então Vitorino caiu na risada, apesar de sua dor - Eu, um jaguar! - Joãozinho o olhava perplexo, o que provocava ainda mais o riso do ferido. Isto acalmou Joãozinho, pois quem poderia rir assim não deveria estar muito ferido. Logo, arrastando-se aproximaram-se pelo mato, pois dois ouviram companheiros o tiro. de caça, Imediatamente procuraram na floresta ervas refrescantes que pudessem estancar o sangue, com as quais fizeram um curativo. Apoiado em seus ombros, Vitorino conseguiu caminhar, mancando, até o rancho. Novamente Joãozinho foi alvo de muitas risadas com sua "caçada de onça". Cada um queria superar o outro com sua piada e Joãozinho teve que suportar tudo isso. Mas ele estava feliz por não ter 182 matado seu amigo, e também ria das piadas que faziam às suas custas. Seus companheiros de caça tiveram mais sorte nessa tarde. Conseguiram pegar uma anta, que era a caça principal. Contavam que Valente perseguira o animal e o tocara para o rio, junto com os outros cachorros. Ali conseguiram detê-la até que os caçadores se aproximaram e puderam atirar. Além dessa presa, conseguiram pegar uma corça, uma paca, uma lontra, inúmeros pássaros grandes, e um graxaim. Durante muito tempo ressoavam, nessa noite, as gargalhadas do rancho da floresta. Cada um procurava imitar como Joãozinho perseguira e atirara na onça. À noite Joãozinho custou a pegar no sono. Rolava preocupado sobre o leito de folhas de palmito e o cobertor da sela, enquanto ouvia o silencioso crepitar do fogo que se apagava. Trêmulo, imaginava como se sentiria se, ao invés do ferido Vitorino, estivesse seu cadáver no acampamento. Fervorosamente juntou as mãos em oração e agradeceu a Deus que o livrara de tornar-se um assassino. Nunca mais contratempos atiraria durante num a objeto caçada, incerto. e as Por causa constantes de troças seus dos companheiros, ele já perdera toda a vontade de caçar. Recordava-se do apelido, "Joãozinho Felizardo", que Bento Damásio lhe dera. Sorrindo amargurado ele se chamava agora de "João Caipora" e pensava em apresentar-se com este apelido a seu velho mestre. Na manhã seguinte os caçadores, antes do nascer do sol, já estavam acocorados ao redor do fogo e preparavam a refeição matinal. Antes que clareasse o dia, todos estavam de pé para caçar até a hora do almoço, pois logo após o meio dia deveriam pôr-se a caminho de casa. Joãozinho, desanimado com suas contrariedades, esclarecia que, para ele, não adiantava ir à caçada junto com os outros. Porém Vitorino, que se sentia recuperado, e o irmão Pedro o persuadiram zelosamente. - Hoje você vai compensar tudo, Joãozinho! - dizia Vitorino, que estava novamente bem disposto. Você precisa fazer o 183 possível! Você não pode perder esta última grande chance... senão você irá se desgostar durante meses com seu fiasco! Hoje nós vamos com Pedro e Francisco... eles vão levar o Valente, e preste atenção!...hoje você terá mais sorte! Estas palavras reanimaram o espírito empreendedor de Joãozinho, que acabou saindo para a casa com seus irmãos e Vitorino. Conduziam o esperto Valente pela corda, e Joãozinho tinha que ir à frente para procurar o lugar onde vira as pegadas da onça e onde atirara no amigo. Após muito errar de cá para lá, os astutos olhos de caçador de Francisco descobriram um rastro de onça. Vitorino logo ficou para trás, pois o ferimento doía. Joãozinho acompanhava o rápido avançar dos irmãos que colocaram o cachorro na pista da onça. Porém, logo Joãozinho estava sem fôlego e começou a diminuir o passo. Agora, novamente o latido nervoso de Valente o incentivava a acelerar o passo, pois talvez este e o animal selvagem estivessem no encalço. Novamente instalou-se o silêncio... Joãozinho parou para espreitar... Então ouviu à esquerda o murmurar do riacho e deu-lhe, de repente, uma sede violenta pela refrescante água da montanha. Através de bambus e arbustos baixos ele desceu a escarpa se arrastando-se até chegar à margem daquele riacho pantanoso, cuja água parecia muito escura por causa da sombra das árvores. Joãozinho deitou-se no chão para beber, depois de encontrar um lugar seco na beira do riacho. Em grandes goles engoliu aquela água fresca e, então, pegou a espingarda que estava a seu lado e colocou-a sobre o joelho direito. - “Como era escuro e frio aqui” -, pensou olhando ao redor, - “é como num porão!” - Ele queria levantar-se quando percebeu um leve estalar e um ruído do outro lado da espessa mata. Cuidadosamente levantou o rifle, colocando-o silenciosamente à altura da face e cravou os olhos na direção onde ouvira o leve estalar. E quase não acreditava no que seus olhos viam. Lá do outro lado do riacho movia-se, entre as plantas aquáticas, o esbelto corpo manchado de uma onça de porte médio. Felizmente o vento vinha da direção da onça e, também, Joãozinho estava escondido 184 entre o bambuzal de modo que a fera não poderia farejá-lo, nem tampouco observá-lo. Silenciosamente, a fera arrastou-se até a água... Não havia dúvida, era um jaguar!... Para fugir dos cães e dos caçadores ele procurara a água, para dissimular seu rastro e refrescar-se. Joãozinho via, através de uma pequena abertura dos arbustos, como o jaguar levantava o focinho de gato com barbichas, para farejar. Joãozinho apontava o cano do rifle na direção da onça, com muito cuidado, através dos pequenos espaços da folhagem densa, enquanto esta visivelmente contrariada, andava no leito do riacho. A aparição inesperada da fera foi tão repentina que Joãozinho nem teve tempo de ficar nervoso. Porém seu coração quase parou quando, vagarosamente, moveu o dedo para apertar o gatilho. Viu-se uma faísca e o barulho do tiro provocou um eco trovejante nas montanhas verdes... Todavia, Joãozinho ouvira apenas o terrível grito do jaguar atingido. No instante seguinte, viu que alguma coisa escura saltava sobre ele vinda da água. Então sentiu uma forte dor no ombro, gritou e caiu desfalecido no chão. Alguns minutos mais tarde surgiu Valente, que estava na pista da onça. Latia através do mato baixo saltando sobre o riacho para atirar-se uivando sobre o jaguar morto que estava ao lado de Joãozinho no bambuzal. Francisco e Pedro também já desciam a densa escarpa, saltaram a água e afugentaram o furioso cão de cima da fera morta. Muito espantados, chamavam pelo irmão que parecia morto e cujo ombro direito sangrava muito, dilacerado pelo último golpe do jaguar. Pedro foi buscar água e umidecia o rosto pálido de Joãozinho enquanto Francisco rasgava a camisa do ferido. Logo ele abriu os olhos. - Eu acertei a onça? - murmurou com voz fraca. Eles lhe mostraram o corpo do animal estirado a seu lado. Joãozinho queria levantar-se, mas teve que desistir, pois através do movimento a dor tornou-se quase insuportável. Porém, seu olhar percebera a pele manchada da fera morta e um sorriso de orgulho 185 espalhou-se sobre suas feições pálidas. Então, sobreveio um novo desmaio. Francisco foi buscar ervas medicinais na floresta, e os irmãos se ocuparam do ferido. Ele voltou novamente a si, a ferida estava enfaixada, e deram-lhe um gole de vinho para fortificá-lo. Quando Vitorino e alguns companheiros chegaram, ele já conseguia sorrir e aceitar as palavras de elogio e reconhecimento. Eles ajeitaram uma maca, com galhos, e carregaram Joãozinho até o acampamento, apesar de sua resistência. Ali recuperou-se, depois de um reforçado lanche, e pôde então gozar da admiração de todos como era direito de um jovem caçador de onças. Francisco e Pedro iniciaram logo o trabalho de depelar a onça, a bela pele manchada, esticando-a sobre varas para secar. Não era uma onça muito grande mas, mesmo assim, a pele esticada media do focinho até o começo da cauda, um metro e quinze centímetros e até a ponta do rabo mais de um metro e meio. (Agora está enfeitando o assoalho do escritório de Joãozinho. Quem quiser ver a pele pode ir até lá para ter certeza). Uma parte dos caçadores partiu ainda no mesmo dia. Porém, Vitorino, Pedro, Francisco e Belarmino ficaram com Joãozinho, cujo ferimento requeria uma noite de descanso. Somente na manhã seguinte puseram-se a caminhar das montanhas até a planície. Essa caminhada e a cavalgada até o lar foram uma tortura para Joãozinho. Mas, quando parecia sucumbir de dor, para que sua resistência crescesse bastava olhar para Vitorino, a quem ele ferira, e depois para a pele da onça, que carregava pendurada na sela como troféu. Ele e Vitorino foram recebidos pela mãe e irmãs com muita festa e alegria, pois os caçadores que voltaram no dia anterior já haviam relatado todos os acontecimentos. Joãozinho foi colocado imediatamente na cama e chamaram o curandeiro Sebastião Ribeiro que, preocupado, examinava o ferimento. Fez logo um novo curativo e esclareceu que precisaria ficar ali, pois o ferimento parecia perigoso. 186 Vitorino ficou mais um dia apenas, pois as férias tinham acabado. Na despedida, apertou a mão de Margarida, que estava também no quarto de Joãozinho, e olhou-a longamente nos olhos azuis escuros que brilhavam tão singularmente sob os negros cabelos da testa e perguntou-lhe: - Posso voltar e perguntar-lhe uma coisa? Quando Margarida, corada, respondeu-lhe que sim, deu um grito saltando sobre o cavalo e, agitando o chapéu, partiu em disparada. Joãozinho caíra em febre alta. Portanto, precisava permanecer algumas semanas em casa e recuperar-se aos poucos, com os cuidados da mãe e a ajuda do curandeiro. Todos os vizinhos vinham visitá-lo e admiravam a pele da onça que estava pendurada na cabeceira da cama. Bento Damásio veio com Anita e ficou dois dias com Joãozinho. Contudo, chegara finalmente a hora da despedida e Joãozinho partiu para o planalto, totalmente recuperado. 187 XXII A glória de Joãozinho na caçada. A partida para uma região duvidosa. A chegada na fazenda. O administrador Fabrício. Joãozinho é visto como espião. Estórias sinistras. A angústia. A mangueira e os urubus. O cavalo empacador. Os perigosos caminhos de cavalgada... Joãozinho logo acostumou-se, novamente, com a vida em Casa Branca. Vitorino narrara aos colegas de trabalho as aventuras vividas por ele e Joãozinho durante a caçada. Todos riram muito, porém invejavam Joãozinho pela bela pele de onça e pela glória. Então chegou uma carta de Bark, na qual ordenava a viagem imediata do jovem empregado. Havia também uma carta para o administrador e diversos outros documentos que davam uma visão geral do rebanho de gado e da administração, até o presente momento, da Fazenda Lavrinha. Para acompanhá-lo na viagem fora indicado Miguel, um peão da Casa Branca, que conhecia o caminho para Rio Preto e que também sabia lidar com gado. Tinha trinta e cinco anos, pele morena, lábios escuros, cavanhaque, e tido como pessoa de confiança. Antes da partida, Rodrigo chamou Joãozinho amigo em seu escritório e disse-lhe: - O administrador é uma raposa. Eu não confio nele. Ele deverá ter muita coisa para encobrir. Não se aproxime dele dando ordens, mas sim modesto e submisso. Faça até de conta que você é um pouco bobo. Mas mantenha olhos e ouvidos bem abertos! Provoque pequenas irregularidades, amigavelmente, porém se você descobrir falcatruas, antes de relatar ao Dr. Bark providencie as provas! Os dois viajantes cavalgaram por grandes campos, por sombrias matas escuras, pernoitaram em casa de moradores da mata e chegaram à fazenda Lavrinha na noite do terceiro dia de viagem. A fazenda ficava numa solitária e escura região, que antigamente era motivo de lutas entre Santa Catarina e Paraná. A neblina da noite encobria a região. Melancolicamente chegavam aos dois os mugidos 188 lamentosos do gado, que se empurrava próximo de um cercado onde havia uma poça de sangue de um animal há pouco abatido. Joãozinho teve um pressentimento inquietante de desgraça quando chegou, com seu companheiro, ao primeiro grande curral de gado. A segunda cerca separava o gado das casas da fazenda. Miguel desceu do cavalo e abriu a porteira da mangueira, fechando-a logo depois que passaram, para que o gado que ali estava não escapasse. Porém, um dos touros ficou enlouquecido, atirando longe a terra com suas patas e colocando-se em posição de ataque com seus imensos chifres. Assim que passaram pela segunda porteira veio-lhes ao encontro uma matilha de cães ferozes, latindo muito como se quisessem arrancar os dois estranhos de cima de seus cavalos e estraçalhá-los. Uma voz forte, vinda da escuridão da grande casa, ordenou aos cães que parassem. Em seguida, a voz dura perguntou desconfiada: - Quem é? - Os dois recém-chegados responderam: Paz! Amigos! e Miguel disse: - Senhor Fabrício, nós somos de Casa Branca! Aproximaram-se da casa, ao lado da qual avistava-se um pomar quase deserto com apenas alguns pés de pêssego e marmelo, e desceram do cavalo sob a áspera ordem do administrador. Este os convidou para entrar e sentar, olhando-os cheio de suspeita. Gritou para que lhe trouxessem luz e, imediatamente, veio um negrinho da cozinha lá de fora trazendo uma lamparina de querosene, acesa, que colocou sobre a mesa. Agora Joãozinho pôde ver que naquele grande cômodo, além da mesa, havia apenas dois bancos de madeira, uma cadeira de balanço e um pequeno armário. Nas paredes pintadas de branco estavam pendurados muitos retratos de santos em uma das paredes havia um laço enrolado e um par de botas de montaria, em outra, diversos arcos e flechas de índios, armas, e penas de pássaros. Enquanto os hóspedes tomavam o chimarrão, que logo fora oferecido, o administrador Fabrício lia a carta de seu patrão, sob a fraca luz do lampião. 189 Joãozinho observava como as rugas da testa e as sobrancelhas do administrador se franziam ameaçadoramente e como sua grosseira mão cabeluda amassava a carta, atirando-a sobre a mesa. Inquieto, seus dedos grossos puxavam a fina barba ruiva e os duros olhos negros pareciam perfurar a carta do patrão, que lia mais uma vez. Então levantou a cabeça para examinar os dois intrusos, que chamara, secretamente, de espiões, enquanto ria com ironia. - No jovem e elegante empregadinho eu dou um jeito, pensou O que ele entende de criação de gado? Esse eu espanto logo daqui, depois que lográ-lo. E o outro é apenas um peão que não manda nada. Fabrício reprimiu seu ódio e procurou fazer uma cara mais cortês. Com palavras amáveis, colocou a casa, os criados, sua pessoa e família à disposição do "jovem senhor". Com fisionomia muito alegre, chamou o negrinho e ordenou-lhe que providenciasse água quente para o banho dos hóspedes, arrumasse o quarto para o jovem senhor e recomendasse à cozinheira que preparasse um bom jantar. - Miguel, talvez prefira dormir com os outros peões, não? - disse confidencialmente para o acompanhante de Joãozinho. Miguel concordou satisfeito. Para Joãozinho era desagradável ter que dormir sozinho naquela casa tão estranha e inimiga, porém não queria mostrar-se medroso, já que não havia motivo nenhum para receio. Logo o jantar foi servido. O administrador fez companhia a seu hóspede, enquanto Miguel comia junto dos outros peões, onde se sentia mais à vontade. Após a refeição, Fabrício ofereceu a cadeira de balanço, o lugar de honra para o jovem. Mas, Joãozinho recusou humildemente e disse, com delicadeza, que o lugar de honra pertencia ao dono da casa, que o superava em idade, experiência e conhecimento. Ele era, apenas, um simples empregado. Depois dessa atitude despretensiosa de Joãozinho, Fabrício sentiu-se mais confiante. Começou, então, a falar da vida na fazenda, ressaltando o trabalho pesado, os inúmeros perigos e privações que se apresentavam ao administrador de uma fazenda desse tipo. Ele se 190 esforçava claramente para retratar a vida solitária daquela região o mais terrível possível, para que o jovem hóspede não tivesse prazer de estar ali. Para tanto, relatou-lhe como um touro bravo, no ano passado, atingira um peão com os chifres e lhe furara as entranhas; falou dos arruaceiros violentos da região que usavam qualquer oportunidade para uma briga sangrenta, e de alguns companheiros que odiavam e provocavam qualquer "senhor da cidade". Antes de se separarem, contou-lhe ainda de um horripilante homicídio que ocorrera numa das fazendas vizinhas, e do ataque de índios que ocorrera recentemente. Depois que ficou a noite toda relatando, propositadamente, acontecimentos horríveis, conduziu o jovem hóspede por um corredor coberto até uma pequena casa isolada, que ficava nas imediações de sua casa. A casinha tinha apenas dois cômodos: um era o escritório e, o outro, o quarto. As janelas eram de madeira e fechadas com tramelas. O administrador acendeu uma vela que estava sobre a mesa e disse, observando o quarto: - Há dois anos o nosso patrão, Dr. Bark, morou aqui. Depois disso ele não veio mais para Lavrinha. Naquela vez, construiu-se esta casa especialmente para ele. Agora serve como quarto de hóspedes. Tossiu um pouco e acrescentou, hesitante: - Alguns dos hóspedes afirmaram que aqui apareciam fantasmas. Quem vai acreditar nisso, não é mesmo? Bem, boa noite! - Dizendo isto, saiu da pequena casa e dirigiu-se para a área externa que levava ao corredor. Joãozinho pegou o lampiãozinho e examinou os dois cômodos, a porta de saída e as duas janelas. Verificou também se sua bolsa, com os livros, os documentos e as roupas, já estava ali. Tirou o revólver da bolsa e colocou-o embaixo do travesseiro. Só então deitouse na fria cama de armação de ferro. Estava muito cansado e mal humorado, pois sentia-se abandonado e ameaçado aqui nesta fazenda solitária. Sentiu saudade de seu quarto acolhedor em Casa Branca, e também uma profunda falta de sua mãe. Por um instante pensou ouvir um barulho, o que o fez ficar à espreita, olhando ao redor. No entanto, 191 era apenas o mugido melancólico do gado que ecoava em seu quarto, provocando-lhe vontade de chorar. Porém, reuniu suas forças e pensou: - Você não é um covarde e nem um traidor! Coragem, tudo vai dar certo!- Então esforçou-se em afugentar os pensamentos tenebrosos e trocá-los por outros alegres, e luminosos, para que pudesse vencer essa batalha, como aprendera com Rodrigo. Antes de dormir, fez sua oração, pedindo a Deus que lhe desse força e coragem para enfrentar essa situação difícil. Ficou acordado ainda por muito tempo nesta noite, mas acordou bem disposto pela manhã. Levantou, lavou-se, e enquanto se vestia olhava pela janela aberta. Na mangueira, ao lado da casa, alguns peões seguravam três vacas leiteiras no laço, enquanto a mulher e a filha do administrador, agachadas, numa posição desconfortável, ordenhavam as vacas. Joãozinho pensou consigo: - Que dificuldade! Eles não poderiam acostumar as vacas na cocheira com comida e as duas mulheres sentarem-se num banquinho enquanto tiram o leite, como lá em casa? - Nas cumeeiras do telhado pousaram alguns urubus esperando por uma presa. As galinhas cacarejavam e uma pequena vara de porcos se acercava do negrinho que aparecera com o milho. Joãozinho dirigiu-se para a casa principal onde Fabrício o cumprimentou com gracejos, antes de, juntos, tomarem o café da manhã. Quando as mulheres entraram com o leite, Fabrício apresentou sua mulher, Rosa, e as duas filhas, Miloca, de quatorze, e Adelaide de dezesseis anos. Os filhos, Sérgio e Nestor, estavam, segundo ele, já há muito tempo com os peões no campo para reunir o gado. Joãozinho trocou algumas palavras amáveis com a gorda e morena Rosa e também com suas belas filhas bem mais claras que a mãe. Em seguida, um dos peões apareceu diante da porta com dois cavalos selados. - O jovem senhor deverá ver tudo! - disse Fabrício rindo. - Quero lhe mostrar a fazenda toda, pedaço por pedaço, como o patrão ordena em sua carta. Então você poderá relatar ao Dr. Bark que encontrou tudo na mais perfeita ordem e que o velho Fabrício ainda está em forma. 192 Dizendo isto, saiu e saltou sobre o grande cavalo branco. A Joãozinho coube o bonito alazão. Contudo, mal encostara o salto da bota no flanco do animal para que seguisse o cavalo branco, quando o alazão levantou as pernas da frente, ficando em pé nas traseiras, e começando a girar. Se Joãozinho não fosse um cavaleiro treinado, teria caído do animal, com sela e tudo, e seria alvo de muitas risadas. Escolheram-lhe o cavalo empacador intencionalmente para que perdesse a vontade de cavalgar para vistoriar a fazenda. As mulheres estavam na porta rindo e esperando pelo espetáculo que deveria acontecer. Em Casa Branca, Joãozinho teria dado um jeito num animal teimoso assim, mas aqui, numa região estranha, onde ele era visto como inimigo, julgava uma grande perda de tempo tentar fazer o animal mudar de idéia. Sabia, por experiência, que seria quase impossível fazer um animal empacador moderar-se. Assim, acariciou calmamente o gordo pescoço do alazão, desceu e disse para o irônico Fabrício: - Dê-me, por favor, um cavalo de montaria que não tenha maus costumes, senão vou com meu próprio cavalo ou a pé! - Sim, claro, eu pensei que você fosse um bom cavaleiro -, disse o administrador com raiva. Então gritou para o negrinho, que sorria ironicamente: - Traga o cavalo de dona Adelaide! O cavalo de uma mulher deve ser suficientemente manso para o jovem senhor, não? O negrinho trouxe o cavalo e Joãozinho colocou-lhe a sela e subiu mal humorado no animal. Porém o cavalo andava num bom passo. O administrador foi à frente e cruzou a verde campina, tomando o caminho que levava às altas montanhas limítrofes. Havia alguns trechos em que era extremamente perigoso cavalgar. Subiam e desciam escarpas íngremes no meio da densa mata, cavalgavam por áreas pantanosas, por escorregadios rochedos, sobre raízes nodosas e troncos caídos. Algumas vezes, o cavalo chegava a tropeçar, ficar preso na lama, ou até se enrolar nas plantas trepadeiras e raízes. 193 Joãozinho, que percebera imediatamente que a intenção do administrador era fazê-lo desistir, diante dos perigos e da fadiga, disse com raiva que iria alertar o Dr. Bark sobre os terríveis caminhos de sua fazenda. - Mas eu queria lhe mostrar as divisas, - desculpou-se Fabrício e desviou agora em direção ao campo, onde era mais fácil cavalgar. Ali, no capim alto, o belo gado pastava por toda parte. Então avistaram pequenos grupos de cavalos. - Veja tudo muito bem! - gritou o administrador, - e tome nota direitinho de quanto gado existe! - Mande todo dia tocar alguns rebanhos para as mangueiras, - sugeriu Joãozinho. Só então eu vou poder avaliar quanto gado há. Fabrício, enfurecido, começou a mastigar as pontas do bigode ruivo, calando-se. Porém, depois que se acalmara, disse rindo: - Mas é uma trabalheira o que o jovem senhor exige, mas será feito! Dr. Bark ficará satisfeito com seu velho e fiel administrador. 194 XXIII A Fazenda Lavrinha. A criação de gado. A invernada. Os cochos de sal grosso para o gado. O berne. O laço em atividade. Os bezerros marcados a ferro quente. Os peões. Os agregados. As artimanhas do administrador. As estações de chuva e a contabilidade... Enquanto o tempo continuava bom, eles cavalgavam todos os dias pela fazenda. Fabrício relatava que a Fazenda Lavrinha tinha uma área de doze mil hectares. Pastavam nos campos mais de mil cabeças de gado bovino e mais de duzentas cabeças de cavalos e burros. No inverno, quando a grama secava no planalto devido às geadas, o gado era levado para as invernadas, uma pastagens cercadas. Nestas pastagens havia, mesmo no inverno, criciúma ou caracá, suculenta graminácea e colmo, onde o gado pode saciar sua fome. Nos dias ensolarados de inverno, punha-se fogo no campo seco que rebrotava logo nos primeiros dias de primavera até que todo o campo estivesse verdinho. Então, retirava-se o gado da invernada e soltava-se novamente no campo. Cada rês trazia na anca a marca de seu proprietário, sinal de reconhecimento, pois às vezes alguma cabeça atravessava para a fazenda vizinha, perdendo-se ou não aparecendo por muito tempo. Com as marcas, era possível reconhecer um animal mesmo depois de anos, o que era muito importante quando havia roubo de gado. Joãozinho verificava se realmente os cavalos, bois, vacas e mulas tinham a marca NB, que eram as iniciais de Norberto Bark. Todos os dias passavam pelos bretes, espalhados pelos cercados da fazenda, rebanhos inteiros de gado. Os peões, munidos de laços, com os chapéus de aba larga atirados na nuca, corriam montados em seus cavalos, perseguindo os animais, tocados pelos cães, e que não queriam entrar no cercado. Em grandes troncos escavados e colocados sobre cavaletes estava o cobiçado sal para o 195 gado lamber. Com essa atitude os rebanhos foram, aos poucos, se acostumando com as mangueiras. Algumas vacas e bois tinham uma aparência horrível, pois seu pêlo apresentava sangrentas feridas com vermes. Estes originavam-se de uma mosca de cujos ovos nasce o berne que entra na pele do animal. O animal poderá mover-se esses ferimentos, que parecem formigar de vermes não forem tratados com Lysol, mercúrio ou algum remédio parecido. Os animais atacados pelo berne eram laçados e atirados cuidadosamente no chão, segurados por vários peões, até que a ferida fosse limpa e tratada. Isto era feito nas mangueiras. Da mesma forma, o gado era reunido nas mangueiras, para que os bezerros fossem marcados ao passarem pelo brete. As iniciais feitas de ferro, fixadas num cabo de madeira, eram aquecidas até ficarem em brasa, para então marcar-se a traseira do animal que se estrebuchava no chão. Então, no local queimado colocava-se sebo ou esterco de vaca soltando, em seguida, o trêmulo animal que, num salto, se misturava ao rebanho. Os rudes peões de gado afirmavam que essa queimadura não doía muito no gado. Joãozinho prestava atenção. Procurava guardar exatamente o número de animais marcados ali, a cor, a aparência e o número de animais reunidos nas mangueiras. Logo percebeu que o administrador Fabrício apresentava alguns rebanhos duas, e até três vezes, em cercados diferentes, para fazê-lo acreditar que eram sempre outros rebanhos. Assim, o jovem empregado veria um número de gado que na realidade não existia. Na presença de Fabrício, Joãozinho não anotava nada, e também não fazia nenhuma crítica, pois recordava-se das palavras de Rodrigo quando disse que o administrador era uma raposa. Somente à noite em seu quarto, depois que fechava a porta e as janelas, anotava o que observara e o número real de gado jovem e velho. Também calculava e comparava suas anotações com os documentos que recebera do patrão. Convencia-se, aos poucos, de que o administrador lograra seu patrão em centenas de cabeças de gado. Mas onde estava o gado que faltava? Não poderia aparecer ainda, no final? Fabrício não 196 poderia esconder essas cabeças intencionalmente e, depois que ele entregasse seu relatório ao patrão, fazê-las surgir novamente para retratá-lo como mentiroso ao patrão? Isto dificilmente aconteceria. Mas, então, que coisa suspeita estava acontecendo ali? Assim, uma semana já se passara e o administrador se irritava secretamente, pois não havia "bisbilhotado" e "espionado" o suficiente. Será que o "Jovem infante" não iria mais embora? Joãozinho, ao contrário, parecia ter tomado gosto pela vida da fazenda. Observava os peões quando enrolavam e atiravam o laço e procurava imitá-los. Ficava atento quando os peões, a galope, perseguiam um touro com os laços, prendendo-o pelos chifres, e então virando o cavalo para que se encostasse contra o laço fazendo com que o animal parasse, sem cair. Joãozinho também ajudava os peões nos demais serviços, quando tinha tempo. Os filhos do administrador viam com má vontade como os peões gostavam do jovem empregado. Nunca se permitia que o "espião", como chamavam Joãozinho, perambulasse sozinho pela fazenda. Como Joãozinho gostaria de estar sozinho às vezes, sem a maçante companhia, para se deitar na relva e poder ouvir o sussurrar do vento nos pinheiros, ou caminhar a pé pela floresta. Ele percebia que não queriam dar-lhe oportunidade de falar a sós com os peões e agregados. Nas vistorias pela fazenda, Fabrício e o jovem empregado paravam algumas vezes na casa de algum agregado para descansar. Os agregados moravam em miseráveis cabanas espalhadas pela fazenda e cada um deveria tomar conta de uma área de pasto com gado. Alguns eram casados e tinham filhos. Ganhavam pouco e todos tinham, perto da casa, uma pequena plantação da qual viviam. Uma tarde, Fabrício e seu acompanhante pararam na choupana de um agregado que se chamava Candido Borges. O administrador cumprimentou o subordinado de maneira muito mais amigável do que fizera com os outros agregados. Joãozinho admiravase como Fabrício agia confiantemente com este simples habitante da mata, chamando-o de amigo e brincando com seus filhos. Já ontem, tratara de modo rude e repulsivo o agregado Felesbino Lammin, que 197 parecia muito inteligente, chegando mesmo a ameaçá-lo com o chicote. Entraram na cabana. Fabrício foi logo deitando com as botas sujas na rede que também não parecia limpa. Joãozinho sentouse num banquinho de madeira. O submisso Candido Borges ofereceu a seus hóspedes cigarros de palha de milho, chimarrão e, por último, um cafezinho forte com bolo de milho. Joãozinho arrastou seu banquinho até perto da rede, onde estava o banco que servia de mesa, e comeu com prazer o que lhe ofereceram. Nesse instante, percebeu casualmente quando Fabrício piscou para o dono da casa. Em seguida, ambos deixaram a choupana pela porta de trás para ali ficarem cochichando. Quando entraram novamente, Fabrício despediu-se com familiaridade do pobre agregado. No caminho para casa explicou a seu acompanhante que o agregado o chamara de lado para pedir-lhe um dinheiro adiantado. Joãozinho não disse nada, mas crescia sua suspeita em relação ao administrador. Na manhã seguinte chovia forte. Tudo brilhava de molhado, e dos telhados de ripa a água caía como uma cachoeira sussurrante. Os filhos e os peões de Fabrício não podiam trabalhar num tempo desses. Assim, jogavam baralho, fumavam e contavam piadas ao redor do fogo do paiol. Miguel, o companheiro de viagem de Joãozinho, que há muito fizera amizade com eles, também estava ali. Joãozinho ouvia-lhes as altas risadas. Após o café da manhã, pediu ao administrador os livros de contabilidade da fazenda. - Os livros?...- bradou Fabrício, - eu só tenho um livro..., no qual eu anoto tudo quanto foi vendido, o que morreu e o que foi roubado pelos bugres. Anotar mais do que isto não é necessário. Então, levantou a voz, alterado: - Você inspecionou todo o gado pessoalmente, o que pode haver nos livros para ser bisbilhotado, hem? Eu não aconselharia isso a ninguém, meu amigo, senão...- Aproximou- 198 se ameaçador do jovem e olhou-o com grande ódio. Este desculpou-se humildemente, porém só estava seguindo as ordens do patrão. - Por mim! Nem ligo resmungou Fabrício e entrou no quarto. - Tome... pegue o livro! - disse saindo novamente do quarto, e estendeu ao rapaz um livro sujo, de capas rasgadas. Joãozinho recolheu-se a seu quarto e passou o dia inteiro comparando os registros de Fabrício com suas anotações. Ficou ali, calculando e anotando, tudo com a cabeça quente. Quanto mais se aprofundava no trabalho, mais claro ia-lhe ficando que Fabrício enganara seu patrão de maneira vergonhosa. A seguir, começou a fazer um relatório preciso de sua atuação e observações durante o tempo que estava ali. Terminou o trabalho de madrugada, depois de queimar as duas velas que estavam sobre a mesa. Durante toda a noite, a chuva caíra sobre o telhado de ripas de sua casinha. Porém, na manhã seguinte, o sol brilhava novamente sobre os telhados molhados e as poças d'água do quintal. Os urubus formavam uma longa fileira no telhado, esticando suas asas para secar. Joãozinho, antes de tomar café, chamou seu companheiro Miguel e pediu-lhe que selasse o cavalo para despachar a carta com o relatório escrito durante a noite, para o Dr. Bark, em Curitiba. Joãozinho preferia ir junto com Miguel, mas alguma coisa o retinha ali. Não sabia se era apenas seu senso de responsabilidade ou uma ânsia secreta em descobrir a artimanha do administrador. De qualquer maneira, queria aguardar a resposta da carta e eventuais novas ordens de seu patrão, antes que desse seu trabalho por encerrado. Assim que Miguel estava pronto para partir, Joãozinho selou seu cavalo também. O administrador aproximou-se rapidamente e perguntou um pouco alegre, um pouco surpreso: - O que significa isso? Vocês querem voltar para casa hoje, sem que a gente tivesse feito uma despedida para vocês? 199 - Não - disse Joãozinho rindo - Miguel vai sozinho. Ele tem muito mais trabalho lá do que aqui. E também não vai demorar muito, até que eu também vá embora para cuidar dos meus afazeres costumeiros. Agora, quero acompanhar Miguel por um trecho do caminho. Ele está levando um pedaço do churrasco de ontem para a viagem. E, também, no caminho tem muitos conhecidos e poderá comer nas casa deles. - Espere um pouco - disse o administrador. - Eu vou acompanhá-los. Joãozinho, contrariado, teve que esperar com Miguel até que Fabrício selasse seu cavalo. Assim, os três cavalgaram em direção ao campo livre que se estendia após os cercados da fazenda. 200 XXIV A fazenda vizinha. A suspeita de Joãozinho em relação a Fabrício se confirma. Ele treina arremesso de laço. O fantasma noturno. A armadilha do fantasma. O fantasma é surrado... Os dois acompanharam Miguel através do úmido e cintilante campo verde, do bosquinho gotejante da água da chuva, da colina verde, passando pelos bretes das mangueiras até chegarem à estrada principal, ao lado da fazenda vizinha, que pertencia ao velho Bueno. No verde gramado pastavam cavalos e vacas. Ao fundo levantava-se, sério e majestoso, um bosque de pinheiros. Fabrício tentou por diversas vezes fazer com que seu jovem hóspede retornasse, e Joãozinho compreendeu que o administrador não iria deixá-lo, nem um instante, sozinho com Miguel. Assim, parou e despediu-se do companheiro. Joãozinho e Fabrício pararam seus cavalos bem diante da casa da fazenda vizinha. O velho Bueno, um homem alto de quase setenta anos, estava de pé, de chinelos, na entrada da porteira. Sob seu chapéu de aba larga destacavam-se espessas sobrancelhas, e um par de olhos inteligentes brilhavam. Quando viu Miguel se afastar, chamou os dois acompanhantes: - Olá, vocês não vão passar, sem ao menos tomar um chimarrão comigo, hem? Fabricio queria um pretexto para continuar a cavalgada, porém Joãozinho desceu do cavalo, aproximou-se e estendeu a mão ao velho homem. Assim, Fabrício teve que seguir seu exemplo, sorrindo. Conversando, eles aproximaram-se da casa e subiram os degraus que levavam à varanda. Sentaram-se num banco de madeira e, a um chamado de Bueno, um jovem trouxe a chaleira com água quente, a cuia com o verde mate e a bombilha prateada. Todos, um após o outro, sorveram satisfeitos aquela bebida quente e amarga. O velho fazendeiro perguntou a Joãozinho pelo Dr. Bark, que não via há dois anos. Enquanto conversavam, saiu da casa Tibério, o filho do velho Bueno, que cumprimentou os hóspedes e disse 201 a Fabrício: - Que bom que eu o encontrei. Preciso falar um instante com você, a sós. Vamos até a sala! - Não podemos conversar aqui? - replicou Fabrício. - Não, não, venha! É só por alguns minutos! - disse Tibério, e pegou o administrador pelo braço levando-o consigo. Mal a porta se fechara atrás dos dois, o velho Bueno curvou-se sobre o jovem hóspede e cochichou-lhe ao ouvido: - Muita coisa não está certa lá na fazenda, hem? - Joãozinho balançou a cabeça, sombrio. - Eu já esperava por isso - disse o velho Bueno. - Eu já teria escrito uma carta, há muito tempo, para meu vizinho, o Dr. Bark, para dizer-lhe como seu administrador está agindo. Porém com as coisas escritas a gente deve tomar muito cuidado! Eu estava esperando que o vizinho viesse, pessoalmente, de Curitiba. - O senhor sabe alguma coisa da administração de Fabrício? - perguntou Joãozinho baixinho, olhando assustado para a porta que permanecia fechada. - Bem, eu aposto que Fabrício não anotou em seu caderno de registro as duas boiadas de gado que levou, no ano passado e neste, para as colônias alemãs de São Bento e Joinville. Passou com as boiadas aqui à noite. E também não deve ter registrado os cavalos e mulas que vendeu para São Paulo, passando aqui por Rio Negro. O velho cuspiu fortemente e prosseguiu: - Seus condutores de gado são os filhos, mas o mediador dos negócios é seu agregado Cândido Borges... Converse com o outro agregado Felesbino Lammin... psiu! A porta se abriu. Fabrício entrou na varanda, seguido de Tibério, lançando um olhar indagador para o velho Bueno que, inocentemente, se preocupava agora em despejar água quente na cuia. - Vamos, vamos! - disse Fabrício pegando seu jovem acompanhante pelo braço e conduzindo-o para a saída. Para não levantar suspeitas, Joãozinho levantou-se, despediu-se do pai e do filho e dirigiu-se até seu cavalo. Então, voltou com o administrador para a fazenda. 202 Durante o dia acabou ajudando a reunir o gado, treinou o arremesso de laço e assistiu ao abate de uma gorda cabeça de gado. À noite dirigiu-se, cansado, para seu quarto, onde logo se deitou. Não sabia ao certo quanto tempo dormira, quando foi despertado por um ruído estranho. Parecia que alguém empurrava de fora as janelas de madeira. Então ouviu um gemido horrível. - Talvez sejam gatos - pensou Joãozinho, e deitou-se novamente. Contudo, sentiu-se envergonhado ao constatar que seu coração disparara. De repente, ouviu três batidas surdas em sua porta: - Toc, toc, toc! Joãozinho levantou-se devagarzinho, pegou o revólver e foi até a porta. Então, ouviu as batidas bem de perto: - Toc, toc, toc! e um gemido terrível. O jovem lembrou-se rapidamente das estórias de assombração que o administrador lhe contara. E, apesar de não acreditar em fantasmas, sentia que isso o assustava. O que deveria fazer? Ele se atreveria a abrir a porta e sair para verificar? Seu coração parecia querer saltar do peito. E, novamente, ressoaram os passos e o gemido seguido de três batidas solenes na porta, como se uma pobre alma não pudesse encontrar a paz eterna. - Mas que besteira! - murmurou Joãozinho, com raiva de seu pavor, afastando-se da porta. Ele precisava pegar o fantasma, custasse o que custasse, pois do contrário não teria paz! Com muito cuidado, apoiou o pé na porta, que abria para dentro, empurrou a tramela devagarzinho, abrindo um pouco a porta e olhou, através da pequena abertura, lá para fora. Porém, rápido como um raio, fechou novamente a porta, pois lá fora flutuava um fantasma vestindo mortalha, em cuja caveira de dentes arreganhados, brilhava uma pequena luz mágica. O jovem estava assustado, atrás da porta de seu quarto escuro, tremendo dos pés à cabeça. Todavia, logo reagiu e disse a si mesmo: Para pessoa corajosa não existem fantasmas! E então veio-lhe a suspeita de que a assombração era planejada por um ser vivo para assustá-lo. Este 203 pensamento sobrepôs-se ao medo e despertou nele uma raiva silenciosa. Muniu-se de coragem, segurou o revólver pronto para disparar à sua frente e abriu a porta com um empurrão... O corredor ao lado, por onde o fantasma flutuara, estava vazio. Com a luz das estrelas, Joãozinho viu a parede da casa do administrador, do outro lado, e sussurrou para si: - Meu Deus, se eu tivesse atirado no fantasma!... A bala atravessaria a parede de madeira do quarto da família do administrador... E o que poderia ter acontecido!... Fechou novamente a porta e deitou-se. Ficou acordado por muito tempo antes de adormecer. No dia seguinte, não disse nada do que lhe acontecera a ninguém, pois não confiava em ninguém aqui e sentia-se como se estivesse entre inimigos. Então começou novamente a chover forte e todos tiveram que ficar dentro das casas ou galpões. Joãozinho passou a maior parte do dia deitado em seu quarto, inquieto e pensativo. Tentava arrumar um jeito de pegar o autor do fantasma. Após o jantar com Fabrício e os filhos, foi até seu quarto pelo corredor lateral que era aberto e recoberto de ripas. Então teve uma idéia. Aguardou em seu quarto, sem luz, por umas duas horas, até que tudo estava em silêncio e no escuro, tanto na casa do administrador quanto nos ranchos. Então saiu sorrateiramente para o corredor, onde estendeu um laço, na altura de uns 30 centímetros, amarrando-o num dos postes que sustentavam o telhado do estreito corredor. Assim, o laço estava armado acima do assoalho e na escuridão da noite representava um obstáculo, sobre o qual alguém que se aproximasse desprevenido tropeçaria e, fatalmente, cairia. Depois que esticara o laço e prendera firmemente suas pontas, dirigiuse para seu quarto, onde pegou o relho, que tinha um cabo grosso de madeira, e pôs-se a espreitar através da fresta da porta... Por volta da meia-noite, ouviu um ruído... Então seu coração começou a bater com mais força. Porém, forçou os olhos sob a 204 luz das estrelas e viu que o mesmo fantasma da noite anterior, se aproximava. A mortalha brilhava com uma fraca luz vinda de dentro da caveira... Com horror, Joãozinho viu quando a figura branca parou e, após um pequeno titubear, dirigiu-se pelo corredor até a porta de seu quarto. A horrível aparição se aproximava deslizando... e daí... pum!... um tropeçar sobre o laço que estava bem esticado... a caveira iluminada caiu ao chão fazendo barulho e a figura fantasmagórica agitava os braços procurando alguma coisa em que se segurar enquanto caia desajeitadamente no chão. Ouviu-se então um gemido e um praguejar reprimido. No instante seguinte, Joãozinho já estava do lado de fora e batia com seu relho na figura que se debatia e que tentava, inutilmente, levantar-se. Os fortes golpes fizeram com que a assustadora figura começasse a gemer alto. Joãozinho arrancou o lençol branco do fantasma que se retorcia no chão e reconheceu, sob a pálida luz das estrelas, o rosto magro de Nestor, o filho do administrador. -Pare senhor Joãozinho! - gemia ele, tentando desviar-se dos golpes com os braços, - era apenas uma brincadeira! Joãozinho deixou que ele se levantasse e tocou-o dali com mais dois golpes. Levantou a caveira, que parecia ser de um índio morto, mas a pequena vela que estava no interior tinha-se apagado. Na manhã seguinte, o administrador disse-lhe que ouvira falar da brincadeira que Nestor fizera com ele. Ele não achava justo esse tipo de brincadeira com os hóspedes, mas Joãozinho também não precisaria ter batido com tanta força. O jovem hóspede calou-se mal humorado. Ele sabia muito bem que Nestor tramara a estória do fantasma com aprovação do pai, a fim de afugentar da região o "bisbilhoteiro" desprezado. Porém, por mais que se sentisse inquieto, resistiria até que seu patrão o dispensasse daquele serviço horrível. Nestor, entretanto, não deu as caras por alguns dias, pois estava todo roxo das pancadas e seu rosto estava muito inchado. 205 XXV As tentativas frustradas para uma explicação. Joãozinho tenta se furtar da situação. Ele é alcançado. Os índios. Os bois mortos. As trilhas de bugres. O assalto dos selvagens. O buraco do tatu. O acidente de Fabrício. Joãozinho, na tentativa de fuga, encontra o acampamento dos bugres. Nestor... Mais três dias se passaram e Joãozinho continuava, aflito, na fazenda. Duas vezes tentou se afastar secretamente dali, arrastando-se pelo campo até a estrada, pois gostaria muito de conversar mais uma vez com o velho Bueno. Contudo, todas as tentativas para ser bem sucedido em seu empreendimento se frustravam, pois Fabrício, que esperava impaciente a partida do espião, não permitia que este se encontrasse com outras pessoas. Agora Joãozinho queria tentar encontrar o agregado Felesbino Lammin e falar-lhe em particular. O velho Bueno chamara sua atenção justamente para este agregado e Joãozinho percebera, pessoalmente, que Felesbino era um estorvo na vida do administrador. Provavelmente o inteligente agregado sabia mais do que convinha ao administrador. Na mangueira perto da casa, geralmente o ambiente era muito silencioso na hora da sesta, após o almoço. O administrador costumava então fazer uma curta pausa para evitar o sol mais quente do dia. Joãozinho aproveitou justamente aquela hora, quente e silenciosa do sexto dia após a partida de Miguel, para escapulir pela parte de trás de sua casa. Sem ser visto, chegou ao campo livre sobre o qual o calor do meio dia cintilava. Caminhou a passos largos com o revólver e faca no cinto, esperançoso de agora alcançar seu objetivo. Já percorrera metade do caminho que levava à cabana de Lammin, sempre atento para ver se não estava sendo seguido, quando viu o administrador surgir, a galope, por detrás de uns arbustos. - Diabos! - murmurou o furioso jovem, enquanto enxugava o suor do rosto. Parou, esperando que o cavaleiro se aproximasse, pois sua tentativa agora seria inútil. 206 Logo o administrador parou o cavalo branco ao lado de Joãozinho e falou-lhe preocupado: - O senhor sabe o perigo que está correndo, seu João, andando sozinho, e ainda a pé, aí pelo campo! Joãozinho olhou-o interrogativamente e Fabrício continuou enquanto enxugava o suor do rosto: - Eu não queria lhe dizer, para não assustá-lo, mas o senhor está me forçando... os bugres estão aí de novo. Joãozinho estremeceu levemente e deu uma olhada na região erma em que se encontrava. Porém, lembrou-se das estórias de fantasmas e sorriu, gozador. Na certa o administrador queria afastá-lo dali definitivamente com esse novo plano apavorante. - Não ria - disse Fabrício muito sério.- Provavelmente sua vontade de rir passaria bem depressa! Esta noite, os índios cercaram e atacaram a cabana do agregado Cândido Borges. Bombardearam o telhado e as paredes com pedras e pedaços de madeira. Felizmente, Cândido Borges estava em casa e ele e sua mulher deram alguns tiros nos selvagens, fazendo com que fossem embora. - Hoje de manhã mandei percorrer a área. Encontramos restos de dois bois gordos, que foram abatidos pelos índios. Acompanhe-me que lhe mostrarei o local, pois não estamos longe dele! Ainda duvidando, Joãozinho seguiu o administrador, que tomou o caminho da direita. Passaram por um pequeno capão de mata e chegaram ao campo livre. Ali estava a carcaça de um boi, que tinha apenas alguns restos de carne na barriga e no pescoço. No couro cheio de sangue do pescoço estava fincada uma flecha de índios, de um metro e meio mais ou menos. O índios levaram, certamente, a maior parte da carne deixando o resto para ser disputado entre os negros urubus e os cachorros. Joãozinho observava tudo em silêncio. - Agora olhe ali! - gritou o administrador e mostrou, com o chicote, um pedaço de terra sem grama. - O senhor está vendo as pegadas dos bugres? Os dedos grandes dos pés com os quais os índios armam o arco. Nisto, reconhece-se imediatamente o rastro dos bugres. 207 Joãozinho ficou sério e agachou-se no chão. Realmente, eram pegadas de índios! A flecha também era verdadeira. Não, desta vez o administrador não estava fingindo! O perigo que um ataque de índios significava era assustador. Joãozinho lera nos jornais, e ouvira conhecidos contarem, que os bugres preferiam atacar ao raiar do dia ou na hora quente e silenciosa após o almoço. Assim, Joãozinho gostou que Fabrício lhe fizesse companhia, a cavalo, até a cabana de Cândido Borges. Enquanto caminhavam, olhavam para todos os lados, para se assegurarem de que os bugres não os estavam espreitando escondidos no capim alto. Encontraram o agregado e sua mulher muito preocupados e pediram que lhes contassem mais uma vez como ocorrera o ataque da noite anterior. Cândido Borges descrevia tudo gesticulando muito, e Joãozinho o acompanhava com olhos arregalados. Fabrício bateu-lhe nos ombros. - O senhor não deverá permanecer por mais tempo na fazenda, seu João! - disse preocupado. - Eu não posso permitir que um empregado de meu patrão, tão capaz, corra risco de ser morto pelos índios! Joãozinho olhou para o chão e não sabia o que dizer. Fabrício continuou dizendo: - E, de qualquer modo, alguém precisa ir imediatamente para Curitiba, a fim de informar o patrão que bugres invadiram suas terras e que estão roubando gado e ameaçando vidas humanas. Alguém precisa lhe contar o prejuízo que os bugres causaram nos últimos dois anos. Isto não está anotado no meu livro de registro mas o senhor foi testemunha... Quem eu poderia mandar agora para lá, já que preciso de todos os homens que sabem atirar para defender a fazenda e resistir aos ataques, hem? Seu João, o senhor precisa ser o mensageiro... Nesse momento, lá fora, dois cachorros começaram a uivar alto, sem motivo aparente, e entraram na cozinha correndo, trêmulos e de cauda encolhida. O cavalo do administrador fungava tão nervoso que acabou se soltando e saindo dali em disparada. Em seguida, ouviu-se um horrível uivo indescritível vindo da mata próxima, fazendo com que todos estremecessem. Joãozinho ficou pálido de susto. 208 - Os bugres! Os bugres! - gritavam Fabrício e Cândido, levantando-se rapidamente e pegando suas armas. - Eles deram seu grito de guerra! Agora é uma questão de vida ou morte! E já voava uma chuva de pedras e de paus sobre o telhado de ripas e sobre as tábuas da cabana, seguida do mesmo grito horripilante que a todos apavorava. Fabrício viu como tremia o revólver que Joãozinho segurava na mão e disse-lhe: - Tome a espingarda! Com ela você poderá mirar melhor, já que sua mão está tremendo! Me dê o revólver! - Dizendo isso empurrou a espingarda de um cano só nas mãos do jovem e arrancou-lhe o revólver. Cândido Borges e sua mulher também estavam armados, e as crianças estavam trancadas no quarto. - Ali, ali, o senhor está vendo? - gritava o administrador com os olhos esbugalhados indicando uma fresta nas tábuas, por onde Joãozinho podia ver um bando de bugres nus dançando, armados, a dança de guerra. - Atire! Depressa! Depressa! - e já o revólver de Joãozinho que estava em suas mãos disparava. Joãozinho mirou, não muito seguro, um índio gordo e forte que se aproximava mais e disparou. Porém sua espingarda falhou. Ouviu-se apenas o estalar do gatilho. Contudo, o índio percebera o perigo e recuara. Agora ecoavam também os tiros que Cândido Borges e sua mulher disparavam contra os índios. Duas figuras nuas caíram no chão e, com um uivo horrível, os índios arrastaram consigo, os dois feridos. - Que sorte que os senhores vieram bem na hora! - disse Cândido Borges para seus hóspedes e respirou aliviado: - Assim pudemos defender a casa pelos quatro cantos. Os bugres perceberam, na hora, que agora havia mais que um protetor na cabana. Por hoje, vamos ter paz dessa corja covarde. - Só espero que o bando não se dirija agora para minha casa!- disse o administrador com as sobrancelhas franzidas. - O que vamos fazer? Meu cavalo escapou... Se voltarmos agora a pé, vamos cair nas mãos dos índios... e se ficarmos aqui, então os selvagens irão assassinar minha família que não foi avisada a tempo. 209 - Nós precisamos tentar passar por eles. Talvez a pé seja melhor que a cavalo, - sugeriu Joãozinho que já estava, novamente, cheio de coragem após a fuga rápida dos selvagens, causada pelos tiros. - Também não há outro jeito - concordou Fabrício e fincou o revólver de Joãozinho em seu cinto. - Dê-me meu revólver! - disse Joãozinho - Agora minha mão não vai tremer mais. O aspecto e o uivo dos bugres era, antes, algo estranho para mim... Fabrício e Cândido trocaram um olhar e então o administrador e Joãozinho se despediram, não sem antes verificar cuidadosamente suas armas. Saíram, atentos, pela porta dos fundos em direção ao capim alto. Os cães da casa estavam calmamente deitados em seus lugares, ao lado da cabana, o que era um sinal que os índios não estavam mais nas proximidades. Apressados e curvados, os dois se arrastaram pelo campo. O administrador tomou a direção de sua casa. A pé, levariam provavelmente mais que uma hora até chegar lá. Mas, como tinham que ter muito cuidado para não serem descobertos pelos bugres, a caminhada se prolongaria ainda mais. Começaram a caminhar rapidamente. Em regiões cobertas pela mata, aguardavam um pouco antes de prosseguirem. O administrador suava e praguejava. Há anos estava acostumado a percorrer,a cavalo, mesmo uma distância pequena. Assim, seus pés não estavam mais acostumados com uma caminhada dessas. E, além disso, as altas botas de montaria apertavam e o sol do meio dia queimava sem piedade. De repente, deu um grito de dor e caiu murmurando injúrias. Ele pisara com a bota num buraco de tatu e torcera o pé. Mesmo mancando, tentava continuar a caminhada, mas não havia jeito, pois seu pé inchava e doía cada vez mais. Sentou-se gemendo na grama e Joãozinho ajudou-o a tirar a bota. Agora não havia outra alternativa, Joãozinho teria que tentar chegar ao destino sem o 210 administrador. Porém, teve que prometer-lhe que traria, o mais rápido possível, seu filho Sérgio com um cavalo selado para levá-lo para casa. Joãozinho prometeu e saiu, com muito cuidado, arrastando-se dali sozinho. Caminhou através de depressões recobertas de mato, verdes colinas e atravessou alguns riachos e capões de mato. Depois de muito caminhar, julgou que, a qualquer momento, avistaria a mangueira da fazenda. Depois que passou por mais um capão de mato baixo e não conseguiu ainda avistar os telhados das casas, percebeu que se perdera e que tomara uma direção errada. Não se podia ver, de lado algum, nem um telhado de ripas e nem uma mangueira. O gado pastava calmamente por toda parte, como se não existissem índios sanguinários. Assustado e cansado, Joãozinho sentou-se na relva e olhou para o sol a fim de se orientar e procurar a direção certa que o levaria até a casa. Pela posição das sombras dos arbustos, pensou que precisava andar para a esquerda. Levantou-se e tomou essa direção e, como até agora não percebera nada suspeito, deixou os cuidados de lado e começou a correr em direção a um capão distante onde cumes de árvores brilhavam escuros, no fundo do vale. Na proximidade do capão de mato, abaixou-se novamente e arrastou-se cuidadosamente pela depressão recoberta de mata. Não se sabia se os índios estavam ali espreitando! E quando alcançou os primeiros arbustos na sombra ouviu um murmurar de vozes humanas. - Talvez sejam os peões de Fabrício que o estão procurando! - pensou e aproximou-se de um arbusto que ficava na beira do vale. Porém, mal passara pela folhagem assustou-se tanto que caiu para trás. Não dava para acreditar! Ele tinha que olhar de novo. Suas pernas tremiam, suas mãos suavam geladas e da testa pingava, apesar do calor, um suor gelado. Todavia, arrastou-se novamente sem ser percebido e olhou trêmulo para o vale. Incrível! 211 Ali, os bugres selvagens estavam sentados ao redor de um porco abatido e o grande e forte índio, no qual Joãozinho atirara, estava justamente acendendo o fogo para assar o porco. Para surpresa de Joãozinho, os dois índios feridos por Fabrício e Cândido também estavam ali, bem dispostos, e carregavam lenha seca para a fogueira. - Se eles o descobrirem aqui, você está perdido! - pensou, e imaginou as torturas que fariam com ele. - Antes eu nunca tivesse vindo para essa região maldita! - gemia para si mesmo com medo, e olhava como que hipnotizado para os inimigos sanguinários. Lembrava, assim, o pobre pássaro, que imobilizado pelo olhar da serpente não mais encontra forças para voar. Depois, viu entre as figuras nuas, uma vestida e armada com espingarda, que até agora não percebera. - Meu Deus, é o Nestor! - murmurou olhando atentamente. - O que significa isso? - Sem saber o que dizer, tão assustado com essa inesperada descoberta, quase soltou um alto grito. 212 XXVI A mão morena. O empregado Lammin revela a treta do administrador. A fuga selvagem. A salvação frustrada. O arremesso de laço. Uma luta de boxe. A luta de vida e morte. A salvação se aproxima. Mãos ao alto. O principal culpado consegue escapar. Joãozinho cai desfalecido ao chão. Emília... Então uma mão morena, não muito cheirosa, caiu sobre sua boca. Ele estremeceu, muito assustado, e olhou horrorizado para o lado, pois acreditava que um espião dos índios o pegara. Então, viu Felesbino Lammin deitado a seu lado na grama, o agregado que ele queria procurar. Com o dedo sobre a boca e as sobrancelhas franzidas, este o fazia compreender que não deveria fazer nenhum ruído. Ao mesmo tempo, puxou Joãozinho consigo pela grama, até que ficarem sob os arbustos. - Venha! - sussurrou Felisbino - os bugres vão assar e comer a carne agora e não nos seguirão. - Mas Nestor? - cochichou Joãozinho endireitando um pouco o corpo para depois continuar se arrastando, agachado ao lado do agregado, pelo capim do campo. Um sorriso sombrio tomou conta do rosto inteligente do agregado. - Os bugres não irão lhe fazer nada. Mas nós temos que correr. Se o administrador e seus filhos perceberem que descobrimos o acordo de Nestor com os bugres, então nossa vida estará em jogo. Seu filho Sérgio já está a caminho para levá-lo para casa. Então, adiante! Ambos começaram a correr até que Joãozinho parou debaixo de um frondoso ingá, para respirar e aquietar um pouco o coração que parecia querer sair do peito. Felesbino Lammin aproveitou esse momento de descanso para relatar rapidamente, a seu companheiro, que o administrador Fabrício ficara sabendo que um pequeno grupo de índios meio mansos estavam aprontando das suas em Moema. Esses bugres não eram guerreiros, pediam esmola e roubavam apenas o que precisavam para viver. Através de seu filho Nestor tinha mandado trazer os meio- 213 selvagens para a fazenda e simulado um ataque na cabana de Cândido Borges em troca de dois porcos e de um boi gordo. Dessa maneira, queria espantar da região o inoportuno empregado do Dr. Bark, ou seja, Joãozinho. Ao mesmo tempo, este serviria de testemunha ocular junto ao Dr. Bark para comprovar que o gado que Fabrício desfalcara nesses dois anos havia sido roubado pelos índios. Durante esse relato precipitado, Felesbino olhava inquieto para todos os lados e disse finalmente: - Precisamos nos apressar para sair dos limites da fazenda, pois o administrador logo suspeitará que descobrimos suas artimanhas! Ele mandará nos matar, para que o patrão, o Dr. Bark, nunca fique sabendo nada do seu crime. Os bugres é que serão responsabilizados pela nossa morte! Ele já tem, há tempo, raiva de mim, porque percebi algumas coisas. Se suspeitar, agora, que estamos fugindo juntos, ficará claro para ele que seu jogo terminou.Ele precisa acabar conosco senão ele próprio estará perdido! Felesbino pronunciara as últimas palavras já correndo novamente.Os dois corriam em direção da estrada, pois tinham que chegar à fazenda vizinha, do velho Bueno, para se salvarem. O velho exercia o cargo de juiz, na região, e não tinha nada de bom para falar a respeito de Fabrício. Eles já estavam avistando os postes da cerca de arame e o portão de saída a apenas algumas centenas de metros de distância, quando Felesbino se virou e gritou: - Estamos perdidos! Eles estão vindo e irão nos alcançar! Mesmo assim, corriam o quanto suas pernas e pulmões agüentavam em direção ao portão. Porém, os inimigos se aproximavam rapidamente em seus velozes cavalos. Seus chicotes ressoavam ameaçadores atrás dos fugitivos, ordenando que parassem. Então um laço passou sibilando pelo ar, estalando sobre a cabeça de Felesbino arremessando-o, com os braços presos ao corpo,no chão. Joãozinho virou-se e olhou, furioso, para os perseguidores. Parou ofegante, pois os quatro cavaleiros já haviam obstruído o caminho que levava ao portão e apontavam-lhe suas armas. O 214 administrador e seus filhos olhavam severamente para ele. O agregado Cândido Borges, que os acompanhava, mantinha um olhar submisso, porém nem por isso deixava de apontar-lhe o cano da espingarda, ameaçadoramente. - O espião também precisa ser preso no laço - disse Nestor apontando furioso para Joãozinho. O administrador concordou sombrio. Seus negros olhos perfuravam sinistramente os olhos azuis de Joãozinho. Permaneceu sobre o cavalo, devido ao inchaço de seu pé, enquanto os outros três desmontaram, sem perder do alcance de suas armas o jovem empregado. Joãozinho pôs a mão no revólver, mas recordou-se que o administrador acabara com sua munição ao atirar contra o simulado ataque dos índios. Uma expressão amarga pela humilhação sofrida tomou conta de seu rosto suado. Como ele pôde deixar-se enganar por esse trapaceiro! O administrador viu o movimento de Joãozinho buscando o revólver e deu uma gargalhada sarcástica. - Andem logo! - gritou para seu pessoal. -Peguem os dois traidores no laço e os amarrem atrás dos cavalos a galope até que fiquem com a língua de fora. Nós estamos muito perto da estrada! O agregado Felesbino Lammin mexeu-se furioso no chão e levou um pontapé de Nestor que lhe amordaçara os pés e os braços no laço. Enquanto isso, Sérgio rodava seu laço pronto para o arremesso sobre a cabeça de Joãozinho. Sibilante, o cordão trançado de couro voava sobre o corpo do jovem. Mas o cordão não prendeu a presa com seu laço, porque Joãozinho, seguindo seu instinto, atirarase, repentinamente, no chão e o laço bateu sobre seu corpo sem prendê-lo. Sérgio pulou sobre ele para segurá-lo no chão. Contudo, não contava com a arte de auto-defesa que Joãozinho aprendera com Jeca Baiano. Mal Sérgio se debruçara sobre o jovem, este já estava se levantando e acertando-o com um forte golpe no abdómen, que jogou- 215 o de costas ao chão fazendo com que gemesse terrivelmente. Joãozinho saltou para trás puxando sua faca. Este ato de bravura não lhe teria salvo a vida , pois uivando de ódio, Nestor e Cândido saltaram sobre ele com suas facas, enquanto Fabrício roxo de raiva apontou a pistola para ele e gritou: Eu vou dar um fim nesse cão raivoso... Mas...agora, um grito retumbante vindo do portão fez com que os homens que estavam lutando e que não perceberam o aproximar da tropa, levantassem os olhos e ficassem imóveis... A rápida luta de Joãozinho fora observada, da estrada, pelos cavaleiros que agora atravessavam o portão da fazenda e se aproximavam deles. E, no instante em que a vida de Joãozinho estava por um fio, a voz do condutor da tropa ressoou forte: - Parem! Quem relar um dedo no meu empregado João Soares Pilz, vai se ver comigo, o Dr. Bark! Assustados, os três agressores de Joãozinho recuaram. Este, porém, assim que ouviu a voz salvadora de seu patrão, virou-se como um raio. E parecia que se livrava de um fardo terrível. Como que através de uma névoa sangrenta, viu ao lado de seu patrão, sua bela filha Emília, o velho fazendeiro Bueno, seu companheiro Miguel e quatro cavaleiros desconhecidos. Ele queria se aproximar de seus salvadores... porém seus membros fraquejaram... e caiu no chão sem emitir nenhum som. A tensão e o grande esforço das últimas horas foram demais para ele. Com um grito, Emília saltou do cavalo e, em dois passos, estava ao lado do rapaz desfalecido. Os outros cavaleiros também desmontaram para ver Joãozinho. Dois deles soltaram Felesbino Lammin do laço. O administrador, reconhecendo que seu jogo terminara, aproveitou esse momento para pregar as esporas em seu cavalo fazendo com que disparasse numa fuga selvagem. Sérgio queria segui-lo, mas estava ainda sentindo as dores do golpe de Joãozinho e, assim, só conseguiu se arrastar até seu cavalo. Cândido Borges e Nestor, assim que viram seu chefe fugir, 216 correram para perto de seus cavalos para se salvarem também. Porém, foram imediatamente cercados pelos cavaleiros, e todas as pistolas estavam apontadas para eles. - Mãos ao alto! - ordenou o velho Bueno. - Em nome da lei, vocês estão presos! Antes que se dessem conta, os três malfeitores já estavam amarrados com seus próprios laços e foram levados até o cercado da casa do administrador. A mãe e as irmãs dos dois filhos do administrador, ao verem aquilo, começaram a gritar e a gemer. Quando Joãozinho voltou a si, estava deitado na cama, em seu quarto, e o patrão olhava para ele enquanto a filha Emília e Felesbino cuidavam dele. Esfregavam suas fontes e o coração com essências de ervas revigorantes enquanto lhe davam vinho e água para beber, chamando-o pelo nome. Todos ficaram felizes quando abriu os olhos. Depois que tomou um pouco de sopa quente, fechou os olhos e pegou no sono. No dia seguinte, acordou saudável e bem disposto. Apenas a fraqueza ainda não passara totalmente. Quando Bark entrou com sua filha no quarto de Joãozinho, este sentou-se envergonhado e queria se levantar da cama. Porém, seu patrão o empurrou delicadamente de volta para os travesseiros. Emília o olhava admirada, e seus olhos brilhavam. - Fique deitado, jovem amigo- disse Bark e usou, sem se dar conta, um tratamento íntimo em sua conversa. - Você agora precisa descansar e francamente mereceu isto. Seu relatório sobre o administrador abriu-me os olhos e mostrou-me o perigo que você e eu estávamos correndo com esse homem desleal. Quase cheguei tarde demais. Eu não suspeitava que Fabrício seria capaz de matar suas testemunhas indesejáveis. Bark pegou a mão do rapaz entre as suas e a apertou. Com um semblante comovido, disse olhando carinhosamente para o jovem: - João, você cumpriu a tarefa que lhe atribuí como a um homem adulto, apesar de sua juventude. Quando meu sócio Pereira me relatou seu espanto pelo fato de eu enviar um rapaz tão jovem para uma missão tão espinhosa, eu lhe disse: - João Soares Pilz é de 217 confiança e prudente. Ainda criança, como o velho Cidral me contou, cuidava da casa e da irmãzinha e sabia ser corajoso e astuto diante do perigo. Do mesmo modo, mostrou-se um homem inteligente e discreto, quando na corrida de cavalos, queriam atraiçoar seu patrão tirando-lhe dinheiro. O rapaz estava deitado em sua cama, de olhos baixos e com o peito arfando. Seu rosto bronzeado de sol estava rubro de vergonha e orgulho. Endireitou-se como se quisesse levantar-se. - Fique deitado - disse Bark -eu só estou contando o que os outros pensam de você. Já seu patrão de Casa Branca, Seu Rodrigo, assegurou-me com estas palavras quando perguntei sobre você: - O senhor não poderia escolher uma pessoa melhor para mandar para Lavrinha para descobrir as artimanhas do administrador. É jovem e a gente não vê do que ele é capaz... Bark limpou os olhos e sorriu repentinamente: - O administrador acreditou que poderia dar um jeito em você. Mas você o superou... bem, agora eu sei o que devo fazer! Apertou mais uma vez a mão de Joãozinho, deu um sinal para a filha e deixou o quarto. Antes que saísse, Emília aproximou-se rapidamente da cama de Joãozinho, colocou sua mão fina e macia na mão bronzeada do rapaz e, fixou seus olhos cinzas e brilhantes em Joãozinho, fazendo-o estremecer. No momento seguinte já estava do lado de fora. 218 XXVII A caçada aos bugres. O juiz de paz Bueno. O administrador é encontrado. A queda do cavalo branco. Um final de misericórdia. Um grande dia na vida de Joãozinho. A tristeza do administrador. A viagem para o sul. Colônias florescentes dos imigrantes alemães e campos no Rio Grande do Sul. A criação de gado. A cidade de Curitiba. A filha do patrão. As hesitações da mãe... Entretanto continuava a busca pelo desaparecido administrador Fabrício e pelos seus aliados menos violentos. Já no dia seguinte os peões de Lavrinha, reunidos com os da fazenda vizinha e sob o comando de Tibério, filho de Bueno, descobriram na mata o esconderijo dos bugres e os levaram, juntamente com mulheres e crianças, até a mangueira próxima da casa. O chefe dos bugres, que falava algumas palavras em português, foi interrogado e confirmou as declarações de Felesbino Lammin. Realmente, o filho do administrador os conduzira secretamente para Lavrinha e combinara com eles um ataque fictício. Após esse inquérito, que fora dirigido pelo juiz de paz Bueno e protocolado pelo escrivão, os índios foram conduzidos até a estrada e acompanhados por algumas horas pelos peões. Foram embora pedindo esmolas e roubando até chegarem a Curitiba, onde causaram sensação e puderam ser vistos por alguns dos leitores mais velhos desta narração. O agregado Cândido Borges, para se salvar, fez uma declaração abrangente. Assim, todas as fraudes de Fabrício vieram à tona e Norberto Bark recebeu ainda uma parte do dinheiro do gado que fora vendido às escondidas. No outro dia, os peões encontraram o administrador Fabrício num barranco, na mata, sob seu cavalo ferido. O animal, ao cair, quebrara a perna esquerda da frente e na correria da fuga caíra sobre o cavaleiro. A luxação e o inchaço do pé não permitiram que o 219 administrador saltasse do animal a tempo. Assim, o cavalo caiu, com todo o seu peso, sobre o corpo de Fabrício, causando-lhe graves ferimentos internos. Ele deve ter suportado dores terríveis até que o encontraram e o tiraram de baixo do animal. O cavalo branco recebeu um tiro de misericórdia para se aliviar das dores. O administrador, que não conseguia falar, foi carregado numa maca improvisada com galhos de árvore, até sua casa. Devido aos graves ferimentos internos, faleceu no dia seguinte e foi enterrado no pequeno cemitério da região. Cândido Borges e os filhos do administrador, segundo determinação do juiz, deveriam ser presos no lugarejo mais próximo. Contudo, com pena das mulheres e das crianças, Bark deixou-os livres. Eles juntaram seus haveres e saíram da fazenda Lavrinha com destino ao interior do estado. Que grande dia se aproximava para Joãozinho! Que sensacional surpresa foi para ele quando Norberto Bark, um pouco antes de partir, mandou chamá-lo e, na presença da filha Emília e do vizinho Bueno, participou-lhe que após muito refletir decidira nomeá-lo administrador da fazenda, apesar da pouca idade. Para auxiliá-lo na tarefa teria o experiente Felesbino Lammin, que moraria agora na pequena casa ao lado da construção principal. O velho Bueno e seu filho Tibério também prometeram estar ao lado do jovem administrador para o que precisasse. No primeiro instante, Joãozinho perdeu a fala. Sensações antagônicas perpassavam seu coração. Preferiria retomar seu lugar em Casa Branca, onde estava mais perto de seu lar. A vida na solitária fazenda Lavrinha parecia-lhe muito sem graça, quase sinistra, e receava também, de grande responsabilidade. Por outro lado, o cargo de administrador era mais conceituado e financeiramente mais prometedor do que o emprego de caixa na loja de Casa Branca. Com o dinheiro que ganharia como administrador, logo poderia ajudar bastante sua mãe e irmãos, melhorando-lhes as condições de vida. Foi muita sorte isso ter-lhe acontecido. O patrão confiava nele e, assim, teria que justificar essa confiança e levantar a fazenda com a ajuda do experiente Felesbino e dos peões. 220 Aceitou o cargo agradecendo muito, depois de, hesitante, expor suas objeções. Bark, Emília e o velho Bueno apertaram-lhe a mão. Os poucos peões e agregados, que continuaram no emprego, foram reunidos por Felesbino Lammin. Bark apresentou-lhes o novo administrador, que seria o patrão agora e ao qual deveriam obediência absoluta. Durante a estadia do patrão na fazenda, Joãozinho fazia as refeições junto com ele e a filha. Ele e o patrão passaram o tempo todo verificando os inúmeros assuntos relativos à fazenda. Após alguns dias, os patrões e seus acompanhantes deixaram a fazenda, já com o novo administrador. Com o coração pesado Joãozinho, no portão da mangueira, acompanhava-os com os olhos. Emília se voltou mais uma vez, para um aceno. Quando voltou para a grande e deserta casa, onde agora moraria com seu auxiliar Miguel, sentiu-se infeliz e triste, devido à grande responsabilidade que apertava duramente seu coração. Ele se admirava, em silêncio, de que uma situação reconhecida como feliz e prometedora, poderia tornar-se tão desencorajadora e infeliz. Então disse para si mesmo: - Apenas o trabalho sério e grandes deveres ajudam a superar pensamentos deprimentes- e meteu-se imediatamente no trabalho. Depois de oito dias, recebeu de Casa Branca a mala que seu amigo Vitorino lhe enviara. Ao desembrulhar seus livros, sua lamparina de querosene e todos os seus pertences, sentiu já alguma satisfação. Aos poucos adaptou-se à vida e ao trabalho da fazenda. Mantinha freqüentes contatos com as fazendas vizinhas e começou a sentir um pouco de felicidade, apesar da saudade do lar e de Casa Branca que, às vezes, o deprimia. Após o primeiro ano de trabalho na fazenda, enviou, junto com o relatório anual detalhado, uma carta para Bark, na qual sugeria ao patrão que lhe permitisse fazer uma viagem para o interior e para o sul a fim de comprar gado e cavalos para a fazenda. O gado poderia engordar nas invernadas da fazenda e ser vendido por um bom preço em Curitiba. Também pedia autorização para tomar parte nesse 221 negócio com seu pequeno capital. Para substituí-lo como administrador durante os meses de sua ausência, indicara seu amigo Vitorino. Bark achou primoroso o plano de Joãozinho. Deu-lhe até mesmo metade do lucro do negócio, e mandou Vitorino imediatamente para a deserta Lavrinha. Assim, Vitorino tornou-se um subordinado do amigo Joãozinho, cinco anos mais novo que ele e alegrou-se, mesmo assim, por poder estar alguns meses ao lado do irmão da bela Margarida. Em intervalos regulares, Joãozinho fazia, ano após ano, grandes viagens para o interior e o sul do país e trazia grandes rebanhos de gado, cavalos e burros, com os quais sempre obtinha bons lucros. Assim, seus bens e prestígio aumentavam ano após ano. Nessas viagens aproveitava também para conhecer melhor sua maravilhosa terra natal, o Brasil. Admirava limpeza de centenas de aldeias e as lindas cidades, o orgulho do catarinense e do riograndense que, juntamente com os corajosos imigrantes e seus descendentes, conseguiram desbravar aquela região selvagem dentro de algumas décadas. Conheceu também as indústrias pelas quais lutaram e se sacrificaram durante muito tempo. Percorria os vastos campos de gaúchos, cujo manejado laço e boleadeiras estavam sempre em sua sela. Via, na planície, as belas plantações de tabaco, cana de açúcar, mandioca e algodão e, no planalto, os campos de centeio, trigo, batata, a plantação de árvores frutíferas bem como as vinhas, as milhares de serrarias e centenas de moinhos de erva-mate. Observava a construção de novas ferrovias que levariam ao interior dos estados sulinos brasileiros e, os ligariam, com os estados vizinhos e com a capital federal. Foi também para São Paulo e admirou o avanço da cultura, a moderna metrópole e, nessa grande cidade de São Paulo, a vasta ramificação de linhas ferroviárias. No interior paulista pôde observar as múltiplas culturas agrícolas como as gigantescas plantações de café, de algodão e outras mais. Entretanto estados brasileiros gostaria de para empreendimentos inusitados. percorrer, mais tarde, outros edificar-se com suas belezas e 222 Ao final de cada uma de suas rentáveis viagens precisava, todos os anos, passar alguns dias em Curitiba para fazer as contas e discutir os negócios com o patrão e sócio. Eram sempre dias maravilhosos que passava com a família Bark, e os grandes olhos cinzentos da bela Emília se fixavam nele cada vez de maneira mais confiante. A mãe e os irmãos de Emília tratavam-no como pessoa da família. Após esses dias admiráveis visitava, na planície, a mãe e os irmãos. Alguns dias eram sempre destinados à velha e querida terra natal e eram os mais lindos de sua vida. Mimado pela mãe a admirado pelos irmãos e pelo padrinho Cidral, Joãozinho desfrutava com prazer a amizade dos conterrâneos e sentia-se como um verdadeiro "felizardo". Com o passar dos anos, ajudou sua mãe a construir uma casa melhor, pois a velha choupana já estava caindo. Emprestou dinheiro para seus irmãos comprarem uma carreta, cavalos e um pedaço de terra. Sua região natal desenvolvera-se; a estrada fora alargada e tornou-se trafegável até a cidade portuária; o trânsito aumentou e sua família ganhara, com sua ajuda, prestígio e bens materiais. É claro que Joãozinho também não se esquecera da família do mestre da mata. Dedicava, cada vez que visitava o lar, muitas horas ao velho Bento Damásio e família. O magro e alto mestre recebia o antigo aluno com uma conversa alegre e nunca se esquecia de apresentá-lo como modelo aos alunos atuais. Os alegres e interrogativos os olhos negros da bela Anita pousavam sempre sobre ele. Passava horas conversando com sua amiga de infância, porém quando falava de Curitiba, aqueles olhos ficavam ainda mais escuros pela dor que procuravam secretamente ocultar. Também em casa, quando Joãozinho falava da família Bark e da bela Emília, o rosto da mãe se entristecia. Suas descrições entusiasmadas da fina casa, da vida elegante e das distrações da cidade, revelavam-lhe que seu filho preferido estava, aos poucos, deixando a vida simples da terra. E ela achava que um filho de colono 223 nunca se sentiria realmente feliz e satisfeito em meio a uma família de fino trato e na vida da cidade. Pensava também nos olhos tristes de Anita, quando Joãozinho mencionava com freqüência em suas cartas a loura Emília. Anita, nos últimos anos, recusou muitos pretendentes importantes da região, para desgosto de seus pais e estranheza de vizinhos e parentes. Provavelmente ela sempre esperou por Joãozinho... e agora reconhecia, como a mãe de Joãozinho, que o antigo menino da mata se tornara sempre mais rico e mais fino, desviando-se da vida simples da mata... Assim desfazia-se um bonito sonho de adolescência numa névoa cinzenta de um futuro triste. Quando Joãozinho retornava para a fazenda de uma de suas longas viagens de negócios e assumia novamente a administração do movimento da mesma, Vitorino pedia férias para visitar sua noiva, Margarida, irmã de Joãozinho, com a qual se comprometera outrora em meio-segredo. Mas a mãe deu seu consentimento com grande alegria. Joãozinho já era administrador da fazenda há três anos, quando Vitorino, com autorização de Bark, trouxe a jovem esposa para a fazenda, onde Margarida atuava como a dona da casa, trazendo mais aconchego e alegria àquela solitária casa de solteiros. O casamento foi simples e realizado na casa da mãe. Joãozinho não pôde assistir o casamento porque não poderia deixar a fazenda. No mesmo ano, o irmão Francisco casou-se com a filha do rico Gomes e mudou-se para as terras do sogro, deixando a mãe, Pedro e Maria para sozinhos, cuidarem da terra. 224 XXVIII A tristeza de Anita. Aparência e Essência. Uma proposta de negócios. Joãozinho renuncia ao seu emprego. A mudança para Casa Branca e Palmital. A surpresa do professor. O pedido de casamento. A bênção da mãe. Final... Seis anos se passaram desde que Joãozinho viera para a Fazenda Lavrinha. Durante esse período, fez muitas viagens, viveu muitas aventuras que seriam dignas de serem narradas, ganhou muito dinheiro e também adquiriu muitos conhecimentos e experiências de vida. Mais uma vez, estivera fazendo uma visita à família, na planície, e preparava-se para voltar ao planalto. Uma tarde, depois de despedir-se da família de Bento Damásio, percorreu a cavalo o velho caminho que fizera durante quatro anos, diariamente, quando estudava na escola da mata, montando o pônei Mico, que ganhara do padrinho Cidral. O olhar profundo dos belos olhos negros de Anita, ao estender-lhe a mão na despedida, deixaram-no pensativo. Seu cavalo começou a andar lentamente, e Joãozinho absorveu-se em profunda meditação. Será que seu coração não tinha abandonado, às vezes, sua amiga de infância que o ajudara a entender melhor as letras do alfabeto e os números, desde que conhecera a loira Emília em Curitiba? Qual das duas moças amava realmente... qual delas gostaria de ter como mulher por toda a vida?... Ele mesmo não tinha que reconhecer que a loira e alegre Emília, que passava os dias jogando tênis, andando a cavalo, pintando e tocando piano, não combinaria com ele, filho de lavradores, e nem com a vida livre do campo?... Distinguir a aparência da essência, unir-se ou não com uma pessoa do mesmo nível não seria uma das primeiras condições para alcançarmos a felicidade? Um "- Olá! Senhor João!"... arrancou-o desses pensamentos. O chamado era do velho Vicente Lacerda, o proprietário da venda em que Joãozinho, quando criança, admirara a "máquina que 225 falava". Ele aproximou-se do dono da venda e o cumprimentou. O comerciante pediu-lhe que descesse de seu cavalo, pois há muito tempo gostaria de conversar com ele. Joãozinho desceu e seguiu o velho comerciante até o escritório, passando pela loja onde dois balconistas atendiam os fregueses. No escritório, o velho mostrou-lhe os livros de contabilidade e ofereceu-se para vender-lhe o negócio . Contou-lhe que seu filho mais novo, Henrique, (o mesmo que outrora perdera uma aposta para Joãozinho com seu galo de briga), morrera num acidente de caça. Já seu filho mais velho possuía um negócio próspero na cidade de Ponta Grossa. Era casado, tinha filhos, e não gostaria de voltar para a planície. Portanto, o velho Vicente resolvera mudar-se com sua mulher para Ponta Grossa, para viver o resto de seus dias perto da família e livre de preocupações com negócios. Como Joãozinho pôde verificar através dos livros, o negócio em Palmital ia bem e poderia ser ampliado. Também o comércio de gado poderia, devido a seus bons relacionamentos, ter continuidade ali. Joãozinho ficou muitas horas conversando com o velho. Já escurecera quando finalmente, levantou-se para sair. Prometeu ao velho Vicente pensar na oferta e pediu-lhe, por enquanto, mantivesse o assunto em sigilo. Na realidade, o capital do rapaz não era suficiente para comprar o negócio e pagar à vista. Porém, o comerciante gostaria de ficar com uma pequena parte do negócio e Joãozinho esperava que Dr. Bark o ajudasse. Pensativamente, montou seu cavalo e foi para casa sob o brilho das estrelas. Se ele comprasse a venda... a coisa martelava em seu cérebro... então Vitorino poderia assumir a administração da fazenda e melhorar a própria renda. E ele poderia se casar e viver perto da mãe e dos irmãos. Atraentes e sedutores projetos futuros tomavam conta dele... ` Em casa, não comentou com ninguém sobre seus novos planos. Por que deveria dar esperança de sonhos que talvez não se realizassem?... 226 No dia seguinte, despediu-se da família e foi para Curitiba. Lá, expôs seu desejo ao Dr. Bark. O patrão ficou muito surpreso. Ele concordava muito com João em passar o cargo de administrador para o cunhado Vitorino. Mas, aos poucos, consentiu e disse que gostaria de fazer uma tentativa com o novo administrador. Porém procurou dissuadi-lo, a todo custo, do plano de comprar a venda do velho Vicente. Ofereceu-lhe um bom cargo em sua grande loja em Curitiba, onde o rapaz ganharia mais que em qualquer venda da mata e onde se tornaria uma pessoa conceituada. Contudo Joãozinho, que já vivia intensamente esse novo plano, ficou irredutível. Pensava como o grande romano Júlio César: “Melhor ser o primeiro e não ter um senhor em sua aldeia natal do que ser um entre muitos na cidade!” Seu bom senso também lhe dizia que não conseguiria viver na cidade. Assim, Dr. Bark acabou cedendo e assegurou-lhe até mesmo seu total apoio. Imediatamente Joãozinho pôs-se a fazer sua última viagem para a Fazenda Lavrinha como administrador. Após três dias chegou ao seu destino e surpreendeu o cunhado Vitorino e Margarida com a grande novidade. A tristeza em saber que Joãozinho iria embora foi compensada pela alegria do emprego melhor que Vitorino assumiria, a partir de então, como administrador. Após solucionar todas as questões urgentes, Joãozinho partiu da fazenda onde vivera por mais de cinco anos. Então voltou para Curitiba, com um rebanho de gado, para acertar as contas com o patrão e sócio que lhe remeteria então seu dinheiro. Dr. Bark deu-lhe crédito para compras em sua grande loja e abriu-lhe um crédito no banco. Assim, Joãozinho fez muitas compras para a venda em Palmital, que iria assumir, e comprou grandes tropas de burros. Gostaria de ver seu sonho de menino realizado. Voltar para sua terra natal como um homem rico, com um grande rebanho de gado, acompanhado de muitos peões e tropeiros, e muitos animais carregados de provisões. Havia um pouco de exibição neste seu desejo, mas sabia que com essa entrada pomposa faria uma surpresa 227 maravilhosa à sua mãe, seus irmãos, à família do professor e ao padrinho Cidral. Depois de despedir-se calorosamente da família do Dr. Bark, que lhe prometera uma visita para breve, partiu para casa com uma imensa tropa de sessenta burros carregados, umas cinqüenta cabeças de gado e cavalos, passando por Casa Branca. Por todo lugar onde passava a grande tropa, com seus tinidos e os gritos dos muitos peões, despertava olhares significativos. Como dono dessas maravilhas, Joãozinho cavalgava atrás do tumulto poeirento, montado em um magnífico cavalo com sela prateada. De toda parte vinham pessoas para ver o grande senhor. Joãozinho foi recebido cordialmente em Casa Branca pelo antigo patrão e mestre, Rodrigo. Porém, precisou agüentar as troças amigáveis pela sua conduta pomposa.- O hábito faz o monge - riu Joãozinho, corando um pouco de vergonha. Permaneceu dois dias, com seu pessoal e os animais, em Casa Branca e passou o tempo todo na companhia animada de Rodrigo e de seus colegas, convidando-os para irem visitá-lo em Palmital. Então partiu, com muito alvoroço e barulho, levantando poeira pelos campos e pastos, por pinheirais e matas de erva em direção da serra. Uma tropa dessas não viaja tão rapidamente como um cavaleiro sozinho. Assim, apenas no segundo dia Joãozinho chegou com sua comitiva, à serra solitária e pernoitou, como outrora, na choupana do velho Cordeiro. O humilde casal alegrou-se muito quando reconheceu Joãozinho. E o velho Cordeiro narrou para os ouvintes, junto à fogueira, o assalto outrora sofrido por Joãozinho e como este se livrara dos ladrões pela presença de espírito e pelo cachimbo. No quarto dia, por volta da hora do almoço, a tropa saía da floresta montanhosa e chegava à planície de Palmital. Da capela da colina podia-se ver a escola e, mais ao longe, as duas vendas. A tropa, com o trotear dos burros, o barulho dos sinos, o gado que mugia e levantava poeira, passava fazendo grande alvoroço. Joãozinho desceu do cavalo e entrou na capela que estava aberta. Tirou o chapéu de aba larga e benzeu-se, fazendo com que as esporas prateadas tilintassem nos ladrilhos. Com a cabeça curvada e de mãos postas agradecia a 228 Deus, senhor do mundo e do destino dos homens, pelo misericordioso amparo durante todos os perigos sofridos, pelo sucesso de sua jovem vida e pela feliz viagem de volta à terra natal. Implorava a Deus que continuasse a abençoá-lo e, se ele tivesse que passar por dores e sofrimentos, que Deus o tornasse forte e corajoso para enfrentá-los. Depois que terminou a oração saiu da capela, colocou o chapéu e subiu no cavalo. A escola da mata ficava logo ali na baixada... e os alunos já corriam para a porta, pois a estupenda tropa se aproximava da casa. Joãozinho cavalgou colina abaixo, e esticou o pescoço procurando ver algo especial. Será que Bento Damásio e Anita não apareceriam? Seu peito enchia-se de esperança, e o coração começou a bater com mais força. Assim que desceu o morro, viu que as pessoas das casas vizinhas corriam e olhavam para a enorme tropa e os muitos tropeiros. Como o coração de Joãozinho se regozijava! Agora, ele se aproximava da escola e via os meninos, que o professor não mais conseguia reter, correrem atrás da tropa. Bento Damásio seguia-os com o olhar perplexo, porém já era quase hora do almoço e ele próprio estava admirado com todo aquele barulho. Sua mulher também saiu para ver o que estava acontecendo. Ambos olhavam para o dono da tropa que se aproximava, orgulhoso, no maravilhoso cavalo com sela prateada. Não, realmente, eles não o estavam reconhecendo. O antigo pequeno protegido, que Bento Damásio outrora apelidara de "Joãozinho Felizardo", não estava sendo identificado. Dispensavam um olhar, respeitoso e alheio, para aquele senhor imponente que se aproximava. Nada lhes era mais distante que pensar em Joãozinho que, há menos de um mês, se despedira deles e da filha para ficar afastado por longo tempo. A filha Anita, após a despedida, não fizera outra coisa que chorar por dias seguidos. Mas onde está a moça? Ah! Ela está ali, olhando pela janela! Ela aproximava reconhecera em sua sela imediatamente brilhante e o cavaleiro ficou muito que se pálida. Involuntariamente, seu olhar procurava pela elegante Emília, de 229 Curitiba, que provavelmente viera junto para receber a bênção da mãe de Joãozinho. Oh! Depois desta entrada suntuosa do distinto e rico senhor João, a pobre filha do professor poderia perder qualquer esperança que o amigo de infância ainda gostasse dela e a quisesse como esposa, não é?! Próximo do mestre, Joãozinho parou o cavalo e saltou. Então o velho casal o reconheceu e ambos ficaram muito perplexos. Joãozinho abraçou-os e perguntou: - Onde está Anita? - E seu coração quase parou de tanta excitação. - Ela está ali na janela! - disse Bento Damásio rindo. - Está admirando a grande tropa! Entre e a cumprimente. Batendo com as esporas no chão, Joãozinho passou pela vazia sala de aula e entrou na sala de estar ao lado onde Anita, muito trêmula, sentara-se numa cadeira perto da janela. Olhou-o e com seus olhos escuros, resignada. - Anitazinha! - chamou-a Joãozinho com voz tão suave que a jovem levantou-se, espantada e feliz. Seus belos olhos aveludados brilharam de repente, cheios de esperança, e voltaram-se para o rosto radiante de Joãozinho. E ela viu em sua expressão, em seus brilhantes olhos azuis, tanto amor, tanta confiança, que as lágrimas lhe vieram aos olhos. - Joãozinho! - disse ela vibrante... e então os amigos de infância estavam um nos braços do outro... O grande espanto dos pais que entravam, seu primeiro olhar e sua emoção... quem poderia descrever isto? O velho Bento Damásio limpava continuamente os olhos úmidos com a manga da camisa e o casal de velhos abraçava, sem parar, ora a filha, ora o novo filho. Finalmente, Joãozinho se refez e foi para fora. Um de seus peões ficara para trás e a tropa já havia sumido na curva da estrada. Deu algumas ordens ao peão e, depois de uma meia hora, havia dois belos cavalos ao lado do de Joãozinho. Um deles trazia uma novinha sela para mulher. 230 - Pai Damásio, Anita, vocês precisam ir comigo até minha mãe! - disse Joãozinho. Aí estão os dois cavalos. O cavalo com a sela feminina eu trouxe para Anita. O animal é um marchador! - Oh, que cavalo lindo! E que sela maravilhosa! - exultava Anita. Joãozinho, esse cavalo é meu?! - Ela mais uma vez abraço-o e o beijou. Os três cavalgaram felizes, ao longo da velha e conhecida estrada, até chegarem ao campo livre onde ficavam as duas vendas. As pessoas que cruzavam com eles arregalavam os olhos e esticavam os pescoços curiosos. Os tropeiros e os peões de Joãozinho começaram a descarregar os burros e a levar o gado para o pasto cercado. O velho vendeiro Vicente estava parado na varanda, entre seus embasbacados fregueses, e observava tudo sorrindo muito satisfeito. Através das cartas de Joãozinho e de uma entrada em dinheiro que o banco de Curitiba remetera, o negócio estava fechado. Agora só faltava fazer o balanço na presença do comprador, e acertar mais alguns detalhes para que João Soares Pilz assumisse sua nova propriedade. Os três recém-chegados desceram dos cavalos e Joãozinho ajudou a radiante Anita. O velho Vicente foi-lhes ao encontro e os cumprimentou. Em seguida, atravessaram a varanda e entraram na loja. O mestre da escola da mata, radiante, contou ao vendeiro que sua Anita era, a partir de hoje, a noiva de seu antigo aluno preferido, o "felizardo". O vendeiro expressou seus votos de felicidades ao jovem casal e ao velho. À venda chegavam sempre mais curiosos. Os dois balconistas tinham muito trabalho para contentar todos os fregueses. Nisso aproximou-se alguém, numa carroça com dois cavalos, e parou defronte a varanda, onde o barulho dos tropeiros e dos burros era muito grande. Bento Damásio e Anita, que olhavam pela janela da loja, viram que era a carroça de Pedro, irmão de João, com a mãe e a irmã 231 Maria lá sentadas. Eles, provavelmente, vieram vender alguns produtos e aproveitar para fazer suas compras. - São pessoas da família de Joãozinho! - disse alegre o mestre. Vocês se escondam! Vamos fazer-lhes uma grande surpresa! - E já empurrava empurrando Anita e Joãozinho para dentro do escritório da loja. O velho Vicente percebeu logo do que se tratava e os seguiu, sorrindo, para o escritório, fechando a porta atrás de si. Depois que combinaram o que iriam fazer, Vicente entrou na loja, cumprimentou a viúva e a filha Maria, que se tornara uma bela moça. Pedro ainda estava lá fora com os cavalos. - Minha prezada senhora - começou o vendeiro - preciso comunicar-lhe que vendi minha venda para um jovem senhor de Curitiba e vou-me mudar, com minha mulher, para Ponta Grossa para junto com meus filhos e netos... - Oh, que pena - lamentou a viúva - nós sempre nos demos tão bem com o senhor, Seu Vicente. - Quem garante que o novo vendeiro seja uma pessoa simpática... - Ah, ele lhe será muito mais simpático - ria o velho... A senhora o conhece desde que nasceu... - e abrindo um pouco a porta do escritório, puxou Joãozinho, pelo braço... - Joãozinho, você?... de onde você vem?...- gritou Maria, enquanto a mãe olhava seu filho, incrédula. No momento seguinte mãe e filho se abraçavam e Maria também abraçou o amado irmão. - Mas me diga, o que significa tudo isso? - perguntou a mãe, atônita, enquanto passava a mão na testa, como se quisesse despertar de um sonho. - Você não deixou a gente perceber que voltaria tão depressa para casa. Como foi isso? - Joãozinho comprou minha venda, - exclamou o velho vendeiro. - Ele se calou até que nosso negócio estivesse concluído. A meu pedido, ele não pôde dizer nada a ninguém. - Não, não - murmurou a viúva, e sentou-se agitada no banco. Feliz e calada olhava para o filho... para o Joãozinho que conseguira fazer tal negócio!. 232 Todos os que estavam na loja acercaram-se do grupo e escutavam boquiabertos. - Quer dizer que não é um sonho? - perguntou a mãe baixinho, passando a mão pela testa. - Meu Joãozinho é um vendeiro independente na terra onde nasceu... meu filho! ...meu filho! Levantou-se do banco e abraçou novamente o filho, em cujos olhos azuis surgia um brilho intenso. - João comprou a venda!... Será possível?! - balbuciou Maria, e correu, feliz, ao encontro do jovem Quintino que acabara de entrar na loja. Quintino era aquele rapaz que ganhara a briga de galos do irmão de Joãozinho. Os dois jovens olharam-se nos olhos e Joãozinho percebeu, rapidamente, que Maria e Quintino se amavam já há tempo. Quintino só não se declarara antes, porque era muito pobre para construir um lar. Agora que Joãozinho comprara a venda, Maria via que Joãozinho também a ajudaria a realizar seu sonho. O velho Vicente pegou a viúva pela mão e levou-a para fora: - Esta grande tropa, e todo o gado bonito que a senhora está vendo, foi seu filho que trouxe. - Oh, Deus, Oh Deus! - dizia a mãe balançando a cabeça admirada e olhava, orgulhosa, para seu filho mais novo que conseguira tudo aquilo. - Sim, senhora - continuou Vicente - e ele trouxe também uma bela noiva e quer se casar dentro de quatro semanas. - A senhora abençoará o jovem casal, não é?... Entre no meu escritório. A noiva de Joãozinho está lá... Então as pernas da viúva se recusaram a andar. Acontecera muita coisa e a pobre mulher estava muito emocionada. E agora vinha a notícia temida, há tempo, em silêncio. Joãozinho ficara noivo da rica Emília... pois, do contrário, não era possível que Joãozinho, tão de repente, passasse de administrador de uma fazenda para comerciante, para dono... de uma venda... O dinheiro da noiva rica de Curitiba devia estar por trás... Era isso! Novamente caiu trêmula sobre o banco e empalideceu muito. - Pobre Anita, pobre Anita - murmurava. E já antevia como seu Joãozinho seria infeliz ao lado da 233 elegante moça da cidade, aqui na mata. Mas ela não poderia mudar isso! Assim, respirou fundo e aceitou a mão que o velho vendeiro lhe oferecia e seguiu-o até o escritório para onde Joãozinho já se dirigira. Maria chamara o irmão Pedro e foi com Quintino atrás da mãe. Quando a viúva, com expressão muito preocupada, entrou no escritório, avistou Joãozinho abraçado com Anita. Atrás do radiante casal estava o velho mestre, que sorria feliz e dizia: - Viva! Sogra! Isto foi demais para a velha senhora. Caiu de joelhos chorando, e com as mãos sobre os olhos. Seus filhos a levantaram do chão. Ela não conseguia ver nada, pois as lágrimas turvavam-lhe o olhar. Anita e Maria colocaram as mãos sobre seus ombros e a conduziram suavemente até a poltrona que estava ao lado da escrivaninha. Então o jovem casal ajoelhou-se diante da mulher que chorava, para receber sua bênção. A mãe procurava se acalmar. - Meu filho - disse então, com rosto radiante do qual caíam lágrimas cristalinas - com a escolha de sua esposa, você me mostrou que sabe distinguir da falsa, a verdadeira felicidade! - Viva o Joãozinho Felizardo! - gritava Bento Damásio batendo com os pés no chão para esconder sua emoção. Todas as pessoas que se espremiam pela abertura da porta, batiam palmas para acompanhá-lo. Aqui termina nossa narrativa. Como continuou a vida de Joãozinho - se ele foi sempre um "Joãozinho Felizardo" ou se, mais tarde, se tornou-se um "João Azarado"- isto nós ficaremos sabendo, talvez, numa outra estória...