■ ANO 21 ■ tiragem: Nº 2 ■ ABRIL/2013 ■ 18 000 exemplares Crise do euro abala o projeto E mais... da unidade europeia A teoria econômica diz que uma zona monetária perfeita é um espaço econômico unificado e relativamente homogêneo do ponto de vista das estruturas produtivas e dos níveis de produtividade. A definição, tomada rigorosamente, implica a imperfeição da maior parte das zonas monetárias do mundo. De acordo com ela, a zona do euro é uma zona monetária imperfeita, na qual coexistem potências altamente produtivas, como a Alemanha, e economias muito menos produtivas, como Grécia e Portugal. Contudo, nem mesmo os Estados Unidos, a “zona do dólar”, atendem aos requisitos teóricos da zona monetária perfeita. A diferença está mais na política que na economia. Os Estados Unidos são uma nação – e o governo nacional, eleito pelos cidadãos, exerce o direito de tributar e conserva pleno controle sobre o orçamento federal e a dívida pública. A zona do euro, em contraste, é uma coleção de nações que A crise do euro, que se arrasta há cinco anos, levou ao fundo do poço a economia compartilham a mesma moeda – mas não o italiana – a quarta maior da Europa ocidental – e ameaça desagregar a União Europeia mesmo governo. A decisão original de criar uma união monetária sem união política está na raiz da crise atual, que ultrapassou o estágio de crise financeira para ameaçar os fundamentos do projeto político da União Europeia. A crise política da Europa se expressa com uma miríade de crises políticas nacionais. De um lado, os sistemas partidários experimentam implosões. De outro, em alguns países, é a própria unidade nacional que sofre a contestação de movimentos separatistas. Veja as matérias nas págs. 6 a 9 ● Revista Pangea 2013 – Questões e visões do mundo contemporâneo – A partir da segunda quinzena de março e a cada quinze dias, os interessados poderão receber por e-mail textos sobre assuntos da atualidade. Para receber esses textos, acesse ao nosso site e se inscreva (www.clubemundo.com.br). “C Depois de Hugo Chávez hávez une o que é diverso: o povo”, explicou Aristóbulo Istúriz, um alto dirigente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Istúriz queria dizer que o caudilho era a síntese de toda a nação venezuelana, um conceito perigoso, que aponta na direção da supressão da pluralidade política. Evidentemente, o líder que desapareceu não unia todos os venezuelanos, mas representava a solda entre as divergentes facções de seu próprio movimento político. Nomeado por Chávez como sucessor, Nicolás Maduro simboliza a unidade chavista possível nesse período de transição. Mas ele não é Chávez: não une o que é diverso. Eis a fonte principal das turbulências que a Venezuela conhecerá. Págs. 10 e 11 O legado nazista © Coleção particular ● Visite nossa página no Facebook. Ali você encontrará indicações de textos, livros, filmes e atividades. Basta acessar ao link: www.facebook.com/ JornalMundo © Andreas Solaro/AFP ● Editorial – O nome do prefeito do Rio de Janeiro deve ser escrito no caderno de todos os estudantes do 6º ano do ensino fundamental. É que Eduardo Paes não respeita a lei nem a escola. Pág. 3 ● Na superfície, é uma guerra civil. Abaixo dela, o conflito na Síria desenrola-se, cada vez mais, como uma guerra regional. Pág. 3 ● Forças combatentes norte-americanas invadiram Bagdá em abril de 2003. Dez anos depois, o Iraque está longe de figurar como aliado dos Estados Unidos no Golfo Pérsico. Pág. 4 ● Argo, o vencedor do Oscar, apresenta-se como obra de arte. Mais apropriado é interpretá-lo como peça de propaganda utilitarista. Pág. 5 ● A escolha de um papa argentino evidencia o recuo do catolicismo na Europa – e a vontade da Igreja de deflagrar uma nova onda de evangelização. Pág. 12 Escreva e se inscreva!!! 18º Concurso Nacional de Redação de Mundo e H&C 2013 Regulamento ■ Quem poderá participar? Todos os alunos do ensino médio das escolas assinantes de Mundo. ■ Qual é a forma de participação? Cada escola poderá enviar até cinco redações. Tomamos a liberdade de sugerir que as escolas realizem um concurso interno de seleção. Todos os leitores de Mundo podem participar, mas apenas mediante a intermediação das escolas. Por razões pedagógicas, não aceitaremos redações enviadas sem a anuência da escola. ■ Qual é o prazo para o envio das redações? Serão aceitas redações recebidas na sede da Pangea, em São Paulo (nosso endereço pode ser encontrado nesta página, no Expediente), impreterivelmente até 6 de julho de 2012. ■ Quais devem ser as características das redações? As redações devem ter no máximo 40 linhas e, obrigatoriamente, conter título. Cada escola receberá, durante o mês de maio, cinco folhas pautadas e numeradas para a transcrição dos textos selecionados. As folhas preenchidas deverão ser remetidas à sede da Pangea. Este formato é obrigatório, inclusive para garantir o sigilo: a Comissão Julgadora não terá acesso ao nome dos autores ou das respectivas escolas. ■ Quem julgará os trabalhos? As redações serão avaliadas por uma Comissão Julgadora integrada por professores de Comunicação e Expressão de reconhecido saber e experiência no ensino médio. ■ As redações serão publicadas? A redação vencedora será publicada e comentada na edição de outubro de 2013 de Mundo. Outras redações poderão, eventualmente, ser publicadas. Importante: os autores, ao participarem do concurso, concedem a Mundo o direito de publicar suas redações, sem remuneração autoral, no próprio boletim ou sob outra forma. As redações enviadas não serão devolvidas. ■ Haverá prêmios para os melhores trabalhos? Sim. Os autores das dez melhores redações serão premiados por Pangea e empresas patrocinadoras do concurso. O 1º colocado receberá um aparelho de som no valor de R$ 800. Do 2º ao 5º, todos receberão um aparelho MP4 no valor de R$ 200. Do 6º ao 10º colocado, serão ofertados prêmios em livros. Mais informações: veja “O tema da redação” na pág. 2 do Boletim Mundo nº 1 – março/2013 Para os leitores de Mundo, o tema da redação do Enem 2012 não foi nenhuma surpresa A prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2012 teve como tema as novas dinâmicas da imigração no Brasil e a contribuição dos imigrantes para nossa história e identidade cultural. Trata-se, precisamente, do assunto abordado às páginas 2 e 3 do nosso suplemento História & Cultura, edição de setembro de 2012. Confira em nosso site (http://www.clubemundo.com.br/pdf/2012/mundo0512hc.pdf ) Mundo não tem como objetivo acompanhar os exames vestibulares do país. Nossa maior ambição é preparar os leitores para a compreensão, de alguns dos principais acontecimentos da conjuntura política e cultural nos cenários brasileiro e internacional. Queremos fornecer um instrumental composto de informações e análises originais que contribuam para uma visão mais crítica da realidade por parte de nossos leitores. O fato de termos acertado o tema proposto pelo Enem apenas demonstra que estamos bem “antenados” e avaliamos corretamente a hierarquia dos fatos. Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/ JornalMundo MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO E X P E D I E N T E PANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia) Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Jaqueline Rezende Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Dr. Dalmo de Godói, 57, São Paulo – SP. CEP 05592-010. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332 E-mail: [email protected] – www.facebook.com/JornalMundo Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900, São Paulo Fone: (011) 3283.0340 www.clubemundo.com.br Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem. 2013 ABRIL E D I T O R I A L O prefeito na apostila A Matemática é uma curiosa disciplina nas apostilas distribuídas aos alunos do 6º ano da Rio de Janeiro. No livro utilizado no primeiro bimestre, surgiu uma rede municipal de ensino do questão relativa às eleições municipais do ano passado. Ela apresenta um gráfico circular, em formato de pizza, com a distribuição dos votos obtidos pelos diferentes candidatos. O detalhe é que nenhum número aparece no gráfico. Os jovens estudantes devem apontar e responder, com base nele, o nome do prefeito eleito. Eduardo Paes, o tal do prefeito eleito, talvez se delicie com a visão de centenas de milhares de alunos escrevendo seu nome no caderno escolar. Aconselhado por seus marqueteiros, ele provavelmente enxerga nisso uma estratégia estupenda de “divulgação de marca”. Talvez também seja, mas, em outro planos, a Janeiro reagiu rapidamente à denúncia, orientando coisa tem dois nomes: imoralidade e crime. os professores a não usarem as páginas consagradas O artigo 37 da Constituição define como crime o uso de nomes de políticos na publicidade oficial, que é financiada com recursos públicos. Os governantes brasileiros – todos eles, dos mais diversos partidos – circundam a proibição por meio de logomarcas que, repetidas à exaustão, funcionam como referências indiretas a nomes de políticos ou de partidos. Paes, contudo, ultrapassou as fronteiras da “criminalidade admitida”: a sua publicidade pessoal mira menores de idade e articula-se ao sistema oficial de ensino. Por que ele não encomenda um hino em sua homenagem e obriga os estudantes a entoá-lo diariamente antes do início das aulas? A Secretaria Municipal de Educação do Rio de à propaganda do chefe. Mas não se trata de um caso isolado. Junto com as apostilas, chegaram às salas de aula da cidade cerca de 20 mil jogos “Banco Imobiliário: Cidade Olímpica”, fabricados pela Estrela, que destacam as obras do prefeito. Os jogos foram adquiridos pela prefeitura em um investimento superior a R$ 1 milhão e encaminhados às escolas como prêmios destinados a alunos com bom desempenho. Paes, pelo visto, quer os melhores como seus cabos eleitorais mirins. Num país sério , os episódios provocariam processos de impeachment do prefeito. Não acontecerá: a turma da oposição só espera a sua vez para fazer o mesmo. Ataque de Israel à Síria evidencia risco de guerra regional V © Syrian Arab News Agency (SANA) inte e nove de janeiro, terça-feira à noite: as grandes potências pelo controle geopolítico do quatro aviões militares israelenses invadem o Oriente Médio. A Rússia depende do governo Asespaço aéreo sírio e bombardeiam as instalações do sad para manter a sua única base militar no MediCentro de Pesquisas Militares situado em Jamraya, terrâneo, instalada na cidade portuária de Tartus. A cidade próxima a Damasco. Israel alega ter atacado China depende do petróleo e do gás fornecido pelo um comboio militar sírio que, supostamente, transIrã, aliado incondicional de Damasco. Além disso, portava armas destinadas ao Hezbollah (Partido de ambos, Rússia e China, não querem que a Casa Deus), que atua no sul do vizinho Líbano, integraBranca controle um eventual governo-fantoche que do por uma maioria xiita e apoiado pelo Irã e pela seria empossado após a queda de Assad. Síria. Damasco nega e acusa Israel de ter praticado Os Estados Unidos, em contrapartida, fazem uma ação que, potencialmente, pode levar a um uma guerra de desgaste contra a ditadura síria: novo confronto entre os dois países. financiam, treinam e organizam alguns dos grupos O Irã soma-se à Síria na condenação de Israel, rebeldes, enquanto articulam, nos bastidores, a seguido pela Rússia e China. Até aqui, é o esperado: estrutura de um novo governo capaz de assegurar todos são tradicionais aliados de Damasco. Mas até o controle sobre a região. Os ataques de Israel posmesmo os governos da Turquia, da Arábia Saudita, sivelmente atendem aos interesses da Casa Branca. do Egito e da Liga dos Estados Árabes, que normalAo mesmo tempo, porém, criam uma situação insustentável para os governos árabes que se demente criticam a ditadura síria de Bashar al-Assad, condenam o ataque e a “inoperância” do secretárioclaram antissionistas (incluindo a Arábia Saudita). geral das Nações Unidas Ban Ki-Moon. O cenário se tornou pouco tolerável mesmo para Se o ataque de Israel não gerou uma consequêna Turquia – que, nos últimos anos, adotou uma cia militar imediata, serviu para iluminar o que está rota “islamizante” e cujo primeiro-ministro, Recep em jogo na “questão síria”: o perigo da regionalização Erdogan, multiplica declarações em que equipara da guerra civil. O ataque israelense foi a primeira o sionismo a uma forma de racismo. intervenção direta de um país estrangeiro contra o A Síria já é o palco de uma guerra regional indigoverno sírio, desde o início da guerra civil no país, reta, que se desenrola sob a superfície. A eclosão de que ocorre há dois anos. uma guerra regional direta, com todas essas forças A Arábia Saudita e a Turquia dão apoio indireto operando a céu aberto, poderia levar à paralisação O ditador sírio Bashar al-Assad, de confissão alauíta (seita à oposição, fornecendo armas e dinheiro aos rebeldes do fornecimento de parte do petróleo destinado xiita), ora por dias melhores em uma mesquita, em Damasco que tentam depor o ditador Assad. Entre os rebeldes, ao consumo mundial, agravando a crise econômica ao lado da oposição secularista, perfilam-se correnglobal. Mesmo se essa perspectiva catastrófica for tes fundamentalistas de sunitas moderados associados à a destruição total da “entidade sionista” (o Estado de Israel). contornada, o colapso do regime de Assad ameaça converIrmandade Muçulmana egípcia, radicais financiados pelo A incursão israelense colocou um ingrediente estranho e ter o território sírio numa colcha de retalhos de entidades Qatar e pela Arábia Saudita, e também grupos jihadistas contraditório na receita do bolo. geopolíticas controladas por potências estrangeiras, como ligados à Al-Qaeda. Acontece que quase todos esses grupos A estranha aliança entre Israel e seus aparentes arqui- a Turquia, a Arábia Saudita e o Irã. desenvolvem uma retórica extremista, cuja meta explícita é inimigos só pode ser entendida à luz do jogo maior entre ABRIL 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO estados unidos Há dez anos, começava a “guerra estúpida” A invasão norte-americana no Iraque, um retumbante triunfo militar, converteu-se em custosa derrota política. Uma década depois, o Iraque parece se dividir em esferas de influência do Irã e da Turquia A invasão do Iraque pelos Estados UniIRAQUE: GRUPOS ETNO-RELIGIOSOS dos, deflagrada em março de 2003, foi TURQUIA um fato de crucial importância na definição da política internacional do início do século XXI. A operação militar de Washington deve SÍRIA Mossul ser compreendida no contexto gerado pelos Tikrit atentados terroristas da Al-Qaeda contra as IRÃ Al-Ramadi Torres Gêmeas e o Pentágono, em setembro Bagdá de 2001. JORDÂNIA I R A Q U E Meses após os atentados, enquanto se desenrolava a ação militar norte-americana no Basra Afeganistão, o governo de George W. Bush ARÁBIA SAUDITA anunciou a estratégia da “guerra preventiva”: KUWAIT GOLFO PÉRSICO a Doutrina Bush, que, em síntese, proclamava ÁREAS DE POVOAMENTO o direito da maior potência de atacar qualquer DOMINANTEMENTE XIITA PAÍSES ÁRABES país que ameaçasse sua segurança. A nova douPAÍSES NÃO ÁRABES DOMINANTEMENTE SUNITA trina também identificava a Coreia do Norte, DOMINANTEMENTE CURDO TRIÂNGULO SUNITA o Irã e o Iraque como ameaças à segurança MISTO norte-americana: os países do “Eixo do Mal” poderiam ser os primeiros alvos da “guerra Número de civis mortos na Guerra do Iraque (2003/2011) preventiva”. As razões alegadas por Bush para o ataque ao Iraque articulavam-se ao redor da suposição de que o regime de Saddam Hussein teria em seu poder armas de destruição de massa, cuja tecnologia poderia ser repassada a terroristas inimigos dos Estados Unidos. Nessa linha, Washington também afirmava, contra o diagnóstico geral dos especialistas, que o Iraque mantinha ligações com grupos extremistas islâmicos. O tempo demonstrou a falácia das duas alegações. Outros interesses estavam por trás das justificativas as instituições do antigo regime. A invasão foi fácil, mas a oficiais, como a garantia de acesso às reservas de petróleo ocupação transformou-se em longo pesadelo. O Iraque é uma entidade política criada artificialmente iraquiano, que estão entre as maiores do mundo, e a criação de um regime aliado para conter a influência crescente pelos britânicos em 1920, quando foram acopladas, em do Irã no Oriente Médio. Mais ainda, tratava-se de exercer um mesmo território, três antigas províncias otomanas: uma influência direta no Golfo Pérsico, no contexto de Mossul, no norte, Bagdá, no centro, e Basra, no sul. O país que emanou da prancheta britânica era uma colcha crescente instabilidade interna na Arábia Saudita. O conflito teve início em março de 2003, quando as de retalhos, reunindo grupos étnicos e históricos distintos, forças dos Estados Unidos, apoiadas por contingentes com longo passado de rivalidades. Atualmente, no Iraque, britânicos, invadiram o território iraquiano. A ofensiva cerca de 60% da população é formada por árabes xiitas, não tinha o aval das Nações Unidas e realizava-se em meio 20% são árabes sunitas e quase 20% são curdos. O norte a críticas generalizadas da comunidade internacional. A é majoritariamente curdo, o sul é xiita e o centro-oeste é maior parte do efetivo militar – cerca de 150 mil soldados dominantemente sunita (veja o mapa). Após a rápida vitória, as forças ocupantes tiveram – partiu do sul, através da fronteira com o Kuwait, rumo a de enfrentar a realidade política de um país dividido Bagdá, a capital e centro político do regime iraquiano. Colunas de blindados avançaram celeremente para pelos interesses conflitantes dos três grandes grupos Bagdá, sem encontrar resistência significativa, até ocupar etno-religiosos. Desde a criação do país, o poder estava a cidade e derrubar o regime. A rápida vitória foi facilitada concentrado nas mãos dos sunitas. A ditadura clânica pelo total domínio aéreo, pela condição quase plana do de Saddam Hussein cristalizava essa tradição, excluindo relevo da região e, também, pelas novas tecnologias bélicas os xiitas e os curdos dos postos mais altos da burocracia empregadas, que se adaptaram bem aos climas semiárido pública, das forças armadas e dos serviços de inteligência. e desértico dominantes no país. Só uma forte tempestade A desmontagem do antigo aparato estatal pelas forças de areia atrasou, por algumas horas, o avanço dos atacan- ocupantes, com o banimento do Partido Baath, núcleo tes. No início de maio, os Estados Unidos declararam do antigo regime, destruiu a ordem política tradicional. encerradas as principais operações de combate no país e Seguiu-se uma escalada de violência que fugiu ao controle nomearam uma administração provisória que aboliu todas das forças de ocupação. 200 Km Fonte: SELLIER, André; SELLIER, Jean. Atlas des peuples d’Orient. Paris: La Découverte, 2004. p 73. (número de civis mortos) 32000 28000 24000 20000 16000 12000 8000 4000 0 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Fonte: Departamento de Defesa dos EUA e Iraq Body Count. MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO Sob o patrocínio de Washington, elegeu-se uma Assembleia Nacional Provisória, de maioria xiita e expressiva representação curda. Os sunitas boicotaram o pleito, afastando-se do processo político e optando por uma insurgência que se voltaria contra as forças norte-americanas e os xiitas. Uma nova Constituição, referendada pelo voto popular em outubro de 2005, desagradou profundamente as lideranças sunitas. Na sequência, os iraquianos foram às urnas e escolheram o parlamento e um governo definitivo. Uma coalizão de partidos xiitas obteve maioria, formou o governo e nomeou o xiita Nouri al-Maliki para primeiro-ministro e o curdo Jalal Talabani para a presidência do país. As milícias sunitas, atuantes por todo o território, organizavam correntes ainda leais ao antigo regime e grupos de jihadistas estrangeiros, associados à Al-Qaeda. Entre 2006 e 2007, alastraram-se os conflitos sectários entre sunitas e xiitas, que geraram cerca de 4,4 milhões de refugiados, tanto internos como os que se deslocaram para países vizinhos, especialmente Síria e Jordânia. Naqueles dois anos terríveis, o número de vítimas iraquianas fatais ultrapassou a marca de 50 mil. Entre 2003 e 2011, o total de vítimas iraquianas chegou a quase 110 mil. Ao longo de todo o conflito, 1,5 milhão de militares norte-americanos passaram pelo Iraque e cerca de 4,5 mil deles morreram em combate (veja o gráfico). O desgaste político gerado pelo conflito acirrou, na sociedade norte-americana, o debate sobre a validade da presença militar no Iraque. A crise econômica que eclodiu em 2008 inviabilizou, politicamente, a continuidade da aventura militar. Barack Obama, então candidato democrata à presidência, classificou, uma vez mais, a invasão do Iraque como a “guerra estúpida”, distinguindo-a da “guerra necessária” no Afeganistão. Um esboço de plano de retirada foi rascunhado ainda no governo Bush, prevendo um cronograma de desocupação até o horizonte de 2011. O saldo da “guerra estúpida” não poderia ser pior. Os desmandos cometidos por soldados norte-americanos contra prisioneiros iraquianos, além do enorme número de vítimas civis, macularam a imagem internacional dos Estados Unidos, especialmente no mundo árabe-muçulmano. A guerra produziu atritos com aliados tradicionais e dividiu a sociedade norte-americana. A aventura militar atraiu para o Iraque grupos extremistas islâmicos, abrindo uma nova frente na “guerra ao terror”, e desviou soldados e recursos do teatro de guerra do Afeganistão. O Iraque que emergiu da ocupação não é um país pacificado, mas o palco de uma disputa de poder regional entre o Irã e a Turquia. Ironicamente, o governo xiita iraquiano, formado à sombra das forças norte-americanas de ocupação, inclina-se na direção do Irã. Por outro lado, numa ironia simétrica, a região autônoma curda no norte iraquiano inclina-se na direção da Turquia, que ensaia um acordo de paz com o movimento separatista curdo atuante na porção meridional deste país. 2013 ABRIL estados unidos Argo, baseado em fatos (quase) reais Axé Silva Especial para Mundo O filme de Ben Affleck, vencedor do Oscar, narra a história do resgate de norte-americanos no Irã durante a “crise dos reféns” de 1979-80. Pode não parecer, mas ele fala mais sobre o presente do que sobre o passado ABRIL 2013 Divulgação odos os anos, os apaixonados ou meros admiradores do cinema estabelecem uma desenfreada corrida em direção às salas de projeção para ver os filmes concorrentes ao Oscar, o maior prêmio da sétima arte. Na cerimônia realizada em fevereiro, Argo (2012), película dirigida, produzida e estrelada por Ben Affleck, foi o vencedor na categoria de Melhor Filme na 85ª edição de entrega das estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Com aproximadamente duas horas de duração, a trama se passa no Irã, entre 1979 e 1980. Naqueles anos, o país persa vivia o auge da Revolução Iraniana. O levante de massas destituiu do poder o xá (imperador) Mohammed Reza Pahlavi, um aliado da Casa Branca desde o início da década de 1950. A revolução envolveu forças políticas laicas e religiosas, mas seu principal beneficiário foi o aiatolá xiita Ruhollah Khomeini. A ascensão de Khomeini explodiu a aliança com os Estados Unidos. As relações diplomáticas entre Washington e Teerã tornaram-se cada vez mais conturbadas e antagônicas. Sob o lema “Morte à América”, Khomeini comandava a radicalização, aproveitando-a como instrumento para golpear as correntes laicas iranianas e consolidar o poder da elite religiosa xiita na nova República Islâmica do Irã. Em 4 de novembro de 1979, militantes xiitas invadiram a embaixada dos Estados Unidos em Teerã e tomaram 52 funcionários como reféns. Entretanto, seis norteamericanos encontraram refúgio na casa do embaixador canadense Ken Taylor. Para solucionar tal situação, Tony Mendez, um agente do Serviço de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA (interpretado por Ben Affleck), sugere e monta uma mirabolante operação de resgate destinada a retirá-los do país. Além do Oscar, Argo recebeu diversos prêmios de importantes órgãos e associações ligadas à indústria cinematográfica. No entanto, apesar de toda a notoriedade e honrarias, é alvo de severas críticas. O suspense articulase como dinâmica narrativa tradicional, impregnada de situações típicas e, inclusive, lugares-comuns presentes nos thrillers hollywoodianos. Além disso, o filme encerra em toda a sua estrutura grande dose de ufanismo, uma constante em filmes de temática política produzidos pela indústria norte-americana do cinema. Nesse contexto, até a própria Hollywood passa, literalmente, a desempenhar papel fundamental no resgate dos seis funcionários em perigo na capital iraniana. Ironicamente, Hollywood poderia ter sido candidata ao prêmio de melhor atriz coadjuvante... Argo não ficou só em um ano marcado pelos “filmes políticos”. Lincoln, de Steven Spielberg, e A hora mais escura, de Kathryn Bigelow, também retratam – e interpretam! – momentos históricos cruciais na história dos Estados Unidos. O engajamento político de Hollywood está longe de ser inédito. Contudo, tais intervenções artísticas no palco da política parecem ocorrer com frequência maior quando o país atravessa crises de valores. Reprodução T Argo, de Ben Affleck, vencedor do Oscar 2013 de melhor filme, faz uma defesa sofisticada da ação imperialista norte-americana no Irã Nesses períodos, acentua-se a demanda por novos heróis, sejam eles indivíduos ou instituições. Trata-se de um movimento de reafirmação moral e histórica que se realiza pela intermediação de tramas apoiadas em eventos reais, mas reinterpretadas cinematograficamente e adaptadas às finalidades desejadas. Os anos finais da Guerra do Vietnã foram um desses períodos. Agora, os Estados Unidos atravessam a ressaca da “guerra ao terror”, que é apimentada pela crise econômica. No filme de Ben Affleck, o embaixador canadense foi reduzido a um mero hóspede de refugiados em desespero. Como se não bastasse, tem-se a impressão, ao final da exibição, que os Estados Unidos, presididos à época por Jimmy Carter, cederam as honras e glórias do episódio ao governo canadense, como agradecimento pela hospedagem aos refugiados cedida por Taylor. Contudo, em nenhum momento do filme registra-se explicitamente a importância do diplomata canadense e de outras figuras ligadas à embaixada do Canadá, como o primeiro-secretário John Sheardown, que foram fundamentais para o andamento do processo de resgate, arquitetando ao longo de meses a fuga dos refugiados. Filmes históricos não deixam de ser filmes – ou seja, obras de ficção. Argo cria “livremente” algumas cenas que nunca ocorreram, como a visita dos seis representantes da embaixada dos Estados Unidos a um mercado em Teerã. Obviamente, o episódio fictício criado pelo diretor funciona como mecanismo para elevar o grau de tensão, prendendo o espectador. De fato, em um país em ebulição política como o Irã, tal visita produziria dramáticas consequências – e um final nada feliz. Outra “licença poética” é a sequência do aeroporto, com o interrogatório da Guarda Revolucionária e, finalmente, a desenfreada perseguição de policiais e militares a um avião em pleno movimento para decolar. Affleck, artista anteriormente premiado pelo Oscar de melhor roteiro original por Gênio indomável (1997), em coautoria com o ator Matt Damon, expressa valores singulares, nem sempre alinhados aos do mainstream hollywoodiano. Defende a liberdade de expressão, engaja-se em causas humanitárias e liberais. Assim como George Clooney, também produtor de Argo, destaca-se por uma militância política contrária às propostas da ala mais conservadora do Partido Republicano. Affleck, além disso, tem uma formação acadêmica focada no tema do filme: realizou estudos sobre o Oriente Médio na Universidade de Vermont, em Burlington (Estados Unidos). Talvez por isso, sob a bandeira da “liberdade criativa”, tenha cortado e ocultado passagens relevantes da história na organização de sua trama cinematográfica. Filme artístico aclamado e premiado, Argo desempenha também a função de peça de propaganda ideológica e utilitarista, empapada de ufanismo imperial e distribuída nas salas de cinema de quase todo o mundo. Nesse sentido, o vencedor do Oscar não é inovação, mas reiteração de uma extensa tradição hollywoodiana. É ver para crer... Ou não. Axé Silva é geógrafo formado pela Universidade de São Paulo, professor e coautor do material didático do Sistema Anglo de Ensino MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO união europeia “Ditadura da troika” en O projeto da união monetária também pode ser entendido, como tantas outras coisas na história da integração europeia, como um compromisso francoPor insistência da Alemanha (...), o Banco Central Europeu seria um Bundesbank em larga escala, ferozmente independente dos governos (ao contrário da tradição francesa) e dedicado com fervor protestante ao único Deus verdadeiro, o da estabilidade de preços (...). Kohl queria que a união monetária fosse complementada por uma união fiscal e política, a fim de assegurar o controle dos gastos públicos e a coordenação da política econômica entre os Estados (...). Mas a França não queria nada disso. O ponto, para ela, era obter algum controle sobre a moeda alemã, não conceder à Alemanha o controle sobre o orçamento francês. (...) Assim, (...) uma criança enferma foi concebida. alemão. O (Timothy Garton Ash, “The crisis of Europe”. Foreign Affairs, edição de setembro/outubro 2012) primeiro-ministro alemão Helmut Kohl contrariou o Bundesbank, banco central de seu país, ao ceder à proposta francesa da união econômica e monetária. O ano era 1990, o Muro de Berlim caíra meses antes e a Alemanha se reunificava. A moeda comum serviria para soldar os destinos alemães aos da França e da União Europeia, um objetivo geopolítico que valia o preço da renúncia ao marco. Aquela renúncia está na origem da atual crise do euro, que já se transformou em crise da própria União Europeia. Kohl antevia o perigo e tinha uma solução. Dirigindo-se ao Bundestag, o parlamento alemão, em novembro de 1991, expôs sua visão, pela qual a união monetária seria complementada por uma união política e fiscal. “A união política é a contrapartida essencial da união econômica e monetária”, explicou. “A história recente, e não apenas da Alemanha, ensina-nos que é absurdo imaginar que se possa manter a união econômica e monetária, a longo prazo, sem uma união política.” Por “união política” ele designava a ideia de criação de um organismo europeu de fiscalização e controle dos orçamentos dos governos nacionais. Mas a ideia sofreu o veto de François Miterrand, presidente da França na época. Hoje, em meio à crise, o lugar da união política é ocupado pela chamada troika (União Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). O Tratado de Maastricht, de 1992, foi fruto do veto francês à união política. Os governos nacionais conservaram plena soberania sobre seus orçamentos, mas se comprometeram a respeitar os “critérios de convergência” definidos no tratado. Basicamente, o déficit orçamentário não poderia superar a marca de 3% do PIB e a dívida pública deveria ter como teto a marca de 60%. Eram apenas palavras escritas em um papel. O euro foi introduzido em 1999. Pouco depois, Alemanha e França violaram os “critérios de convergência”, abrindo caminho para a estratégia de crescimento por endividamento adotada pelos mais diversos países europeus ao longo da última década. No ponto de partida da crise do euro, em 2010, Portugal tinha o euro, por meio da emissão de moeda, que permitiria Crescimento do PIB em países da zona do euro (por trimestres) uma recuperação % 2,5 2 menos traumática 1,5 dos países endivi1 dados. 0,5 0 Inflação é uma -0,5 palavra maldita -1 -1,5 na Alemanha. A -2 memória histórica 2011/T1 2011/ T2 2011/T3 2011/ T4 2012/T1 2012/ T2 2012/ T3 2012 /T4 alemã está marcada Portugal Zona do euro Itália Espanha Irlanda Fonte: União Europeia, Eurostat. Disponível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/. Acesso em: mar. 2013 pela hiperinflação dos anos 1920, que Gráfico 2 destruiu a República de Weimar e Crescimento do PIB da Grécia 6 pavimentou a estra% 4 da para a ascensão 2 de Adolf Hitler. 0 Sem as saídas da -2 desvalorização e da -4 inflação, sobrou aos -6 -8 países endividados 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014* o caminho da deGrécia Zona do euro flação – ou seja, Fonte: União Europeia, Eurostat. Disponível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/. Acesso em: mar. 2013 * Projeção de rigorosos planos de austeridade que reduzem gastos um déficit orçamentário de 9,3% do PIB, públicos, salários, o déficit da Espanha era de 11,2% e os da rendas e aposentadorias, provocando proIrlanda e da Grécia ultrapassavam 12%. longada recessão. A zona do euro merguNo mesmo ano, a dívida pública italiana lhou na recessão no terceiro trimestre de atingiu 115% do PIB. 2011. Itália e Espanha acompanharam sua Antes da união monetária, o recurso à trajetória, mas mergulharam mais fundo. A desvalorização cambial funcionava como Irlanda, que implantou mais cedo um plano estratégia dos países europeus para recu- radical de austeridade, voltou à superfície perar competitividade frente à Alemanha antes, evitando a recessão atual. Portugal, e enfrentar crises financeiras. O advento do que tentou um ajuste mais brando, coneuro suprimiu a flutuação cambial, provo- denou-se a uma recessão mais longa (veja cando perda crescente de competitividade o gráfico 1). dos países da “periferia” europeia – e, tamUma tragédia ainda maior desenvolvebém, da França. A Alemanha acumulou se na Grécia, que não divulga informações vastos saldos comerciais com seus parceiros macroeconômicas trimestrais há mais de um da zona do euro. Por uma dessas ironias da ano. A recessão grega começou em 2008, história, a maior potência do bloco bene- entra em seu sexto ano e produz contrações ficiou-se da concessão representada pela do PIB de dimensões registradas apenas renúncia à sua moeda nacional. Na hora da em casos de guerra. As projeções da União crise, porém, o governo alemão de Angela Europeia dizem que o país emergirá à suMerkel rejeitou a ideia de uma “união da perfície em 2014, mas é prudente desconfiar dívida”, que significaria cobrar parte do de tais profecias (veja o gráfico 2). prejuízo dos contribuintes alemães. Merkel A crise do euro converteu-se em crise rejeitou também a proposta de inflacionar política devastadora. Os planos de austeriGráfico 1 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 ABRIL dade não foram desenhados pelos governos nacionais, mas pela troika, que os impõem como contrapartida dos empréstimos aos países endividados. Nas eleições, os grandes partidos, comprometidos com o projeto europeu, estão praticamente obrigados a defender os planos que implementarão. O efeito disso é a derrota inevitável do partido que ocupa o governo, seja ele qual for, com sua substituição pelo grande partido da oposição – que está quase fadado a perder as eleições seguintes. Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e França seguiram esse roteiro, cuja consequência é a desmoralização dos sistemas políticos nacionais. A aceleração doentia do revezamento de partidos no poder é o aspecto menos dramático da crise política. Mais grave é a emergência, nos extremos do espectro político, de partidos que denunciam a “Europa” – isto é, a União Europeia e, especialmente, a Alemanha. Na França, o discurso antieuropeu contribuiu para o crescimento assustador da Frente Nacional, um partido de inspiração fascista. Na Grécia, partidos de extrema-esquerda (Syriza) e extrema-direita (Amanhecer Dourado) surfam na onda da revolta contra a “Europa”. Na Itália, a crise gerou um governo não eleito, constituído por tecnocratas, e uma eleição espantosa na qual emergiu como liderança política um comediante que propõe retirar o país da União Europeia (veja a matéria na pág. 8). À sombra da crise do euro, reativam-se nacionalismos regionais adormecidos. A Catalunha é o caso mais óbvio, mas não o único. Os líderes nacionalistas catalães acusam Madri de extorquir tributos excessivos da região – e prometem um plebiscito sobre a independência (veja a matéria na pág. 9). Por essa via, a crise do euro converte-se, na Espanha, em uma crise da própria unidade nacional. Kohl não podia, evidentemente, imaginar que a união monetária sem união política provocaria uma crise de tais proporções apenas uma década após a introdução do euro. Mas suas palavras naquela longínqua sessão do Bundestag, em 1991, sintetizam a natureza do desafio que a Europa enfrenta. nvenena as democracias europeias A zona monetária imperfeita C % do PIB % do PIB riar moeda parece fácil, às vezes é mesmo. Um tos religiosamente, encara com desconfiança o grego, Gilson Schwartz país que alcança enorme poderio econômico em o espanhol ou o português que usa a mesma moeda, Especial para Mundo geral é também emissor de uma moeda forte, confiável mas trabalha na repartição de controle de passaportes a ponto de ser usada no comércio e nos investimentos de muitos outros países pela no aeroporto que permanece às moscas. O país europeu periférico ganhou a capacidade de se endividar em euros, que simples razão de que o poder econômico do país emissor envolve outros países em usou mal, enquanto perdia a liberdade de desvalorizar sua própria moeda. Substituir relações de comércio, investimento e finanças. A libra, no século XIX, e o dólar, no século XX, são exemplos cristalinos dessa a desvalorização cambial pela dívida pública como combustível para acelerar o crescilógica: quem domina o mundo militar econômica, comercial e financeiramente im- mento econômico é péssima ideia. Que funcionou apenas enquanto o próprio dólar, põe a sua moeda. É possível fazer o caminho inverso, ou seja, criar uma moeda forte supostamente a moeda global “inimiga”, tornava-se ainda mais hegemônico na hora que teria então o dom de tornar poderosos os governos e economias que adotarem da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, e difundia-se a euforia esse padrão monetário? Essa é a sina do euro que, a julgar pelos acontecimentos, nos mercados de capitais e a especulação nas bolsas de valores. O ciclo encerrou-se no momento da crise do sistema financeiro norte-americano, a partir da quebra do permanece uma hipótese, uma aposta de risco crescente. Qual é a vantagem de criar e emitir uma moeda? A mágica da criação de um setor de crédito imobiliário e dos colapsos bancários de 2008. Como sustentar a ciranda financeira do euro se o próprio dólar também excedeu ícone que todos aceitam como representação de valor? A grande vantagem é o poder de criar também dívida. Com o sistema de crédito, o governo e as empresas dire- os limites do poder mágico de endividamento associado a uma moeda hegemônica? cionam a riqueza criada pela sociedade, e mesmo pelo mundo todo, quando uma A crise do euro, que deve muito ao uso e ao abuso do crédito e da dívida, assim moeda (e as dívidas contraídas com base nessa moeda) de um país alcança o status como às diferenças de produtividade no interior do bloco europeu, é também uma de moeda mundial. consequência da crise financeira norte-americana. Se, após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos dominaram o mundo Como sair do atoleiro? Tudo estará bem quando a necessidade de financiar as e o dólar (e as dívidas em dólar) tornou-se o centro de todo o desenvolvimento principais empresas e centros financeiros dos Estados Unidos tiver passado e os consumundial, qual a razão para a criação do euro no final do século XX? O euro nasceu midores norte-americanos voltarem a comprar, viajar e consumir produtos europeus? do compromisso franco-alemão que propiciou a reunificação da Alemanha (veja a Quantas empresas e bancos (e governos) europeus serão sacrificados no processo? matéria na pág. 6). Mas também expressou um impulso de expansão econômica Os planos de austeridade aplicados nos países endividados resultaram em proeuropeia. Vetores geográficos continentais, interesses comuns em grandes obras de longadas recessões. Em tese, esse caminho penoso produziria um ajuste das contas infraestrutura em transporte, energia e minérios, além de interesses militares con- públicas e um retorno aos “critérios de convergência” de Maastricht. Contudo, no vergentes explicam o pulsar ainda intenso início do quarto ano da crise do euro, os da pretensão europeia de contestar a hegedéficits orçamentários de Espanha, Irlanda monia global dos Estados Unidos. e Grécia permanecem distantes de 3% do Balanço orçamentário trimestral em países da zona do euro 5 A aposta política racional e legítima na PIB, o número mágico de Maastricht. O 0 criação de uma moeda, no entanto, pode percurso das dívidas públicas é ainda mais -5 afinal se amparar numa estratégia econômipreocupante. Elas continuam a aumentar ca errada. Criar moeda é sinônimo de criar em todos os países endividados. E a dívida -10 dívida. A dívida que, a partir do advento do grega voltou a crescer após uma brusca -15 euro, foi criada pelos governos beneficiados redução propiciada pelo calote parcial do -20 pela integração no mercado europeu e ano passado (veja os gráficos). -25 tornou-se impagável. Ficou insustentável o Muitos advogam o fim do euro, re-30 uso do euro como combustível para tornar conhecendo afinal que o erro econômico -35 2011/T1 2011/T2 2011/T3 2011/T4 2012/T1 2012/T2 2012/T3 menos heterogêneas as condições de escocriado por ambição política é também um Grécia Portugal Irlanda Espanha Zona do euro Itália laridade, produtividade e competitividade juízo equivocado politicamente. Cada país Fonte: União Europeia, Eurostat. Disponível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/. Acesso em: mar. 2013 nas sociedades europeias. teria que se virar com sua própria moeda. A Alemanha, que escapou da desinMas o risco disso é gerar uma guerra camDívida pública em países do euro (por trimestres) dustrialização forçada quando os Estados bial e protecionista sem precedentes. Com 180 Unidos e a União Soviética embarcaram desvalorizações brutais nos países periféri160 na Guerra Fria, tornou-se o maior polo cos, os credores experimentariam amplos 140 de inovação e competitividade num siscalotes e até os vendedores de máquinas e tema em que a capacidade de produção é tecnologias do norte da Europa acabariam 120 heterogênea e que abrange uma Grécia ou prejudicados. 100 um Portugal. Hoje, a expansão da dívida O caminho do meio é conservar o euro 80 pública e seu direcionamento para projetos e fazer juras de nunca mais usar o dinheiro 60 que não aumentam a produtividade de um público em vão, continuar investindo em 40 país se tornaram insustentáveis. Quem vai educação e produtividade, conter o impulso 2011/T1 2011/T2 2011/T3 2011/T4 2012/T1 2012/T2 2012/T3 pagar a conta dos aeroportos construídos ao crédito fácil e aos estímulos ao consumo Grécia Portugal Irlanda Espanha Zona do euro Itália em vilarejos espanhóis? O cidadão que, com euros. Enfim, o virtuoso discurso proFonte: União Europeia, Eurostat. Disponível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/. Acesso em: mar. 2013 na Alemanha, trabalha numa indústria de testante de Angela Merkel nesses últimos ponta em mecânica fina e paga seus imposanos de sangue, suor e lágrimas. ABRIL 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO união europeia Voto italiano expressa a rejeição à Europa As eleições de março representaram um golpe na União Europeia, no Banco Central Europeu e na Alemanha de Angela Merkel. Em busca de um governo estável, a Itália voltará às urnas no futuro próximo “Q © Niccoló Caranti ue venham os palhaços”. Foi essa a manchete de capa da revista britânica The Economist quando a apuração das eleições italianas evidenciou as dimensões da crise política na terceira maior economia da zona do euro. Os “palhaços”, estampados na capa, são Silvio Berlusconi, o magnata das comunicações e líder de centro-direita que governou o país entre 2008 e novembro de 2011, e Beppe Grillo, um palhaço de verdade, comediante profissional, novato na política e líder do Movimento Cinco Estrelas. Somados, Berlusconi e Grillo obtiveram mais de 55% dos votos populares, bem mais que o resultado combinado das coalizões de Pier Luigi Bersani, de centro-esquerda, e de Mario Monti, de centro, os candidatos “europeístas” (veja o gráfico 1). Os italianos votaram contra a dor e a austeridade. A coalizão organizada em torno de Mario Monti, chefe do governo tecnocrático formado após a queda de Berlusconi, sofreu uma derrota fragorosa. Monti é a face política italiana da União Europeia: o fracasso eleitoral do economista convocado para reformar a Itália, segundo as prescrições europeias, reativa o temor de O grande número de votos obtido pelo uma implosão da zona do euro. humorista Beppe Grillo reflete a rejeição dos A União Europeia previa a derrota de eleitores aos políticos tradicionais seu preferido – e tinha uma segunda opção. Gráfico 1 Bersani, líder do Partido Democrático, o Eleição italiana: distribuição dos votos populares sucessor social-democrata do antigo Partido Comunista Italiano, prometia dar continuidade às reformas deflagradas por Monti, 29,5% 29,1% mas queria se juntar ao primeiro-ministro 25,5% socialista francês François Hollande em uma cruzada para reorientar a política econômica europeia na direção do crescimento. A ex10,5% pectativa era de um triunfo de sua coalizão – ou, ao menos, de um resultado suficiente para a formação de uma aliança majoritária Pier Luigi Bersani Silvio Berlusconi Beppe Grillo Mario Monti entre Bersani e Monti. Mas a promessa de Gráfico 2 seguir a cartilha europeia custou caro ao porta-bandeira de centro-esquerda. Crescimento do PIB da Itália % 4 Os “palhaços” venceram, mas não go3 2 vernarão, pois Grillo descartou a hipótese 1 de uma aliança com Berlusconi. A coalizão 0 -1 de Berlusconi, formada pelo Povo da Liber-2 dade, partido do magnata, e pela Liga do -3 -4 Norte, organizou sua campanha em torno -5 -6 da denúncia da austeridade. A mensagem 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 populista do antigo primeiro-ministro, Zona do euro Itália principal responsável pelo agravamento da Fonte: União Europeia, Eurostat. Disponível em: http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/.Acesso em: mar.2013 crise econômica italiana, evitou uma derrocada eleitoral definitiva, que estava inscrita em quase todos os prognósticos. Na sua campanha estridente contra a “ditadura do Banco Central especialmente, jovens de classe média desencantados com Europeu”, Berlusconi conseguiu reduzir as repercussões a elite política italiana. Numa vertente nacionalista, ele dos escândalos de corrupção que o cercam. Segundo a promete suspender o pagamento da dívida italiana, o que revista The Economist, o programa desse “palhaço” sinte- equivaleria a retirar o país da zona do euro, e realizar um tiza-se na meta de “ficar fora da cadeia”. plebiscito sobre a participação da Itália na União Europeia. Grillo é um “palhaço” de outra cepa – e seria apropria- Contudo, ao contrário do nacionalismo de inspiração do levá-lo a sério. O Movimento Cinco Estrelas reúne, fascista da Frente Nacional francesa, não recorre a um MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO discurso xenófobo, anti-imigrantes. Além disso, crucialmente, promete reformar o sistema político e eleitoral italiano, uma proposta que lhe assegurou um lugar destacado no novo cenário eleitoral do país. O comediante elogia o Irã, no confronto com os Estados Unidos, sugere abolir os sindicatos e implantar uma semana de trabalho de 20 horas. Muitos de seus companheiros de movimento discordam abertamente das ideias mais “malucas” da nova estrela da política italiana. A loucura eleitoral da Itália não é um fenômeno aleatório, mas o fruto de uma enfermidade econômica e social de longa duração. No pós-guerra, durante quase quatro décadas, a Itália cresceu por meio da inflação e de cíclicas desvalorizações da lira, a antiga moeda nacional. O expediente, que assegurava a competitividade seus produtos de exportação, esgotou-se uma década antes da introdução da moeda comum europeia. Então, o país recorreu ao endividamento, que forneceu o fôlego necessário para um derradeiro impulso econômico. O segundo expediente parou de funcionar desde o advento do euro, convertendose na fonte da crise que, desde 2010, ameaça desconstruir o castelo de cartas das finanças italianas. Agora, na hora da verdade, a crise econômica assume a forma de crise política: uma revolta contra as elites dirigentes e suas agremiações partidárias. Grillo nasce desse chão histórico contaminado pela desesperança e pelo rancor. O fracasso econômico da Itália não deve ser minimizado. Ao longo dos 13 anos de existência do euro, o PIB real per capita do país encolheu. Na última década, sua performance foi sempre inferior à da sofrível média da zona do euro (veja o gráfico 2). Sem poder desvalorizar sua moeda, a Itália perde competitividade na Europa, acumula saldos negativos no seu comércio externo e não consegue atrair investimentos produtivos. A “doença italiana” deriva da regulação excessiva dos mercados de trabalho, que reflete a força dos sindicatos e dos mercados de produtos, que retrata a força dos interesses dos grupos empresariais tradicionais. O sistema político do país funcionou como escudo protetor desses interesses, empresariais e sindicais. A crise atual é fruto de uma prolongada inércia. Há um paradoxo evidente na mensagem dos eleitores, que expressam sua frustração com os políticos enquanto rejeitam as propostas de reforma de uma economia esclerosada. No momento da dissolução do governo Berlusconi, há 16 meses, os grandes partidos do país aceitaram apoiar um governo não eleito, comandado por Monti, que funcionava quase abertamente como ferramenta de uma “intervenção europeia” no país. A solução durou apenas o tempo suportável em um sistema político democrático. Contudo, as eleições de março não conseguiram produzir um governo estável. Inevitavelmente, em um horizonte de curto prazo, os italianos serão convocados de volta às urnas. Nesse meio tempo, a crise econômica só se agravará – e provocará ondas de choque por toda a zona do euro. Depois – quem sabe? – será a vez de Grillo. 2013 ABRIL união europeia Bloco europeu reativa os nacionalismos regionais e étnicos ABRIL 2013 Ingresso da Croácia na União Europeia aponta um horizonte de estabilidade para as pequenas nações balcânicas. Ao mesmo tempo, a crise estimula os separatismos na Espanha, na Grã-Bretanha e na Bélgica Mapa 1 O bloco europeu funciona como moldura geopolítica e econômica capaz de viabilizar a existência de pequenas nações Países da zona do euro ISLÂNDIA relativamente ricas no sistema internacioda zona do euro em ✪ Países séria crise econômica (PIIGS) nal da “era da globalização”. A perspectiva Países que eventualmente NORUEGA FINLÂNDIA poderão se juntar de ingresso na União Europeia, com suas à zona do euro R Ú S S I A MAR SUÉCIA instituições supranacionais, seu mercado Países que optaram em DO ficar fora da zona do euro NORTE DIN. unificado e sua moeda comum, oferece IRLANDA GRÃPaíses não integrantes da UE BRETANHA horizontes para os pequenos países oriundos POLÔNIA BELARUS Integrará à UE em 1/7/2013 ALEMANHA da implosão da antiga Iugoslávia. O mesUCRÂNIA FRANÇA mo fator, contudo, reativa nacionalismos HUNGRIA OCEANO étnicos tradicionais em países da Europa CROÁCIA ROMÊNIA MAR NEGRO ATLÂNTICO PORTUGAL ESPANHA SÉRVIA BULGÁRIA ocidental. No contexto da crise econômica ITÁLIA TURQUIA GRÉCIA que se desenvolve na Europa desde 2009, MAR MEDITERRÂNEO movimentos separatistas ganharam alento SÍRIA Á F R I C A na Catalunha, na Espanha, na região belga de Flandres e na Escócia. Mapa 2 Separatismos europeus: A Catalunha é uma das 17 comunidades Catalunha, Escócia e Flandres autônomas que dividem a Espanha (veja o mapa 2). A ESCÓCIA economia catalã gera pouco mais de 20% do PIB espanhol MAR e o PIB per capita regional é o maior do país. Os velhos DO NORTE ideais separatistas catalães reemergiram sob a forma de IRLANDA DO NORTE REINO uma disputa fiscal entre o governo regional e o governo naFLANDRES UNIDO Dublin cional. Os nacionalistas catalães, organizados em partidos IRLANDA HOLANDA INGLATERRA de centro e de esquerda que têm maioria no parlamento Londres Bruxelas regional, contestam o sistema de distribuição de tributos BÉLGICA a ch LUXEMBURGO an M e acusam Madri de “explorar” a Catalunha. O governo da a ld na Paris Ca região promete realizar um plebiscito sobre a independência, algo que violaria a Constituição espanhola. SUÍÇA FRANÇA OCEANO ATLÂNTICO Na Escócia, ao menos superficialmente, desenrola-se processo similar. Os nacionalistas escoceses pretendem promover um referendo sobre a independência em ouANDORRA tubro de 2014. O paralelo com a Catalunha, contudo, CATALUNHA não é inteiramente adequado, pois a Escócia é definida Barcelona ESPANHA como uma das nações constitutivas da Grã-Bretanha, Madri Lisboa e a legislação britânica admite a hipótese da separação, MAR MEDITERRÂNEO que exigiria apenas uma nítida manifestação da vontade majoritária dos escoceses. ÁFRICA Escala: 1:11.100.000 A União Europeia funciona como o grande argumento Regiões separatistas dos líderes separatistas. Quase todos eles sugerem aos potenciais eleitores que, uma vez independentes, os novos O caso da Turquia é mais complicado. Há quatro países se integrariam, automaticamente, ao bloco europeu. décadas, o país apresentou sua candidatura. De lá para As coisas, porém, são bem mais complicadas. Segundo os cá, alegações geográficas, históricas e culturais têm sido tratados da União Europeia, no caso da fragmentação de utilizadas para justificar a recusa da União Europeia em Estados, apenas os “Estados sucessores” conservariam o esadmitir a Turquia. No fundo, as resistências decorrem tatuto de membros do bloco. A Espanha permaneceria na de uma circunstância cultural e religiosa: o país mu- União Europeia após uma hipotética secessão catalã, assim çulmano não faria parte da “civilização europeia”. Com como a Grã-Bretanha depois de uma separação escocesa. cerca de 75 milhões de habitantes, a Turquia seria o Mas Catalunha, Escócia ou Flandres teriam que solicitar país mais populoso do bloco tendo, por conseguinte, adesão e enfrentar o mesmo processo de candidatura pelo o maior número de representantes nas instituições da qual passou a Croácia. União Europeia. Caminhos e descaminhos da UE ITÁLIA o primeiro dia de julho, a Croácia se tornará o 28º integrante da União Europeia. O processo de incorporação do país balcânico, que até 2001 fazia parte da antiga Iugoslávia, iniciou-se em 2003 e arrastou-se ao sabor dos ajustes dos critérios de adesão impostos pelo bloco. O Parlamento Europeu aprovou a entrada do país em dezembro de 2011. Em referendo, realizado no mês seguinte, cerca de dois terços dos eleitores croatas votaram pela adesão. O tratado da União Europeia estabelece que qualquer país do continente pode se candidatar à entrada no bloco, desde que respeite seus valores democráticos e se comprometa a promovê-los. Em linhas gerais, os critérios de adesão estão ligados a aspectos políticos, econômicos e jurídicos. No âmbito político, a União Europeia estabelece que o país candidato tenha instituições capazes de garantir a democracia, o Estado de direito e o respeito aos direitos humanos. No plano econômico, o candidato deverá ter uma economia de mercado e contas públicas estáveis. Por fim, juridicamente, deverá se enquadrar na legislação do bloco no que se refere aos objetivos da união política, econômica e monetária. Desde 1957, quando foi criada a Comunidade Europeia, embrião do bloco atual, os países-membros definiram dois grandes objetivos. O primeiro era o de aprofundar o relacionamento entre si, e o segundo, o de ampliar o número de seus integrantes. A integração vertical conheceu um forte avanço em 1992, quando o Tratado de Roma, documento básico original do bloco, foi substituído pelo Tratado de Maastricht – que, entre outros aspectos, definiu a adoção de uma moeda comum, que hoje circula em 16 países da União Europeia. A ampliação do número de membros foi gradativa, a partir do núcleo original formado pelos signatários do Tratado de Roma (França, Alemanha Ocidental, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo). No início da década de 1970, Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca foram incorporadas ao bloco. Na década seguinte, foi a vez de Portugal, Espanha e Grécia, a “periferia mediterrânica”. Nos anos 1990, ingressaram a Áustria, a Suécia e a Finlândia. Com a queda do Muro de Berlim e o encerramento da Guerra Fria, o alargamento deu um grande salto. Em 2004, dez países foram incorporados, incluindo nações que haviam pertencido ao bloco soviético da Europa oriental (Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia), as três repúblicas bálticas da antiga União Soviética (Estônia, Letônia e Lituânia), a antiga república iugoslava da Eslovênia, além dos pequenos Estados insulares de Chipre e Malta que, até 1960, eram colônias britânicas. Três anos mais tarde, ingressaram a Romênia e a Bulgária, antigos satélites soviéticos. Meio século depois, a Europa dos Seis de 1957 se transformou na Europa dos 27 (veja o mapa 1). Atualmente, cinco países – Turquia, Islândia, Sérvia, Macedônia e Montenegro – têm o estatuto de candidatos oficiais à adesão à União Europeia. É provável que a Islândia seja a próxima candidata aprovada, já em 2014. Sérvia, Macedônia e Montenegro, que, como a Croácia, fizeram parte da Iugoslávia, podem ser incorporadas entre 2015 e 2017. PORTUGAL N MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO hugo chávez (1954-2013) Depois do caudilho, uma “direção político-militar”? Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores Gabriel Garcia Márquez classificou Chávez como um “personagem dual”, de esquerda e, às vezes, de direita; de fato, foi um líder complexo, muitas vezes tratado de forma caricatural pela mídia © ABr N o ativo jogo de xadrez da Venezuela, existe algo que não se entende muito bem, no caso, o apoio do ministro da Defesa ao chavismo. É o que especialistas, em situações politicamente conflitivas em países de instituições frágeis, chamam de “fator militar”. Já vieram à tona inquietações com a “excessiva” presença militar cubana, manifestadas por um ex-integrante da cúpula do regime chavista. Antonio Rivero foi do alto comando do chavismo até 2008, e também homem da confiança de Hugo Chávez como diretor dos serviços de segurança, e deve-se levá-lo em conta. Quando a bandeira cubana foi hasteada em um forte da Venezuela, ele disse que “a presença cubana está além do que deve ser permitido”. Compara-se Chávez com Evita, a primeira esposa do caudilho argentino Juan Domingo Perón: na hora da morte de Evita, logo após um golpe fracassado contra Perón, descobriu-se que os militares argentinos a odiavam. O poder estava com os sindicatos, não com eles. Fala-se entre chavistas de alto nível, inclusive o sucessor indicado Nicolás Maduro, que já é realidade uma “alta direção político-militar”. A Venezuela tem um passado trágico de intervenções militares. A ditadura do general Juan Vicente Gómez durou três décadas, entre 1908 e 1935, sustentada pelo petróleo. Gómez passou à História como o “tirano dos Andes”. Em 1953, com dois grandes partidos já em campo – a Ação Democrática (AD), dita socialista, e o Copei, comitê social-cristão –, o “fator militar” ressurgiu na forma do general Marcos Pérez Jiménez. Como major, ou jovem oficial, ele participara da campanha contra Gómez. Jiménez se tornou ditador e foi derrubado em 1958, ponto de partida do que passou a ser na história venezuelana uma “longevidade democrática”, a mais extensa no continente. O poder se concentrou, então, no monopólio de dois partidos, a AD e o Copei, que se revezavam no governo. Também o chavismo estaria a caminho de mutações históricas, como se deram antes na Venezuela, pela entrada em cena do “fator militar”? Para entender o fenômeno Chávez, é preciso saber o que foi a “longevidade democrática”, com eleições regulares desde 1958. O número de pobres ultrapassou a metade da população. Alargou-se o abismo entre a opulência do Estado, saqueado por uns poucos, e a miséria da grande maioria. Os favelados eram 60% da população de Caracas e a criminalidade tornou-se um flagelo (que, por sinal, abate-se uma vez mais sobre a capital, agora sob o chavismo). A miséria tinha raízes políticas. Entre 1976 e 1995, o petróleo colocou US$ 270 bilhões nos cofres do Estado. A estatal Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) tornara-se a quinta maior produtora mundial. No imediato pósguerra, o Plano Marshall recarregou a Europa com US$ 13 bilhões. A Venezuela do bipartidarismo tinha recursos financeiros vinte vezes maiores. Mas a pobreza disparou, o desemprego superava a marca de 20%, nada se fazia pela Estabilidade do regime venezuelano dependia da liderança de Chávez. Sua morte deixa um perigoso vazio no tabuleiro político do país infraestrutura e não se investia na industrialização. A AD e o Copei usaram o petróleo para criar privilégios, corromper, oferecer subsídios e isenções fiscais. Quando os preços do petróleo desabaram, em meados da década de 1980, o bipartidarismo oligárquico entrou em colapso. Foi desse colapso que emergiu o coronel Chávez, de início golpista fracassado e anistiado, depois eleito presidente e líder político de uma Assembleia Constituinte estabelecida para “refundar a república”. A velha política e os velhos partidos “estão mortos, só falta sepultá-los”, garantiu o caudilho. Chávez empunhou a bandeira de um “poder moral”, mas também colocou a questão social na agenda política e acabou aprovando eleições presidenciais sem limitações de mandatos. No começo, as reações foram ferozes. O presidente chegou a enfrentar uma média de cem manifestações mensais contra ele e uma tentativa de golpe em 2002. Com tais alicerces históricos, com suas obras sociais e o “patriotismo bolivariano”, será o chavismo capaz de sobreviver à morte do caudilho? A verdade é que ainda não se sabe. O “império”, como Chávez e os seus se referem ao governo norte-americano, teria algo a ver com a articulação do golpe de 2002? Os chavistas disseram que sim – e agora, de modo quase delirante, dizem até suspeitar de que a doença e morte do líder resultou de alguma “inoculação” fatal organizada em Washington. Há quem diga que o fenômeno Chávez não existiria se não fosse o comportamento de Washington – ou o seu silêncio – diante daquela tentativa de golpe. George W. Bush não foi o presidente apropriado para se entender com uma América Latina mais “à esquerda”. Mas o próprio Bush, à época, confessou ter se chocado com as hostilidades que sofreu em uma conferência de cúpula em Mar del Plata, na Argentina, e pediu “novas ideias” no trato de Washington com as nações latino-americanas. A persistência do chavismo deveu-se também, em parte, às MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO suas projeções externas: a aliança estratégica com Cuba e com Equador, Nicarágua e Bolívia, membros da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba); a estranha aproximação com o Irã; a Rússia como fornecedora de armas. Essa dimensão internacional do chavismo aprofundou as tensões com Washington. No governo Bush, prevaleceu no Departamento de Estado uma “linha dura” nas relações com a América Latina. Eram os tempos do secretário-assistente de Estado Otto Reich, um dos animadores das guerras centro-americanas dos anos 1980. Até hoje, suspeita-se que Reich orientou as ações dos golpistas. “Novas ideias” começaram a entrar em campo com sua substituição por Thomas Shannon, agora embaixador no Brasil. São “expressões válidas”, disse Shannon sobre os governos “de esquerda” ou “populistas” da América Latina, procurando encontrar um caminho de diálogo. E, agora, sem Chávez, qual será a opção de Barack Obama? Gabriel García Márquez classificou Chávez como um “personagem dual”, de esquerda e, às vezes, de direita. Fazia discursos populistas muito longos, no estilo de Fidel Castro, e cercou-se da velha guarda comunista dos anos 1960. Teodoro Petkoff, um ex-guerrilheiro que hoje faz oposição ao chavismo, diz que, no caudilho, “coexistiam um forte dogmatismo com o mais puro idealismo”. Era um “comunicador nato”. Não escondia “uma certa atração pelo formato cubano”. Falava de um “socialismo do século XXI”, que “ninguém sabe o que seria na prática”. Mero populismo de esquerda “com espasmos antiamericanos”? São perguntas que deixa sem respostas. Teve o mérito de colocar a questão social na agenda política, mas, ainda segundo Petkoff, “o fato é que, sob o chavismo, não se alterou, de modo significativo, a estrutura da sociedade venezuelana”. A partir de agora resta saber quais serão as peças de reposição de um chavismo disposto a continuar mandando. Sem Chávez. 2013 ABRIL 10 Hugo chávez (1954-2013) E a revolução não foi televisionada José Arbex Jr. Editor de H&C “E Em 14 anos, o líder da “revolução boliviariana” e articulador de um discurso enganadoramente simples mudou o seu país e criou novas perspectivas políticas e ideológicas para a América Latina 11 © Ronaldo Schemidt/AFP então, como estão as coisas no Brasil?”, pergunta Hugo Chávez em uma bela tarde ensolarada, em 25 de julho de 2004 – data do aniversário ção, a um só tempo, executivo e de Caracas, fundada em 1567. Chávez acaba de legislativo. Em 15 de dezembro encerrar a 199ª edição do programa dominical de 1999, o povo venezuelano Aló presidente, quando instala o seu governo em referendou a nova Constituição alguma praça pública de uma cidade qualquer da Bolivariana. Em 30 de julho de Venezuela para ali ouvir críticas, queixas, elogios 2000, Chávez foi reeleito à pree promover debates, tudo transmitido ao vivo sidência, com 59% dos votos. pela rede de TV pública e por emissoras de rádios A consagração veio, paracomunitárias. Alguns programas duram até seis doxalmente, na forma de um horas, mas batem recordes de audiência, em grande golpe articulado para tirá-lo do parte porque o seu principal animador é uma figura poder, em 11 de abril de 2002. extraordinária: Chávez faz análises políticas, conta Por iniciativa dos donos das anedotas, declama poesias, canta, recomenda a principais redes de TV e jornais leitura de livros, conversa por telefone com gente impressos, e com apoio logístico que liga de todas as partes do país. do serviço secreto dos Estados “Como estão as coisas no Brasil?” Quase nove Unidos, a CIA, militares e emanos após o encontro com Chávez, quando ele presários venezuelanos depuseconcedeu uma entrevista à revista Caros Amigos, ram e sequestraram o presidente, O socialismo do século XXI, motor ideológico do chavismo, foi inspirado por eu teria que responder que algumas coisas mudaque foi conduzido preso a uma uma mescla cujos ingredientes foram o mito do “libertador” Simón Bolívar e ram, mas nada comparável ao processo que ele, ilha perto de Caracas. Todos os uma perspectiva social igualitarista, em oposição ao capitalismo Chávez, impulsionou na Venezuela. Os números, veículos divulgaram a versão de reconhecidos por agências da Organização das Naque ele havia renunciado. Na ções Unidas são impressionantes: em 14 anos, seu prisão, com o apoio de soldados governo reduziu a pobreza em 75%, permitiu que 98% dos diálogo, pluralismo e trabalho em equipe. Era brincalhão que o admiravam como líder militar, Chávez conseguiu 26 milhões de venezuelanos tenham três refeições diárias, e falava a linguagem de gente simples, mas ainda assim passar a informação de que não havia renunciado. Dois criou 22 universidades e erradicou o analfabetismo. Entre- permanecia de alguma maneira inacessível. Alto para o dias depois, manifestações gigantescas tomavam as ruas vistei vários favelados em Caracas que foram atendidos por padrão médio venezuelano (cerca de 1,80 metros), tinha de Caracas para exigir a volta do presidente. O episódio médicos cubanos, no âmbito do programa Bairro Adentro, um corpo forte e troncudo, treinado em exercícios mili- está bem documentado no vídeo A revolução não será e todos foram unânimes ao dizer que nunca antes haviam tares: foi várias vezes campeão de beisebol em disputas televisionada (2003), disponível na internet. sequer visto um médico pela frente, muito menos tinham internas das Forças Armadas e sua fisionomia sugeria Depois disso, Chávez enfrentou e venceu duas eleições recebido um em suas próprias casas. Cuba enviou cerca de a presença genética de índios e negros. Tinha obsessão presidenciais e um plebiscito revogatório, medida prevista 20 mil médicos à Venezuela em troca de petróleo e gás. pelo trabalho, dormia poucas horas por dia. Chávez era pela Constituição que permite à oposição depor um preNa última década, foram realizadas, em média, mais de enganadoramente óbvio. sidente, se após a conclusão da primeira metade de seu 60 milhões de consultas médicas anuais. No interior das Forças Armadas, onde seguiu carreira mandato houver um número majoritário de descontentes. Mas nem tudo foram flores em seu governo. Dotado militar, Chávez criou um movimento político inspirado Em 2004, lançou o projeto da Aliança Bolivariana para as de uma personalidade carismática, o presidente era pouco em Símon Bolívar, o “libertador” da América Latina. Em Américas (Alba), em oposição à Área de Livre Comércio dado a dividir o poder ou a delegar funções. Exercia um 1992, apoiado por cerca de 300 paraquedistas, liderou a das Américas (Alca), proposta defendida por Washington e enorme centralismo, e exibia publicamente um grande tentativa de derrubar o governo de Carlos Andrés Pérez. que, segundo Chávez, significaria a anexação dos mercados apreço por algumas figuras polêmicas – para dizer o mínimo Mesmo com o fracasso da operação, antes de ser preso, latino-americanos aos interesses dos Estados Unidos. E – do cenário mundial, incluindo os presidentes Mahmoud Chávez falou em rede nacional de TV e desde então formulou a proposta de “socialismo do século XXI”, uma Ahmadinejad, do Irã, e Bashar al-Assad, da Síria. Seu gover- passou a ser a principal opção política de caráter popular mistura difusa de ideais igualitários, nacionalistas e anti-imno conduziu a economia da Venezuela à beira da anarquia, no país. Ao sair da prisão, Chávez fundou o Movimento perialistas. Em julho de 2012, obteve uma de suas últimas com uma inflação estimada em 30% ao ano, em 2012, a V República (MVR), uma vasta frente de movimentos grandes vitórias políticas: conseguiu associar a Venezuela maior da América Latina. Mas ele não era um ditador, como sociais, grupos e organizações de tipo partidário vincula- ao Mercosul, graças à suspensão do Paraguai, motivada equivocadamente foi considerado por boa parte da mídia. dos aos setores mais miseráveis da sociedade. À frente do pelo golpe parlamentar que afastou o presidente Fernando Ao contrário, Chávez foi “o político mais eleito do planeta, MVR, foi eleito presidente da República, em dezembro Lugo do poder. O senado do Paraguai obstava a entrada da em eleições livres, transparentes e democráticas, muito mais de 1998, dando início ao projeto qualificado por ele de Venezuela, sob a alegação de que o governo Chávez desreslimpas do que as realizadas nos Estados Unidos”, declarou “revolução bolivariana”. peitava a “cláusula democrática” do Mercosul. o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter. Chávez assumiu o cargo em fevereiro de 1999 e Sua morte, menos de seis meses após a última vitória Filho de professores, Hugo Rafael Chávez Frías nasceu convocou uma Assembleia Constituinte para “refundar a eleitoral contra Henrique Capriles, em de outubro de em 1954. Tinha um aspecto “duro”, embora estivesse república”, referendada pelo voto de 88% da população. O 2012, deixa muitas indagações sobre o futuro das ideolosempre sorrindo. Transmitia a sensação de um barril de presidente eleito, fiel ao seu programa e aos compromissos gias que defendeu e dos movimentos sociais sobre os quais pólvora prestes a explodir, mesmo quando falava em paz. de campanha, colocou o próprio cargo à disposição da construiu o seu poder. Era personalista, ainda que advogasse a necessidade de Assembleia – que, assim, tornou o poder supremo da naABRIL 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO igreja católica Eixo da Igreja desloca-se para o Terceiro Mundo Catolicismo retrocede nas sociedades europeias, enquanto se alastra na África e na Ásia. A América Latina, de onde saiu o novo papa, concentra quase dois quintos dos católicos do mundo © David Iliff João Batista Natali Especial para Mundo H á apenas oito anos, e três pontificados atrás, João Paulo II (1978-2005) atraía respeitáveis multidões durante suas viagens e transmitia a imagem da perenidade religiosa. Mas a Igreja Católica já estava murchando. Os fiéis europeus a abandonavam ou se distanciavam dela. Foi o que disse, na época, o padre e teólogo suíço Hans Küng, um liberal com pesado histórico de trombadas com o Vaticano. Seu texto, que virou um clássico de reflexão, saiu na revista alemã Der Spiegel. Desde então, os escândalos de pedofilia apressaram a crise do catolicismo ladeira abaixo. É uma crise no número de fiéis e outra crise pela queda vertiginosa no número de novos padres europeus. Não há estatísticas unificadas sobre a Igreja, instituição de 20 séculos e que reúne ao redor do mundo cerca de 1,1 bilhão de pessoas (contra 1,5 bilhão de muçulmanos e 600 milhões de protestantes). Em 1991, na Irlanda, o mais católico dos países europeus, 84% da população iam à missa aos domingos. Pouco mais de 30 anos depois, esse número caiu para 50%. Na Espanha, por mais que 81% se digam católicos, dois terços não frequentam mais as igrejas. O desaquecimento religioso chegou até mesmo à Polônia, onde o catolicismo funcionou a partir do século XVIII como cimento da nacionalidade, em um país que estava territorialmente dividido entre a Prússia, a Rússia e o Império Austro-Húngaro e, no final do século XX, atuou com dimensão militante no desmoronamento do comunismo. Pesquisa recente indica que apenas 44% dos jovens poloneses assistem às missas aos domingos, contra 62% em 1992. Outros 42% dizem não seguir as recomendações quanto à abstinência sexual antes do casamento. Os seminários poloneses são os únicos na Europa que demonstram vitalidade. Têm em torno de 6 mil alunos. O país virou o grande exportador de clérigos na Europa. Abastece parte da demanda da França, da Alemanha (1,4 mil paróquias alemãs têm padres poloneses) e até dos Estados Unidos. Mas isso não compensa o declínio alhures. Na Inglaterra e no País de Gales, onde os católicos são minoria diante dos anglicanos, em apenas 13 anos os fiéis nas missas caíram de 1,3 milhão para 960 mil, enquanto em duas décadas a celebração de casamentos e o número de clérigos caíram em um quarto. A Igreja tende a acabar? A resposta é obviamente negativa. Mas ela está deslocando seu eixo de maior vitalidade para o Terceiro Mundo. Há cem anos, 65% dos católicos do mundo eram europeus; hoje, são apenas 24%, contra 39% na América Latina (veja o gráfico). Contudo, a proporção de católicos na população total experimenta redução também na América Latina, enquanto cresce aceleradamente na África Subsaariana e na Ásia. A partir de 1978, o número de fiéis quase triplicou nos países africanos, onde padres e bispos ainda são porta-vozes dos oprimidos. Entre os países asiáticos, nesse mesmo período, o número de padres cresceu 74%. Um diagnóstico sumário atribui a crise da Igreja Católica à pedofilia. O que especialistas dizem, no entanto, O “mundo” católico em dois tempos 1910 Europa 65% (188.960.000) América Latina 24% (70.650.000) Ásia/Pacífico 5% (13.880.000) Oriente Médio/ Norte da África 0,5% (1.440.000) África Subsaariana 0,5% (1.220.000) América do Norte 5% (15.150.000) 2010 América Latina 39% (424.490.000) Europa 24% (257.160.000) Oriente Médio/ Norte da África 1% (5.600.000) Ásia/Pacífico 12% (130.520.000) África Subsaariana 16% (171.480.000) América do Norte 8% (88.550.000) Fonte: Pew Research Center. Disponível em: http://www.pewresearch.org/. Acesso em mar. 2013 é que, se esse fator foi um poderoso acelerador, a coisa já ocorria bem antes. As dubiedades de Paulo VI e o franco conservadorismo de João Paulo II e Bento XVI fecharam as portas entre a Igreja e a sociedade durante o Concílio Vaticano II (1962-1965). Reforçou-se a condenação do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Digamos que mudanças nesses pontos seriam inesperadas. Mas e a camisinha? E a ordenação de mulheres? E o celibato clerical? Diarmaid MacCulloch, professor de História da Igreja na Universidade de Oxford, na Inglaterra, lembra que o catolicismo é a única religião cristã que proíbe o casamento dos clérigos. Com isso, criam-se padres arrogantes, porque foram produzidos pela ideia de que a castidade é uma diferença. Isso, claro, quando a castidade não é contornada, conforme insinuações de publicações católicas, pelas “governantas” de MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO muitos padres poloneses ou por mulheres e filhos assumidos por outros tantos padres africanos. Seria também injusto afirmar que a Igreja sempre erra. Há questões em que suas reiteradas posições geram extrema adesão, como a oposição ao armamentismo e às guerras, a defesa dos direitos humanos e a condenação às ditaduras. Mas, ao não enxergar as raízes de problemas como os ligados à sexualidade e à vida íntima dos fiéis, prevaleceu no Vaticano o dogmatismo doutrinário. Milhões de católicos, à revelia do papa, passaram a definir comportamentos teologicamente aceitáveis. É a conjugalidade oficiosa entre jovens e o uso de preservativos. Trata-se de uma rebelião surda e fragmentada. Ela não ameaça a Igreja como instituição, mas tende a bagunçá-la nas bases, nas dioceses, onde são frequentes os conflitos entre “liberais” e grupos do conservadorismo organizado (Opus Dei e Renovação Carismática, por exemplo). Isso também ocorre no Brasil, o país de maior população católica do mundo, onde os fiéis eram 73,8% em 2000 e hoje são 64,6%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2007, uma pesquisa do Datafolha mostrou que 94% dos católicos aprovam o uso da camisinha, 56% defendem o casamento na igreja entre divorciados e 46% apoiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os escândalos de pedofilia fizeram estragos imensos. O semanário católico The Tablet, editado em Londres e influente em uma centena de países, publicou uma pesquisa recente segundo a qual 55% dos católicos acreditam que os abuso sexuais foram mal conduzidos pela hierarquia. Sob João Paulo II, o cardeal Ratzinger, que seria seu sucessor, privilegiou a repressão à Teologia da Libertação em detrimento das denúncias de estupros a crianças e adolescentes. A escritora inglesa Madeleine Bunting, especialista em catolicismo e colunista do jornal The Guardian, diz que um dos efeitos nefastos da pedofilia foi o trincamento de uma relação de respeito e deferência que existia entre padres e fiéis. O padre não é mais aquele a quem se procura para um aconselhamento moral. Não porque ele seja suspeito de pedofilia. Mas a instituição representada por ele pecou seriamente por omissão. Enquanto isso, informações esparsas sobre a crise são verdadeiramente assustadoras. Na Alemanha, há três anos, 181 mil católicos abandonaram a Igreja. Sabe-se disso porque deixaram de pagar um imposto que o Estado recolhe e repassa. Na França, dos 41 mil padres que havia por volta de 1960, restam hoje apenas 15 mil. Para cada jovem padre ordenado, morrem oito de velhice. João Batista Natali é jornalista, colaborador da Folha de S. Paulo, professor de ética na Faculdade Cásper Líbero e na PUC-Cogeae e comentarista da TV Gazeta 2013 ABRIL 12