A Grécia e as “infelizes dicotomias”
continentais
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JOÃO CARLOS ESPADA
Diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica
Portuguesa, Lisboa.
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Talvez tenha chegado o momento de introduzir
maior flexibilidade marítima na União Europeia.
Na altura em que escrevo este artigo, não são ainda conhecidos os
resultados do referendo na Grécia. Esta aparente desvantagem pode constituir
uma oportunidade para manter um prudente distanciamento face à
radicalização de posições opostas.
Somos hoje bombardeados com apelos exaltados para apoiar um dos
lados — como se houvesse apenas dois lados. Ou temos de ser contra a chamada
austeridade imposta por Berlim e Bruxelas a Atenas, ou somos contra o
chamado antieuropeísmo despesista e irresponsável de Atenas.
Nunca tive qualquer simpatia pela extrema-esquerda do Syriza, nem
pelos seus aliados da extrema-direita — que aliás aqui denunciei em devido
tempo, mal chegaram ao poder. Recordei na altura que o primeiro gesto oficial
do sr. Tsipras foi receber o embaixador da Rússia.
Mas não me parece normal a agitação que por aí anda, denunciando a
alegada enorme ameaça à União Europeia causada pela Grécia.
Ameaça porquê? Porque não pode a União Europeia oferecer à Grécia
uma ordeira saída do euro? Por que motivo não quer o Syriza que a Grécia se
junte ordeiramente aos países membros da União Europeia que não são
membros do euro? Por que motivo não previu o tratado de constituição do euro
uma cláusula de saída ordeira da chamada “moeda única”?
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Artigo publicado no jornal O Público, Lisboa, 06/07/2015
Estas perguntas geram novas perguntas. Por que motivo se verifica uma
enorme divisão entre países do Norte e do Sul na zona euro? O projecto do euro
não visava, segundo foi anunciado, reforçar a convergência e a unidade — a
famosa ever-closer union — entre os países membros? Por que motivo os
resultados têm sido os opostos do que tinham sido anunciados?
Receio ter de recordar que houve quem na devida altura tivesse alertado
para os efeitos não intencionais da criação de uma “moeda única” sem existir
um “país único”. Foi então observado que uma moeda única requer
transferências automáticas entre os seus membros, o que supõe uma política
orçamental única e, por consequência, um governo único.
Mas, pode haver um orçamento único e um governo único, quando não
existe um país único na zona euro? Existe certamente uma escola que acredita
que sim (embora, na verdade, essa escola não saiba que acredita, apenas
acredita que sabe). Acreditam eles que os Estado-nação foram simples produto
de decisões políticas. Acreditam também que as instituições e outros artefactos
sociais são basicamente produto de decisões políticas.
Acontece que não são. É certo que as decisões políticas são um
importante ingrediente das instituições sociais. Mas não são o único e,
frequentemente, não são o decisivo. As instituições sociais não são fabricadas
especificamente por ninguém. Emergem de um longo e complexo processo de
interacção descentralizada que não é susceptível de comando central — mesmo
que esse comando central seja exercido pela chamada “Razão”, ou mesmo pela
“Razão libertadora de preconceitos e tradições não racionais” (como seria o caso
dos “preconceitos e tradições nacionais”).
Não pretendo com isto concluir que a criação do euro tenha sido
necessariamente um erro. Mas foi seguramente um erro gigantesco ter criado o
euro sem uma cláusula de saída ordeira. E é um erro gigantesco identificar a
moeda única com a União Europeia. A moeda única deve ser apenas uma opção
possível para aqueles países que queiram subscrevê-la. Por isso mesmo, esses
mesmos países devem poder sair ordeiramente do euro quando maiorias eleitas
preferirem políticas divergentes das do euro.
Receio bem que a dogmática interpretação do euro como projecto de
engenharia social irreversível, como diria Karl Popper, tenha criado um colete
de forças. Infelizmente, coletes de forças tendem a ser recorrentes na tradição
política do continente europeu. Alexis de Tocqueville descreveu-os como “o
perpétuo e estéril conflito entre o Antigo Regime e a Revolução”. Ralf
Dahrendorf designou-os como a recorrente tendência continental para gerar
“infelizes dicotomias”.
Manda a prudência que nos mantenhamos tão longe quanto possível
dessa ilusão continental sobre a inevitabilidade de escolhas dicotómicas. Existe
sempre uma via media. Talvez tenha chegado o momento de introduzir maior
flexibilidade marítima na União Europeia.
Maria Barroso: O estado de saúde de Maria Barroso é motivo de
consternação para todos os portugueses que amam a liberdade e a democracia.
Maria Barroso ensinou-nos que é possível resistir à tirania, de direita e de
esquerda, sem ficar refém do extremismo, do ódio, ou da intolerância. Nestes
momentos difíceis, recordemos com ternura o seu exemplo de infatigável
defensora da liberdade e responsabilidade pessoal.
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