ISSN 1982-9302
VIII Semana de Estudos Históricos do CERES
- História e Cultura e Patrimônio Caicó-RN, 03 a 05 de setembro de 2008
Caicó-RN
03 a 05 de setembro de 2008
Anais
CAICÓ
2008
2
APRESENTAÇÃO
A Semana de Estudos Históricos do CERES é um evento anual que tem por
objetivo central a promoção e a ampliação do conhecimento histórico para o público
acadêmico e a comunidade externa, na busca de integrar ensino, pesquisa e extensão,
um dos pilares básicos da instituição universitária. A temática escolhida para o evento de
2008 - “História, Cultura e Patrimônio” - vem de encontro às necessidades regionais
quanto à educação patrimonial e preservação da História e cultura locais.
O evento teve como objetivo divulgar e promover o debate científico entre os vários
campos do conhecimento, promovendo a interdisciplinaridade e o contato entre
estudantes e professores da região com professores convidados de diversas
universidades brasileiras, além de graduados e graduandos de várias instituições
universitárias. Assim, com a finalidade de integrar profissionais da educação e
pesquisadores, buscamos contribuir para a ampliação das discussões acerca da temática
do evento, gerando reflexões que sejam úteis à sociedade. Esta publicação é o resultado
das importantes contribuições de professores e alunos à VIII edição da Semana de
Estudos Históricos do CERES.
Agradecemos à direção do CERES, ao Departamento de História e Geografia, à
coordenação do curso de História, aos colegas professores e alunos pelo auxílio e
colaboração, sem os quais este evento não poderia ter se realizado. Também
gostaríamos de agradecer a todos os participantes do evento, professores universitários e
estudantes de graduação e pós-graduação, que contribuíram com suas comunicações,
mini-cursos e palestras para que o objetivo deste encontro fosse alcançado.
3
Márcia Severina Vasques
(Organizadora)
VIII Semana de Estudos Históricos do CERES
- História e Cultura e Patrimônio Caicó-RN, 03 a 05 de setembro de 2008
A n a is
CAICÓ
2008
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SUMÁRIO
ARTIGOS
CIDADE E MODERNIDADE: TRAJETÓRIAS HISTORIOGRÁFICAS DA CIDADE MODERNA.
Silvera Vieira de Araújo- Mestranda
IDENTIDADES PLURAIS EVIDENCIADAS NOS ESPAÇOS DAS FEIRAS LUSITANAS.
Giovanna de Aquino Fonseca Araújo
Juliana de Aquino Fonseca Doronin
O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO NA ERA CONTEMPORÂNEA PRESENTE NAS FEIRAS E MERCADOS.
(UM ESTUDO COMPARATIVO: LUSO-BRASILEIRO).
Juliana de Aquino Fonseca Doronin
Giovanna de Aquino Fonseca Araújo
FORMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS HOMENS DE COR NA FREGUESIA DE SANTA ANA DO SERIDÓ
(1788-1838).
Helder Alexandre Medeiros de Macedo
NATAL ESCRITA: IMAGENS DA CIDADE A PARTIR DA HISTORIOGRAFIA.
Wesley Garcia Ribeiro Silva
MODERNIDADE E COTIDIANO NOS DISCURSOS SOBRE FORTALEZA (1900-1930).
José de Arimatéa Vitoriano de Oliveira
POBREZA E DOENÇAS NA PARAÍBA IMPERIAL:A TRAJETÓRIA MISSIONÁRIA DE PADRE IBIAPINA.
Danielle Ventura Bandeira de Lima
CIRURGIANDO UMA VIGILÂNCIA HIGIÊNICA: A INSPEÇÃO MÉDICA ESCOLAR COMO ESTRATÉGIA
CÍVICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
Paloma Porto Silva
POR AMOR, DESEJO OU DINHEIRO? ESTUDOS ACERCA DO USO DO CORPO E SEUS SIGNIFICADOS
NA CONTEMPORANEIDADE.
Allyson da Silva Prata
NO SERIDÓ DOS SETECENTOS...ASPECTOS EDUCACIONAIS DA INFÂNCIA COLONIAL.
Ieda Silva de Lima
ARQUEOLOGIA E TURISMO: UMA PERSPECTIVA DE PREVENÇÃO.
Washington Fonseca Marques
Anderson Adailson da Silva
“O MAR SEM FIM É PORTUGUÊS”: HISTÓRIAS E DESEJOS DE FERNANDO PESSOA.
Jossefrânia Vieira Martins
O NEGRO NA OBRA “O MOLEQUE RICARDO” DE JOSÉ LINS DO REGO.
Ajanayr Michelly Sobral Santana
POÉTICAS DA ORALIDADE E PERFORMANCE: O FANDANGO DE CANGUARETAMA-RN.
Ricardo Elias Ieker Canella
CIDADE E POESIA: MOSSORÓ NO OLHAR DE ANTONIO FRANCISCO.
Alessandro Teixeira Nóbrega
A REELABORAÇÃO DA CULTURA E AS ORIGENS DO MOVIMENTO ARMORIAL.
Anderson Bispo de Farias
GUIMARÃES ROSA E MIGUEL DE UNAMUNO: HETEROTOPIAS DISCURSIVAS NO SERTÃO.
Ana Paula Silva Souza
HIBRIDISMOS E NEGOCIAÇÕES CULTURAIS NO MANGUEBIT.
Francisco Gerardo Cavalcante do Nascimento
A PRODUÇÃO DA LEI 10.639/03: REFLEXÕES SOBRE SOCIEDADE, CURRÍCULO E TEORIA DO
CONHECIMENTO.
Ana Maria do Nascimento Moura
“UMA FACA DE DOIS GUMES”: O USO DAS “RELAÇÕES DIDÁTICAS” E A PRESENÇA DO
ANACRONISMO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA DO PROFESSOR DE HISTÓRIA.
Kêlia Raquel Bezerra da Costa
Graciane Maria Morais Alves
O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO RN E SUAS POSSIBILIDADES.
Úrsula Andréa de Araújo Silva
OS INDÍGENAS NA HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DE SUA REPRESENTAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE
HISTÓRIA PÓS PNLD 2007 E 2008.
Fabricia Maria Lucas Lima
O ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA ESTADUAL “PADRE EDMUND KAGERER”.
Paulo Mácio Azevedo Pontes
Iane Karine da Silva
Joaquim José Ferreira Targino
O ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA ESTADUAL “MANOEL CORREIA”.
Maria da Conceição Nóbrega Azevedo
Francisco Nascimento de Assis
EM BUSCA DE UM BEM ENSINAR: OBSERVAÇÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA.
Evanuel Marques da Silveira
OS CAMISAS VERDES”: O DISCURSO DO SIGMA E A MANUTENÇÃO DOS PODERES POLÍTICO EM
BARBALHA- CE. ( 1933-1945).
Samuel Pereira de Sousa
UMA VISÃO ILUMINISTA DA MORTE: A MUDANÇA DE PARADIGMA A RESPEITO DO MORRER TRAZIDA
PELA DOUTRINA DOS ESPÍRITOS.
Eline de Oliveira Campos
A MORTE EM SAMUEL FRITZ.
Úrsula Andréa de Araújo Silva
A DOR INSTITUCIONALIZADA:SIMBOLIZAÇÃO DE AFETOS EM RITOS MORTUÁRIOS SERTANEJOS.
Cristiano da Costa Cardoso
A PROBLEMÁTICA DAS FALAS E A EXPERIÊNCIA INTEGRALISTA EM BARBALHA-CE: A ORALIDADE
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COMO UMA METODOLOGIA DE ANÁLISE. (1933-1945).
Samuel Pereira de Sousa
A HISTÓRIA NO PAPEL DA IMPRENSA.
Bruno Balbino Aires da Costa
UMA (RE)LEITURA DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O CONCEITO DE CULTURA POPULAR E
IDENTIDADE NACIONAL A “LUZ” DO HISTORIADOR ANTONIO CARLOS REIS.
Jair Barbosa Araújo
Giovanna de Aquino Araújo
A CHARGE COMO LINGUAGEM HISTÓRICA: UMA REFLEXÃO METODOLÓGICA.
Matilde de Lima Brilhante
DIÁRIO E VERDADE: A CONSTRUÇÃO DA VEROSSIMILHANÇA NO DIÁRIO DE HENDRIK HAECXS (16451654).
Néliton Marcolino de Araújo
HISTÓRIA E ACERVOS: CONSERVANDO E SOCIALIZANDO INFORMAÇÕES.
Felipe Tavares de Araújo
Rossilvam da Silva Linhares
OS PROCESSOS CRIMINAIS COMO FONTE DE ABORDAGEM DO COTIDIANO HISTÓRICO DAS
CIDADES: UMA BREVE DISCUSSÃO.
George Silva do Nascimento
FONTES E POSSIBILIDADES:ALGUNS TRAÇOS DO SERTÃO DO RIO PIRANHAS ATRAVÉS DE
DOCUMENTOS CARTORÁRIOS (PARAÍBA, SÉC. XVIII).
Ana Paula da Cruz Pereira de Moraes
PATRIMÔNIO: A MEMÓRIA HISTÓRICA ATRAVÉS DA ATIVIDADE TURISTICA.
Maria Elizabeth Melo da Fonseca
CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO DA PARAÍBA: PATRIMÔNIO ARTÍSTICO CULTURAL DE UM POVO.
Idelbrando Alves de Lima
A RESISTÊNCIA DA MEMÓRIA: UMA REFLEXÃO SOBRE O MEMORIAL DA RESISTÊNCIA EM
MOSSORÓ.
Cláudia Lago
NA CULTURA ESCRITA OS VESTÍGIOS DA COR: ANÚNCIOS E NOTÍCIAS DE ESCRAVOS NO JORNAL “O
ARARIPE” 1855 – 1865.
Maria Daniele Alves
HISTÓRIA DA SEXUALIDADE NO EGITO ANTIGO.
Josiane Gomes da Silva
CULTURALISMO, HISTÓRIA E NORMATIVISMO: A ARTE DE FAZER DIREITO NA MESOPOTÂMIA E NO
EGITO ANTIGO.
Lucas Cavalcante de Lima
Rogério de Araújo Lima
IDENTIDADE, ESPAÇO E CIDADANIA NA ESPARTA DE LEÔNIDAS.
Cleyton Tavares da Silveira Silva
EDUCAÇÃO E MORAL GREGA SOB A ÉTICA DE ARISTÓTELES.
Thiago Gladys dos Santos
DIAGNOSTICANDO O ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA ESTADUAL CENTRO EDUCACIONAL FELINTO
ELÍSIO, DE JARDIM DO SERIDÓ/RN.
Hangleibe da Silva Barbosa
Itamara da costa Dantas
SEDUZIDA OU SEDUTORA? ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS FEMININOS NOS
DISCURSOS JORNALÍSTICOS E JURÍDICOS, EM PRINCÍPIOS DO SÉCULO XX.
Edivalma Cristina da Silva
“DESEJO DE CIDADE: CORREIO DA SEMANA E O DISCURSO DE SOBRAL EM 1930”.
Luciana de Moura Ferreira
NA TELA DO CINE TEATRO LUX: CINEMA E VIDA COTIDIANA.
Helmara Giccelli Formiga Wanderley
A CONSTRUÇÃO DE UMA CIDADE IDEAL PARA O SERTÃO DO SERIDÓ POTIGUAR: PROJETOS DE
MODERNIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO CAICOENSE (1950/1960).
Marcos Antônio Alves de Araújo
O FEMININO ESCRITO E O CORPO REPRESENTADO: UMA ANÁLISE DA “CONSTRUÇÃO” DO
“FEMININO” PELA SENSIBILIDADE BURGUESA E SUA CIRCULAÇÃO EM ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE
CAICOENSE.
Edivalma Cristina da Silva
REVELAÇÕES FOTOGRÁFICAS DAS MULTIFACES CRUZETENSES.
Jeyson Ferreira Silva de Lima
Dr.ª Eugênia Maria Dantas
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EXPEDIENTE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Reitor
Prof. Dr. José Ivonildo do Rêgo
Vice-Reitor
Prof. Dr. Nilsen C. Fernandes de O. Filho
Diretor do Centro de Ensino Superior do Seridó
Prof. Esp. Clóvis Almeida de Oliveira
Chefe do Departamento de História e Geografia
Prof. Esp. José Gregório da Costa
Coordenadora do Curso de História
Profª Ms. Paula Sônia de Brito
Coordenação Geral da VIII Semana de Estudos Históricos
Profª Drª Márcia Severina Vasques
Vice-coordenação da VIII Semana de Estudos Históricos
Prof. Dr. Jair Diniz Miguel
Comissão Científica
Prof. Dr. Alan Lacerda
Prof. Dr. Douglas Araújo
Prof. Dr. Muirakytan Kennedy de Macedo
Profª Drª Márcia Severina Vasques
Profa Ms. Paula Sônia de Brito
Porfa. Ms. Vanessa Spinosa
Prof. Esp. João Quintino
Equipe de Trabalho
DOCENTES
PROF. DR. ALAN LACERDA
PROF. DR. DOUGLAS ARAÚJO
PROF. DR. MUIRAKYTAN KENNEDY DE MACEDO
PROF. DR. JAIR DINIZ MIGUEL
PROFA. DRA. MÁRCIA SEVERINA VASQUES
PROFA. MS. PAULA SÔNIA DE BRITO
PROFA. MS. VANESSA SPINOSA
PROF. ESP. JOÃO QUINTINO DE MEDEIROS FILHO
FUNCIONÁRIO (A)
VILMA MARIA BESSA
DISCENTES
ADELANTHA SUNNALY DE SOUZA DANTAS
ALEX TEIXEIRA DO AMARAL
ANNA KARINA M. DANTAS
DAISY DE QUEIROZ BEZERRA
DAMIANA LAIZE DA SILVA NASCIMENTO
7
DANIELLY KARINE ALVES LEAL
DIEGO DA SILVA MEDEIROS
EDICLEIDE DA SILVA LIMA
ELIANE SOARES DE SOUZA
EVANUEL MARQUES DA SILVEIRA
FELIPE MYKAEL ALVES DANTAS
FRANCISCO DE ASSIS DANTAS DA SILVA
GILMARA PEREIRA DA COSTA
GISELE TÂMARA DE ARAÚJO
HUGLÊNIA RODRIGUES DA FONSECA
IANE KARINE DA SILVA
ITAMARA DA COSTA DANTAS
JACIEL GALVÃO DE ARAÚJO
JANUBIA DE MEDEIROS MENEZES
JARDELINE MAIRA FERNANDES DE ASSIS
JOÃO BATISTA FÊLIX DA SILVA
KATIUSCIA KELLY L. RAMALHO
KESSIA GUEDES DE ARAÚJO
KLEYTON FRANKLIN DO NASCIMENTO
MARIA DA CONCEIÇÃO NÓBREGA AZEVEDO
MARIA DAS GRAÇAS DE ARAÚJO SILVA
MARIA JOSÉ DE MEDEIROS NASCIMENTO
MARISTELA PEREIRA DE ARAÚJO
MARLUCE SILVINO
MIKAELA DANTAS DA SILVA
MILENA GOMES DOS SANTOS
MONIELLE MEDEIROS MARIZ
PATRÍCIA KARLA BRITO DE MEDEIROS
PAULO MACIO AZEVEDO PONTES
RAILSON ANTÔNIO DE MEDEIROS
RAYANNY FIGUEIRÊDO E MEDEIROS
ROSENILSON DA SILVA SANTOS
SULAMIR JÊNICE DE FIGUEIREDO SANTOS
TUYLLA RAYANE TAVARES DA CUNHA
VALCLÉIA FIRMINO VERAS ALENCAR
VIRGINIA NEVES DE ARAÚJO
W ASHINGTON DA FONSECA MARQUES
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ARTIGOS
As idéias expressas nos
artigos aqui publicados são de
inteira responsabilidade dos seus autores.
9
CIDADE E MODERNIDADE: TRAJETÓ
RIAS HISTORIOGRÁFICAS DA CIDADE MODERNA.
Silvera Vieira de Araújo- Mestranda-UFCG.
A cidade tem sido ao longo do tempo, objeto de estudo de diversos profissionais; entre eles:
geógrafos, urbanistas, arquitetos, sociólogos, historiadores que tem lançado olhares diversos sobre a
cidade, principalmente a cidade no contexto da modernidade. E, segundo Souza (2006), “ a cidade
moderna adquire diversas fisionomias, entre elas, a cidade do capitalismo, do trabalho, a cidade do
progresso, a cidade do lazer.”(p.14). Também podemos acrescentar outras tipologias que atualmente
tem sido atribuída á cidade, como a cidade bela, a cidade higiênica.
Atualmente, diversos estudos no âmbito da historiografia têm focalizado a cidade, enquanto
objeto de problematização, devido as múltiplas significações que esta adquire. Neste sentido, este
trabalho pretende discutir os diferentes significados atribuídos a cidade nas produções
historiográficas mais recentes, principalmente aquelas que dialogam com a história cultural. A
cidade moderna que se pretende estudar é a cidade que incorpora em sua materialidade os
elementos significativos da modernidade advindo dos desdobramentos da revolução industrial entre
eles: automóvel, telefone, aviões, sistema de esgotos, sistema de abastecimento da água, ente
outros.
Embora não tenha este texto, a pretensão de definir o que é cidade. Pode-se destacar a idéia
de cidade apresentada pela autora Maria Stella Brescianni, em seu artigo “História e historiografia
das cidades, um percurso” segundo o qual a cidade “ é um conjunto de significações acumuladas
através do tempo, uma produção social, sempre é referida a alguma de suas formas de inserção
topográfica ou particularidades arquitetônicas.”(BRESCIANNI, 2005, p.23).
Michel de Certau (1994) considera a cidade “ é feita de movimentos contraditórios que vai
além do poder, não sendo um campo de operações programadas e controladas, pois se proliferam
astúcias e combinações de poderes sem identidades.”(p.102).
Essas práticas dos habitantes comuns da cidade são produtoras de espaços e jogam com a
disciplina imposta pelos organizadores do espaço. A cidade nesta, perspectiva é espaço de múltiplas
significações construídas pelos habitantes comuns.
Cidade moderna: analise da cidade moderna na historiografia contemporânea
Em “ As setes portas da cidade”(1991) Maria Stella Brescianni, analisa a história urbana e
destaca as portas de entrada da cidade, ou melhor as portas de entrada de estudo da cidade no
10
âmbito da historiografia, fazendo uma analogia entre as sete portas de entrada da cidade antiga e as
formas de estudo da cidade contexto da produção historiográfica. Neste sentido, coloca a autora:
“ a primeira porta: a técnica como instrumento de modificação do meio. Estrutura-se o
sanitarismo sobre os saberes médicos e da engenharia, sempre tendo em vista porém a
preocupação filantrópica com a moralidade dos pobres; entre os objetivos de melhorar as
condições de vida urbana esteve sempre o de civilizar seres semi-bárbaros. Assim, por
meio da modificação do ambiente e em decorrência do corpo e dos
comportamentos.”(BRESCIANNI, 1991, p.11).
Neste tipo de historiografia prevalece analise de práticas e discursos inseridas no espaço urbano,
que tem o objetivo de racionalizar e purificar a cidade dos resíduos toxicológicos. A discussão
presente na historiografia sobre esta temática, destaca os procedimentos de disciplinarização dos
sujeitos que habitam a cidade, o que evidencia o diálogo com Michel de Foucault e seu conceito de
tecnologias disciplinares*. Foucault destaca que na sociedade moderna as tecnologias de
disciplinarização dos corpos refletem o desejo de padronização dos comportamentos com vistas há
uma racionalização do espaço, sendo estratégias de organização do espaço urbano, lançado por
sujeitos que se situa em um lugar de poder e saber, como médicos, engenheiros, arquitetos e assim
difunde um conjunto de ações e discursos no intuito de ordenar a cidade de acordo com os padrões
de civilidade exigidos pela sociedade capitalista.
A obra de Sidney Chalhoub* “Cidade Febril” mostra como os organizadores do espaço
urbano,leia-se arquitetos, engenheiros, urbanistas, poder público adotaram práticas de intervenção
no espaço urbano do Rio de Janeiro, no final do século XIX e inicio do século XX. Com intuito de
sanitarizar e embelezar a cidade, para que a cidade atingisse fisionomia moderna, por isso, fazia-se
necessário eliminar os elementos feiosos e infectuosos da cidade.
Assim, a demolição do cortiço Cabeça de Porco, significou uma medida de combate ao que se
considerava um antro de sujeira e monstruosidade, que não se enquadrava a perspectiva de cidade
moderna que os organizadores do espaço almejava construir.²
A questão social outra porta de entrada de estudo da cidade.moderna que segundo
Brescianni(1991) filha da revolução francesa somada á presença maciça de trabalhadores nas
cidades, e nem sempre se comportando como instrumentos dóceis, permitem elaborar uma outra
trama da história urbana. “ São os personagens que falam, são relatos de filantropia e dos
observadores sociais, pessoas preocupados com o crescimento da parte pobre da população, com o
aumento da insegurança.”(p.11).
Considera-se que a cidade analisada sob o viés da questão social, os personagens da cidade
como os mendigos, loucos, prostitutas, criminosos são problematizados como sujeitos desviantes,
que sofrem procedimentos de disciplinarização para se enquadrem as normas de convivência social
11
estabelecidas pelas exigências da sociedade moderna e capitalista. As produções historiográficas
contudo, colocam que estes personagens não são passivos á estas estratégias de disciplina.
Neste sentido,Fábio Guttemberg ao falar sobre os personagens da cidade de Campina
Grande no período de 1920 á 1945 destaca:
Trazer a tona a diversidade de Campina Grande; é uma forma de mostrar como as elites
tentaram hierarquizar espaços instituir valores. Mas também é compreender como
muitos moradores vão constituir outros cartografias, burlando e ressignificando essa teia
de valores e códigos que lhes tentaram impor”(SOUZA, 2006, p.56).
A cidade para o autor é um território de confronto, de múltiplos conflitos entre os personagens.
Isto, reflete a concepção de cidade introduzida por Lepetit em seu livro “ Por uma nova história
urbana” no qual enfatiza que a cidade é um espaço de múltiplas significações e apropriações dos
seus usuários. Assim como o texto é significados pelo leitor, a cidade é vista como texto em que são
seus moradores que lhe dão significado.
Outra porta de analise da cidade é segundo Brescianni(1991), a formação de identidades sociais
em que há “ uma representação da cidade dividida em duas classes: de um lado recobrir com um
nome de burguês pessoas diversamente ocupadas com a fabricação de tecidos, carros e outro
recobrir com o nome de proletários uma miríade de pessoas sem propriedade”(p.12).
A formação de uma nova sensibilidade urbana, a questão da reeducação dos sentidos dos
habitantes da cidade é segundo Brescianni outra forma de analise da cidade. Assim Walter
Benjamim quando analisa a Paris do século XIX, a partir das significações construídas pelo
Flâneur, um observador da cidade, mas também um sujeitos que elabora significações sobre a
cidade que observa.
Peter Gay “ A experiência burguesa: da Rainha Vitória á Freud a educação dos sentidos(1989),
mostra que “ essas grandes turbulências constituíam uma presença constante no século XIX,
gerando sonhos de
esperanças ou
verdadeiros pesadelos.”(p.4). Neste sentido, o autor analisa
a questão da educação dos sentidos dos habitantes da cidade moderna, enfatizando as senilidades
dos homens diante das constantes transformações e os medos, a insegurança, o desconforto diante
da multidão, poluição e sujeira.
Raymund Willians em “ Campo e a cidade: na história e na literatura(1989)” analisa a formação
dessas novas sensibilidades urbanas no contexto da modernidade a partir da literatura de ficção no
qual enfatiza:
Contudo, há uma razão mais ampla para a ênfase nas transformações. Os que estavam
habituados a ver seu meio ambiente imediato por intermédio de formas intelectuais e
literárias previamente dadas tiveram de perceber, no século XVIII, uma outra
modificação radical na paisagem: o rápido processo de expansão e transformação da
cidade.”(WILLIANS, 1989, p.199).
12
A literatura segundo o autor focaliza e ao mesmo tempo, legitima esse processo de
transformação do espaço urbano; e fornece indícios das novas percepções e usos do homem diante
dessas transformações urbanas.
A cidade também tem sido analisada pelo viés da cultura popular o que segundo Brescianni
constitui a sexta porta de entrada da cidade. Por fim, a ultima porta de entrada de analise da cidade é
a dos territórios da subjetividade.
A cidade pode ser analisada sob diversos ângulos no âmbito da historiografia, e adquire
diversas fisionomias dependendo da problematização, do recorte temáticos, teórico, metodológico
que se utilize para a composição da narrativa.
A percepção urbana, constitui um outra forma de abordagem da cidade, em que a cidade é
materializada nas práticas e percepções dos seus habitantes, uma vez que:
A percepção urbana é uma prática cultural que concretiza uma certa compreensão da
cidade e se apóia, de um lado, no uso urbano, e de outro, na imagem física da cidade.
Uso e hábito, reunidos criam uma imagem perceptiva da cidade que sobrepõe ao projeto
urbano e constitui o elemento de manifestação concreta do espaço. Entretanto, essa
imagem, por que habitual apresenta-se como homogênea e ilegível. (FERRARA, 1988,
.3).
A relação entre cidade e a percepção urbana, ou seja, entre a cidade e a percepção que seu
habitante tem dela, tem sido abordado em algumas produções historiográficas que enfatizam “ a
cidade enquanto poetizada pelo sujeito: este a reafabricou para o seu uso próprio desmontando as
correntes do aparelho urbano, ele impõe a ordem
externa da cidade a sua lei de
consumo.(CERTEAU, 1994,p.45).
A cidade não é problematizada apenas enquanto símbolo de um poder, que a organiza e insere
princípios de racionalidade em sua estrutura material; mas também é abordada pelos usos e
significados que seus habitantes faz desta. O habitante ou usuário do espaço urbano, faz uso diverso
do espaço quando está caminhando, dirigindo veículos ou apreciando produtos expostos nas vitrines
das lojas. Isto, significa que:
O modo como o usuário se apropria do espaço ambiental, identificando-o e se
identificando com ele, é o uso que dinamiza o espaço e o interpreta como um modo de
habitar, de viver. Como metáforas do espaço habitado, a cidade e moradia adquirem
identidades através do uso que conforma e informa o ambiente.(FERRARA, 1988, p.22).
A percepção e o uso que o habitante faz do espaço urbano, torna-se objeto de
problematização no âmbito da historiografia pertinente quando se relaciona a cidade em sua
materialidade com as apropriações e usos que seus habitantes fazem da cidade planejada. O que
evidencia que a cidade não é um lugar estável, mas está em constante transformação dependendo do
uso que se faça de sua estrutura material.
13
Conclusão
A cidade é analisada sob diversos ângulos e adquire diversos significados no contexto da
produção historiográfica, o que depende da vertente historiográfica que se utilize para abordar a
cidade, seja ela positivista, marxista, culturalista, social.
O olhar lançado sobre a cidade moderna neste texto, refere-se a uma perspectiva de analise
culturalista, em que se privilegia o estudo das recepções e significações que os habitantes fazem da
cidade no momento em que a cidade passa por diversas modificações em sua materialidade. Assim,
focaliza-se a cidade enquanto palco de práticas intervencionistas que se relaciona-se com as
reformas urbanas que concomitante estar ligado a estética e a higienização da cidade, práticas estas
que tem o objetivo de “ racionalizar, ordenar, classificar, higienizar, planejar, disciplinar e
transformar a cidade.”(MENEZES, 1999, p.120).
A cidade na modernidade é permeada por discursos e práticas que tentam conferir á cidade
uma imagem de moderna, o que significa retirar o aspecto medieval ou colonial que se atribuía à
cidade. A cidade mais salubre e bonita é vista como símbolo representativo da modernidade.
Referencias bibliográficas
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial, São Paulo; Companhia
das Letras; 1996
BRESCIANNI, Maria Stella. As setes portas da cidade. Revista Espaços e Debates: Revista de
estudos regionais e urbanos. Ano IX, n. 34.(p.10-15), Publicações NERU, 1991.
_________________________________. Historia e historiografia das cidades: um percurso. IN:
FREITAS, Marcos Cezar(org.). historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: contexto, 2005.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
FERRARA, Lucréssia d´ Aléssio. Ver a cidade: cidade, imagem e leitura. São Paulo: Nobel, 1988.
FOUCAULT, M. A Microfisica do Poder. Rio de janeiro, Graal, 1979.
GAY, Peter. A experiência da rainha Vitória á Freud: A educação dos sentidos. Tradução Per
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LEPETIT, Bernad. Por uma nova história urbana. São Paulo: EDUSP, 2001.
MENEZES, Lená Medeiros. Rio de Janeiro nas trilhas do progresso: Pereira Passos e as posturas
municipais. IN: SOLLER, Maria Angélica e MATOS, Maria Izilda S. (orgs.). A cidade em debate.
Belém, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Uberlândia, Curitiba, Porto Alegre. São Paulo,
Editora Olho d´agua, 1999.
14
SOUSA, F.G.R.B. Cristino Pimentel: Cidade e Civilização em crônicas. A Paraíba no Império e na
República: Estudos de história social e cultural. João Pessoa, Idéia, 2003.
________________. Territórios de confrontos: Campina Grande(1920-1945). –Campina GrandeEDFCG, 2006.
WILLIANS, Raymund. O campo e a cidade na historia e na literatura. Tradução Paulo Henriques
Britto. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
15
IDENTIDADES PLURAIS EVIDENCIADAS NOS ESPAÇOS DAS FEIRAS LUSITANAS1
Giovanna de Aquino Fonseca Araújo 2 (PMCG-Favip-Uminho)
Juliana de Aquino Fonseca Doronin 3 (Uem)
As feiras na Europa medieval, tinha o objetivo, com sua produção de alimentar a
população local, era comercializada a varejo nos conhecidos mercados. Naquela época, as feiras já
se constituíam como espaços de sociabibilidade, tendo em vista acontecerem em reuniões mensais
de mercadores de várias regiões. Época em que a navegação pelo mar mediterrâneo era restrita pelo
domínio de mulçumanos no norte da África e parte da Península Ibérica, havia no entanto, um
comércio terrestre que, partia dos portos italianos, levando mercadorias orientais por toda a Europa
Ocidental. Muitas formas de comércio varejista ao longo de todos esses anos foram sendo
aperfeiçoadas de mercados às quitandas, o tabuleiro ao meio da rua, e as técnicas de venda e de
convencimento presente nas falas daqueles que são os protagonistas desse comércio milenar, os
feirantes.
Nesse sentido, sabemos que as feiras portuguesas são instituições oriundas dessa época
medieval descrita acima, que “sobreviveram” a época moderna e na contemporaneidade ainda se
configuram como espaços de sociabilidades e de comércio. Nosso objeto de estudo será portanto,
não apenas destacar os aspectos que fazem dessas feiras lugares sociais mas sobretudo destacar a
importância que as mesmas tem enquanto lócus de pluralidade identitária, no instante em que
percebemos a presença de etnias diversas a exemplo dos ciganos e de imigrantes oriundos de países
circunvizinhos, a exemplo da Espanha e Itália, mas sobretudo destacamos a presença
dos chineses, orientais que diante da abertura de mercado vivenciada em Portugal diante da nova
República, pós 1975, transitam livremente comercializando seus produtos nas
feiras. Tais identidades plurais são reflexos na verdade de acontecimentos históricos,
_______________________
1- As feiras estudadas são as do Norte de Potugal: Vila do Conde, Barcelos, Braga e Ponte de
Lima..
2- A autora é graduada em História, Especialista em Teoria e Metodologia do Ensino de História,
Mestre em Ciências da Sociedade (UEPB) e Doutoranda em Idade Contemporânea, pela UMINHOBraga, Portugal. Atua no ensino superior na FAVIP- Faculdade do Vale do Ipojuca, em CaruaruPe, Brasil.
3- A co-autora é graduada em Serviço Social e especialista em Doenças infecto-contagiosas
parasitárias e Promoção a Saúde do Homem, Uem- Brasil.
16
como a globalização que não necessariamente provoca ruptura nas identidades daqueles que
freqüentam esses ambientes sociais, uma vez que as identidades são múltiplas e não estáticas como
sugerem os esteriótipos construídos e reconstruídos.
As feiras citadas constituem como reproduções sociais, políticas e capitalistas da vida
cotidiana, espaços de mobilidades comerciais e sociais onde, encontramos os produtos
comercializados, bem como as formas de fazer a feira: atos, gestos, performances corporais,
movimentos e dizeres, fomentados pelos atores sociais que freqüentam e transitam pelos labirintos
peculiares de cada lugar. Tais dinâmicas, ergue-se uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos
agentes sociais no âmbito dos territórios construídos e reconstruídos.
O fato é que desde a Era medieval, perpassando pela época moderna e no momento histórico
contemporâneo as feiras consistem num verdadeiro mosaico de espaços de sociabilidade, onde a
relação estabelecida entre tempo, agentes sociais e processos, concorre para que à vida citadina
carregue grande diversidade e riqueza de possibilidades plurais de rituais, comportamentos, normas
e limites de uso e apropriação do território urbano. Tais espaços são considerados como lugares que
vão além de um simples local de compra e venda de mercadorias a locais sobretudo privilegiados
onde se desenvolvem uma série de relações sociais, de sociabilidade, ponto de encontro tradicional
de amigos ou de simples conhecidos, lócus escolhido para os mais variados atos da vida social
mantendo assim um sentido de permanência e de identidade.
Em relação ao aspecto identitário, objeto também do presente estudo, percebemos que
estamos diante de realidades múltiplas, portanto posturas múltiplas também em relação ao
cotidiano, o que acaba acarretando nas identidades plurais evidenciadas na pós-modernidade. Com
efeito, percebemos que a complexidade da vida moderna exige que assumamos identidades
diferenciadas que entram em conflitos constantemente, nesse sentido, conforme HALL indica, ao
invés de pensarmos sobre identidade como um fato já concluído, devemos pensar sobre identidade
como uma ‘produção’, que nunca está completa, que está sempre em processo, sempre constituída
dentro e não fora da representação. Isto é, do discurso4. Ou ainda como diz PARMAR as
identidades nunca são fixas, mas complexas, diferenciadas e constantemente re-posicionadas.5
___________________--
4- HALL, S. Cultural Identity and Diaspora. In: Rutherford, J. (ed.) (1990)
5- PARMAR, P. E black FEMINISM: The politics of articulation. In: Rut-herford, J. (ed.) (1990)
O que se chega, no entanto ao consenso, diante da pós-modernidade vigente, é que as
concepções que se tem sobre identidade não são nunca singulares, mas multiplamente construídas
ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou serem antagônicos. As
identidades estão, portanto, sujeitas à historicização radical, em constante processo de
transformação e mudança6.
17
Trazendo para tal temática, para a realidade das feiras lusitanas, percebemos essa
característica identitária plural da pós-modernidade também presente, tendo em vista existir a troca
de posicionamentos, de posturas em relação aos lugares que se ocupa, ou seja, os discursos são
diferentes em relação ao posicionamento social que se ocupa, ou seja, a concepção que se tem das
feiras é diferenciada para o feirante e para o freguês, tomando por base o seu posicionamento no
local, no entanto tal concepção muda quando se muda também o lugar de onde se está falando.
Além disso também percebemos que diante da abertura de mercado vivenciada em Portugal com a
nova República, pós 19757,
pessoas de nacionalidade e de naturalidade diferente transitam
livremente comercializando seus produtos nas feiras, o que notadamente influência nas mudanças
de hábitos e de costumes daquela sociedade, acarretando mudanças de posturas e de perfis
identitários. Nos referimos em grande medida aos angolanos, os chineses, os descendentes de
franceses, os espanhóis, assim como os portugueses do sul que migram também para o norte
daquele País, além da presença dos ciganos, que com uma etnia múltipla, diversa, mesmo que
possuam a nacionalidade portuguesa, se apresentam de forma diferente aquele convívio dos
lusitanos. Essa apresentação divergente se dá no ritual de “fazer” a feira acontecer, nos seus gestos,
nas formas de chamar atenção do cliente, nas formas de “regatiar” os preços, de convencer os
clientes a comprar os seus produtos, na indumentária, vestimenta com que se portam, dentre outros
aspectos.
O fato é que percebemos que no norte de Portugal as pessoas que fazem as feiras, na
condição de feirantes e de fregueses possuem identidades plurais, em decorrência do mundo
“globalizado” mas também diante da troca de posturas, e influências vivenciadas nos espaços de
sociabilidade peculiar das feiras.
___________________
6- Ver Ver: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 1998
7- Ver ALVES, Jorge. Feiras e mercado interno na História Contemporânea: algumas notas avulsas.
In: Actas do 3 Encontro de História. Vetores de desenvolvimento econômico as feiras da Idade
Média à Época Contemporânea. Câmara Municipal de Vila do Conde, 2005
Referências Bibliográficas:
ALVES, Jorge. Feiras e mercado interno na História Contemporânea: algumas notas avulsas. In:
Actas do 3 Encontro de História. Vetores de desenvolvimento econômico as feiras da Idade Média
à Época Contemporânea. Câmara Municipal de Vila do Conde, 2005
18
DUVEEN, Gerard. A construção da alteridade. In.: Representando a alteridade. Ângela Arruda
(org.). et al. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
____________S. Cultural identity and diáspora. In: RUTHERFORD, J. (Org).Londres:
Lawrence&Wishart,1990
____________. Da Diáspora identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org.). Tradução
Adelaine La Guardia Resende et. Al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representações da
UNESCO no Brasil, 2003.
MALDONATO, Mauro. Identidade e liberdade. In.: A subversão do ser;identidade, mundo,
tempo, espaço: fenomenologia de uma mutação.São Paulo-SP: Peirópolis, 2001
MATHEWS, Gordon. Cultura global e identidade individual. Bauru-SP: Edusc, 2002.
PARMAR, P. E black FEMINISM: The politics of articulation. In: Rut-herford, J. (ed.) (1990)
SIGNORINI, Inês (org.). Lingua(gem) e identidade. Elementos para uma discussão no
campo aplicado. 2ª reimpressão,São Paulo-SP: Mercado de Letras, 2002
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis:Vozes, 2000.
19
O FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO NA ERA CONTEMPORÂNEA PRESENTE NAS
FEIRAS E MERCADOS. (UM ESTUDO COMPARATIVO: LUSO-BRASILEIRO)
Juliana de Aquino Fonseca Doronin 1 (Uem)
Giovanna de Aquino Fonseca Araújo2(PMCG-Favip-Uminho)
Iniciaremos nosso texto por definir o conceito de feiras, como sendo uma das instituições
mais curiosas do período medieval3. Local de concentração econômica, no que concerne a
distribuição de mercadorias vendáveis a partir de produções muitas vezes realizadas
domesticamente. É o que diz Ferreira Borges, vejamos: “Feira-mercado grande, público, em que se
vende toda a casta de mercadorias em tempo certo, uma ou mais vezes por ano (....) as feiras são um
meio de instigar a abertura de estradas e comunicações, de introduzir a civilização e de igualar a
necessidade de riqueza dos povos4”. Apesar das feiras terem importância a partir do reconhecimento
econômico e comercial, também sabemos que se constituem em um lócus de relações sociais e
culturais que dão suporte a convivência daqueles que transitam por esses espaços.
Na Europa, e na América as feiras surgiram dando lugar as primeiras aglomerações, as
cidades propriamente ditas, inicialmente tidas como povoados e vilas,
e posteriormente cidades. É o que diz Weber (1979) apud Vedana5 (2004, p.11), o aparecimento
das “[...]cidades está relacionado estreitamente com as feiras, que representavam o embrião de uma
nova aglomeração humana a partir da atividade comercial”.
Historicamente, as feiras adquiriram uma importância muito grande que ultrapassa seu
papel comercial, transformando-se, em muitas sociedades, num entreposto de trocas culturais e de
aprendizado, onde pessoas de várias localidades congregavam-se estabelecendo laços de
sociabilidade.
________________
1-autora é graduada em Serviço Social e especialista em Doenças infecto-contagiosas parasitárias e
Promoção a Saúde do Homem, Uem- Brasil.
2- A co-autora é graduada em História, Especialista em Teoria e Metodologia do Ensino de
História, Mestre em Ciências da Sociedade (UEPB) e Doutoranda em Idade Contemporânea, pela
UMINHO- Braga, Portugal. Atua no ensino superior na FAVIP- Faculdade do Vale do Ipojuca, em
Caruaru-Pe, Brasil.
3- Ver SERRÃO (1960): 539
4- Ver Ferreira Borges, apud: ALVES, Jorge. Feiras e mercado interno na História Contemporânea:
algumas notas avulsas. In: Actas do 3 Encontro de História. Vetores de desenvolvimento econômico
as feiras da Idade Média à Época Contemporânea. Câmara Municipal de Vila do Conde, 2005
5- Ver VEDANA Viviane. “Fazer a feira”: estudo etnográfico das “artes de fazer” de feirantes e
fregueses da Feira Livre da Epatur no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre/RS.
20
Notadamente em relação às feiras em estudo6, comungamos com a idéia de que na
atualidade, mesmo buscando a manutenção, conservação de algumas tradições7, é quase impossível
que elas se mantenham vivas, no decurso do tempo, sem alterações. Porém o curioso é que neste
mesmo período, com o capitalismo periférico se instalando
numa velocidade acentuada, e os supermercados luxuosos, e higienizados, as feiras continuam a
existir com características múltiplas, mas mantendo a idéia de espaço local de perambulações à
procura de compras, vendas, trocas, consumo, paquera, prazer, sociável, como entretenimento,
diversão, diálogos, amizades, furtos, vícios, enfim, polissêmicas sociabilidades. Lugar onde se
evidenciam os encontros, as tradições, as conversas, as compras, vendas e permutas, enfim das
múltiplas territorialidades, sejam econômicas, políticas ou culturais, tecidas em mudanças que se
misturam, se dissolvem, se transformam, no dia-a-dia, nas reproduções sociais, políticas
e
capitalistas da vida cotidiana. Dessa maneira, a feira se institui, antes de tudo, em um espaço de
mobilidades comerciais e sociais onde, por meio das diversificadas transformações ocorridas nela,
desde a localização geográfica aos produtos comercializados, além das formas de fazer a feira: atos,
gestos, performances corporais, movimentos e dizeres, fomentados pelos atores sociais que
freqüentam e transitam pelos labirintos das feiras.
Tais dinâmicas, ergue-se uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos agentes sociais no âmbito
dos territórios construídos e reconstruídos.
Contudo percebemos que diante do fenômeno da globalização, fenômeno que data
desde o período da antiguidade8 com as primeiras viagens marítimas e a relação estabelecida entre
os lugares, diante da expansão do Império Romano. No entanto, tal fenômeno passa a “repercutir”
no momento atual, diante das novas tecnologias e da abertura de mercado que se deu no mundo pós
guerra fria, e diante do processo de redemocratização das Nações.
__________
6- Nos referimos no nordeste do Brasil, especialmente a Feira central de Campina Grande-PB e a
feira de Caruaru-Pe (ambas do nordeste) e as feiras do norte de Portugal, em especial a de Ponte de
Lima, Vila do Conde e Barcelos.
7- Considerando a feira como tradição, no sentido utilizado por Hobsbawn, da invenção da tradição
pelos brasileiros e lusitanos em consonância com outros atores sociais dos países circunvizinhas,
bem como dos visitantes.
8- Ver BRUM, Argemiro. Globalização e Regionalização. In: O desenvolvimento Econômico
Brasileiro. 18 Ed.Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.
21
Traçando um paralelo entre globalização e identidades nacionais, percebemos que ao
mesmo tempo em que a globalização rompe fronteiras, encurta distâncias, aproxima culturas, assim
com todo esse crescente movimento de expansão dos países desenvolvidos sob a invasão dos
Subdesenvolvidos diante dos neocolonialismos ainda presentes no início do século XXI entre o
Ocidente e o Oriente, verificamos que ocorre a contestação no presente, buscando justificativa para
passado, ou seja, constatamos que com a globalização os atuais conflitos estão concentrados nessas
fronteiras onde a identidade nacional é questionada e contestada.
Em relação às feiras em estudo a noção espaço-tempo revela-se fundamental para nortear o
estudo dos processos de transformações ocorridas nesses lugares no momento contemporâneo. Este
modo de abordar o assunto implica no conhecimento da dinâmica da evolução do espaço urbano
municipal inserido em um contexto mais amplo de transformações do capitalismo, e notadamente
no período atual da efervescência da globalização e neoliberalismo.
Segundo Castells9 (1999), constata-se nas três últimas décadas do século XX, o
surgimento de um novo capitalismo baseado em tecnologias da informação, o autor destaca a
atribuição dada à tecnologia da informação, na atualidade a necessidade de se fazer presente em
todas as ações humanas, colaborando com a constituição da dinâmica da economia, da sociedade e
da cultura, sem atribuir-lhe a condição de determinação das relações sociais.
Com o capitalismo novas ferramentas se fazem presentes a cada dia, objetivando um
rápido e crescente processo de flexibilidade, na medida em que ocorre à aplicação de novas
tecnologias na organização da produção, possibilitando aumento dos lucros, redução dos custos da
produção (custos com mão-de-obra), aumento da produtividade, ampliação do mercado e aceleração
do giro do capital. Ou seja, Neste sentido, exige-se um processo de modernização condizente com a
realidade desta reestruturação produtiva.
__________
9- Ver CASTELLS, Manuel (1999)
Em relação a este mercado atual, que “dita”, o que deve ser comercializado, a que
custo, com qual lucro, a quem e por quem deve ser comercializado, a forma de mão-de-obra, a
matéria prima a ser empregada, etc. Objeto do mundo capitalista, queremos lembrar que, nem
sempre fora desta maneira a economia, e para tanto gostaríamos de abordar neste texto a teoria da
Nova Sociologia Econômica, referenciada por Karl Polanyi10, onde percebe- se que, na maior parte
da história, a satisfação da subsistência era estruturada por laços de parentesco (kinship), pela
religião ou outras práticas culturais que tinham muito pouco a ver com o modelo de economia
22
formal, no qual indivíduos maximizam ganhos econômicos através do comportamento competitivo.
Os mercados existiam, fosse na Europa ou na América, mas desempenhavam um papel residual, e
não determinante nem hegemônico. Trazendo esta teoria para o nosso objeto empírico, ou seja, as
feiras verificamos que, embora as feiras tenham tido sua origem na Idade Média, se prolongando a
época moderna, com o advento do capitalismo, consideramos que não se tratava deste capitalismo
efervescente e pujante da década de 1980, uma vez que no princípio, ou até mesmo na primeira
metade do século XX, as relações sociais de compadrinhamento, eram mais valorizadas, as
igualdades entre as classes, e o sentido de humanidade, se fazia mais presente.
Uma questão bastante semelhante diz respeito à diversificação de mercadorias, são
produtos dos mais variados que encontramos nessas feiras em estudo, notadamente com o advento
da globalização e a abertura de mercado verificamos um crescente quantitativo de objetos
importados de outras localidades que transitam nas feiras com o propósito de serem
comercializados. Entretanto verificamos a presença de determinadas mercadorias de maneira mais
abundante de algumas regiões do que de outras. No caso específico do norte de Portugal,
verificamos nas feiras produtos de origem local, da região, bem como artigos importados sobretudo
da África e da China. Em relação ao nordeste do Brasil, verificamos produtos brasileiros, da
América Latina, bem como chineses e norte americanos. São produtos de utilidade doméstica,
vestuário, alimentação, calçados, higiene pessoal, acessórios, flores, artesanato, produtos de
contrabando, etc.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina Grande. C. Grande: Livraria Pedrosa, 1964.
ALVES, Jorge. Feiras e mercado interno na História Contemporânea: algumas notas avulsas. In:
Actas do 3 Encontro de História. Vetores de desenvolvimento econômico as feiras da Idade Média
à Época Contemporânea. Câmara Municipal de Vila do Conde, 2005
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro, Zahar.1981
BAUMAN, Zigmund. “Modernidade e Ambivalência”. Rio de Janeiro. Zahar Ed., 1999
BRUM, Argemiro. O desenvolvimento Econômico Brasileiro. 18 Ed.Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.
CASTELLS, Manuel. “A sociedade em Rede” São Paulo: Paz e Terra, 1999
COELHO, Maria Helena da Cruz. As feiras em tempos medievais. In: Actas do 3 Encontro de
História. Vetores de desenvolvimento econômico as feiras da Idade Média à Época Contemporânea.
Câmara Municipal de Vila do Conde, 2005.
COHEN, Mário. Roque Santeiro melhora saneamento básico In: http://www.angolapressangop.ao/noticia.asp?ID=423516 acesso em 15 de Março de 2008
23
DOMINGUES, José Maurício. Teorias Sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001
Giddens, Anthony. As conseqüências da Modernidade. São Paulo: editora UNESP, 1991.
PAZERA Jr., Eduardo. Feiras camponesas na Paraíba: aspectos geohistóricos. Resumos.
39a.Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.SBPC, Julho 1987. In:
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RAU, Virgínia. Feiras Medievais portuguesas. Subsídios para seu estudo. Lisboa: Editorial
Presença, 1981
SERRÃO, Joaquim. (direção). Feiras. In: Dicionário de História de Portugal. Vol. II. Livraria
Figueirinhas/Porto, 1960
VEDANA Viviane. “Fazer a feira”: estudo etnográfico das “artes de fazer” de feirantes e
fregueses da Feira Livre da Epatur no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre/RS;
VINHA, Valéria da. Polanyi e a Nova Sociologia Econômica: uma aplicação contemporânea do
conceito de enraizamento social (social embededdeness). In: Artigo publicado na Revista
Econômica, UFRJ . V. 3. nº 2. Dezembro de 2001
24
FORMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS HOMENS DE COR
NA FREGUESIA DE SANTA ANA DO SERIDÓ (1788-1838)1
Helder Alexandre Medeiros de Macedo
Mestre em História – UFRN
Bolsista de Fomento – EXP2 da FAPERN
Resumo
Analisamos, com este trabalho, as formas de classificação da população de cor da Freguesia de
Santa Ana do Seridó através dos livros de assento de batizados, casamentos e enterros do período de
1788 a 1838. Pardos, curibocas, cabras, crioulos, mulatos e mestiços aparecem com freqüência
nesses livros junto com os demais grupos sociais da freguesia, atestando sua presença constante e
sua diferenciação do restante da população. Os dados, problematizados à luz do debate acerca das
categorias coloniais para nomeação de grupos minoritários, nos permitiram evidenciar a
mestiçagem da população da freguesia no recorte em estudo.
Palavras-chave
Mestiçagem, Seridó, Pardos, Freguesia de Santa Ana, História colonial
A Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, que abrangia espaços das antigas
capitanias do Rio Grande e da Paraíba e que foi criada em 1748, constitui-se enquanto recorte
espacial deste trabalho. Em investigações anteriores2 acerca da presença indígena nessa freguesia o
exame das fontes de natureza eclesiástica produzidas pelo aparelho burocrático da Igreja Católica
na Vila Nova do Príncipe3 nos levou a conhecer com mais acuidade a sua população. Isto dado o
fato de que, no período colonial, o registro populacional era efetuado por meio das autoridades
religiosas constituídas nas freguesias, que o remetia às autoridades competentes na própria América
portuguesa e mesmo na metrópole, para fins de controle dos súditos reais. Algo que nos chamou
bastante atenção foi a forma como o aparelho burocrático eclesiástico classificava a população nãobranca – doravante chamada de homens de cor, abrigando índios, africanos e seus descendentes –,
1
Texto apresentado ao Simpósio História e Etnicidade, coordenado por Muirakytan Kennedy de Macêdo e Helder
Alexandre Medeiros de Macedo, durante a VIII Semana de Estudos Históricos: História, Cultura e Patrimônio,
realizada no Campus de Caicó, do Centro de Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, de 03 a 05 de setembro de 2008.
2
MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Vivências índias, mundos mestiços: relações interétnicas na Freguesia da
Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e início do século XIX. 2002. 169p. Monografia
(Graduação em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Caicó. _____. Ocidentalização, territórios e
populações indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande. 2007. 315p. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal.
3
Criada em 1788, a partir da antiga Povoação do Caicó ou do Seridó. Foi elevada a cidade em 1868, com o título de
Cidade do Príncipe. Em 1890 o seu nome foi mudado para Cidade do Seridó, e, no mesmo ano, retornou à antiga
denominação de Cidade de Caicó, que se mantém até os dias atuais.
25
já que, ao invés de encontrarmos apenas negros, brancos e índios, nos deparamos com diversas
formas para nomeá-la: cabras, crioulos, escravos, mamalucos, mestiços e pardos, apenas para citar
alguns dos exemplos.
Interessa-nos, dessa maneira, com esse trabalho, propor uma primeira aproximação no
sentido de investigar as formas de classificação dos homens de cor na Freguesia do Seridó, vistos
pelo olhar da Igreja Católica, num intervalo temporal que vai de 1788 a 1838. Nossa inspiração
adveio do instrumental teórico-metodológico da Demografia histórica4, de tradição francesa, cuja
metodologia evoluiu fundindo as técnicas de estudo serial da população aos estudos de História
social e cultural, procurando enxergar nas estatísticas os personagens que atuaram no cotidiano
público e privado, antes imersos na teia da análise quantitativa5. O manancial de documentos da
Freguesia de Santa Ana encontra-se desfalcado em relação aos primeiros livros de assento, falta que
já tinha sido percebida por outros historiadores6. Os livros de casamentos e de enterros iniciam em
1788, coincidentemente, ano em que a Povoação do Seridó foi alçada ao status de Vila Nova do
Príncipe. Os livros de batizados começam seus registros apenas em 1803. São mais de quarenta
anos de silêncio, portanto, que nos deixam sem material factível para que possamos montar o que
seria uma história demográfica das populações que habitavam na Freguesia de Santa Ana entre o
final século XVIII e o início do século XIX, a exemplo dos estudos realizados em outros países.
Admitida esta lacuna, decidimos fazer a análise dos livros de assento da freguesia com o intuito
anteriormente assinalado, de verificar em que medida o olhar eclesiástico percebia, nomeava e
classificava a população não-branca. Utilizamos, como documentação complementar, inventários
post-morten das Comarcas de Caicó e Acari, no que diz respeito ao uso do termo curiboca para
designação de homens de cor.
Foram analisados os seguintes livros de assento: enterros, de 1788 a 1811 e de 1812 a 1838;
casamentos, de 1788 a 1809 e de 1809 a 1821; e batizados, de 1803 a 1806. Trata-se de uma
amostra aleatória, conquanto cronológica, que abrange um período, grosso modo, de cinqüenta
anos, onde estão registrados, ao todo, 4.926 indivíduos. Na primeira etapa da análise procedemos à
observação de macro-categorias para a população registrada nos assentos, optando por diferenciar a
4
HENRY, Louis. O levantamento dos registros paroquiais e a técnica de reconstituição de famílias. In: MARCÍLIO,
Maria Luíza (org.) Demografia Histórica: orientações técnicas e metodológicas. São Paulo: Livraria Pioneira Editora,
1977. p. 41-63; CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Perez. História demográfica. In: ______. Os métodos
da história. 3.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. p. 107-203; FARIA, Sheila de Castro. História da família e
demografia histórica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 241-58.
5
Dentre os diversos exemplos de pesquisas brasileiras em que seus autores se utilizaram da Demografia histórica
podemos citar FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1998 e SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
6
DANTAS, José Adelino. Homens e fatos do Seridó antigo. Garanhuns: O Monitor, 1962, p. 9-42; MEDEIROS
FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1981, p. 6-8; COSTA,
Sinval. Os Álvares do Seridó e suas ramificações. Recife: ed. do autor, 1999, p. 11-8.
26
população branca da não-branca, esta última, objeto de investigação do trabalho, como demonstra a
Tabela 01:
Tabela 01
Macro-categorias para distinção da população branca da não-branca na Freguesia do Seridó
Enterros
Tipologia
Casamentos
Batizados
Total
1788-1811
1812-1838
1788-1809
1809-1821
1803-1806
Homens de cor
285
540
171
657
182
1.835
Filhos de homens de cor
33
0
0
0
10
43
Brancos
89
351
12
515
76
1.043
Sem identificação de cor
563
372
787
62
221
2.005
Total
970
1.263
970
1.234
489
4.926
Fonte: Livro de Enterros (1788-1811; 1811-1838); Livro de Casamentos (1788-1809; 1809-1821) e Livro de
Batizados (1803-1806) da Freguesia do Seridó
Percebemos que, dos quase cinco mil fregueses assentados nos livros de registro, cerca de
21% foram classificados expressamente como brancos. Os homens de cor e seus filhos7, por sua
vez, somam aproximadamente 38% no cômputo geral dos fregueses de Santa Ana, o que nos dá a
medida, a julgar pela estatística, do relativo equilíbrio populacional entre a população branca e nãobranca. Todavia, é preciso ponderar as afirmações baseadas nesses dados quantitativos, pois: 1) essa
é uma classificação arbitrária, baseada na representação que os vigários da freguesia faziam dos
seus fregueses, baseada na cor ou no lugar social; 2) o número total de indivíduos presentes na
tabela foi obtido a partir do somatório de três tipos de contagem da população (o registro de
batizados, o de casamentos e o de enterros), não sendo oriundo, portanto, de uma mesma fonte
serial durante o período em apreço; 3) cerca de 40% do total dos indivíduos da tabela acima foram
inscritos nos livros sem qualquer designativo de cor ou lugar social, sendo possível que brancos ou
mesmo elementos de outros grupos estejam incluídos nessa categoria; 4) a categoria de homens de
cor, aqui utilizada para exprimir a população não-branca, não se constitui em uma classe genérica,
mas, em uma tipologia que reúne uma diversidade de denominações para os indivíduos de origem
africana ou nativa e seus descendentes, como veremos à frente.
Feitas essas ressalvas, na segunda etapa de análise efetuamos a coleta, dentre os 1.835
registros de homens de cor, dos diversos designativos para nomeá-los. A tarefa resultou no
estabelecimento de catorze micro-categorias, que vão expressas na Tabela 02:
Tabela 02
Micro-categorias para distinção dos homens de cor na Freguesia do Seridó
Tipologia
7
Enterros
1788-1811
1812-1838
Casamentos*
Batizados
1788-1809 1809-1821
1803-1806
Total
%
Tomamos, para a categoria filhos de homens de cor aqueles indivíduos que não tinham uma designação social aposta
em seu registro, mas, cujos pais eram negros, índios ou mestiços.
27
Gentio de Arda
1
0
0
0
0
1
0,1
Gentio da Costa
0
0
0
0
2
2
0,1
Mestiço
0
1
1
0
0
2
0,1
Mamaluco
2
2
0
0
0
4
0,2
Mulato
1
0
3
5
3
12
0,7
Gentio da Guiné
2
0
6
10
0
18
1,0
Cabra
4
3
9
10
9
35
1,9
Índio
10
12
12
16
6
56
3,1
Escravo
66
0
0
11
0
77
4,2
Crioulo
14
7
33
26
11
91
5,0
Gentio de Angola
30
13
36
24
1
104
5,7
Preto
36
55
3
16
8
118
6,4
Negro
38
134
40
22
73
307
16,7
Pardo
81
313
28
517
69
1.008
54,9
Total
285
540
171
657
182
1.835
100
* Incluindo o somatório de noivos e noivas
Fonte: Livro de Enterros (1788-1811; 1811-1838); Livro de Casamentos (1788-1809; 1809-1821) e Livro de
Batizados (1803-1806) da Freguesia do Seridó
Essas categorias, menos do que indicar tão-somente a cor dos indivíduos, demonstram que a
observação e a classificação da população não-branca poderia ser um indicativo, também, do seu
lugar social ou do grau de miscibilidade de que era fruto. É curioso notar que o distintivo expresso
de mestiço tenha aparecido em quantidade tão ínfima (0,1%), conquanto as categorias mamaluco,
mulato, cabra, crioulo e pardo, essencialmente, remetam, também, a misturas. É de se atentar,
como já nos referimos anteriormente, que esse era o olhar da Igreja Católica sobre os fiéis que
participavam de ritos de passagem (batizado, casamento, enterro) circunscritos à esfera da
cristandade. Olavo de Medeiros Filho, em análise de inventários post-morten da Ribeira do Seridó,
já tinha atentado para esses designativos em relação ao “grau de miscigenação”, atentando para os
crioulos (negros nascidos na colônia), mulatos (cruzamento de branco com negra), cabras
(cruzamento de mulato com negra) e pardos (de difícil distinção)8. Acreditamos, entretanto, que os
significados desses designativos ultrapassem os meros limites da mestiçagem biológica, traduzindose como pistas para o entendimento das engrenagens coloniais de percepção do contingente
populacional. Dessa maneira, encontramos 4,2% da população (localizada cronologicamente, em
sua maioria, no corte de 1788-1811) sem qualquer designativo que não a referência a ser escrava. O
traço da escravidão, nesse caso, sobrepôs-se a quaisquer classificações de cor, impondo, na
identificação dos fregueses, o seu lugar social de servidão9.
8
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhos inventários do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1983, p.
31.
9
Classificação semelhante, em que o lugar de escravo sobrepôs-se, em alguns casos, à designação de cor, foi verificado
por Denize Aparecida da Silva em estudo realizado com fontes eclesiásticas (batizados) e inventários post-morten da
Freguesia de Nossa Senhora da Graça no século XIX, que hoje corresponde a São Francisco do Sul-SC. Cf. SILVA,
28
O genérico preto (6,4%) foi encontrado em todas as épocas e formas de registro analisadas,
bem como negro (16,7%), certamente, para indicar alguma ligação com o passado situado no
continente africano. As especificidades com relação à distinção da população africana vêm na
indicação do gentio de Arda (0,1%), da Costa (0,1%), da Guiné (1,0%) e de Angola (5,7%), que
provavelmente são mais que uma remissão a reinos ou a regiões da África, podendo estar
identificando os portos de transladação dos cativos para o Novo Mundo. Longe de querer construir
ou apontar tipologias genéricas para a classificação dos homens de cor no sertão da Capitania do
Rio Grande, é preciso lembrar que as categorias elencadas na tabela acima não são sinônimos de
uma identificação homogênea, abrigando, cada uma delas, diversas formas de se denominar os
indivíduos. Tomemos, a exemplo, a categoria de Gentio de Angola, que, desdobrada, reúne as
seguintes expressões: Angola; Gentio de Angola; Gentio de Angola, escravo; Gentio de Angola,
forro; Gentio de Ingola; Nação Ingola; Natural do Gentio de Angola; Preto da Angola; Preto de
Angola; Preto do Gentio de Angola; Preto do Gentio de Ingola; Preto forro de nação Angola e Preto
forro do Gentio de Angola. Denominações que poderiam identificar indivíduos de um mesmo grupo
e com as mesmas características (à exceção da condição de escravo ou forro), mas, que mostram a
indefinição de uma norma que disciplinasse aos curas uma maneira correta de grafar o assento de
um freguês e, em havendo necessidade, de dar visibilidade a sua cor ou lugar social.
No caso da população indígena (3,1%), na maioria das vezes, os indivíduos assentados nos
livros vêm designados como índios logo após o seu nome, havendo apenas um caso em que ocorreu
a remissão à nação tapuia e outro em que o indivíduo foi caracterizado como índio tica. Ocorrem
exemplos, todavia, de registros de indivíduos que não vêm com esse indicativo, mas, têm um pai ou
mãe (ou, ainda, ambos) que são designados como índios. Outra situação que se coloca é a de índios
que vêm diferenciados enquanto tal na primeira vez que aparecem assentados nos livros e, em
outras passagens destes, aparecem sem diferenciação10. Exemplar é o caso de Tomé Gonçalves,
natural da Vila de Mecejana (Capitania do Ceará Grande) e morador no sítio Suçuarana, que, nos
primeiros assentos em que aparece (no fim do século XVIII) foi diferenciado enquanto índio. Em
registros posteriores, como o seu termo de morte (ocorrida em 1836), simplesmente não teve
Denize Aparecida da. Estigmas e fronteiras: atribuição de procedência e cor dos escravos da freguesia de Nossa
Senhora da Graça (1845/1888). in 3º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Anais..., Florianópolis,
UFSC, 2007. p. 1-10. Disponível em: < http://www.labhstc.ufsc.br/iiiencontro.htm>. Acesso em: 22 fev. 2008.
10
Ora presente, ora ausente, podemos pensar que o termo índio não fosse imprescindível aos registros eclesiásticos da
época, já que, desde as reformas do Marquês de Pombal e conseqüente expulsão dos jesuítas da América Portuguesa
primou-se por trazer as populações nativas para o mundo dos brancos através de sua integração. O resultado é que as
antigas aldeias missionárias extintas na década de 50 e 60 do século XVIII foram convertidas em vilas, unidades
administrativas onde paulatinamente os poucos direitos facultados aos índios foram sendo suprimidos, seguindo-se
processos de tomada e apropriação tanto de suas terras quanto de sua força de trabalho (MONTEIRO, Denise Mattos.
Introdução à História do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFURN, 2000, p. 86-92). Para o Rio Grande do Norte, os
efeitos desagregadores da política pombalina sobre as populações indígenas podem ser conferidos em LOPES, Fátima
Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século
XVIII. 2005. 700p. Tese (Doutorado em História do Brasil). Universidade Federal de Pernambuco. Recife.
29
distinção de cor alguma. Supomos que o exercício de cargo público – era porteiro do auditório do
Senado da Câmara da Vila Nova do Príncipe – provavelmente lhe deu certo destaque em relação à
comunidade onde vivia, aproximando ele e sua família do mundo dos brancos. Não sendo
incomum, dessa maneira, o fato de que os registros paroquiais, a partir do início do século XIX,
gradativamente deixassem de lhe chamar de índio, omissão que se estendia para os seus filhos,
quando muito, tidos como pardos.
Aliás, os pardos constituem 54,9% da população da freguesia observada na Tabela 02,
chegando a superar os brancos e as outras categorias de homens de cor em algumas épocas.
Segundo Jocélio Teles dos Santos, o pardo “seria um vocábulo típico de ‘negociação racial’ já no
início do século XIX”11, indicando a sua utilização ambígua para a denominação de indivíduos cujo
estatuto de cor ou lugar social estivesse situado na fronteira entre o mundo dos brancos e o mundo
dos negros ou mesmo dos índios. O termo tem um significado duplo, segundo Sheila de Castro
Faria, podendo significar tanto um indivíduo miscigenado quanto um filho ou descendente de
crioulos, ainda que de cor negra12, além do que, conforme Larissa Viana, poderia “indicar origem,
condição social e status das pessoas de cor no universo colonial”, mais que a mera identificação de
um matiz de cor13.
Um termo comum na literatura sobre a mestiçagem no Brasil é curiboca, vocábulo que, com
diversas variações nos tempos coloniais14, designava o mestiço cuja parte da ascendência era
indígena. Stuart Schwartz, ao discutir as hostilidades, interações e miscigenação ocorridas entre
negros e índios durante os tempos coloniais, assegura que os termos tapanhunos (em tupi, para
designar os primeiros africanos chegados ao Novo Mundo) e negros da terra (que se referia aos
cativos indígenas) foram sendo suplantados, gradativamente, por novas terminologias. Assim,
cafuzos, curibocas e caborés foram categorias usadas pelos colonos para remeterem aos
descendentes mestiços fruto do contato afro-índio, evidência de que o “regime colonial apresenta
uma tendência à criação de novas categorias sociais e espaciais em que o nascimento, status
hereditário, cor, religião e concepções morais contribuíram para a criação de categorias étnicas ou
pseudo-raciais com atributos definidos15”.
11
SANTOS, Josélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil dos
séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, n. 32, 2005, p. 127.
12
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial, p. 138.
13
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas:
Edunicamp, 2007. p. 36.
14
As variações no que tange ao significado desses vocábulos (curiboca, caboclo, mameluco, pardo, por exemplo),
segundo Jocélio Teles dos Santos, configura-se como um resultado do sistema lingüístico escravocrata, que,
dependendo da situação, “permitira rearranjos conceituais e indicava uma flexibilidade do uso de categorias no Brasil
colônia” (SANTOS, Josélio Teles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil
dos séculos XVIII-XIX. Afro-Ásia, n. 32, p. 118). De forma que o que era considerado caboclo para um colono poderia
ser tido como curiboca para outro.
15
SCHWARTZ, Stuart. Tapanhuns, negros da terra e curibocas: causas comuns e confrontos entre negros e indígenas.
Afro-Ásia, n. 29-30, 2003, p. 15.
30
Tomemos, como uso dessas categorias, o exemplo de uma descrição da capitania de São
José do Piauí, datada de 1772, em que o ouvidor Antonio José de Morais Durão classificava os tipos
sociais daquela capitania da seguinte maneira:
Vermelho se chama na terra a todo índio de qualquer nação que seja; mameluco ao filho de branco e
índia; caful ao filho de preto e índia; mestiço ao que participa de branco, preto e índio; mulato ao
filho de branco e preta; cabra ao filho de preto e mulata; curiboca ao filho de mestiço e índia;
quando se não podem bem distinguir pelas suas muitas misturas se explicam pela palavra
mestiço o que eu faço, compreendendo nela os cabras e curibocas (grifos nossos) 16.
Pelas palavras do ouvidor, percebemos que, além de dar nome aos escravos filhos de
mestiços com índias, englobava toda a sorte de cativos cujo complexo grau de miscigenação
impedia, no contato imediato, a sua distinção. Câmara Cascudo, em análise do perfil da população
do Rio Grande do Norte, considerou curiboca como sendo sinônimo de caboclo, resultante da
mistura entre negros e índios, enquanto que mameluco17 apontaria o resultado do cruzamento entre
brancos e nativos. Os mamelucos teriam sido “a maior porcentagem de vaqueiros”, enquanto que,
os caboclos ou curibocas teriam ficado conhecidos na figura do “pequeno plantador de roçaria”18.
Opinião, todavia, superada pela historiografia recente, que aponta os mestiços com ascendência
indígena, fosse com negros ou brancos, como trabalhadores, indistintamente, das lavouras e da
pecuária19.
Na Freguesia de Santa Ana não encontramos a presença de curibocas nos livros de assento,
pelo menos, dentro do recorte estudado. Procedendo a buscar na documentação das comarcas de
Caicó e Acari fomos surpreendidos com alguns casos, sendo a primeira referência a escravos
curibocas encartada no inventário procedido na Cidade do Natal em 1772 em relação aos bens do
defunto Manuel Ferreira Borges20. Este, que em vida fora casado com Juliana Vieira de Melo,
morava com a família como arrendatário na propriedade de Antonio Garcia de Sá Barroso, como se
depreende das dívidas do casal, onde constava a obrigação de 5$760 pela “renda do sítio em que
16
DURÃO, Antonio José de Morais. Descrição da Capitania de São José do Piauí apud MOTT, Luiz R. B. Piauí
colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Secretaria de Cultura do Estado do Piauí, 1975, p. 22-3.
17
Examinando os livros de notas da Comarca de Caicó, encontramos um caso curioso: a alforria dada por uma senhora,
Maria da Conceição, a uma escravinha parda e “meio mameluca”, filha de outra cativa que tinha em sua fazenda. A
carta de alforria, datada de 1804, foi registrada no livro de notas da Vila Nova do Príncipe a pedido da própria escrava
Mariana, alforriada, que tinha apenas dois anos de idade naquele ano (certamente, representada pela mãe ou um
procurador branco). Vale a pena transcrevermos o trecho inicial da carta de alforria concedida por dona Maria da
Conceição, que evidencia a ascendência autóctone da escrava: “Digo eu abaixo asinada que entre os mais bens que
possuõ hé assim bem huma Escrava meio mamaluquia por nome Mariana idade de dois Annos a qual hé filha de huma
Escrava minha que por muito minha vontade lhe faço esmola fasendo menção no que me toca a qual a hei por forra
livre, e (...) que de hoje para sempre digo que de hoje para todo sempre fica sendo” (Comarca de Caicó, Livro de Notas
nº 04 – 1802-1805, p. 84).
18
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2.ed. Rio de Janeiro: Achiamé; Natal: Fundação
José Augusto, 1984, p. 44.
19
Como exemplo, ver MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade, p. 125-42, onde discute a
relação entre os índios e a pecuária.
20
Comarca de Acari, Inventários post-morten, Maço 01, Processo nº 01, Inventário de Manuel Ferreira Borges – 1772.
31
mora”21. No monte maior do casal, orçado em 470$490, além de bens de ouro, cobre, cavalar,
cabrum, ovelhum e móveis de casa figuravam sete cativos (três crioulos, uma crioula, uma mulata,
uma cabra e uma preta do Gentio da Guiné). Entretanto, na relação dos dotes que o co-herdeiro José
da Costa Lopes levara do defunto, na ocasião em que casou com Maria Borges (filha de Manuel
Ferreira Borges), constava uma escrava curiboca chamada Florência. Escrava que certamente
ajudava dona Maria na lida diária na Serra do Cuité, onde residia, pelo menos, até o ano de 1801,
quando faleceu José da Costa.
Em 1819, a partilha amigável dos bens deixados por dona Josefa de Araújo Pereira (2ª)22
arrolou, dentre os cativos, o escravo Manuel, curiboca, de 14 anos, avaliado por 120$000. Dona
Josefa, que era casada com o português José Ferreira dos Santos, residia no sítio Picos de Cima,
Ribeira do Acauã. Mas era possuidora, também, de partes de terras nos sítios da Carnaúba e do
Ermo, ambos de criar gados, situados nas plagas do rio Carnaúba, afluente do Acauã, além de duas
glebas na Serra do Cuité, destinadas à plantação de lavouras de milho e de mandioca23 (que, juntas,
valiam em dinheiro mais que o dobro dos três sítios de pastoreio). Provavelmente o curiboca
Manuel e os demais escravos (uma crioula de 21 anos, prenha; uma cabra, de 13 anos e um crioulo
de 12 anos) deveriam dedicar-se mais ao cultivo das roças, vez que o inventário apontou a presença
de apenas quatro cabeças de gado vacum e três de cavalar nos Picos de Cima.
Em outra ribeira da Freguesia de Santa Ana, a do Sabugi, foi realizado, em 1791, o
inventário dos bens deixados por João Álvares de Oliveira, que foi casado com dona Antonia
Corrêa de Barros24. Também aqui se repete a situação traçada no parágrafo anterior: o casal possuía
propriedades territoriais de duas naturezas, uma destinada ao criatório (o sítio Olho d’Água, na
Ribeira do Sabugi) e outra onde se plantavam lavouras, na Serra do Teixeira, avaliadas,
respectivamente, em 700$000 e 50$000. Malgrado a supervalorização do Olho d’Água, somente
habitavam nos seus campos quatro cabeças de gado vacum e sete de cavalar. A presença de
aviamentos junto aos bens do casal (roda de moer mandioca com seu cobre e veio de ferro; prensa;
banco; forno; cochos) indica que o sítio na chã da serra era bastante utilizado para o cultivo de
lavouras. A maioria, senão a totalidade, dos vinte e um cativos listados no inventário deveria
21
Trata-se do sítio Acari, na Ribeira do Acauã, que foi demarcado oficialmente em 1769 (Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Documentos avulsos, Livro do Escrivão Freitas. Registro de hum auto de
demarcação do Acari pertencente ao Cap. Antº Garcia de Sá Barroso e a Felipe de Moura, a requerimento dos mesmos,
em 1769).
22
Comarca de Acari, Inventários post-morten, Maço 01, Processo nº 26, Partilhas amigáveis de Josefa de Araújo
Pereira Júnior – 1819.
23
Dentre os bens deixados por dona Josefa de Araújo Pereira (2ª) – filha do coronel Caetano Dantas Corrêa e de Josefa
de Araújo Pereira –, curiosamente no título de “simoventes” (em geral, destinado a animais e escravos), um cordão de
roça de mandioca (16$000) e seis alqueires de farinha, por 12$000, evidência de que os dois sítios da Serra do Cuité
destinavam-se não somente à lavoura de milho (como consta no “título de terras”), mas, também a de tubérculos.
24
Laboratório de Documentação Histórica, Fundo da Comarca de Caicó, 1º Cartório Judiciário, Inventários postmorten, Caixa 03 – 1790-1797, Inventário de João Álvares de Oliveira – 1791.
32
trabalhar nas roças do Teixeira: mulatos, cabras, angolas, crioulos e um curiboca, José, nascido em
1789.
O exame da documentação procedido nos livros de assento nos permitiu inferir, ainda em
nível de hipótese: 1) que a diversidade de categorias utilizadas para nomear os homens de cor na
Freguesia de Santa Ana do Seridó se dava em decorrência da própria ambigüidade que havia, no
período colonial, relacionada à compreensão das mestiçagens25, das africanidades e das
indianidades pelo Estado e pela Igreja; 2) que a inexistência de uma norma para diferenciar a
população, seja por cor, seja por lugar social, fazia com que os vigários tendessem a utilizar
diversas expressões para registrar os seus fregueses nos assentos, ou, como também acontecia, para
omitir sua diferença; 3) que as fontes paroquiais e judiciais nos remetem menos a categorias
estáticas ou genéricas para a denominação dos não-brancos que a termos que expressam um
gradiente das cores pelas quais essa mesma população era observada, classificada e inscrita nos
livros de assento; 4) que categorias como pardo, cabra, crioulo, curiboca e mamaluco, por
exemplo, longe de exprimir uma realidade unívoca, remetem à qualidade de mestiça que podemos
atribuir à sociedade que habitava no território da Freguesia de Santa Ana do Seridó entre o fim do
século XVIII e o primeiro quartel do século XIX.
25
Aqui entendidas não apenas no sentido biológico, mas, também, em sua acepção cultural. Cf. GRUZINSKI, Serge. O
Pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
33
NATAL ESCRITA: IMAGENS DA CIDADE A PARTIR DA HISTORIOGRAFIA
Wesley Garcia Ribeiro Silva – PPGH/ UFRN
Este trabalho é fruto das reflexões em torno do projeto de pesquisa “cartografias urbanas”,
vinculado ao PPGH/ UFRN, que tem por temática central a questão urbana da cidade do Natal no
período de 1940-1970. Aqui pretendemos realizar uma discussão sobre o papel da escrita da história
de Natal enquanto, ela mesma, produtora de imagens da cidade. Interessa-nos antes de tudo
proceder a uma análise dos locais de produção desse passado da cidade, buscando perceber as
linhas gerais das obras ai constituintes. Situadas enquanto elementos de legitimidade que autorizam
determinados saberes sobre o passado da cidade, as obras serão analisadas a partir dos sentidos que
conferem à temporalidade pretérita, àquilo quem fazem ver e crer.
*
Parece-nos conveniente, no percurso de construção de nosso objeto, reavaliar a produção
intelectual sobre a Cidade do Natal, tomando-a agora não apenas como estudos importantes para a
construção de nosso próprio trabalho, ou seja, como ponto de partida de nossa pesquisa, mas
também, enquanto práticas discursivas, um saber fazer crer. Trata-se de verificar a trajetória de
Natal enquanto recorte de pesquisa, mas também enquanto recorte identitário.
Deve inserir-se, portanto, dentro da problemática do lembrar e esquecer, em que o gênero
historiográfico se insere enquanto discurso legitimador: com suas pretensões de demarcar um saber
sobre o passado acaba também por demarcar uma determinada dimensão espacial da própria cidade.
Com o gênero histórico, pertencente ou não ao lugar acadêmico, o passado da cidade toma formas,
faz-se saber; um discurso que pela posição que ocupa autoriza ter acesso ao conhecimento do
pretérito, um fazer- crer sobre a alteridade passada.
Até aqui dois pontos importantes insurgem como fundamentais: se podemos demarcar uma
enunciação imagética construtora de um texto urbano a lugar social específico, logo esta é
permeada por relações de força, de poder, por uma ordem do discurso; também a narrativa que
aborda o passado sobre cidade, também atua na elaboração da própria memória sobre a cidade. Ora,
memórias e imaginários da cidade interligam-se na medida em que compõem representações
influentes no modo de se ver e de se dizer, na identidade espacial da cidade.
É neste sentido que opera todo um saber sobre o passado. A narrativa histórica encerra todo
um repertório de imagens e discursos, claro, apesar de inscrito em suporte escrito e iconográfico,
passíveis de (re)apropriações múltiplas.
Porém, a escrita sobre o passado, a elaboração de um saber histórico possui uma dupla
forma: como conhecimento e como narrativa. Portanto, uma análise sobre o discurso que invoca o
passado da cidade, encerrado sob forma escrita, deve levar em conta tal dimensão: como estrutura a
34
narrativa da cidade, os traços lingüísticos e retóricos estruturantes, a análise do texto em sua
internalidade; além daquilo que faz saber, aquilo que recolhe dos vestígios do passado, o texto
significado, sua externalidade.
Toda a obra que se inscreve enquanto saber autorizado sobre o passado da cidade é como
que um acontecimento: opera uma imagem visual e verbal de Natal, a partir de sua escrita. Institui
um recorte na cidade, que a partir daí ela é capaz de ser vista e dita; espacialidades e
territorialidades.
*
É neste sentido que a História da Cidade do Natal, de Luís da Câmara Cascudo, de 1946 é
um acontecimento: opera uma imagem visual e verbal de natal, a partir de sua escrita. Institui um
recorte na cidade, que a partir daí ela é capaz de ser vista e dita; espacialidades e territorialidades.
Porém, tão importante quanto os significados que a obra inscreve, é observar a partir de que
lugar Cascudo constrói sua escrita; ou melhor, numa operação hermenêutica observar os
deslocamentos de posições ocupadas pelo enunciador e seu texto.
A História da Cidade do Natal de Cascudo mereceu desde sua publicação em 1946 três
edições. As condições em que se deu sua terceira edição é paradigmática, oferecendo uma espécie
de chave para se compreender o lugar que ocupa Cascudo e sua História de Natal. Ela dar-se-á
como componente das comemorações do quarto centenário de fundação da cidade, em 1999. É
também uma edição comemorativa do Centenário de nascimento do próprio Luís da Câmara
Cascudo (1898).
Tais comemorações, em relação à cidade e a Cascudo, não são apenas meras e felizes
coincidências. De fato, há uma clara estratégia de se confundir a comemoração de Natal e de
Cascudo; deslocamentos de identificação, que denotam a própria construção (narrativa) de Natal:
pensar no espaço faz também pensar no sujeito; uma dialógica que identifica Natal à Cascudo e
vice-versa.
Criada 1946, sob encomenda do poder público municipal, a obra nascia como contribuição
para cultura do Rio Grande do Norte. De 1946 a 1999 a obra ganhou status de verdadeiro lugar de
memória, se revestindo de uma dupla inserção: a obra como construtora do conhecimento sobre o
Estado e também ela própria insígnia de tal conhecimento. De um instrumento que encerra um saber
a um signo memorial, eis um percurso de deslocamento de sentido.
Estes sentidos dizem respeito a própria inserção que Câmara Cascudo ocupa na sociedade
natalense. Durante muito tempo, sua obra fio considerada como uma espécie de conhecimento
acabado sobre o passado da cidade (de certa forma ainda permanece fora dos meios acadêmicos).
Todo um regime discursivo, emitido por um lugar intelecto-cultural da sociedade natalense, aponta
Cascudo como “o único gênio do Rio Grande do Norte”. A ligação espaço/ sujeito fica clara em
35
alguns discursos: “não foi a guerra que projetou Natal no mundo. Foi Cascudo”. A autoridade de
Cascudo o faz ser como um historiador oficial da cidade, com a imagem de intelectual erudito,
“com a obstinação de um cientista”. A cidade que Cascudo faz ver é vista através do próprio
Cascudo: lembrar de Cascudo faz lembrar-se de Natal.
Mas também é preciso voltar ao texto da história da Cidade do Natal, considerada não
apenas como monumento que significa o passado da cidade, mas também como ela este opera
narrativamente.
Logo no seu prefácio a obra aponta a como se estrutura: “a cidade é um ser vivo”. A história
da cidade é narrada tal como a vida de um ser, ela nasce, cresce e morre.
Essa metáfora do ser vivo se apresenta como uma verdadeira chave para se compreender
como estrutura sua narrativa. A cidade merece uma inscrição a partir de sua fundação; até o período
republicano ela pode ser encarada como ainda em crescimento; a inserção da religião católica e as
revoluções são como que prenúncios de que o “ser” cidade vai se amadurecendo; até o apogeu
republicano, da inserção dos bairros de petrópolis do Tirol e das reformas urbanas “modernistas”; a
II Guerra é o ponto êxtase, coloca a cidade na vitrine do mundo, e a faz merecer importância; mas
ao mesmo tempo que cresce desordenadamente a cidade também envelhece, perde suas
características juvenis e perde-se na especulação imobiliária.
É um cortejo fúnebre que parece acompanhar a História da Cidade do Natal. Os fatos e
acontecimentos, as efemeridades são postas como que um memorial. Um teor de valorização do
passado, de saudosismo impregna suas páginas, bem como um prenuncio tenebroso sobre as
condições do “ser vivente”.
A História da Cidade do Natal de 1946 inaugura uma construção, por meio de uma escrita,
sobre o passado da cidade, numa abordagem que privilegia o crescimento evolutivo da cidade, num
recorte temporal que dá conta desde a sua fundação em 1599, até o contexto da II Guerra Mundial.
É uma história nos moldes tradicionais, tomando a cidade como um verdadeiro sujeito, que cria a si
próprio. A obra é permeada por sentimentos saudosistas do passado da cidade do Natal e de
inquietação face à nova configuração que se vai delineando no espaço urbano.
Esta tensão ao escrever sobre o passado de Natal, entre uma cidade que cresce em tamanho e
população ao mesmo tempo em que perde suas características que a tornava “madura”, parece
impregnar várias obras fora do círculo acadêmico. Assim como Cascudo, empreendem uma escrita
que aponta um itinerário de progresso da cidade, com o apogeu centrado na chamada Belle epóque e
nos seus interstícios, durante a constituição do trampolim da vitória, na Segunda Guerra Mundial.
É assim, duas obras de João Maurício Fernandes de Miranda: “380 anos de História fotográfica da Cidade do Natal”, de 1979. é uma espécie de história ilustrada da cidade. A partir de
esboços cartográficos e de um rico acervo de fotos, originários de Manuel Dantas, o autor parece
36
traçar o mesmo itinerário de Cascudo: uma cidade que se expõe pequena em seus princípios, tal
quais os contornos que lhes dão seus cartógrafos, mas que chega enfim, a sua modernidade,
expressa mesmo pela vida que lhe é exposta pelas fotografias. É como um anexo ilustrativo da obra
de Cascudo: dá-se a experiência da visão as ruas, praças e manifestações dos bairros da Ribeira e
Cidade Alta, e dos bairros de Petrópolis e do Tirol. Não é a toa que as únicas paisagens que se
deixam ilustrar no livro foram desses trechos, sejam, além das praias (de areia preta, de ponta
negra) uma única fotografia da Antiga Ponte de Igapó.
“Evolução urbana de Natal em 400 anos”, do mesmo autor, publicado também em meio as
comemorações dos 400 anos da cidade, traz de novo, em relação a obra anterior, uma abordagem
mais específica em relação aos planos urbanos empreendidos para a Cidade do Natal. Arquiteto de
formação, que participou da construção do plano diretor da década de 1970, Miranda se utiliza da
mesma abordagem de seu livro de 1981, buscando a totalidade da história da cidade a parir de
imagens. O diferencial é a grande inserção de cartografias dos planos urbanos, além de citações dos
mesmos: o autor vai tecendo comentários em relação a estes e realizando análises sobre a cidade:
seus problemas atuais e futuros. O destaque aqui são os primeiros planos urbanos até a década de
1930, numa clara referência a modernidade de Natal.
Por outro lado, se desviando de uma abordagem total do passado da cidade e do período da
“modernidade”, João Wilson Mendes Melo se datem num acontecimento específico: “A Cidade e o
Trampolim”. O autor recorre aqui a uma verdadeira imagem mítica da cidade: onde o progresso se
fez e se fez saber. Natal atingiria então o seu ponto culminante, o apogeu de sua “vida”.
É nesse itinerário que parecem se situar toda uma escrita do passado fora do local de
produção acadêmica. Esta se apresenta com um posicionamento diferenciado em relação a tal, por
sua postura crítica.
Porém, alguns trabalhos inseridos na própria academia tomam como análise uma belle
epóque natalense (GURGEL, 2006), sua vida literária, europeizante, inserida na “modernidade”.
Claro, não vemos problema alguma em analisar a vida intelectual da cidade na década de 1920;
porém, é problemática uma visão naturalizante do mesmo, que acaba por solidificar uma imagem
construída. Acreditamos que para além de verificar a “Belle Epóque na Esquina”, caberia analisar
como se tentou construir uma imagem de Natal inserido numa belle epóque: existiu uma “idade de
ouro” em Natal, uma fase áurea da cultura potiguar? A que local pretendia corresponder esta? São
questões não contempladas.
Por outro lado, a produção acadêmica, que ganha destaque apenas a partir da década de
1980, toma viés critico o período de 1890-1940. Alguns estudos analisaram de um modo geral as
correntes teóricas que delinearam a produção dos planos urbanísticos implementados em Natal no
século XX. Sua análise liga o processo de urbanização à história político-administrativa da cidade.
37
Assim, o Arquiteto e Urbanista Pedro de Lima, em “Natal século XX”, realiza um estudo que
realiza um contexto geral sobre os planos de intervenção na cidade. Em outro estudo, o autor
discute com mais afinco a questão da modernidade em Natal, a partir de um personagem que se
constituiu como chave para análise desse período: “Manuel Dantas (e o mito da fundação de
Natal)”.
Outros estudos privilegiam uma análise deste período relacionado com o âmbito das classes
políticas-dirigentes do Estado. A feição urbana, intervenções “modernizadoras” na cidade são,
assim, relacionadas a história política de Natal e do Estado do Rio Grande do Norte, a partir do
período republicano no estudo da empreendido pela arquiteta Giovana Paiva de Oliveira em “De
cidade a Cidade”.
A produção acadêmica atual sobre a cidade do Natal situa-se em torno do grupo de pesquisa
História da Cidade e do Urbanismo e dos pesquisadores que possuem vínculos com este. As
pesquisas abordam o urbano tanto numa dimensão física, como em termos de representação. Mas
uma vez o período da modernidade se constituí como objeto chave das análises.
Como observamos, tais estudos se põem numa postura critica deste período. Contudo, a
questão que nos aparece é a autorização, a confirmação, e de certa forma certa naturalização que
recaí na visualização de um período em que, mesmo dominada por uma elite aristocrática, Natal foi
moderna, caminhava-se rumo ao progresso, no quer que isso significasse e para quem.
Dissertações e Teses também analisam a cidade do ponto de vista de uma análise da
reprodução e exclusão socioespacial, e também da nova onda turística em termos de análise
migratória e socioespacial.
Tais estudos nos servem de referência para construção de nosso próprio trabalho. Mas
também é preciso verificar as ausências que eles traçam. Ao privilegiar o estudo de determinadas
temporalidades especificas, tais obras autorizam a ver a cidade enquanto moderna, da belle époque,
do trampolim da vitória, e até mesmo da cidade do progresso, da cidade do sol.
Referências Bibliográficas
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 3ª ed. Natal: IHG/RN, 1999.
FERREIRA, Angela Lúcia; DANTAS, George (org.). Surge et Ambula: a construção de uma
cidade moderna (Natal, 1890-1940). Natal: EDUFRN, 2006.
GURGEL, Tarcísio. Belle epóque na Esquina. Tese de Doutorado. PPGL/ UFRN, 2006.
LIMA, Pedro. Natal século XX: do urbanismo ao planejamento urbano. Natal: EDUFRN, 2001.
MELO, João Wilson Mendes. A Cidade e o Trampolim. s/e, 1999.
38
MIRANDA, João Mauricio Fernandes de. Evolução urbana de Natal em 400 anos (1599-1999).
s/e, 1999.
_____. 380 anos de história foto-gráfica da Cidade do Natal (1599-1979). s/e, 1981.
OLIVEIRA, Giovana Paiva de. De cidade a cidade: o processo de modernização do Natal (18891913). Natal: EDUFRN, 1999.
39
MODERNIDADE E COTIDIANO NOS DISCURSOS SOBRE FORTALEZA (1900-1930)
José de Arimatéa Vitoriano de Oliveira26
A emergência da modernidade em Fortaleza está diretamente ligada ao crescimento
da cidade e a um processo de remodelação sócio-urbano que se implementa, sobretudo, a partir da
segunda metade do século XIX. A modernidade que vai se instalar na capital cearense relaciona-se
com a hegemonia econômica e político-administrativa que a cidade passa a desempenhar sobre todo
o Estado do Ceará, hegemonia esta “iniciada na primeira metade do século XIX, mais precisamente
em torno dos anos 20 e 30, [e que] completa-se na sua segunda metade”.i
A intensificação do crescimento de Fortaleza, cujo núcleo urbano teve seu tamanho
“praticamente dobrado a partir da segunda metade da década de 1850”ii, é descrita dessa forma:
Oito extensas ruas mui direitas, espaçosas e calçadas. Conta 960 casas de
tijolos alinhadas, e entre estas uns oitenta sobrados; e fóra do alinhamento
para cima de 7.200 casas cobertas de palha; tem oito praças, sendo notáveis
três que estão plantadas d’arvoredo, existindo nellas cacimbas publicas.iii
Já em pleno século XX, a aplicação da modernidade prossegue celeremente. Tal fato ocorre
simultaneamente ao crescimento urbano da cidade, cuja “população, que em 1890 era de
aproximadamente 35.000 hab., passou para 50.000 na mudança do século e para cerca de 78.000 em
1920, chegando aos anos 30 com 100.000 habitantes”.iv Os fatores que concorreram para o aumento
populacional, foram o “crescimento comercial, novos serviços urbanos, surgimento da
industrialização (têxteis, de cigarro, chapéus, cerveja, etc.), fim do trabalho escravo, secas”.v
Se a modernidade enseja mudança, os fortalezenses, inseridos num contexto moderno, tal
qual vislumbramos Fortaleza entre o final do século XIX e início do século XX, deveriam ser todos
movidos, ao mesmo tempo, na mesma direção e com a mesma intensidade por esse desejo de
mudança, que nada mais seria que um desejo de autotransformação e de transformação do mundo
em redor.vi
Ao analisarmos alguns discursos proferidos por cronistas e memorialistas, que tinham a
cidade de Fortaleza como principal matéria-prima para seus escritos, podemos perceber um
26
Mestrando em História. Universidade Estadual do Ceará/FUNCAP
40
descompasso entre a autotransformação dos citadinos em modernos e a transformação do mundo
em redor, mundo este representado pela emergência de uma Fortaleza moderna.
Nesse caso, o ideal deveria ser o de um desenvolvimento, tanto do indivíduo como da
cidade, absortos, ambos, num mesmo contexto de modernização. Isso sim seria o ideal numa
perspectiva de modernização, conforme relata-nos Marshall Berman, ao analisar a figura do Fausto
de Goethe, considerado por ele um dos heróis de uma cultura moderna. Para Berman:
Uma das idéias mais originais e frutíferas do Fausto de Goethe diz respeito
à afinidade entre o ideal cultural do autodesenvolvimento e o efetivo
movimento social na direção do desenvolvimento econômico. Goethe
acredita que essas duas formas de desenvolvimento devem caminhas juntas,
devem fundir-se em uma só, antes que qualquer uma dessas modernas
promessas arquetípicas venha a ser cumprida.vii
Dessas modernas promessas arquetípicas, configura-se a cidade de Fortaleza, com seus
produtos modernos, presentes cada vez mais na cidade graças a um desenvolvimento econômico,
tecnológico e modernizante, inserindo-se num contexto onde essas promessas passavam da mera
condição de um vir a ser a uma visível concretização.viii Porém, alguns discursos nos dizem que
talvez a cidade, mas não seus habitantes, estavam inseridos nessas modernas promessas: “de
repente, o homem desavisado se apercebe do que lhe era, até então, insuspeitado. E vê que está
deslocado, em meio à paisagem, aquela paisagem que foi a sua grande companheira de infância”.ix
Esta crônica de Otacílio Colares intitula-se “Fortaleza em desamor”. Mas onde estaria então
este “desamor” que marcaria a cidade de Fortaleza? A resposta consta na mesma crônica: “É que,
enquanto o homem cresce para envelhecer, as cidades crescem para remoçar e – o que em parte dói
– para mudar de fisionomia, de costumes, de modos de ser”.x Seria então este desamor que afetava
Fortaleza, segundo o cronista Otacílio Colares, causado pelas transformações advindas com a
modernidade?
A observação acima, sobre a cidade que cresce, se remoça, muda de fisionomia, costumes e
modos de ser, é indicativa da presença da modernidade como fomentadora destas mudanças, visto
ser a modernidade marcada pelo signo da ruptura. O contraste entre o homem e a cidade, contraste
este provocado pelas mudanças ocasionadas pela modernidade, opõe o primeiro, que cresce, mas
para envelhecer, da última, que ao crescer faz o oposto, remoça-se. O “desamor” em Fortaleza
marcaria justamente este antagonismo, este descompasso entre a cidade e os que nela habitavam,
representando assim a vivência “não natural” que se teria numa cidade moderna, onde a contradição
e o paradoxo se fariam sempre presentes.
Se a cidade, ao contrário dos homens que envelhecem com o passar dos anos, remoça-se,
graças à modernidade e ao progresso, percebemos que estes atingem e modificam a cidade de tal
41
maneira, tornando-a menos “humana”, que tais mudanças restringem-se à cidade e não è extensivo a
seus habitantes. Assim o demonstra o poeta Artur Eduardo Benevides: “mesmo que fuças menos
humana nesse imenso progresso que te engana, ainda assim és linda”. xi
Se o poeta, reconhecendo as mudanças por quais a cidade passou, absorta num imenso
progresso que afinal não passa de algo enganador, ainda assim a reputa como linda, temos uma
declaração que evidencia agora não só mais um descompasso entre a cidade que se modernizava e
seus habitantes, mas um descompasso entre seus próprios habitantes, muitos dos quais “enganados”
e deixados seduzir pelo progresso. Assim, ao tratar da cidade que se mantem linda, apesar do
progresso, as palavras do poeta soam como uma “declaração de que os velhos não pretendem
adaptar-se ao desejo de mudança de seus filhos”.xii Desta forma, nem todos, como Artur Eduardo
Benevides, viam o progresso como algo enganador, mas o viam, e de forma mais ampla a própria
modernidade, como algo deveras salutar para o desenvolvimento de Fortaleza.
Antônio Martins Filho, escrevendo no prefácio do livro de Daniel Carneiro Job sobre a
Praça do Ferreira, refere-se a uma cidade onde descoberta, aventura, movimento e até mesmo
excitação soam muito mais presentes que a sensação de enganação perpassada anteriormente por
Artur Eduardo Benevides:
Conheci a Praça do Ferreira nos idos de 1918. (...) Esta, aliás, a primeira
aventura de um garoto de quatorze anos, ávido em conhecer a cidade
grande, ruas largas e movimentadas que conduziam a praças cheias de
árvores, sobrados e edifícios de muitos pavimentos, de onde a gente chegava
a ver o mar.xiii
E ainda há aqueles que nos relatam uma co-existência entre uma cidade moderna,
desenvolvida e civilizada com uma outra cidade, ainda tradicional e provinciana:
Cidade algo moderna, algo provinciana, algo civilizada e algo mal educada.
Em resumo, porém: cidade formosa, hospitaleira e gostosa. Movimento nas
ruas, arranha-céus, casinhas pequeninas, onde nosso amor nasceu.
Automóveis de luxo. Caminhões e aviões. Jumento carregando água.
Pregões. Ônibus repletos, businando. Guardas apitando, reclamando e
multando.xiv
A cidade acima descrita presencia a coexistência de práticas urbanas totalmente distintas,
quiçá antagônicas, onde a modernidade, que se faz representar por produtos ligados à tecnologia,
como aviões, caminhões e automóveis, convive no mesmo espaço com aspectos que se relacionam
diretamente ao provincianismo, bem caracterizados com a imagem do jumento que carrega água em
plena cidade (um meio de transporte nada ligado à tecnologia ou à cidade, mas sim ao interior). A
cidade de Fortaleza, que é tida como “formosa, hospitaleira e gostosa”, características estas que
42
independem da modernidade, surge paradoxal e contraditória no relato do autor, pois ela é ao
mesmo tempo, moderna e provinciana, civilizada e mal-educada.
O memorialista Caio Porfírio Carneiro, natural de Fortaleza, ao nos relatar suas
reminiscências da infância, conduz-nos a uma cidade em que a pacatez ainda não havia sido
substituída pela efervescência característica da vida numa metrópole: “nasci numa boa casa,
propriedade do meu pai, na Rua 24 de Maio, lado da sombra, entre as ruas Clarindo de Queirós e
Meton de Alencar, às 11 horas da manhã, na Fortaleza pacata de 1928”.xv Para Caio Porfírio,
portanto, Fortaleza era muito menos que uma metrópole ou mesmo uma cidade grande. A Fortaleza
de sua infância era simplesmente pacata.
A percepção de uma ligação com o meio rural, que não diferenciava claramente práticas
ditas urbanas das rurais, pode ser observada em relatos como o de José Barros Maia, nascido em
Fortaleza no ano de 1901, que ao relembrar seu tempo de infância observa que “tinha a venda de
leite na rua, conduzida por seis ou oito vacas tangidas pelo leiteiro que vendia leite mugido na
porta”.xvi Já na década de 1940 encontramos relatos interessantes sobre a persistência de hábitos
rurais na cidade, como o de Ione Arruda Gomes: “tínhamos criação de aves: pássaros, galinhas,
patos, capotes e no fim do quintal que dava aceso à outra rua, a José Vilar, tínhamos uma vaca
mestiça e uma bela novilha”.xvii
Além disso, por mais que se vivesse na cidade, a ligação com o interior (ou sobre outro
ponto de vista, a negação da urbanidade e a resistência à modernidade) era mantida e no período das
férias escolares a ida (ou volta) ao interior, ao sertão, era um momento aguardado por muitos.
Milton Dias observa que “depois da leitura de notas, vinha a etapa, seguinte, a espera do caminhão
que nos conduziria à doce paz do interior”.xviii Além da paz representada pelo interior, havia o
reencontro com várias coisas que foram deixadas de lado para se viver na cidade grande:
Chegando ao ponto de desembarque, Massapé, Ceará, Brasil, o prazer do
reencontro com a família, os amigos, a namoradinha para a temporada, as
festas, as danças, as fogueiras, os fogos, a compadragem, o aluá, o pé-demoleque, oh meu Deus, nem é bom falar de todas estas coisas que
perdemos.xix
No que tange a ligação dos fortalezenses com o interior do Estado e seu retorno na época das
férias escolares, Eduardo Campos observa que:
Os da cidade, assumidos da condição de urbanos, estavam sempre
retornando, ainda que circunstancialmente, ás suas origens campestres.
Desse modo sucedido em determinados períodos (como no mês de junho,
por então consagrado ás férias escolares), quando os da cidade, em crise de
43
nostalgia, pareciam viajar, em massa, em direção ao seu inesquecível mundo
sertanejo.xx
Em suma, se o homem não deve existir em função da modernidade, do progresso e do
desenvolvimento, mas sim estes existirem em função do homem, a cidade moderna deve existir em
função de quem nela mora, não o contrário. Nesse contexto, o desejo de mudança, inerente à
modernidade, explicita-nos um descompasso entre a autotransformação do fortalezense e a
transformação do mundo em seu redor.
Conforme Artur Eduardo Benevides, num poema intitulado “em louvor de Fortaleza”: “já
não te sinto como antigamente: ou envelheci, ou de repente perdeste, em moderníssima grandeza, o
casto ar gentil de tua beleza”.xxi
O descompasso aí está presente. Se o homem não consegue sentir mais sua devotada cidade
como antigamente, há duas explicações para isso. A primeira decorre de um processo biológico
natural: o envelhecimento. A segunda provem de um fenômeno desencadeado pela modernidade: a
outrora casta cidade, bela e com ar gentil, perdeu tais características, devido a uma grandeza, não
possível de ser acompanhada pelo homem, devido ser esta uma grandeza moderna, ou melhor, mais
que isso, ser uma grandeza moderníssima.
Portanto, parafraseando Italo Calvino, podemos nos questionar: qual o objetivo de uma
cidade em construção senão uma cidade?xxii Bem que poderíamos reformular tal questionamento:
qual o objetivo de uma moderna cidade em construção senão uma cidade moderna? A resposta não
é tão obvia como se queira perceber, pois nem todos que habitavam na moderna Fortaleza que se
construía entre o final do século XIX e início do século XX, consideravam-se modernos ou até
mesmo habitando numa cidade tão moderna assim.
NOTAS
1
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As Razões de uma cidade: conflito de hegemonias. Fortaleza:
Stylus Comunicações, 1991, p. 110.
1
BEZERRA, José Tanísio Vieira. Quando a ambição vira projeto: Fortaleza, entre o progresso e o
caos (1846 / 1879). Dissertação de Mestrado em História. PUC: São Paulo, 2000. p. 40.
1
BRASIL, Thomaz Pompeo de Souza. Ensaios estatísticos da província do Ceará. Tomo I.
Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, Coleção Biblioteca Básica Cearense, 1997. (Edição Facsímile da edição publicada em 1863). Apud BEZERRA, José Tanísio Vieira. Quando a ambição
vira projeto. op. cit., p. 41-42.
1
CORDEIRO, Celeste. Brinquedos da memória: a infância em Fortaleza no início do século XX.
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1996, p. 25.
1
Idem.
1
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 13.
1
Id. Ibidem., p. 41.
44
1
Havia, porém, certas áreas da cidade onde a promessa de modernidade não passava mesmo de uma
mera promessa. Estas áreas eram as “areias”, conforme relata-nos Eduardo Campos: “Tempo, o
dos anos trinta. Fortaleza estava dividida em duas metades de gente: a que morava na área de
calçamento... e a que vivia (vivia?) pelas “areias”, e essa designação de ocupação do solo a
significar quem morava nas embrionárias favelas de hoje, gente modesta abrigada quase sempre
em casebres”. CAMPOS, Eduardo. O Inventário do Cotidiano: Breve Memória da Cidade de
Fortaleza. Fortaleza: Edições Fundação Cultural de Fortaleza, 1996, p. 53.
1
COLARES, Otacílio. “Fortaleza em Desamor”. In: Fortaleza 1910. Fortaleza: Imprensa da
Universidade Federal do Ceará, 1980. p. 13.
1
Idem.
1
BENEVIDES, Artur Eduardo. Poemas de amor a Fortaleza. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2000,
p. 117.
1
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit., p. 59.
1
JOB. Daniel Carneiro. Praça do Ferreira: o inédito, o sério e o pitoresco. 2. ed. Fortaleza:
Fundação de Cultura e Turismo, 1992. p. 5.
1
MIRANDA, Ubatuba de; GIRÃO, Raimundo. Retrato de Fortaleza. Fortaleza: Editora Instituto
do Ceará, 1954, p. 65-66.
1
CARNEIRO, Caio Porfírio. Contagem Progressiva: reminiscências da infância. Fortaleza:
UFC/Casa de José de Alencar, 1998, p. 15.
1
SOUZA, Simone de; PONTE, Sebastião Rogério (org.). Roteiro Sentimental de Fortaleza:
Depoimentos de História Oral de Moreira Campos, Antônio Girão Barroso e José Barros Maia.
Fortaleza: UFC-NUDOC/SECULT-CE, 1996, p. 175.
1
GOMES, Ione Arruda. Imagens indeléveis: primeiros contatos com o bairro Aldeota. Fortaleza:
Stylus Comunicações, 1991. p. 20.
1
DIAS, Milton. Relembranças. Fortaleza: Edições UFC, 1998. p. 73.
1
Id. Ibidem, p. 75
1
CAMPOS, Eduardo. “Culinária Cearense”. In: CHAVES, Gilmar (Org.). Ceará de Corpo e Alma:
um olhar contemporâneo de 53 autores sobre a Terra da Luz. Rio de Janeiro: Relume Dumará/
Fortaleza: Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), 2002. p. 105.
1
BENEVIDES, Artur Eduardo. Poemas de amor a Fortaleza. op. cit., p. 118.
1
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 117.
45
POBREZA E DOENÇAS NA PARAÍBA IMPERIAL:
A TRAJETÓRIA MISSIONÁRIA DE PADRE IBIAPINA
Danielle Ventura Bandeira de Lima - UFPB∗
Introdução
O trabalho missionário de Padre Ibiapina se deu entre os anos de 1856 a 1883 e representou
uma maneira de buscar a melhoria da situação das províncias da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande
do Norte, Ceará e Alagoas através da construção de uma infra-estrutura que permitisse que as
pessoas desfrutassem das mesmas e, concomitantemente, colaborassem para que ela existisse.
Contudo, nem sempre o missionário conseguiu peregrinar por essas regiões incentivando
pessoas, as orientando pessoalmente e buscando recursos em momentos críticos como o da seca de
1877, isso por que, em 1876, ele foi acometido por uma paralisia nas pernas e precisou se fixar em
uma de suas casas de caridade, que no caso, sua escolhida foi Santa Fé, localizada no atual
município de Arara- PB.
Dessa maneira, em momentos de seca, Ibiapina se apoiou na colaboração dos chamados
“beatos”, merecendo destaque a figura do Irmão Ignácio, que tinham o papel de pedir esmolas nos
mais variados lugares, além de buscar o apoio financeiro do bispo e de orientar por cartas as Irmãs
de Caridade a fim de que essas perseverassem nas instituições e cumprissem o que estava
estabelecido no seu Estatuto e Máximas Morais.
Sendo assim, nesse artigo analisaremos brevemente o contexto da época que Ibiapina atuou,
suas principais obras estabelecidas e por fim, enfocaremos as principais dificuldades enfrentadas
nesse período dando ênfase a seca, tendo em vista que esta foi um mal que afligiu toda a população
carente.
A trajetória missionária de Ibiapina e as dificuldades da época
A preocupação de Ibiapina em investir na salubridade por onde ele passava através da
construção de cemitérios, hospitais, e de açudes é compreensível perante a dura realidade
encontrada no norte do país nesse período, já que havia surtos de doenças epidêmicas como febre
∗
Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba e Bolsista CAPES pelo Programa de Pós Graduação em
Ciências das Religiões – PPGCR da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
46
amarela, cólera e varíola que se proliferavam pelo país cujo orçamento destinado para sua
erradicação era minúsculo.
Com relação aos Cemitérios construídos pelo religioso, tinham como função diminuir as
epidemias, já que os escombros quase sempre eram portadores de mais doenças. Essa obra quase
sempre estava localizada nas imediações das capelas, como em Soledade - PB (1856), Alagoa
Grande PB (1863) e Caldas-CE (1870), devido ao significado religioso que elas representavam, já
que sob o pensamento cristão há uma constante busca pelo céu.
Outra obra social de cunho essencial para a população eram os açudes, entre os quais
podemos destacar aqueles construídos em Angicos - RN (1863), Santa Fé- PB (1864) e Santa
Luzia-PB (1875), uma vez que muitas delas conviviam até mesmo com a escassez total de água
principalmente em tempos de crise como a seca de 1877.
Os hospitais, por sua vez, eram extremamente significativos também por causa do grande
número de epidemias que se alastravam nesse período. Esses geralmente funcionavam no interior
das Casas de Caridade como os de Açu e Areia, já que eram as próprias Irmãs de Caridade que,
além de realizarem um duro serviço nas casas de caridade junto às órfãs, estavam dispostas a cuidar
dos doentes.
Sendo assim, a contribuição dos leigos na obra missionária do Padre Ibiapina, foi essencial
para que ele conseguisse realizá-la, pois era necessária a presença de construtores de hospitais,
açudes, igrejas e casas de caridade, bem como de pessoas dispostas a administrá-las e conduzi-las.
O zelo da população pelo seu projeto missionário é perceptível no momento em que o
missionário é acusado de mentor do Movimento Quebra quilos27 por ser uma figura que conhecida
por todo o Norte, já que ao ser enviado o mandato de prisão grande número de camponeses foi até a
Casa de Caridade Santa Fé, para impedir que prendessem o Padre Ibiapina:
O povo cercou o apóstolo que debalde pedia que voltassem todos a seus lares
e roçados. Muita gente ficou dia e noite aos pés dos muros da Caridade, sob o
abrigo de pequenas casas e de árvores. De armas nas habitações e no colégio,
somente as cruzes. Camponeses, fora, quando muito empunhavam foices, que
o Padre só aconselham foi o trabalho e a virtude, batia a arrogância e o
cangaço. (MARIZ, 1980, p.146)
A carência de recursos básicos da população e a comoção mediante as suas pregações foram
fortes motivos que levaram essas pessoas a apoiarem sua obra e a admirarem o seu trabalho, pois a
situação era tão difícil que uma das poucas instituições que recebia o auxílio financeiro era a Santa
27
Revolta que explodiu ao ser executado do sistema métrico que foi criado em 1872. Contudo a população estava
abalada com a ausência de melhoria de condições de vida mesmo quando muitos estavam se alistando ao Exército.
Nesta época muitos cartórios e arquivos municipais foram incendiados (Mariz,1980)
47
Casa de Misericórdia (constituída por hospital, Igreja, cemitérios públicos e edifícios subjacentes
que acolhiam alguns órfãos que, após um tempo, eram abandonados a própria sorte) e cujas verbas
enviadas através da Comissão de Socorros Públicos não conseguiam suprir suas necessidades.
A ausência de salubridade pública foi um mal tão pouco combatido pelo Estado que,
segundo Comblin (1993), os escombros ficavam expostos fazendo com que um maio número de
doenças se proliferasse e acarretasse ainda mais em prejuízos para a população mais pobre.
Fundada em 1862 e iniciando o trabalho do religioso na Paraíba, a casa de caridade hospital em Areia teve um papel fundamental na luta contra os males das doenças epidêmicas,
chegando a ser alvo de elogios pelo Presidente da Província da Paraíba Araújo e Lima, no ano de
1863, que mesmo reconhecendo a colaboração do missionário na diminuição da cólera, não
contribuiu em nada com a manutenção dessa instituição.
Contudo, apesar de todas as obras assistencialistas do religioso tivessem um caráter
essencial para a população, as casas de caridade podem ser consideradas como as suas principais,
pois mesmo diante de sua paralisia nas pernas ele continuou se comunicando através de cartas com
as superioras das respectivas casas e enviando verbas através de seus beatos. Isso fica perceptível
em um discurso de sua época que afirma que:
Padre Ibiapina viu a órfã sem pai e sem mãe, exposta a todos os perigos e
misérias da vida, e seu coração contristou-se. Viu o homem acabrunhado
sob o duplo mal de enfermidade e da fome, e sua alma conturbou-se. Mas
Deus havia dito “Diliges proximum tuum sicut teipsum”.28 Com tais
palavras nos lábios e a fé no coração, o virtuoso missionário, encontrando
eco ao íntimo da alma dos fiéis, fundou esta Santa Casa para asilo e
proteção das órfãs e dos enfermos desvalidos da fortuna. (Domingo, José
Pinto Braga Júnior no discurso de inauguração da Casa de Caridade de
Sobral- Ceará a 27.09.1862)
No que diz respeito à educação feminina é importante destacar que o curso feminino nas
escolas normais brasileiras, apesar de ser mencionado como criado na Bahia em 1836 e em São
Paulo em 1846, não foram implantados. No Rio de Janeiro, por sua vez, teve-se uma tentativa
frustrada de colocar o estudo masculino e feminino em dias alternados. Portanto, por um longo
período o ensino dirigido ao público feminino ficou a cargo de instituições religiosas ou escolas
particulares leigas.
As preocupações com o casamento e com a educação religiosa das mulheres eram
fortemente presentes no pensamento de quase todas as instituições brasileiras e também nas Casas
de Caridade. Contudo, uma técnica não tão desenvolvida para as mulheres nesse período e
desempenhada por Ibiapina foi a busca em fazer com que as moças aprendessem atividades manuais
28
Que traduzindo significa “Amai ao próximo como a si mesmo”.
48
ou de gênero industrial para que quando se cassassem pudessem colaborar com seus maridos no
sustento de suas famílias.
Essas atividades industriais eram constantemente incentivadas ao público masculino no
ensino laico em busca de mão de obra especializada como podemos constatar no Colégio dos
Educandos Artífices criado na Paraíba em 1865, contando, diferentemente das Instituições do
Missionário, com o apoio do Estado e padecendo com a falta de estrutura, predominando-se, além
disso, a descriminação contra os filhos dos ex-escravos.
A busca por formar mão de obra barata e a descriminação para com os filhos de ex-escravos
nesse ambiente pode ser constatada através do Relatório de Província em 1872, quando alguns
jovens filhos de ex-escravos, expulsos sob a alegação de “mau comportamento” foram readmitidos
em seguida sendo incorporados no quadro de funcionários impedindo que esses jovens fossem além
do que se acreditava que era necessário para pessoas pobres, cujo destino nessa mentalidade
escravocrata era trabalhar ganhando pouco ou nada.
Entre todas as preocupações do Brasil a maior de todas certamente foi a Seca, sendo
mencionada até mesmo no discurso do Imperador em 1° de julho de 1877 onde apesar de afirmar
que as epidemias tiveram uma considerável queda, reconheceu que e o pior dos problemas do país
era a seca que vinha sendo combatida mediante o auxílio da Comissão de Socorros Públicos e as
iniciativas particulares.
Esse sofrimento da sociedade foi sentido também nas casas de caridade, devido à
impossibilidade de seu líder em se locomover e conseguir pessoalmente as verbas necessárias para
seu sustento. Sendo a solução por ele encontrada o envio, através de seu beato Ignácio, de uma carta
relatando a situação das casas apelando para versículos bíblicos que tinham como intuito comover
as pessoas que dela tomassem conhecimento, como podemos observar em um de seus trechos:
(...) É o padre Ibiapina que vos pede uma esmola pelo amor de Deus.
Lembrai-vos cristãos: a esmola apaga o pecado e faz achar
misericórdia na presença de Deus no dia do juízo. Quando Deus julgar
o mundo, dirá para os da direita: vinde, bendito de meu eterno Pai!
Vinde receber o prêmio da glória que vos está preparada pois estive
com fome e me deste de comer, estive com sede e me deste de beber
(...) (carta do Padre Ibiapina em 2 de novembro de 1877)
Um mês depois de enviar essa carta, Ibiapina fez uma descrição dramática de como estava
Santa Fé, mostrando que os alimentos estavam ficando escassos e até mesmo a água já estava
acabando, afirmando que as órfãs que lá estavam eram em sua maior parte menores de sete anos e
colocando ainda que, diariamente, retirantes procuravam suas casas, nus e carentes de alimentos.
49
Essa situação condiz com o relato da comissão de socorros públicos ao descrever ao
Presidente da Província da Paraíba José Rodrigues Pereira Júnior sobre a Villa de Teixeira no ano
de 1879 em que, segundo ela, a fome chegou a tal ponto que até mesmo cachorros eram disputados
como alimentos para os mais pobres.
Além disso, nesse relatório afirma-se que essa situação de maneira nenhuma afetou a elite
local alertando para os desvios de verbas e lamentando o grande número de emigrações de pessoas
pobres que iam buscar melhores condições de vida. Reclamando ainda da impossibilidade de
construção de Sangradouro por parte da Comissão mediante a pequena quantidade de verbas a ela
direcionada.
Nesse ano, ficam evidentes as necessidades da população através da Veneranda responsável
pela Casa de Caridade em Cabaçeiras que pedindo recursos ao Presidente da Província mostra que
as dezoito senhoras que nela residiam não conseguiam suprir as necessidades das trinta e oito órfãs.
Vale destacar, que esta consegue os recursos solicitados, mas em uma ínfima quantidade, pois em
pouco tempo reivindica novamente o envio de recursos que durem no mínimo quatro meses.
É importante destacar que o estudo de pessoas que viviam em condições precárias como
essas mencionadas anteriormente só nos e possível mediante a abertura dada pela historiografia
através da história social inglesa já que:
Não há como negar, foi a partir de suas concepções e perspectivas (da
história social) que os “temas malditos”, ou seja, quase todos que tratam dos
excluídos sociais sejam pobres, vagabundos, prostitutas, negros, mulheres,
índios, etc encontraram guarida na historiografia. (FENELON, 1993, p 76)
Enfim, o estado calamitoso nesse período é explicitado em narrativas de pessoas que
vivenciaram de perto esse período e que buscavam apoio de autoridades ou até mesmo como os
presidentes das províncias, líderes religiosos ou até mesmo da própria população apelando para o
sentimento de partilha cristã e é a partir de tais fontes e da abertura dos estudiosos para um estudo
dessas temáticas que eles conseguem ser realizados.
Considerações finais
Ao analisarmos a situação da província da Paraíba durante os anos de 1862-1883, bem como
a atuação de Ibiapina por todo norte do país percebemos como a população carente se apegou as
suas missões e resolveu colaborar com elas, já que se sentiam reconfortados com suas palavras e
com sua busca por construir obras que atendessem as suas necessidades.
Entretanto, a seca foi uma das piores situações vivenciadas por essas pessoas que haviam
sido alimentadas com essas mensagens de esperanças e também para a população carente de todo o
50
país, pois, como pode ser constatado através do relatório da comissão de socorros públicos na Vila
Teixeira, os desvios de verbas eram freqüentes e essa situação em nada afligia aos mais ricos.
Essa abordagem crítica é utilizada pela historiografia principalmente após a abertura a partir
dos estudiosos da Historia Social Inglesa como Thompson (2001), Fenelon(1993)
e
Hobsbawm(1998) dentre outros que passaram a considerá-la como fundamental, por acreditarem na
pertinência de não se limitarem no estudo da história dos chamados “grandes homens”.
Enfim, essa temática aqui exposta brevemente permite que façamos uma reflexão sobre a
situação do norte do país nesse período sem deixar de reconhecer que este se trata de um tema que
não está longe de nossa realidade, pois reflete o sofrimento ainda hoje enfrentado por grande parte
da população mediante os desvios de dinheiro e ausência de infra-estrutura de muitos locais do
Brasil.
Referências
Carta da Irmã de Caridade Maria Ibiapina ao presidente da província José Rodrigues Pereira
em 16 de dezembro de 1879. Arquivo Público da Paraíba.
Carta da Irmã de Caridade Maria Ibiapina ao presidente da província José Rodrigues Pereira
em 4 de março de 1880. Arquivo Público da Paraíba.
Carta do Padre Ibiapina enviada através do Irmão Ignácio em 2 de novembro de 1877.Arquivo
Santa Fé.
Carta do Padre Ibiapina enviada através do Irmão Ignácio em dezembro de 1877. Arquivo
Santa Fé.
COMBLIM, José. Padre Ibiapina. São Paulo: Paulinas, 1993.
Domingo, José Pinto Braga Júnior no discurso de inauguração da Casa de Caridade de
Sobral- Ceará a 27.09.1862. Cf Pe Carlos Augusto Peixoto de Alencar- Itinerário da
Primeira Visita do Sr Dom Luis Antônio dos Santos ao Norte do Bispado no ano de 1862Ceará 1863, p 82. Arquivo Santa Fé.
Falla do Imperador na décima sexta reunião da legislatura em 1 de julho de 1877.Arquivo
Público da Paraíba.
FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e História social: Historiografia e pesquisa. In: Projeto
História. Volume 10. São Paulo, PUC SP, dezembro 1993.
HOBSBAWM, Eric. "A Historia de Baixo para cima". In: Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras,
1998 (p 216-231)
Jornal “o cearense”, Fortaleza edição de 14-10-1862, p 1. Arquivo Santa Fé.
MARIZ, Celso. Ibiapina, Um apóstolo do Nordeste. 2ª Ed. João Pessoa. Ed Universitária
/UFPB, 1980.
51
Ofício do diretor do Colégio dos Educandos Artífices Antonio de Souza Gouveia dirigido ao
presidente da Província da Paraíba Frederico Almeida e Albuquerque em 3 de abril de 1872
encontrado no Arquivo Público da Paraíba.Arquivo Público da Paraíba.
Ofício do diretor do Colégio dos Educandos Artífices Antonio de Souza Gouveia dirigido ao
presidente da Província da Paraíba Frederico Almeida e Albuquerque em 20 de abril de
1872 encontrado no Arquivo Público da Paraíba. Arquivo Público da Paraíba
Relatório do Presidente da Província Araújo e Lima em 1863. Arquivo Público da Paraíba
Relatório da Comissão de Serviços público sobre a Villa de Teixeira ao Presidente de
Província José Rodrigues Pereira Júnior em 15 de outubro de 1879
THOMPSON, E.P. As Peculiaridades dos Ingleses e Outros artigos. Campinas: UNICAMP,
2001.
VILLELLA, Heloísa de O. O mestre escola e a professora. In: LOPES, Elina Marta (org.) et.
all. 500 anos de escola no Brasil. São Paulo: Autêntica. 2003.
52
CIRURGIANDO UMA VIGILÂNCIA HIGIÊNICA: A INSPEÇÃO MÉDICA ESCOLAR
COMO ESTRATÉGIA CÍVICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Paloma Porto Silva – PPGH/UFPB
O Dr. Vieira de Mello foi instigado, ainda em 1902, a produzir uma obra que certamente
norteou a implantação da inspeção médica nas escolas de São Paulo e que serviu de modelo
educacional para boa parte das instituições de ensino pelo Brasil.
A Hygiene na Escola é um traço biográfico que mostra os tráficos e os tráfegos do autor,
suas inquietudes, seus dias de vivência médica que atendia a uma população acometida pelas
moléstias como o impaludismo, febre amarela, febre tifóide, tuberculose, gripe, entre outras, nas
cidades em que passou: Divina Pastora, Rio de Janeiro e São Paulo. Espaços e vivências das
condições de produção do autor, suas experiências, relações sociais, interpretações de mundo,
metáforas, posturas diante saúde pública, do medo da vida e da morte.
Sua obra é fruto de estratégias que marcaram as formas de ver e dizer a instituição escolar
sob um olhar médico-higienista. É uma obra que deve ser lida levando-se em consideração o
cenário que se configurava no Brasil; cenário este que estava em consonância com o movimento
higienista internacional, entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século
XX. A obra faz parte de uma nova literatura voltada a um receituário de civilidade29, condutas e
posturas que professores e alunos deveriam seguir, um além de ser uma fórmula sub-reptícia de
controle e docilização dos corpos e mentes, ou seja, uma tentativa de convencê-los da necessidade e
da urgência de seguir as medidas prescritas à conformação da escola aos imperativos da higiene.
O livro usava suas páginas para a difusão de usos e costumes de como a criança deveria se
portar, andar, falar, sentar... Um conjunto de conselhos de como portar-se (CHARTIER, 2004)
É difícil classificar convencionalmente a Hygiene Escolar: nem totalmente prático, nem
somente literário, mas sempre com determinações e objetivos pedagógicos, estavam, também,
ligados ao mercado do livro escolar.
A fisiologia infantil é um corpo escrito, colonizado por uma série de discursos, um objeto do
conhecimento esquadrinhado, investigado analisado e moldado. As práticas em torno do corpo, da
mente, dos costumes, das sensações, do que é objetivo e o que é subjetivo das crianças inventam
espaços de dizibilidade e visibilidade para construção de uma imagem multifacetada da infância,
29
Entendo como receituário de civilidade como vetores de sistemas de valores, ferramentas para a consolidação das
formas e dos códigos morais e sociais. Compunha-se de inúmeros conselhos, regras precisas, orientações de conduta
pessoal, moral e social, cujo objetivo era transmitir e ensinar atenções e cuidados que a criança deveria dirigir a si
mesma, no espaço público e privado. A civilidade é, ainda hoje, distintiva e fonte para se compreender uma gramática
(Gramática entendida como as relações formais entre diferentes elementos que compões um todo) que ordena a vida em
sociedade.
53
com a construção de várias identidades. Trata-se de um inventário30, um espaço de poder, um lugar
de saber de expectação de sentidos que são instituídos pela multiplicidade de palavras que narram a
infância.
A obra foi lançada com a autorização e sob os auspícios do governo do estado de São Paulo
por um funcionário bem quisto do alto escalão, pertencente aos quadros do Serviço Sanitário. Não é
estranho perceber que o livro foi encomendado pelo governo do Estado de São Paulo, pois os
vínculos do autor com as altas esferas da administração paulista ficam evidentes na dedicatória a
Bernadino de Campos, presidente do Estado, entre 1892 e 1996, e a Bento Bueno, secretário dos
Negócios do Interior e Justiça, à época da publicação da obra, bem como nos agradecimentos: ao
primeiro, pelos seus feitos em matéria de higiene e instrução pública; a Bento Bueno, por haver
autorizado a publicação, e a Emilío Ribas, diretor do Serviço Sanitário, a quem o autor agradece
pelo interesse que manifestou em relação à publicação da obra (MELLO, 1902, pp. V-VI).
Ler A Hygiene na escola é procurar entender o que é um autor (no dizer foucaultiano), um
sujeito-escritor de si e de seus espaços e compreender como o médico-escritor foi criando uma
estética de sua própria existência na escritura de uma infância higienizada.
A Obra é considerada pioneira no que diz respeito a sua organização, além de,
principalmente, possuir um caráter peculiar no sentido de abranger uma grande amplidão, extensão
de temáticas abordadas. O livro compreende prefácio, oito capítulos, um apêndice sobre a inspeção
médica escolar, seguido das conclusões. Questões referentes à organização do trabalho pedagógico
e ao meio escolar estão bem localizadas nos seus seis primeiros capítulos. Nos dois capítulos
seguintes, o autor aborda as moléstias, dividindo-as entre aquelas que não são contraídas na escola e
aquelas que são apenas propagadas neste meio. Em decorrência, o apêndice alerta para a
necessidade da inspeção médica nas escolas periodicamente. E por fim, nas conclusões, o autor tece
seus comentários e suas posições em relação aos temas tratados.
A contribuição da história da leitura (CHARTIER, 1998) mostra que a materialidade de um
impresso cria condicionamentos sobre os sentidos que ele pode liberar, assim, as formas dos textos
dado pelos editores, números de páginas, o tamanho das letras, moldam possibilidades de
compreensão e recepção.
A Hygiene Escolar apresenta-se ao leitor, com algumas ilustrações no corpo textual, uma
capa simples, com o título escrito em letras maiores de cor preta, escriturado em um dispositivo
30
Apropriando-me do pensamento de Michel de Certeau, entendo o conhecimento como um inventário, como um
conjunto de procedimentos estabelecidos como herança a partir dos processos histórico-culturais construídos através da
linguagem. Os códigos lingüísticos já existem com suas regras morfológicas, sentindo e pragmatismo. Assim, eles,
também, são uma forma de inventário, algo que herdamos, que nos foi transmitido de geração a geração. Nesse sentido,
os postulados imagético-discursivos sobre a infância é um tipo de inventário em que consiste em regras e normas de
como deve ser educado e disciplinado conforme preceitos instituídos através da língua. Esta entendida, aqui enquanto
um sistema que pode ser alterado, modificado conforme espaço, lugar ou tempo. Cf. CERTEAU, Michel de. A Invenção
do Cotidiano. Artes de fazer; Tradução de Epharaim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 38.
54
textual pragmático. A ausência de imagens na capa funciona como um protocolo de leitura pode-se
inferir que a significação passa da capa para o tema, o título escrito em letras negras e grandes
direciona o olhar e não está ali de maneira inerte: constrói ale, também, o que descreve e o que
conta, divulga conteúdos, produzem imagens retóricas e inscreve na sua escrita os efeitos da sua
ação.
Dr. Vieira de Mello, ao mesmo tempo em que expõe os objetivos inerentes à obra, também
explicita o caráter propagandista deste trabalho, comprometido com a divulgação de práticas de
saúde escolar adequadas aos que são responsáveis pelo desenvolvimento intelectual e físico da
infância e da juventude, modelando o ensino e procurando adequá-lo ao novo cenário nacional de
projetos burgueses na construção de uma identidade31 para a criança e para um “homem ideal”. Não
obstante, a obra também vai além da difusão de preceitos higiênicos, de modo a colocá-los à altura
daqueles que, envolvidos com a educação das crianças e jovens, viessem a se interessar pelo
assunto.
Nessa tentativa de construir um discurso sobre condutas e comportamentos da infância,
tomou-se como base, através das relações de poder e saber, uma sondagem minuciosa concernente
às práticas das crianças. Práticas ditas possuidoras de um alto grau de periculosidade disseminadas
no cotidiano e que poderia gerar problemas ao estado à longo prazo, a infância emerge como fonte
riquíssima para o pesquisador que produz narrativas sobre a história.
Apropriando-se do discurso de modernidade, que circulava nas principais cidades da
Europa, o médico-higienista escritura em sua obra acerca do espaço, tempo, mobiliário, métodos e
processos de ensino, material escolar, ginástica e exercícios físicos, escrita e leitura, os meios
considerados, sob o ponto de vista da adequação aos preceitos higiênicos, ideais ao modelo de
pedagogização vigente.
É importante salientar que é impossível falar de “vida moderna” no Brasil no início do
século XX, tendo como parâmetro a idéia de ritmo social que serve para caracterizar as capitais
européias no mesmo período.
Trata-se de considerar que a idéia de modernização, (...) não pode ser
associada à idéia de vida agitada e/ou ritmo frenético das metrópoles de
então. Sim, a experiência moderna (...) não se expressa em termos de vida
31
A identidade infantil é entendida como uma construção simbólica e imaginada, formada a partir da tessitura de um
lugar para si e do reconhecimento da diferença no “outro”. O termo é entendido, segundo os pressupostos defendidos
pela Antropologia e Psicologia, como um sistema de representação que permite a construção do “eu”, ou seja, que
permite que o indivíduo diferente dos outros. Acrescente-se, a identidade da categoria infância percebido como uma
construção histórica, pois esta existe por si só, mas é construída a partir de comparações como outras identidades. A
identidade infantil, por exemplo, se constrói ante a identidade do adulto, Para melhor ilustração e esclarecimentos da
categoria identidade ver SILVA, Kalina Vanderlei et al. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005,
p. 202 e 204.
55
metropolitana, a exemplo do que ocorre pioneiramente nas duas maiores
cidades do século XIX, Londres e Paris (ARANHA, 2003, p. 81).
A questão do espaço é discutida no âmbito da localização e construção do edifício escolar,
na iluminação, na ventilação e limpeza, elementos tidos como simbólicos para a modernidade32. No
que diz respeito aos preceitos higiênicos que deveriam ser observados em sua construção, a escola
se diferencia das habitações. Para tanto, o autor enfatiza o valor de um “plano inteligente e prático”
em que a localização da escola e suas vizinhanças, a disposições das salas de aula, o refeitório, os
aparelhos sanitários, os pátios para recreio, as demissões do edifício, a circulação de ar e de água e a
iluminação fossem levadas em consideração.
O discurso médico-higienista cartografa a constituição da escola, define sua localização na
cidade visando à interdição e ao afastamento em relação às fábricas, oficinas, igrejas, estações de
trem, quartéis, prisões, hospitais, cemitérios, estábulos e cocheiras. Distante de qualquer
estabelecimento que possa provocar ruídos e exalações de odores pérfidos do mundo do trabalho, e
do mundo das doenças e da morte, pois a escola foi pensada, no período, como um lugar do
silêncio, da obediência, da atenção e, sobretudo, um lugar da saúde.
A escritura do Dr. Vieira de Mello é filha da confluência do desejo particular de narrar os
imperativos da sua sociedade e a necessidade desta de ser narrada, poetizada, ser salva do “atraso”
causada pela reminiscência de uma sociedade rural. É urgente a necessidade de essa sociedade ser
visitada, musicalizada, lapidada pela linguagem médica, apresentada ao público como um modelo
ideal de sociabilidade, como padrão social a ser seguido. A literatura do Dr. Vieira de Mello foi
resultante de uma vasta produção discursiva que começou a circular no país no início do século XX
e que, paulatinamente, foi se afirmando no seio social, participando do processo de construção do
sentimento de morte dos ideais ditos atrasados e de vida as prescrições da saúde e higiene.
Em Vieira de Mello, a escola assemelha-se a um hospital, diagnosticando comportamentos,
clinicando hábitos de higiene, posturas e vícios. Rotulando crianças em doentes, asnos, “burros”,
anormais33, reprovados; ou de curados, desasnados, normais, inteligentes, aprovados. Os
educadores seriam médicos escolares aos quais não deveria parecer estranha a intervenção da
higiene, pois a articulação entre pedagogia e higiene resultaria no equilíbrio entre desenvolvimento
físico e intelectual dos alunos.
32
Apropriamo-nos do pensamento de Gervácio Aranha, para o qual no Brasil, na virada do século XIX para o XX,
podemos falar no discurso da modernidade como um processo de adequação pelas elites. Um discurso que faz dessas
mesmas elites o meio de transmissão, para toda a sociedade, das chamadas “seduções do moderno”. Esse discurso
permeou os elementos simbólicos supracitados. Cf. ARANHA, Gervácio B. “Seduções do moderno na Parahyba do
norte: trem de ferro, luz elétrica e outras conquistas materiais e simbólicas (1880 – 1925)”. In: AGRA DO Ó, et al. A
Paraíba no Império e na República: estudos de história social e cultural. João Pessoa: Idéia, 2003, pp. 79 –132.
33
Questões referentes a normalidade e anormalidade serão tratados no próximo capítulo.
56
O saber médico investiu na educação, legitimando-a como um agente divulgador das noções
de higiene, doença e cuidado físico a partir do século XX. Tais noções foram calcadas nas leis da
ciência em consonância com as redes, os fios, as relações de saber e poder que articulam
discursivamente a educação formal à profilaxia social34, trabalho que resultaria no pleno
desenvolvimento infantil.
A discussão sobre métodos e processos de ensino também permeiam entre a higienização da
leitura e escrita, além de adquirirem especial relevo na análise dos métodos de ensino da leitura, no
desenvolvimento dos sentidos, na sensibilidade e capacidade de reflexão, assim como nas
prescrições em relação às escolhas de livros, os quais se inserem num movimento de construção
para uma leitura “adequada” em contraponto a uma leitura “nociva”, tida como perniciosa.
No que se refere à higiene da escrita, a elegância, clareza e rapidez eram as qualidades que
todo aluno deveria alcançar; para tanto, recomendava-se a letra destra, pois esta geraria menos
“prejuízo” à saúde do aluno. As posições e atitudes dos alunos, principalmente durante os
exercícios gráficos, colocam em cena o papel que os educadores deveriam desempenhar no que diz
respeito à correção de posturas inadequadas e vícios que os mesmos classificavam como
prejudiciais ao desenvolvimento do infante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, Gervácio B. “Seduções do moderno na Parahyba do norte: trem de ferro, luz elétrica e
outras conquistas materiais e simbólicas (1880 – 1925)”. In: AGRA DO Ó, et al. A Paraíba no
Império e na República: estudos de história social e cultural. João Pessoa: Idéia, 2003, pp. 79 –132.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução a análise do discurso. 6º ed., Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 1997.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer; Tradução de Epharaim Ferreira
Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. SP: UNESP, 2004.
_________. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. SP: Editora da UNESP, 1998.
FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Organização e seleção de textos, Manoel Barros da
Motta. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
34
O saber médico ampara-se nos saberes oriundos da biologia, da psicologia, da psiquiatria e da ciência natural,
bastante inerentes ao inicio do século XX.
57
______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Tereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
_____. Microfísica do poder. 21 ed., Rio: Graal, 2005.
58
POR AMOR, DESEJO OU DINHEIRO? ESTUDOS ACERCA DO USO DO CORPO E
SEUS SIGNIFICADOS NA CONTEMPORANEIDADE.
Allyson da Silva Prata1
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
Compreender e perceber os reais significados das práticas sexuais pode nos levar a diversos
caminhos que nos façam analisar a história da sexualidade através de um prisma historiográfico.
Isso porque, ao estudar o respectivo assunto, nos deparamos com diversos momentos de nossa
história onde as práticas sexuais se encontravam em volta de variados discursos, onde a repressão e
a marginalidade sempre se encontraram em destaque, delimitando que seria ou não correto nas
busca pelo prazer.
E ao percorrer esses caminhos, nos deparamos com particularidades que fazem com que a
história da sexualidade seja assim, tão complexa. Digo complexa no sentido que é um assunto que
deve levar em consideração as ¨formas¨ que a envolvem, os agentes envolvidos e a época em que
cada discurso é propagado. Onde não podemos esquecer de analisar que todos esses fatos estão
entrelaçados, e ditando como pode ser a realidade sexual, seja em qual espaço temporal esteja
localizada.
Neste trabalho, trataremos dos aspectos sexuais presentes na história contemporânea. Nisso,
tenho o intuito de discorrer sobre as visões sexuais presentes na atualidade,_ destacando que o
termo sexualidade, só veio a ser utilizado após o século XIX, merece um estudo especial_ além de
tratar sobre os discursos repressivos, a influência cristã, a marginalidade dedicada aos que decidiam
o domínio do próprio corpo e as demais relevâncias que estiveram presentes quando o assunto era o
prazer carnal.
Para que o objetivo seja alcançado, é necessário que analisemos como se dá o exercício
carnal, e suas relações com o eu e o outro, a família, os governos, a Igreja,
____________________________
1
Allyson da Silva Prata é aluno de graduação da Universidade Federal de Campina Grande –
UFCG.
enfim, toda sociedade. E desta maneira, ver o que continua marginalizado e o que mudou, como
também o que, mesmo com a modernidade e a globalização, ainda não permite ser visto com
naturalidade pelas populações.
Assim, é interessante trabalhar aspectos que estão presentes na história da sexualidade, no
ato sexual. Me refiro às suas práticas, ou seja, as formas que se obtem o prazer de acordo com cada
59
desejo pessoal. Falo da hetero e homoafetividade, prostituição, relações de sexo individual
(masturbação), sexo praticado em grupos, voyeurismo e diversas outras formas de sentir prazer que
são recorrentes em nossa história.
E essas práticas, que são marginalizadas pela sociedade, foram ganhando espaço em meio à
busca pelo prazer. E ao passar por diversos séculos, foram se revestindo e ganhando novos
significados, onde o homem/mulher ¨puderam¨ reinventar o prazer, onde muito passou a ser
¨permitido¨, comercializado e buscado, em um nova estrutura sexual que nos dias de hoje, ganham
destaque.
E o que se pode dizer e compreender sobre essa nova estrutura sexual? Será que essa nova
estrutura existe? Os agentes em questão, se automarginalizam? E a sociedade, está pronta para
comportar tais exercícios carnais de forma bestializada?
Então, é de suma importância a análise da história da sexualidade, algo está tomando a
atenção de diversos historiadores que buscam estudar tal polêmico assunto da história cultural. E o
objetivo principal de nosso estudo, é discorrer sobre os caminhos que tomaram as práticas sexuais.
Mas, para que isso possa ocorrer de maneira satisfatória, precisamos recorrer aos estudos já
existentes de outros autores que analisam como assunto. No meu caso, além de pesquisar sobre o
estudo de sociólogos e outros historiadores, aprofundei minhas leituras no que dizia Michel
Foucalt2, filósofo francês, atentando para o seu discurso em relação às práticas sexuais. Assim, ao
ler algumas das suas obras, melhor pude compreender como podemos tratar sobre esse tão
polêmico, que toma atenção de diversos estudiosos e leigos na nossa atualidade.
_________________________
2
Michel Foucalt (1926-1984) foi um filósofo francês que escreveu diversas obras. Ente elas, a
História da Sexualidade, que dividida em três obras, não foi concluída devido a sua morte. Os
estudos de Foucalt se situam dentro de uma filosofia do conhecimento, onde também trata os
dispositivos da loucura e da sexualidade.
Tratar de assuntos relacionados à sexualidade nos remete a diversos momentos da história.
Momentos que podem ser distintos, mas que por vez, também possuem muitas semelhantes.
Semelhanças estas que estão principalmente descritas quando
falamos das perseguições e
marginalidades que sofreram os que estavam ¨fora¨ dos costumes tradicionais que remetiam ao
sexo, apenas uma prática que deveria ser relegada a reprodução.
Então, como se deu/dá a sexualidade em meio a tantas limitações? Será que, mesmo em uma
sociedade que se auto intitula pós-moderna, é possível se conviver com ações que nem sempre
foram aceitas pela comunidade. O que devemos fazer para derrubar os preconceitos e ultrapassar as
60
barreiras da ignorância? Qual o nosso real papel como sujeitos que exercem atividades renegadas
pelos demais?
A prostituição e a soudomia, tanto quanto o prazer feminino, foram perseguidos por muito
tempo. E nessa perseguição, as pessoas que exerciam tais práticas eram ridicularizadas e diminuídas
em meio a sociedade, pois por muito, o ato sexual aceito e permitido, era apenas entre homem e
mulher, com vista apenas e unicamente voltado para procriação. Ou seja, o ato sexual, estava
limitado apenas a heterossexualidade, com o único intuito pro-criativo, e relegado apenas dentro da
instituição matrimonial, o casamento.
A prostituição, que desde as épocas mais remotas, era praticada, manchava o corpo da
mulher e da família a qual ela pertencia. Na Idade Média, as prostitutas viviam história de miséria,
pobreza, mas também de liberdade. Pois muitas mulheres, viam na prostituição, o encontro com a
liberdade e, em muitas casos, possuíam até mesmo certa influência, quando levamos em
consideração a história das cortesãs e cafetinas.
Com o passar do tempo, a prostituição continuou marginalizada, porém, encontrou novas
forma de comercializar o prazer. E essas novas formas, destacam a vida das mulheres que praticam
tal ¨atividade comercial¨. Na atualidade, por exemplo, a miséria não é a única base que leva as
mulheres ao tão chamado no passado, meretrício. Hoje, encontramos mulheres cultas, estudadas,
saudáveis, de boas famílias, e que em alguns casos, de situação financeira agradável, que se
prostituem e investem na profissão, presentes em cursos superiores, de idiomas, e realizando
viagens internacionais. Assim como a Marquesa de Santos, são o braço direito de políticos,
empresários, e homens influentes na sociedade. Ao contrário do passado, não são vistas como
portadoras de doenças, mas sim como belas moças que acompanham executivos em jantares, e
reuniões, etc.. E distintamente do que acontecia na Idade Média, eles não andam ao lado de
mendigos. E sim usam roupas de grife, e estão sempre ao lado de seus clientes, atendendo pelo
nome de garotas de programas.
Os sodomitas, homossexuais, frescos3, ou rapazes alegres e delicados, percorreram
caminhos onde eram vistos como aberrações, doentes, anomalias e outros absurdos. Essas
concepções, foram fomentadas pela religiosidade e por pessoas que viam essas práticas como
aversões amorais que denegriam as instituições familiares e a sociedade. Daí, o preconceito ganhou
mais espaço em meio à busca pelo prazer. E diferentemente de Roma, o amor entre iguais passou a
ser combatido e visto como distorção sexual.
Já no cenário atual, os homossexuais tentam limpar a sua ¨mancha¨ com um certo glamour.
Na contemporaneidade, homens e mulheres reescrevem a história daqueles que foram imensamente
perseguidos em séculos anteriores. Quero dizer que, não é que o preconceito acabou. Mas em
relação ao passado, ele diminuiu em índices consideráveis, se levarmos em consideração o espaço
61
que os gays conquistaram, em aspectos políticos, sociais e econômicos. As movimentações
públicas, o direito de casamento_ contrato de união estável_ em alguns países, os projetos em
congressos aprovados, são algumas dessas conquistas. No entanto, muito ainda falta a se conquistar
no tocante ao respeito, direito e igualdade.
Nesse cenário contemporâneo, as figuras dos travestis também ganham destaque e muita
beleza no universo do homem que se tornara mulher. Em mais um capítulo da história sexual, os
travestis, ou transexuais, ao se transformarem em outro gênero, nasciam de novo, assumindo outra
identidade e outra maneira de se portar e se representar. E o que há de novo nos dias de hoje, é a
circulação desses personagens em forma de ¨bonecas¨ ou ¨cinderelas¨, em intensa relação com a
sociedade abrangente. E assim, não precisa mais se esconder na escuridão da noite. Equilibrando-se
em saltos altos, essa nova ¨mulher¨ ganha os espaços sociais, e em alguns casos, o respeito de
familiares e de toda sociedade.
E o espaço em programas de TV, começa a atrair o tino artístico que esse personagens
carregam na veia. Fenômenos como Rogéria, Eloína, Laura de Víson
___________________________
3
Em seu livro, Attentados ao pudor: estudos sobre as aberrações do instincto sexual, de 1814, José
Viveiros de Castro, Professor de Criminologia na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro
empregou, pela primeira vez, um termo pejorativo: fresco.
Patrício Bisso e Roberta Close preenchem os quadros televisivos que exploravam a apresentação
de transformistas e abriam espaço para os futuros artistas ¨transgênicos¨ que enchiam de brilho das
telas de TV das casas de famílias.
E assim, porque não dizer, que ao se transformar em mulher, é buscar sua satisfação sexual.
Ao se olhar no espelho, travestis não se vêem como homens, mas através de maquiagens e trejeitos
femininos, se reafirmam como um novo ser, que satisfeito por possuir um corpo condizente com
seus desejos sexuais, se satisfaz não apenas pelo coito, mas também pelo simples prazer em sentir
em si mesmo, o corpo que a o satisfaz e que permite que, exerça o seu desejo sexual.
O termo ¨homossexualismo¨ já não é mais aceito por historiadores, médicos, e sociólogos.
O novo termo em questão, é homoafetividade, que não causa um mal-estar como o
homossexualismo, tão utilizado pela sociedade que denigre a prática ou que simplesmente que
desconhece o seu significado. Esse termo, infelizmente, só é visto apenas entre estudiosos que
analisam a relação sexual e amorosa entre agentes do mesmo sexo. Por isso, propagar nos dias
atuais a real relação vivida por pessoas do mesmo sexo, é de imensa importância sociológica, para
combater o preconceito que jamais coube aos que amam sem levar em consideração as instituições
morais que a religião e sociedade pregaram.
62
E por falar em preconceito, não apenas as prostitutas _raparigas, putas, pejorativamente
falando_ ou os homossexuais, são vítimas desse mal. Outras pessoas que possuem comportamentos
vistos como imorais pela maioria da sociedade, também são denegridos pela prática sexual que
praticam. Nesse instante, podemos citar o Onanismo_ coito entre indivíduos heteressexuais que se
densenvolve naos regiões erógenas e eróticas da mulher_, Feitichismo_ realização do prazer sexual
pelo contemplação de peças íntimas que tenham estado em contato com genitálias_, Sadismo_
prazer sexual decorrente da excitação do indivíduo por lesões corporais ou até pela morte do
parceiro ou de outra pessoa que esteja participando do ato sexual_,
Masoquismo_ forma de
sexualismo desenvolvido por homem ou mulher que só lhes levam ao orgasmo se lhe forem
provocadas algum tipo de violência_, Narcisismo_ prazer sxual apenas pelo fato de se observar
órgãos eróticos, órgãos e regiões do próprio corpo_, Bestialismo_ relações sexuais com animais_,
Sexualismo instrumental_ relação sexual com objetos que imitem órgãos sexuais, como bonecos
infláveis_, e a Masturbação_ do latim manus (mão), stuprare (roubar), a masturbação independente
da relação sexual, desenvolve-se na fase da puberdade e mais raramente na fase da pré-puberdade e
na infância. É mais nos meninos que nas meninas._ A masturbação do indivíduo só se desenvolve
por ação da psique, que imagina ou olha uma figura sexual e cria a fantasia de estar em coito com o
imaginário.
Dentre tantas práticas sexuais destacadas, ainda existem outras diversas, que podem ser
estimuladas por algum tipo de desvio mental ou emocional, ou simplesmente
pelo o indivíduo possuir um desejo sexual diferente dos mais praticados por nossa sociedade.
Assim, quanto mais ¨bizarra¨ a prática, mais marginalizada ela é.
A sociedade vive desde o século XVIII, com a ascensão da burguesia, uma fase de repressão
sexual. Nessa fase, o sexo se reduz a sua função reprodutora e o casal procriador passa a ser o
modelo. O que sobra vira anormal, é expulso, negado e reduzido ao silêncio. Mas a sociedade
burguesa_ hipócrita_ vê-se forçada a algumas concessões. Ela restringe as sexualidades ilegítimas a
lugares onde possam dar lucros, como nas casas de prostituição e hospitais psiquiátricos. A
justificativa para isso seria que, em uma época em que a força de trabalho é muito explorada, as
energias
não
podem
ser
dissipadas
nos
prazeres.
Certo?
Segundo Foucault, está quase tudo errado. A hipótese descrita acima é chamada por ele de
hipótese repressiva e vem sendo aceita quase como uma verdade absoluta. Mas Foucault descontrói
esse pensamento e formula uma nova e desconcertante hipótese, mostrando a seus leitores que ainda
que certas explicações funcionem, elas não podem ser encaradas como as únicas verdadeiras, pois,
segundo ele, a verdade nada mais é do que uma mentira que não pode contestada em um momento.
A Igreja Católica, com a Contra-Reforma, deu início ao processo de incitação dos discursos
sobre sexo ao estimular o aumento das confissões ao padre e também a si mesmo. As "insinuações
63
da carne" têm de ser ditas em detalhes, incluindo os pensamentos sobre sexo. O bom cristão deve
procurar fazer de todo o seu desejo um discurso. Ainda que tenha havido uma interdição de certas
palavras, esta é apenas um dispositivo secundário em relação a essa grande sujeição, é apenas uma
maneira de tornar o discurso sobre sexo moralmente aceitável e tecnicamente útil.
Em um mundo onde o sexo foi proposto por costumes e moralidades para ser utilizado
apenas como intermediação pro-criativa, o seu exercício fora do matrimônio ou entre pessoas do
mesmo sexo, causa revolta entre aqueles que defendem a forma tradicional pela qual a sexualidade
¨deveria¨ seguir. E assim, práticas tão distintas causam recusa não apenas por suas novidades, mas
também por chocarem àqueles que mais conservadores e que consideram certas formas de busca
pelo prazer, verdadeiras anomalias humanas.
O meu papel, nesse trabalho, não é o de acusar ou defender as práticas sexuais. Porém, o
meu intuito, é de analisar e compreendê-las, como exercícios que têm como objetivo o prazer, e não
doenças tão classificadas pela classe médica. Afinal, não podemos deixar de lado a participação dos
conceitos médicos e higienistas que também sempre estiveram presentes no ataque a determinadas
práticas. Principalmente, quando se tratava do coito com prostitutas. Que por se não bastar serem
vistas como mulheres de vida fácil, eram apontadas como portadores de diversas doenças.
O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico, o controle familiar,
que aparentemente visam apenas vigiar e reprimir essas sexualidades periféricas, funcionam, na
verdade, como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. "Prazer em exercer um poder que
questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; prazer de escapar a esse poder. Poder
que se deixa invadir pelo prazer que persegue - poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de
escandalizar, de resistir." Prazer e poder se reforçam.
Michel Foucault constrói, portanto, uma nova hipótese acerca da sexualidade humana,
segundo a qual esta não deve ser concebida como um dado da natureza que o poder tenta reprimir.
Deve, sim, ser encarada como produto do encadeamento da estimulação dos corpos, da
intensificação dos prazeres, da incitação ao discurso, da formação dos conhecimentos, do reforço
dos controles e das resistências. As sexualidades são, assim, socialmente construídas. Assim como a
hipótese repressiva, é uma explicação que funciona. Cada um que aceite a verdade que mais lhe
convém. Ou invente novas verdades.
A contribuição desse autor francês, levou diversos historiadores a melhor analisar as práticas
sexuais que se alternavam em meio a história. Levando em consideração, não apenas as suas
práticas, como também as causas e conseqüências que as rodeavam, e suas demais relações com o
eu e o outro. E essa contribuição, que esteve presente em três volumes de sua História de
Sexualidade, como também em A Ordem do Discurso, orientou estudiosos na pesquisa e estudos
dobre a sexualidade humana, dando um olhar ao que se fez em nome da busca pelo prazer.
64
A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em
nosso usufruto deste mundo. A sexualidade é algo que nós mesmos
criamos - ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de
um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com
nossos desejos, através deles, se instauram novas formas de relações,
novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma
fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa.
(Michel Foucalt)
E assim, a sexualidade começa a ser revista por estudiosos e por praticantes, que passam a
perceber que certas práticas não são oriundas de deformações humanas, mas simplesmente
resultados de desejos que acompanham a história genética ou cultural de um determinado indivíduo.
E hoje, o sexo é visto não só como algo que deve ser praticado por amor ou por desejo. Mas
também, por dinheiro! Exatamente, a prostituição ganhou maiores proporções, e o sexo pago, mais
destaque. Na nova roupagem do sexo. Tudo é válido. E os indivíduos não aceitam mais ser
marginalizados pelas escolham que fazem.
Portanto, devemos contribuir para uma melhor aceitação do sexo, seja ele por amor, desejo
ou dinheiro... seja ele visto não com maus olhos, mas como algo que é vivido de formas diferentes,
de acordo com o ser próprio, segundo a maneira que sentimos vontade, ou prazer
BIBLIOGRAFIA
MORAIS, Dustan Vasconcelos de. Faculdades do Sexo: Corpo e Espírito. Recife. Ed Bagaço,
2002. 267 p.
PRIORE, Mary Del. História do Amor no Brasil. São Paulo. Ed. Contexto, 2006, 2ª edição. 330 p
SILVA, Hélio R. S. & Florentino, Cristinha de Oliveira. A sociedade dos travestis: espelhos,
papéis e interpretações. Sexualidades Brasileiras. Richard Parker e Regina Maria Barbosa
(orgs.). Rio de Janeiro. Ed Relume-Dumará. 1996 14 p.
65
MURARO, Rose Marie. Os seis meses em que fui homem. Rio de Janeiro. 4ª edição. Ed. Rosa dos
Tempos. 1991.
FOUCALT, Michel. História da Sexualidade. O uso dos prazeres. Trad. Rio de Janeiro. Ed Graal,
1984.
66
NO SERIDÓ DOS SETECENTOS...
ASPECTOS EDUCACIONAIS DA INFÂNCIA COLONIAL
Ieda Silva de Lima.
Graduanda de Pedagogia.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES.
Profª Drª Tânia Cristina Meira Garcia.
Professora titular do Departamento de Estudos
Sociais e Educacionais – DESE.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN/CERES.
As informações que se tem, hoje, sobre infância, a qual leva em conta as características do
mundo infantil com explicações sobre as suas descobertas, seus hábitos, suas linguagens e formas
expressivas resultada de estudos bastante recentes na história social.
No ocidente, “até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não
tentava representá-la. [...]”. Segundo Philippe Ariès, “a descoberta da infância começou sem dúvida
no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos
séculos XV e XVI” (ARIÈS, 2006, p. 28). Entretanto, no século XVIII,
[...] não havia [...] uma idade fixa para delimitar a infância [...], porém,
havia um período em que as crianças eram consideradas ‘menores’, sendo
definidas como os que não chegam aos anos da puberdade, os quais nos
homens são os quatorze, e nas mulheres os doze (VAINFAS, 2000, p. 306).
Com relação ao desconhecimento existente sobre a infância, um contemporâneo do século
XVIII chegou a afirmar:
Não se conhece absolutamente a infância: com base nas falsas idéias que
temos dela, quanto mais se avança, tanto mais se erra. Os sábios baseiam-se
naquilo que o homem adulto precisa saber, sem considerar aquilo que a
criança tem condição de aprender. Procuram sempre o homem na criança,
sem pensar naquilo que ele era antes de ser homem [...] (ROUSSEAU apud
MANACORDA, 1992, p. 243).
Contudo, com o passar dos anos, se buscava conhecer e entender cientificamente o
universo infantil. Maria Beatriz Nizza da Silva, assim, caracteriza a infância na América
Portuguesa:
67
Do nascimento até aos 3 anos de idade, temos uma primeira infância
caracterizada apenas biologicamente pelo facto de a criança ser alimentada
com leite humano, da mãe ou de ama; dos 4 aos 7 anos decorre a segunda
fase em que a criança acompanha a vida do adulto sem nada lhe ser exigido
em troca, nem trabalho, nem cumprimento dos deveres religiosos, nem
estudo [...]. Depois dos 7 anos, menino podia freqüentar a aula régia de
primeiras letras ou ir trabalhar à soldada em casas de alguém ao mesmo
tempo que aprendia um ofício. Quanto à menina, certamente começava
ajudar nas lides domésticas, podia aprender a costurar e bordar e raramente
tinha em casa algum clérigo ou preceptor que lhe ensinasse a ler, escrever e
contar (SILVA, 1993, p. 13).
A autora define, então, três fases que simbolizam a vida infantil: na primeira (de 0 aos 3
anos) e na segunda infância (dos 4 aos 7 anos) a família não fazia tantas distinções na maneira de
criar os filhos, pois, os cuidados, zelos e educação doméstica seriam praticamente os mesmos tanto
aos meninos quanto às meninas. Vale salientar que “[...] a criação dos filhos, até os 3 anos de idade,
estava a cargo das mães ou amas, daí para frente a questão dos ‘alimentos’, como então se dizia,
competia claramente aos pais” (SILVA, 1993, p. 16).
Por volta dos 7 anos começava a se configurar uma nova fase na vida infantil, quanto à
instrução, donde os universos feminino e masculino se separariam conforme as supostas
aprendizagens mais cabíveis para cada gênero. Certamente, como forma de prepará-los para a vida
adulta. Daí a preocupação familiar de instruí-los para tanto; seja através de uma instrução inerente
às primeiras letras, um ofício ou, simplesmente, voltada para a formação pessoal quanto aos valores
morais e comportamentos afins que despertavam, portanto, a respeitabilidade social.
Dos menores da Ribeira do Seridó
Os inventários que subsidiam este estudo trazem algumas indicações a respeito das idades
dos sujeitos-órfãos da Ribeira do Seridó. Na referida documentação, as idades variavam, com
relação à menoridade, de “trinta e tantos dias35” aos 25 anos de vida.
Durante a menoridade, se estabelecia a educação, sobretudo, no seio familiar através do
ensino das primeiras letras ou, rotineiramente, das regras de sociabilidade e doutrinação cristã.
Dos inventários que se pôde trabalhar, foram coletadas informações de dezoito
documentos e, desse total, têm-se dez (cerca de 55%) trazendo referências à educação dos órfãos.
Esta, em sua maioria, está descrita de modo que apresenta um sentimento de zelo familiar
caracterizado pela demonstração de poder, de administração e de regência sobre os menores, cuja
35
Inventário de Maria Francisca da Apresentação (1799).
68
expressão “doutriná-los e ensinar os bons costumes36” é a que melhor representa aquele tipo de
assistência educativa.
No geral, o zelo familiar se manifestava através dos cuidados com a educação concedida
aos filhos “[...] para os doutrinar [...] emsignar [ensinar] em tudo ao Servico [serviço] de Deos,
Nosco Senhor, e aos bons costumes [...] e pollos em boa guarda37”. Esses são aspectos educativos,
que aludem às regras de sociabilidade e afetividade, necessários a formação destes sujeitos e
exigidos pelo espaço social vivido.
A freqüência de informações quanto aos aspectos educativos já citados em torno de 55%
se materializa em expressões encontradas, principalmente, nos Termos de Tutoria e/ou Autos de
Contas que trazem, em súmula, as obrigações dos tutores: “educando as [...] regendo”, “zelando e
beneficiando os bens [...] educando-os ditos orfãos”, “educando os administrando e regendo os
bens”, “doutrinar [...] ensinar em tudo ao servico de Deos”, “doutrinar e rege los e po los em boa
guarda” e “doutrinar e incinar bons costumes [...] reger e po-los em boa guarda [e] educação38”.
Interpretados estes elementos segundo a criticidade de hoje, século XXI, poder-se-ia
considerar uma possível afirmação do pátrio poder via o papel mediador que exerce a educação
familiar cujo amparo legitimador encontra-se nas prerrogativas de cunho sócio-judicial de afirmá-lo
por intermédio de vocábulos de ordem imperiosa, tais como “regendo”, “administrando” e
“doutrinar”, presentes em quase 100% dos inventários que citam a educação/instrução de menores
de idade. Sendo assim a tradição pontua a vivência do cotidiano setecentista via bases jurisdicionais
as quais subsistem fundamentadas no costume, em cujo teor cai bem o termo educação na acepção
de procedimento relativo à conduta tutelar, tomado como aquilo que deveria se cumprir, do que um
processo de constituição da índole do órfão em formação.
Ademais pela porcentagem significativa de 55% de documentos39, percebe-se que, na
criação dos filhos, havia a certeza de, por meio da educação, formar suas condutas morais e
procedimentos afins mediante aprendizagens dos preceitos da doutrina cristã e das normas de
sociabilidade definidas como “bons costumes” estabelecidos na referida regência e doutrinação. Isto
era o grande quinhão que os pais e tutores deixariam aos descendentes.
Configura-se, neste cenário, uma educação familiar que utiliza os preceitos religiosos e
valores sócio-morais para definir os contornos da criação dos filhos. Tais contornos se
apresentavam nos aspectos ressaltados relativos às condutas sócio-morais apreciáveis cujos
ensinamentos remetem à doutrinação concedida pela família, assim como através da instrução
letrada dos menores.
36
Expressão encontrada em alguns inventários.
Inventário de Martinho Soares de Oliveira (1798).
38
Expressões encontradas nos inventários como correspondentes aos 55% da educação concedida aos órfãos menores.
39
Cujo teor alude à educação de órfãos de ambos os sexos.
37
69
As aprendizagens, caracterizadas no exercício da instrução, se apresentaram efetivamente
na vida de alguns de nossos órfãos, em média, por volta dos 9 anos para as meninas e aos 12 para os
meninos. Para exemplificação, podem ser citados dois inventários: o de Ignacio da Silva de
Mendonça (1754) apresenta uma órfã que aos 9 de idade “[era] instruida nos bons costumes e ja
sendo costureyra40”, e o de João Ferreira Godinho (1799) afirmando que quando o órfão Antônio
tinha 12 anos já sabia “ler [...] escrever e a Doutrina Cristã41”.
Observe que a educação se apresentava tanto na aprendizagem de um ofício e/ou das
primeiras letras quanto instruindo os órfãos na doutrina cristã. Assim, percebendo-se quão forte
eram os preceitos religiosos nas vivências destas famílias, os quais regiam sua organização social.
Em relação às aprendizagens femininas tem-se a referida órfã sendo “instruida em boas
[bons] costumes e ja sendo costureyra [...]42[grifo nosso]”.
Certamente, tal ofício lhe foi ensinado por se tratar de um dos ministérios de mulher e
pertencer, deste modo, aos predicados de sua educação.
Voltava-se às mulheres um cuidado especial somente para o aprendizado
das prendas domésticas. E, quando muito, alguns rudimentos de conteúdo
escolar. Se o ensino para a clientela masculina já era acanhado e
insuficiente, a instrução feminina era a mais superficial possível, devido em
grande parte aos recatos da época (MACÊDO, 2005, p. 96).
Portanto, a órfã estava sendo preparada para assumir as responsabilidades femininas de
uma casa, pois, sabia o ofício da costura que seria utilizado para manutenção de seu lar e “os mais
ministerios de mulher43” os quais, se necessários, auxiliariam também na subsistência dessa família.
A respeito da instrução letrada de órfãos do sexo masculino, apresentamos os três
documentos44: dois afirmando que os menores sabiam ler, escrever e contar e outro documento
trazendo um pai/tutor que alegava “[...] o orfão [...] não sabe ler nem escrever por falta de Mestre no
lugar [...]” de morada, evidentemente.
A quantidade encontrada de órfãos que tiveram acesso às primeiras letras é a seguinte:
dois meninos no inventário de Martinho Soares de Oliveira (1798) e um no de João Ferreira
Godinho (1799).
Podem-se ver trechos das receitas dos mesmos, em seus Autos de Contas, donde os tutores
afirmam o estado em que se encontravam e relatam suas respectivas instruções.
No inventário de Martinho Soares de Oliveira (1798), tem-se:
40
Inventário de Ignacio da Silva de Mendonça (1754).
Inventário de João Ferreira Godinho (1799).
42
Contas da órfã Luiza, inventário de Ignacio da Silva de Mendonça (1754).
43
Inventário de Ignacio da Silva de Mendonça (1754).
44
São eles: inventário de Martinho Soares de Oliveira (1798); o de João Ferreira Godinho (1799) e o de Maria
Francisca da Apresentação (1799).
41
70
Receita Martinho
[...] pelo estado deste orfao declarou que o orfao sabe ler [...] escrever e
contar e esta em companhia de sua mae com boa educaçam [grifo nosso].
Receita Francisco
[...] que o orfao sabe ler e contar e esta [está] em companhia se sua mai
[mãe] com boa educaçam [grifo nosso].
No inventário de João Ferreira Godinho (1799), há:
Receita Antonio
E perguntado pelo dito Juiz no dito tutor, pelo estado deste orfão, declarou
ser vivo, e estar em companhia de sua mai, e que sabe ler [...] escrever, e a
Doutrina Cristã [grifo nosso].
No inventário de Maria Francisca da Apresentação (1799) também há referências à
instrução de menores do sexo masculino, contudo acerca da ausência desta forma de educação para
a leitura e para a escrita. No referido documento, inquirido pelo Juiz, o pai/tutor declara: “e
perguntado pelo estado deste [s] orfao [s], declarou estar [em] em sua companhia, e não sabe [m] ler
nem escrever por falta de Mestre no lugar e sabe [m] a Doutrina Christan45”.
Sobre os demais filhos, desta inventariada, encontram-se informações em suas respectivas
receitas/despesas:
Orfão Joaquim
E perguntado pelo estado deste orfao declarou que sahira de sua
companhia, e não sabe aonde está,
Orfa Florencia
E perguntado ao tutor pelo estado desta orfa, declarou que se axa casada
com Miguel Alves de Souza.
Orfa Maria
E perguntado ao tutor pelo estado desta orfá declarou estar em sua
companhia e sabe a Doutrina Christã, coser, e fazer renda [grifo nosso].
45
Isto vale para as receitas dos órfãos João, Manoel e Antonio que estão no Inventário de Maria Francisca da
Apresentação (1799).
71
Orfa Francisca
Declarou o tutor não ter feito dispesa alguma con esta orfá dos bens de sua
legitima.
Tomando somente este inventário como exemplo se percebe que a instrução ministrada
aos meninos era diferente da concedida às meninas. Baseada no respeito às diferenças de gênero
segundo aprendizagens consideradas mais adequadas para um sexo do que para outro, cuja
transmissão, no seio familiar, ficaria a cargo dos responsáveis pelos órfãos ou dos induzidos para
tanto caracterizados na figura de um mestre. Mas quanto à doutrinação e os bons costumes
despendidos na educação, a regra de aprendizagem era a mesma para ambos os sexos que se
formavam adultos sob os dogmas cristãos cultuados pela família.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de
Janeiro. LTC: 2006.
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A penúltima versão do Seridó: uma História de
Regionalismo Seridoense. Natal: Sebo Vermelho, 2005.
MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias. Trad.
Gaetano Lo Monaco. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1992.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida Privada e Quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e
D. João VI. 2. ed. Lisboa: Editora Estampa, 1993.
VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva,
2000.
72
ARQUEOLOGIA E TURISMO: UMA PERSPECTIVA DE PREVENÇÃO.
Washington Fonseca Marques46
Anderson Adailson da Silva47
A arqueologia pode ser definida, segundo o autor Pedro Paulo de Abreu Funari, como “[...]
uma ciência que estuda os sistemas socioculturais, sua estrutura, funcionamento e transformações
com o decorrer do tempo, a partir da totalidade material transformada e consumida pela sociedade”
(FUNARI, 1988, p. 9). Ainda na visão do autor: “a Arqueologia nos tem nos últimos anos, alargado
seu campo de ação para a cultura material de qualquer época, passado e no presente”, ou seja, “a
arqueologia estuda diretamente, a totalidade material apropriada pelas sociedades humanas, como
parte de uma cultura total, material e imaterial, sem limitações de caráter cronológico” (FUNARI,
1988, p. 10-11). Um exemplo desta perspectiva encontra-se na etnoarqueologia, que é o estudo dos
comportamentos e padrões culturais de grupos étnicos atuais (indígenas, negros, caiçaras etc.),
buscando compreender, através da observação do presente, a maneira como os vestígios, ou seja,
achados materiais foram utilizados.
Os sítios arqueológicos são bens patrimoniais da nação, geralmente, locais onde são
encontrados vestígios materiais de povos antigos ou extintos. Ambientes frágeis, bastante
vulneráveis às ações predatórias, os sítios arqueológicos resguardam um patrimônio cultural de
valor incalculável.
No Brasil, grande parte dos sítios arqueológicos é descoberta em áreas ocupadas por
populações humanas. Os habitantes dos arredores desses locais podem, em alguns casos, ser
beneficiados com a preservação ambiental e patrimonial, com a geração de empregos em atividades
ligadas ao turismo e com o desenvolvimento sustentável e até com a construção de uma nova
identidade cultural. Segundo Dóris Ruschmann, o Turismo de massa representa um momento de
expansão do fenômeno, ocasionando um aumento do número de pessoas que o vivenciam, passando
das elites às classes médias. Essa questão é observada pela autora: “[...] o Turismo já não é uma
prerrogativa de alguns cidadãos privilegiados; sua existência é aceita e constitui parte integrante do
estilo de vida para um número crescente de pessoas em todo o mundo” (RUSCHMANN, 2000, p.
13). No entanto, o turismo não possui apenas um grande significado econômico em muitos casos,
sendo fonte de renda e de divisas, mas também exerce um impacto relevante sobre a cultura e o
46
Graduando em História - Licenciatura Plena pelo Centro de Ensino Superior do Seridó/ Campus de Caicó, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
47
Graduando em Geografia-Licenciatura Plena, pelo Centro de Ensino Superior do Seridó/ Campus de Caicó, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
73
espaço (natural e social) da área receptora dos turistas. O Turismo Arqueológico ou Arqueoturismo
constitui-se a partir da associação entre o Turismo e a Arqueologia. Seus atrativos turísticos são
compostos por vestígios arqueológicos, ou seja, toda representação e “indícios da presença ou
atividade humana” segundo remanescentes em sítios arqueológicos pré-históricos e/ou históricos
(PROUS, 1992, p.25).
Define-se que o Turismo Arqueológico:
Consiste no processo decorrente do deslocamento e da
permanência de visitantes a locais denominados sítios
arqueológicos, onde são encontrados os vestígios
remanescentes de antigas sociedades, sejam elas pré-históricas
e/ou históricas, passíveis de visitação terrestre ou aquática
(MANZATO, 2005, p.44).
Segundo Margarita Barretto, essa atividade abrange “todo turismo em que o principal
atrativo não seja a natureza, mas algum aspecto da cultura humana e esse aspecto podem ser a
história, o cotidiano, o artesanato” (BARRETTO, 2000, p.16). Para Beni, estes diversos aspectos da
cultura humana fazem com que o Turismo Cultural apresente desdobramentos como o Turismo
Arqueológico (BENI, 2001, p.86).
Os achados48 arqueológicos são utilizados em museus e universidades para fins de estudos
do Homem pela sociedade em geral. Os sítios arqueológicos mais problemáticos para estudo são
aqueles descobertos em escavações de salvamento, quando a existência de obras de construção
(barragens, rodovias, edifícios) impede uma análise mais acurada dos vestígios. É normal que uma
escavação arqueológica atraia os curiosos para o local da escavação onde o material é retirado.
Logo após a escavação, o material é estudado pelos arqueólogos, que são especialistas em retirada
desse material. Geralmente, quando acontece de uma pessoa não especializada retirar esse material,
o contexto do mesmo se perde e fica inviabilizado de se estabelecer uma possível realidade para o
objeto removido, tudo isso acontece por não haver um controle imediato, que acaba por danificar o
sítio e os achados.
A danificação dos sítios arqueológicos em muitos casos acontece devido ao excesso de
pessoas “turistas” no local onde está sendo feita a escavação, sendo que as visitações desenfreadas a
esses sítios acabam impactando o meio ambiente e danificando os vestígios arqueológicos que, por
sua vez, vão perder completamente o seu significado.
Isso desperta interesse de terceiros que utilizam os sítios para fins lucrativos com controle
turístico incorreto, esse acontecimento se deriva devido a não haver um Turismólogo e um
profissional do ramo arqueológico trabalhando em conjunto pela preservação do sítio. É pela falta
48
No texto entendemos achados por objetos encontrados em conjuntos (Morberg, p. 47, 1968).
74
desses profissionais que ocorrem visitações com um grande número de pessoas (turistas). As
pessoas, por falta de uma conscientização antes de sua visita e má orientação por parte de seus
administradores, que permitem assim uma grande demanda de pessoas ao mesmo tempo no local
visitado, nesse caso, os sítios arqueológicos acabam sendo prejudicados pela presença do turismo de
massa, que também danifica os achados encontrados no local de escavação. Alguns procedimentos
podem ser tomados para não deteriorar o sítio arqueológico. Os mais comuns são evitar o uso de
máquina fotográfica com “flash” e proibir que artefatos sejam retirados do contexto de achado.
Estes só podem ser retirados pelo arqueólogo, mesmo assim, só depois de feita a catalogação e
mapeamento de onde estava esse achado. Sem isso, o contexto acaba se perdendo. Outro cuidado
muito comum é não molhar os sítios rupestres com água normal e só usar água destilada em casos
extremos ou deionizada, esse processo de molhar as artes rupestres também só pode ser feita por
pessoas especializadas (arqueólogo).
Partindo deste ponto de vista vimos através deste apresentar um modo de prevenção para o
patrimônio arqueológico embasado no turismo e desenvolvimento sustentável que, por sua vez, irá
beneficiar tanto o patrimônio (com a sua preservação), o turista (com seu embelezamento e
enriquecimento de seu conhecimento) e a população em geral (com o aumento da economia local).
Apontamos a necessidade de desenvolver estudos locais sobre os impactos ambientais causados por
uma exploração descontrolada e que não consiga garantir a longevidade do patrimônio, causando a
perda de uma fonte de renda e principalmente uma perda cultural, que afetará o conhecimento das
futuras gerações.
Os sítios arqueológicos são variados, englobando de sítios com arte rupestre, cerâmica,
dentre outros materiais lítico, que revelam uma importante questão: a de que os sítios necessitam de
um planejamento local anterior a sua disponibilização ao público, pois ambos precisaram e
precisam lidar com a questão da preservação. Dentre as soluções para ambos os casos, indica-se a
adoção de uma política de planejamento (curto, médio e longo prazo) que contemple os aspectos
físicos e culturais do sítio, seu entorno e especialmente o envolvimento da comunidade local nos
processos de decisão antes, durante e após a implantação do turismo.
REFERÊNCIAS
BARRETTO, M. Turismo e Legado Cultural: as possibilidades do planejamento. Campinas:
Papirus, 2000.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Editora Ática, 1988.
75
BENI, M. C. Análise Estrutural do Turismo. São Paulo: Editora SENAC, 2001.
MANZATO, F. Turismo Arqueológico: diagnóstico em sítios pré-históricos e históricos no Estado
de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Turismo). Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul,
2005.
MOBERG, Carl-Axel. Introdução à Arqueologia. Lisboa: Edições 70, 1968.
PROUS. A. Arqueologia Brasileira. Brasília: Editora UNB, 1992.
RUSCHMANN, Doris. Turismo e planejamento sustentável: A proteção do meio ambiente. 9. ed.
Campinas: Papirus, 2000.
76
“O MAR SEM FIM É PORTUGUÊS”: HISTÓRIAS E DESEJOS DE
FERNANDO PESSOA
Jossefrânia Vieira Martins
UFRN
Neste texto, buscamos refletir acerca da dimensão do mar na poesia de Fernando
Pessoa49 a partir do poema Mar Português. Entrecruzando história, espaço e literatura,
mergulhamos nas especificidades culturais portuguesas apresentadas pelo referido poeta. Afinal,
que particularidades histórico-culturais da nação lusitana estão denunciadas na seqüência poética de
o Mar Português? Como se sabe, esse poema de Fernando Pessoa é uma das partes que constitui a
sua obra Mensagem, carregada de historicidade, versa sobre a “fase apoteótica” da história de
Portugal (Grandes Navegações, Impérios Ultramarinos) e materializa nas páginas da história da
literatura portuguesa as influências do espaço marítimo na construção cultural dessa Nação.
O mar teria sido um elemento fundamental na fabricação do “ser português”, a
configuração do sujeito-nação foi pigmentado ao longo do tempo pela marca do mar, aquele que
cerca a costa portuguesa, que se perde no encontro de oceanos; o mar das Grandes Navegações que
levaram os portugueses ao conhecimento de “novos mundos” e costumes, novas possibilidades
comerciais, novos caminhos para transformar a pequena nação lusitana numa poderosa potência
mundial no advento do mundo moderno.
Todas essas propriedades do mar se condensaram historicamente na produção cultural
do sujeito português, nas suas potencialidades e infortúnios. O mar não foi somente um obstáculo
histórico ao sucesso lusitano, mas foi também contrariamente o seu alicerce. Tempestades,
monstros, perigos, imensidão, havia medo de desbravar o mar, havia incerteza, a conquista do mar
ocorreu acompanhada de sentimentos misturados, dor e alegria, desconhecimento e descoberta.
Assim, desde as Grandes Navegações dos séculos XV-XVI, o mar impregnou no
português a poética de seus trajetos, histórias e domínios. A memória consolida essa relação de
identificação do sujeito com o espaço (o mar) ao longo da história, das facetas, das peculiaridades
de cada época. O mar, no compasso dos séculos tornou-se um patrimônio português, uma relação de
pertença para além do sentido material, uma evocação categórica da sensibilidade portuguesa
condensada na alma. O mar conduziu o português à beleza e à firmeza de sua própria alma.
49
Fernando Antonio Nogueira Pessoa, foi um poeta português das primeiras décadas do século XX; um dos principais
expoentes do Modernismo português, liderou a revista Orpheu e publicou partes de sua imensa obra em outros
periódicos literários de sua época. É um dos maiores poetas do mundo, sua única obra publicada em língua portuguesa,
a Mensagem, iguala-se a’Os Lusíadas de Luís de Camões. É reconhecido ainda pelo fenômeno da heteronímia do qual
resulta a pluralização da autoria com a criação de várias personalidades literárias em torno de si.
77
No compasso da relação do mar com a nação e o sujeito lusitano, aportamos na
versificação desse misto de desejos e identificações na poesia de Fernando Pessoa. Neste caso, o
encontro entre a história e a literatura é o caminho para buscar compreender como diferentes
sujeitos significam histórico e culturalmente aos seus espaços. A história de Fernando Pessoa e de
sua obra constitui um jogo intenso entre o real e a imaginação. Considerado um dos maiores poetas
portugueses de todos os tempos ele foi um cidadão anônimo e um poeta incompreendido em sua
época. Deleitado sobre seus próprios pensamentos, esse português tão estranhamente estrangeiro
(BRÉCHON, 1999) submeteu à literatura portuguesa um novo olhar perante a vida, a arte, bem
como a questão da nacionalidade.
Poeta modernista, multifacetado pela heteronímia, ele mergulhou nas questões
nacionais, na história e nas particularidades da cultura portuguesa. Realidade e ficção se entrelaçam
na obra e na vida de Fernando Pessoa, como observa Leyla Perrone-Moisés (2001). Em função
disso, a literatura torna-se para Pessoa, a chave da compreensão de si mesmo no emaranhado da
relação sentimento e linguagem, através da heteronímia o poeta participa da luta pela mutação da
cultura portuguesa.
Mediante o contexto de sua época, o poeta se vê cidadão, se faz “português” e se
reconhece assim, mesmo nas horas de desapontamento. Fernando Pessoa foi um gênio que buscou
na literatura o esconderijo do alto-conhecimento e fez da história a imagética inspiração de seu
discurso nacional. Portugal, sua história e sua cultura tornam-se pigmentos que se esparramam
fortemente na literatura pessoana. E o mar como parte onipresente na construção do português e de
sua nação merece atenção em sua obra.
Mesmo tendo ficado reconhecido mundialmente por uma obra nacionalista, a
Mensagem, Pessoa viveu parte da infância e da adolescência em Durban na África do Sul com a sua
família, onde estudou e desenvolveu habilidade com a língua inglesa, e ao mesmo tempo, por
influência de seu padrasto, começava a conhecer um pouco da literatura da sua pátria através da
obra de Cesário Verde. De onde partiu então, o interesse de Fernando Pessoa pela história e a
cultura portuguesa? Como se deu o encontro apaixonadamente histórico entre Pessoa e o mar?
Há dois fatos relevantes no florescimento do interesse pela cultura portuguesa em
Fernando Pessoa, que são as suas viagens de férias a Portugal, respectivamente em 1901 e em 1905,
nesta última data, o poeta edifica-se efetivamente em Lisboa, onde viverá até o resto de seus dias. A
viagem de 1901 marca a redescoberta do lugar de origem para um jovem português até então
totalmente “inglesado” e assim no retorno a Durban já não é o mesmo. (BRÉCHON, 1999;
SEABRA, 1988).
O mar que divide nações, continentes e culturas apaixona o poeta na admiração da
travessia da África do Sul a Portugal, essa poética lhe será demasiado inesquecível, assim como o
78
contato com a língua portuguesa. A segunda viagem, realizada em agosto de 1905 demarca a
história de um retorno definitivo à nação de origem e, mais tarde em 1908, a adoção oficial a língua
portuguesa no esforço de construir a sua obra literária. Assim, resume Robert Bréchon (1999, p.
52), o significado desse retorno a Portugal para Pessoa:
A primeira experiência de um Portugal “revisitado” é, antes de mais nada, retorno
às origens: peregrinação familiar, imersão lingüística, reapropriação de um
patrimônio cultural em grande parte perdido, espelho em que um adolescente
inglesado reconhece de súbito sua própria lusitanidade.
Uma vez fixado definitivamente em Portugal, questões pátrias em seus mais diferentes
sentidos percorrem o interesse de Pessoa durante toda a sua produção literária, todavia é na sua
única obra publicada em língua portuguesa, pouco tempo antes de morrer, a Mensagem, que Pessoa
catalisa a dimensão histórico-cultural do mar na fabricação da nação e do homem português.
Mensagem foi um livro composto entre 1913 e 1934, a seqüência Mar Português, que
foi em seguida agregada como a sua segunda parte, teve sua publicação inicialmente na revista
Contemporânea em dezembro 1922. Como indicou, Carlos Felipe Moisés (1996), a matéria de que
é feita a obra Mensagem é fundamentalmente a alma portuguesa e, portanto o mar é um elemento
peculiar no seu discurso poético.
Na primeira parte de Mensagem, Pessoa apresenta a história da fundação do reino
português, a sua “fase de ascensão” através de personagens que segundo ele caracterizam
intensamente a alma portuguesa no sentido da coragem de enfrentar os percalços e o medo no
caminho da construção nacional, para isso reis, navegadores, conquistadores e elementos heráldicos
são mesclados na poesia pessoana. A segunda parte intitulada Mar Português narra a “fase
apoteótica” da história portuguesa e tem como protagonista o mar “tenebroso e ancestral”, porém
dominável.
Em síntese, no período de “ascensão” instaura-se a busca pela alma coletiva, enquanto
que no “apogeu” percebe-se a experiência de um sentimento comum que une a nação: as conquistas
ultramarinas simbolizadas pelo caminho marítimo. Assim, a formação da nacionalidade portuguesa
é simbolicamente retratada através das ressonâncias factuais emaranhadas temporal e
espiritualmente pela poética da alma portuguesa, que em pleno florescer do mundo moderno cingia
suas potencialidades através do encontro fatal com o mar, este, cenário intrínseco de sua construção
histórica, elemento inseparável de sua memória e cultura.
A seqüência Mar Português já havia sido publicada alguns anos antes e sofreu apenas
alguns retoques ao ser incorporada à Mensagem, característicamente “[...] lida com as grandes
viagens e com a amplidão marítima descortinada pelos portugueses no seu apogeu”. (MOISÉS,
1996, p. 50-51). O domínio dos mares fez de Portugal um Império de grandezas, “[...] na
79
Mensagem, o mar é apresentado como revalorização histórico-cultural de Portugal”. (DÉCIO, 2003,
p. 177). Portanto o elemento marítimo é colocado no sentido de revalorização, em uma discussão
histórico-crítica dos valores portugueses.
Os valores ressuscitados pela poética do mar na Mensagem, e especialmente em Mar
Português estão dimensionados em valores estéticos, filosóficos (sentido crítico social e humano) e
históricos. O sentido elegíaco está na relação travada entre os heróis, as instituições, os símbolos e
as aventuras no mar desconhecido. Como salienta Pedro Calafate (2006), é a “inteligência do
desejo” a inspiração para a construção do discurso nacional em Fernando Pessoa. E os portugueses
que realizaram a empresa marítima, aqueles que desafiaram os mares e seus monstros fizeram uso
da inteligência e da imaginação para tornar o desejo uma realidade, ou seja, inscrevê-lo na história
da nação como marca d’água viva na memória. Com efeito, representamos aqui a segunda parte de
Mensagem através de um dos mais emblemáticos e belos poemas seus, Mar Português (PESSOA,
1998, p. 64):
Ó mar salgado, quanto de teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
A transição da fase apoteótica para a fase de declínio se dá também nos limites do
espaço marítimo, através das gotas que formam esse imenso mar que um dia astutamente foi
português. Pessoa evoca os elementos que prenunciam a queda do Império português no poema A
Última Nau, que versa a última viagem marítima do mais desejado dos reis portugueses, D.
Sebastião. Este monarca que levou consigo, do mar português para o deserto mouro, os grandes
valores da alma portuguesa como a grandeza e o sonho abriu alas a marca da saudade no povo e na
cultura portuguesa. O rei não voltou e a nação se perdeu historicamente. O drama épico montado
por Fernando Pessoa está lançado: a nação dos mares (Portugal) precisa ressuscitar das profundezas
para ser novamente o “rosto do mundo”, para “ser tudo de todas as maneiras”.
A história portuguesa apresentada nos versos de Fernando Pessoa é grifada pelas
sensibilidades, pelos gestos que reuniram em torno da mentalidade portuguesa sentimentos tão
80
intrínsecos como a saudade, a dor, a esperança, o sonho e a grandeza. E o mar em sua dimensão
espacial e simbólica é um ingrediente indispensável na construção do “ser português”, das
sociabilidades, da cultura e da alma portuguesa seja na glória ou no infortúnio. Para Fernando
Pessoa, a conscientização cultural da nação portuguesa em sua época percorria cada português na
sublimação de tudo que lhe era mais caro e valioso: a alma. Essa chama que deu vida à história e a
cultura e que não se poderia calcular nos limites postulados do real, mas que se compreenderia em
toda a sua intensidade no âmago dos sonhos, da imaginação, do apego ao belo e invisível, pois a
história também é feita do que não se pode tocar, as sensibilidades.
Referências:
BRÉCHON, Robert. Estranho Estrangeiro: uma biografia de Fernando Pessoa. 2ª edição. Rio
de Janeiro: Record, 1999.
CALAFATE, Pedro. Fernando Pessoa: sermos tudo de todas as maneiras. In: ______. Portugal
como problema: século XX - os dramas de alternativa. V. IV. Lisboa: Fundação luso-americana,
Público, 2006.
DÉCIO, João. O mar na poesia de Fernando Pessoa. In: ______. Quatro autores da literatura
portuguesa: Luís de Camões; Eça de Queiroz; Fernando pessoa e Vergílio Ferreira.
Blumenau/SC: Edifurb, 2003.
MOISÉS, Carlos Felipe. Roteiro de Leitura: Mensagem. São Paulo: Editora Ática, 1996.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SEABRA, José Augusto. O heterotexto pessoano. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.
81
O NEGRO NA OBRA “O MOLEQUE RICARDO” DE JOSÉ LINS DO REGO
Ajanayr Michelly Sobral Santana
Patrícia Cristina Aragão (Orientadora)
UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
Relação Historia e Literatura
A relação entre Historia e Literatura é tema de debate entre os historiadores nos últimos
anos. Autor como Hayden Whiter estão no centro de uma polemica discussão que envolve aqueles
que defendem, em nome do realismo e da verosidade a total separação da literatura e da historia.
Pra estes “aos historiadores caberia a abordagem dos fatos e só aos escritores seria permitida a
ficção, entendida como invenção dos eventos que narra. A Historia teria como compromisso a
procura da verdade, a Literatura poderia ser fruto da pura imaginação” (ALBURQUERQUE; 2007:
44)
Esse debate começa na segunda metade do século XX em torno do caráter ficcional da
literatura e se esta pode ou não ser usada para a produção do conhecimento histórico. Essas
discussões goram em torno da legitimidade dos textos literários, as metodologias empregadas e nos
cuidados que os historiadores devem ter ao trabalhar estes documentos. Em Documento/
Monumento Le Goff afirma:
“O documento não é mais apenas o texto escrito, mas as representações que a
sociedade faz a seu respeito podendo ser captada sob varias formas de linguagem
– ilustrações, imagens, arquitetura, registros sonoros, entre outros, que a parti das
relações de forças que nela existiam, ganhou legitimidade de documento”. (LE
GOFF; 2003: 538-539)
Portanto, podemos entender que o texto literário é mais que um reflexo da sociedade, é um
produto social, da mesma que a escrita da Historia. Sandra Pesavento comenta que por intermédio
do dialogo entre essas duas disciplinas, a Historia se assume como narrativa e representação que
“recria o real passado” num sentido de reconstruir de forma fictícia o que teria ocorrido um dia.
Nesse sentido o “elemento fictício é controlado basicamente pelas fontes, sobre os quais a historia
vai trabalhar, resgatando indícios, cruzando documentos, recuperando um contexto e construindo
sua visão”. (PESAVENTO, 1999; 143-144). Fazendo essa comparação ela mostra a legitimidade
dos textos literários, e as possibilidades de se trabalhar com um texto literário.
82
O autor e sua obra
Jose Lins do Rego foi jornalista, romancista, cronista e memorialista; nasceu no Engenho
Corredor, Pilar, Paraíba, em três de Julho de 1901, e faleceu no Rio de Janeiro em 12 de setembro
de 1957. O mundo rural do Nordeste, com as fazendas e as senzalas e os engenhos, serviu de
inspiração para a obra do autor, que publicou seu primeiro livro Menino de Engenho em 1932. Jose
Lins do Rego convivia com um grupo de escritores muito especiais como Graciliano Ramos, (autor
de Vidas Secas), Rachel de Queiroz (autora de O Quinze), o poeta Jorge Lima, Aurélio Buarque de
Holanda, que foram seus amigos e dos quais teve grande influencia nas suas obra. Convivendo
neste ambiente tão criativo, escreveu os romances, Doidinho em 1933, e Bangüê em 1934. Em 1935
mudou para o Rio de Janeiro. Homem atuante participava ativamente da vida cultural de seu tempo.
A sua obra caracterizava-se, particularmente pelo extraordinário poder de descrição. Ele
reproduz no texto a linguagem do eito, da bagaceira, do nordestino tornando-se o mais legitimo
representante da literatura regional nordestina. Romancista da decadência dos senhores de engenho,
sua obra baseia-se quase toda em memórias e reminiscências. Seus romances levantam todo um
sistema econômico de origem patriarcal, com o trabalho semi-escravo do eito, ao lado de outro
aspecto importante da vida nordestina, ou seja, o cangaço e o misticismo. O autor destacou como
desejaria que a sua obra romanesca fosse dividida: Ciclo da cana-de-açúcar: Menino de engenho,
Doidinho, Bangüê, Fogo morto e Usina; Ciclo do cangaço, misticismo e seca: Pedra Bonita e
Cangaceiros; Obras independentes: a) com ligações nos dois ciclos: Moleque Ricardo, Pureza,
Riacho Doce; b) desligadas dos ciclos: Água-mãe e Eurídice, dentre outras obras.
A Obra: O Moleque Ricardo
Caso raro na literatura brasileira de sua e de nossa época, José Lins do Rego constrói um
romance inteiro tendo como protagonista um trabalhador negro.
Na obra a realidade do negro podre esta retratada no personagem Ricardo, que de moleque e
serviçal de engenho, passa a proletário urbano. Narrado em 3ª pessoa, José Lins conta a historia de
um moleque do eito, que vai se destacar dos outros companheiros, abandona Santa Rosa e vai para a
cidade com a intenção de mudar de vida. Ao chegar à cidade, o moleque passa a cortejar o mundo
material, ele se rende aos prazeres da cidade, mais ele vive frustrado, pois a nostalgia o domina.
Apesar de estar na cidade, de ser dominado por ela, ele não deixa de pensar no seu povo, mais não
quer mais voltar para o engenho, à cidade já o seduzio, ele tem momentos de felicidade.
83
José Lins mostra a vida do negro na cidade, que era um achado para o Recife, pois se faziam
de gente em sociedade de operários, quer dizer mão-de-obra barata; quando não se perdiam na
malandragem. Analisando a obra, podemos perceber que quando um moleque negro chega à cidade
as pessoas o querem para irem trabalhar para elas. Nos engenhos ainda se vivia uma semiescravidão: trabalhavam por comida e roupa. A diferença é que eles podiam sair daquela vida, mais
quase sempre não tinham oportunidade. Na cidade não era muito diferente, a diferença é que
recebiam pelo trabalho, mais os patrões eram vistos como seus donos.
Ao chegar ao Recife, Ricardo se deparou com tudo diferente, tudo que não lhe pertencia. Ele
agora estava no mundo, e era do mundo, não mais de sua família.
Ricardo era negro e nascera pra ser “menor” que os outros. Os meninos brancos, filhos dos
donos de engenho, brincavam com ele quando era criança, mais ele sabia que não podia se “igualar”
a eles, devido a sua condição de negro pobre. Mais tarde, viria que não servia para muita coisa
mesmo, só para o serviço. Negro era bicho de serventia. Ele tinha uma alma igual a dos outros mais
quando crescesse seria igual a qualquer outro negro. Nesse contexto, percebe-se que apesar de José
Lins usar como protagonista um negro, este não escapa de sua condição de “inferioridade” com
relação aos meninos brancos com quem brincava na infância. Ricardo era negro, e seu destino não
seria diferente dos outros negros.
Por isso, fugira do engenho numa necessidade de viver diferente, e buscar uma vida que ele
achava que seria mais dele. Mais ao chegar ao Recife, Ricardo se deparou com a real situação da
cidade. Ele percebeu que ali também as pessoas passavam fome, e às vezes ate mais, porque muitos
tinham que sustentar uma família inteira. Elas moravam em casebres e passavam muita necessidade.
No engenho as pessoas plantavam o que comiam, na cidade tinha que se comprar tudo. Aqui José
Lins faz uma critica social, mostrando que muitas vezes a vida da cidade era mais difícil e miserável
do que no engenho. As crianças eram amarelas e infelizes. Mais, esses pobres não reclamavam,
aceitava sua vida miserável. Pobre não tem direito de reclamar, pobre não nascera para ter direito.
Ao chegar à cidade, Ricardo passa a ser membro desta, e se integra também aos problemas
em que passava a cidade. Apesar de ter, relativamente, um bom emprego e não ter que sustentar
uma família, Ricardo se integra na luta dos trabalhadores, que são seus amigos. Todos tinham
família doente e faminta em casa, com seu pedaço de sofrimento. E operários e trabalhadores
começaram a se reunir em busca de melhores condições de vida. Aqui José Lins mostra a lastima do
Nordeste e do nordestino mostrando a tristeza e a miséria de sua terra e de sua gente.
O descaso com população negra nordestina foi um fator corrente durante a historia da
sociedade brasileira. Com define Durval Muniz em A Invenção do Nordeste, que através de
discursos que levaram a pensar o Nordeste como lugar de violência, fanatismo, miséria e ignorância
e os nordestinos como gente preguiçosa, mole, promiscua; ao longo de muitas décadas e a parti de
84
diferentes discursos que lhe atribuíram determinadas características físicas e mentais aos
nordestinos, e que o investiram de inúmeros atributos morais, culturais, simbólicos e sexuais
diferente do padrão do brasileiro do Sudeste:
“A descrição das ‘misérias e horrores do flagelo’ tenta compor a imagem de uma
região ‘abandonada, marginalizada pelos poderes públicos’. Este discurso faz da
seca a principal arma para colocar em âmbito nacional o que chama de interesses
dos Estados do Norte, compondo a imagem de uma área ‘miserável, sofrida e
pedinte’.” (ALBUQUERQUE; 1999:59).
É nesse ambiente que José Lins representa o negro pobre como tendo uma imagem negativa
ou não do que a sociedade brasileira institui para o negro, revelando a miséria e o descaso com este.
Proclamou-se um protótipo para o negro, onde este passa s ser o próprio agente da discriminação: o
nego não pode ser feliz, todos tinham a mesma vida miserável. Há na obra a consciência de que
tudo esta condenado a adoecer, a morrer.
É nesse ambiente de pobreza e miséria que José Lins faz um critica social aos lideres dos
movimentos grevistas, que só faziam promessas e alimentavam ilusões de uma vida melhor, e mais
justa ao povo, mais na verdade só faziam corromper os mesmo. O povo era massa de manobra para
esses lideres, pois, essas greves serviam de interesses de poucos, mais eles precisavam do povo e
por isso ‘vestiam a camisa’ destes e tomavam as reivindicações do povo como sendo as suas. E
então lhes prometiam a esperança de uma vida melhor, como aumento de salários e horas de
serviços. Muitos entravam na causa porque queriam apenas alimentar a sua família, ter um pouco de
descanso, queriam apenas viver um pouco melhor, não estavam pedindo o fim do mundo.
Ricardo não tinha essas vontades, tinha uma vida boa, mais sofria pelos outros, pois ele via a
vida sofrida que essas pessoas levavam. Mais muita gente não apoiava a luta, queria só voltar para
as suas comodidades, e o pouco que tinham bastava, para que se meter em briga. “È por isso que
esse mundo não se endireita. Podre só pode ser pobre” (REGO; 199:64). Os lideres das greves
sabiam muito bem a ‘tecla’ certa: Pão, palavras dolorosa para o povo; e eles começaram a usá-la
muito para chamar o povo a entrar na luta. Este então estava ‘unido’ e solidário levantado à
bandeira com um único objetivo: vencer a fome. Logicamente que o governo e a burguesia não
atenderam as exigências do povo. Depois de vencer a greve o governo teria que ‘limpar’ a cidade,
castigando os grevistas, só que foram os negros pobres que serviram de bode expiatório, os lideres
saíram impunes. O governo, então, mandou os infelizes para Fernando de Noronha, e Ricardo foi
um desses:
“-Que fizeram eles? Ninguém sabe não!
85
- Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!”(Idem: 189)”.
Na obra foi possível compreender como as diversas relações de poder e saber que rodava as
convivências de Ricardo e com o autoritarismo do ambiente urbano do Recife subjetivaram-se,
ofuscando certos desejos iniciais do moleque na sua nova cidade. Com base na analise de Michel
Foucault que nos ajuda a pensar as verdades que as discursividades constroem, procuraremos
analisar as diversas relações de poder e saber que surgem em um ambiente urbano na presente obra.
Esse ambiente produz aquilo que Foucault chama de um dos procedimentos de exclusão (de
discursos) da sociedade com relação ao negro pobre.
É nesse ambiente que deparamos com a figura de Seu Alexandre, patrão de Ricardo, dono da
padaria. Um português que explora e maltrata os empregados, e também a sua mulher. Ele
considerava Ricardo um bom empregado, pois este não reclamava do salário, os outros sim, porque
tinham família para cuidar.
Na obra o carnaval é descrito como um refugio para pessoas sem nenhuma expectativa de
vida futura. Na época do carnaval não havia nem preto e nem branco quando a musica passava, nem
pobre e nem ricos, todos se conheciam e a musica era de todos. O carnaval vinha para esquecer as
desgraças; tudo era miséria ao redor dos negros, mais eles cantavam no carnaval. Por esse pequeno
período do carnaval as doenças pareciam que não existiam mais, eles “colocavam pra fora todas as
doenças na dança” (Idem: 106), beber e cantar que isto de sofre não era para agora. Portanto, o
carnaval para essa gente era uma libertação, eles podiam passar fome, mais iam as ruas brincar o
carnaval. Os patrões, donos de lojas do comercio, não gostavam do carnaval, porque o povo não
queria trabalhar, pois não podia era perder o carnaval. Quando o carnaval acabava era hora de voltar
para a miséria. Felicidade só o próximo ano.
Para o negro Ricardo, era diferente, ele era feliz em outras épocas fora do carnaval. Para ele
só bastava namorar para ser feliz. Ganhava bem, pois não tinha família para sustentar. Era sozinho.
Ricardo sonhava com namoro, sonhava com Isaura, uma negra que lhe ensinou o amor e os prazeres
da vida. Isaura rejeitava Ricardo, e ele sofria com isso. Se ela fosse boa para Ricardo tudo seria bom
para ele. As moças negras esperavam que o casamento ia-lhes trazer uma vida melhor, também
liberdade para a família. Mais Isaura não queria casar, era negra fogosa que mexia com os homens,
e principalmente com Ricardo. Este acabou casando com outra negra. O casamento o fez esquecer o
seu povo. Vivia triste e angustiado, não gostava mais de ninguém. “E negro sem coração era negro
desgraçado” (Idem: 75).
Nesses momentos de nostalgia, teve dias que Ricardo se arrenpederá de ter vindo para o
Recife, pois passava por pedaços ruins. Sentia-se mais cativo na cidade do que no engenho, e o que
o Recife lhe dera de bom não compensava as tristezas e as magoas em que se metera. Queria voltar
86
para o engenho, para a mãe Avelina e o irmão Rafael, e ia se lembrar do Recife como um sonho. Na
cidade só havia miséria, para ser feliz só bastava ter uma casa e o que comer. Para que negro com
luxo? A vontade de Ricardo em querer voltar para casa, do qual sairá aos 16 anos, demonstra que o
caminho abandonado era o único a ser seguido.
Referencias Bibliográficas:
ALBURQUERQUE, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste. São Paulo. Editora Cotez.
ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. Historia: A Arte de Inventar o Passado. Bauru,
SP:Edusc,2007.
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Carlos Aguirre, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ARTMED
Editora, 2001.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In. História e Memória. Tradução: Bernardo
Leitão...[etal] .5 ed. Campinas, Editora da Unicamp, 2003.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. A representação da pobreza na Literatura: a miséria na Paris do
século XIX. In Ciências & Letras. P.A.: Faculdade Porto-alegrense de Educação, Ciências e Letras.
n 25.1999.
REGO, José Lins do. O Moleque Ricardo. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1999.
SARGENTINI, Vanice. Foucault e os Domínios da Linguagem. São Paulo: Editora Claraluz.
2004.
87
POÉTICAS DA ORALIDADE E PERFORMANCE: O FANDANGO DE
CANGUARETAMA-RN.
Doutorando: Ricardo Elias Ieker Canella - Bolsista CAPES
Orientador: Prof. Dr. Luiz Assunção-Base de Pesquisa em Cultura Popular
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais – UFRN
I. Introdução
Estudar o Fandango de Canguaretama-RN é ir à fonte de poéticas que se instituíram na oralidade e
que lhes são inerentes hoje, e assim, ao analisá-las, entender o desenvolvimento de sua movência e
sua constituição em campo. Para tanto é preciso perceber o Fandango enquanto Obra e apreender
tudo que nele é poeticamente comunicado, pois é na obra que se manifesta o sentido global do que
se pode alcançar e dessa forma, ressaltar o texto que é vocalizado em sua emanação corporal - em
performance -, ou seja, apreender um saber ser, uma ordem de valores encarnadas em corpos vivos
de tal modo que se pode verificar:
(…) a pess oa e o j og o d o i n t ér pr et e, o a udi t ór i o, a s cir cun st ân ci a s, o
a m bi en t e cul t ura l e, em pr ofun di da de, a s r ela ções i n t er subj et i va s, a s
r el a çõe s en t r e a r epr esen t a çã o e o vi vi d o. D e t od os os c om p on en t es da
obr a , um a poét i ca da e scr i t a pod e, em a l gun s c a sos, ser m a i s ou m en os
ec on ôm i ca ; um a poét i ca da voz n ã o o p od e ja m a i s. (Zum th or , 2007: 17 e
18).
É assim que os textos poéticos estudados foram empreendidos nos interstícios das grandes
navegações que se iniciaram na Península Ibérica a partir do século XV, onde narrativas
reverberam, ainda hoje, nas vozes perfomadas dos brincantes da cidade de Canguaretama-RN.
Vozes que vieram ao som das ondas e dos ventos a bordo de naus, através do mar e desembarcaram
nessas terras e continuam a nos contar, através do que se designou chamar Fandango, “Dança
Dramática”, as peripécias das longas travessias marítimas portuguesas.
Dessa forma evidencia-se os relatos de tempestades e calmarias; sobre o esgotamento dos
mantimentos; a fome; os motins; o tirar a sorte para sacrificar um dos tripulantes como fonte de
alimentos; a presença da tentação diabólica; a intervenção divina levando a nau a bom porto entre
outros. Entrar em contato com essas narrativas é perceber a historicidade das vozes e seu uso, uma
‘vocalidade’, é observar e dar atenção aos aspectos corporais desses textos e seus modos de
existência que, mesmo após tantos séculos, realçam em nós receptores uma memória que regressa,
mas que se quer presente (Cf. Zumthor:1993).
I.1 A Memória
Ao que tudo indica as descrições da época dos descobrimentos, como as batalhas e conquistas do
além-mar pelos portugueses constituíram um momento de glória para aquela pátria, uma satisfação
88
alentadora da coletividade, daquela cultura. E as artes, em suas mais variadas formas, expressaram
aquele momento deixando documentos vivos, poéticos, de vivências enriquecidas de simbolismos e,
aquelas memórias, que aportaram por aqui, se integraram a nossa terra e hoje fazem parte de nossas
tradições.
Para os primeiros colonizadores portugueses era habitual a lembrança de seu país natal, sendo que a
saudade e o sonho de retorno à pátria-mãe foram temas permanentes nas primeiras crônicas da
colonização. A idéia de esse novo lugar ser uma extensão da pátria foi determinante para que
hábitos, costumes, crenças, língua, religião, religiosidade, indumentária, alimentação e a utilização
de produtos vindos diretamente de Portugal, fossem recorrentes no seu dia-a-dia, uma forma de
ligarem seus sentidos a sua terra natal.
Por outro lado às práticas poéticas parecem ter exercido uma grande influência nesse processo é
quando Zumthor (1993:143) nos fala, da importância e função que tem a voz poética, nas pequenas
comunidades, de forma que elas “contribuíram para a proteção e grupo isolados, frágeis, que elas
encasularam em torno de seus ritos e da lembrança dos ancestrais”.
Nesse contexto, as expressões artísticas Ibero-portuguesas estavam aqui, presentes a partir do
Período Colonial. Em cada nova situação realizavam-se festejos e com estes, as procissões, as
encenações, as brincadeiras, ou seja, construía-se uma ponte, estabelecia-se um continuum que
possibilitou, naquele momento de fixação da gente em uma nova terra, a vivência de suas práticas
expressivas, de suas crenças de sua fé. E, assim, a eficácia de certas narrativas permitiu ultrapassar
tempo e espaço, de sorte que aportaram em nossa terra e hoje, passados mais de 500 anos, podemos,
ainda, ver e ouvir, perceber e analisar essas práticas como uma realidade objetiva que se coloca a
nossa frente prenhe de significados. Observando ainda, como nos fala Zumthor (1993:29), que no
início do século XX “vários traços de nossas ‘cultura populares’ provinham formalmente das
tradições medievais”.
II. O Fandango
O termo Fandango designa várias brincadeiras no Brasil sendo que no Nordeste, especificamente no
Rio Grande do Norte é a representação cênica popular inspirada nas grandes aventuras marítimas,
dos portugueses, frente aos ‘descobrimentos’. Uma das Partes mais evidenciadas dessa brincadeira é
a história sobre certa Nau Catarineta, embarcação que ficou a deriva no Oceano Atlântico por um
longo tempo - “passamos mais de ano e dia/ Que íamos na vasta do mar” (Fandango de
Canguaretama)50. Daí porque, essa manifestação, também ser conhecida como Nau Catarineta que é
50
Segundo Gurgel (1999, p. 103) “sete anos e um dia”; já para os brincantes da Nau Catarineta de Sergipe “faz vinte e
um anos e um dia/ que andamos n’ondas domar (…)” e os do Rio Grande do Sul “Vem a nau Catarineta,/ Já farta de
navegar:/ Sete anos e mais um dia/ andou nas ondas do mar.”; em outra versão cantada por Dona Militana (2002): “Há
mais de um ano e um dia/ Que navegam pelo mar (…)”. O tempo aqui se mostra de suma importância a ser pesquisado.
O que de mítico, de imaginário, de poético, ou mesmo histórico, por exemplo, estão por trás dessas descrições?
89
na verdade uma das Jornadas, ou seja, uma das Partes mais lembradas pelos espectadores e pelos
brincantes.
Essencialmente a criação poética, suscitada pela emoção coletiva, narra feitos excepcionalmente
heróicos. Esses têm um caráter mítico-histórico, atestando, portanto a colaboração memorial e
emocional coletiva.
Segundo Genival Mangabeira (78 anos) o Fandango de Canguaretama surgiu em sua cidade, em
meados do século XIX.
Por que os n os s os pa i s di z i a m que os pa i s del e s br i n ca va m o Fa n dango.
Com o o a vô de Cl e bi n h o que n ã o br in ca va o Fa n dan go, m a s era um
a dm ir a dor desse p ovo qu e br in ca va o F ol cl or e; el e er a fol cl or i st a só d e
a dm ir a çã o. Bon i fá ci o Pi nh ei r o da Câ m ar a. El e er a um a dm i ra dor e
t a m bém fa l a va que a s pe ss oa s n a i da de de n oss os a vós br i n ca va m . En t ã o
se ca l cul a que foi n os m ea d os d o s écul o XI X que foi i n tr oduz i do. Se
ca l cul a por que o p ovo da quel a época n ã o sa bi a o va l or do fol cl or e, da
cul t ur a, nã o sa bi a e ss e va l or e n ã o t i ver a m ess e cui da do d e d ei xa r um a
c oi sa que c om pr ova s se. E l es di z i a m que os pa i s del es, n oss os a vós, eu já
est ou c om 78 a n os. Meu a vô s e e st i ves se vi vo já est a r i a com 150 a n os pr a
l á . Or a 150, se m eu pa i fos se vi vo e st a r ia com 119. En tã o m eu a vô est a r i a
c om 150 an os pr a l á. Pode ser que m eus bi sa vós t a m bém br i n car am .
As apresentações sempre foram ligadas a Festa da Padroeira da Cidade de Canguaretama, Nossa
Senhora da Conceição em 08 de Dezembro e se estende durante o Ciclo Natalino, até a Festa de
Santos Reis, 06 de Janeiro.
O grupo que realiza a brincadeira é formado por ‘quarenta’ brincantes que, com sua indumentária
de marinheiros, se dividem nos papéis de Oficias e Maruja e cantam e dançam ao som de uma
orquestra de violão, banjo, cavaquinho e baixo, ao lado de uma Nau, as aventuras das viagens
marítimas.
III. Oralidade ou por uma vocalidade
O estudo do texto/poema do Fandango e sua evocação em performance mostram a marca da
oralidade. Para isso é importante observar que os índices de oralidade nos informam sobre a
intervenção da voz humana. Como exemplo temos em vários versos essa chamada para um Outro, o
ouvinte: “Ouvi agora meus senhores…”, “Uma crua e longa história/ Nós viemos relatar”, “Adeus
minha gente toda oh! Minh’alma”, “Canta ó bela maruja”, “Vamos meus amigos”. Assim sempre há
um pedido, uma ordem ou um apelo à ação e é onde se entende que existe uma fórmula51 que enseja
uma voz atuante. Assim como se observa uma configuração narrativa no texto e partes dialogais.
51
Recorrendo as estruturas memoriais que comportam esse texto se verifica que há uma construção que passa por um
estilo formular - estratégia discursiva e intertextual. Segundo Zumthor (1997:121) “o estilo formular se encastra no
discurso, à medida que se desenvolve, e integra, funcionalizando-os, fragmentos rítmicos e lingüísticos tomados de
outros enunciados preexistentes, em princípio pertencendo ao mesmo gênero, e levando o ouvinte a um universo
semântico que lhe é familiar”. Assim o formulismo se manifesta na métrica, nas expressões, na imitação ou adaptação,
no truque estilístico, ou seja, nas estruturas que permitem o poeta criar a partir do que lhe é dado o que facilita tecer
textos resistentes e ágeis, onde possa ter um sentido para a sua comunidade. .
90
Igualmente se pode entrever em todas as jornadas que a marca dessa oralidade também perpassa
pela ação de cantar em uníssono; no uso sistemático de refrões; nas rimas e na recorrência a
repetição do texto. Tudo isso sinaliza uma construção poética pela e na oralidade. Vozes que
pretendem tornassem vivas e entendidas, presentes, vozes que se movem frente a um espectador.
Como nos fala Klebinho (52) “tem que ser lento para o povo entender. As estrofes são repetidas por
isso. Para o povo entender o que estamos cantando é que repete tudo de novo. São duas vezes cada
estrofe. O importante é as pessoas entenderem o que está cantando”.
O ca n t o a l t er na do s e fa z t r oca r en t r e doi s ca n t ores ou d oi s c or os, n o m a i s
da s vez es, en t r e um sol i st a e um cor o. Ne st e úl t im o ca s o, o t ext o s e
di vi de ger a l m en t e em copl a s e r efr ã o: m a s est e n ã o perm an ece s em pr e o
m esm o (c om o n a prá t i ca oci den t a l m oder na ) en quan t o dura o ca nt o.
Hi st or i ca m en t e, pode- se t er p or cer t o que o us o d o r efr ã o c on st i t ui um
t ra ço esp e cí fi c o d e or a l i da de: a s for m a s poét i ca s es cr i t a s que o a dot a r a m ,
t om a r am -n o de em pr ést i m o a a l gum gên er o or a l . A pr ova foi fei t a n o que
c on cer n e à Ida de Médi a eur opéi a . O r efr ã o c or a l m ani fest a , de m a n eir a
m a i s expl í ci t a , a n ece ssi da de d e pa r t i ci pa çã o c ol et i va que fun da m ent a
soci a l m en t e a poesi a or a l . (Zum th or , 1997: 104 e 105).
Portanto o uso sistemático do refrão interfere na produção do sentido da obra e favorece os jogos
intertextuais, uma forma comum encontrada em tradições poéticas onde canto e a dança
sistematizam e se movimentam em prol da performance, o que liga, afirma e assegura certa
harmonia do brincar e da comunidade de brincantes.
Outro dado é a configuração do Coro, que traz consigo essa marca da coletividade e a configuração
embrionária que se pode ver em várias tradições perfomáticas que têm em si um forte acervo
memorial52. Essa composição coral tem como característica principal dançar, cantar e narrar
coletivamente e isso pode ser prontamente identificado nessa brincadeira.
O cantar de vários brincantes se dá quase sempre em uma só voz onde canta um personagem e
outros repetem a mesma parte cantada ou quando se faz de forma a responder o que foi cantado pela
personagem que está em foco, ou seja, completar a frase e dialogar. Uma voz poética que culmina
no canto é uma das evidências da poesia oral em nossos dias.
Esse tipo de construção poética, na oralidade, enseja a sociabilidade, uma construção em conjunto
que almeja a comunidade. Portanto, seja na forma grafada que o grupo tem das Partes/Poema ou em
performance, a marca da oralidade está estabelecida, até mesmo porque a função da brincadeira se
dá em ato, no brincar.
Para Zumthor (1997) a poesia oral comporta regras complexas e se constitui em arte elaborada. Para
tanto é preciso entender a obra sendo tudo o que é expressado no momento em que é performada:
texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais. O poema é, em si, o texto, a melodia da obra. E o
texto é a linguagem percebida auditivamente.
52
Além da própria instituição Teatro, outras manifestações cênicas populares comportam a forte presença do coro:
narrar, cantar, dançar, responder e perguntar juntos estão presentes no: Boi de Reis; Congos; Pastoril etc.
91
É por i sso que à pa l a vr a oral i dade pr efi r o v oc al i dade . Voca l i da de é a
h i st or i ci da de de um a voz : s eu us o. Um a l on ga t ra di çã o d e p en sa m en t o, é
ver da de, con si der a e va l or i z a a voz c om o por t a dor a da l in gua gem , já que
n a voz e pel a voz s e a r t i cul am a s son or i da des si gn i fi ca n t es. Nã o
obst a n t e, o qu e de ve n os ch a m ar ma i s a a t en çã o é a i m por t an t e fun çã o da
voz , da qua l a pal a vr a con st i t ui a m an i fest a çã o m a i s evi den t e, m a s n ã o é
a ún i ca n em a m a i s vi t a l : em sum a , o ex er cí ci o de s eu p od er fi si ol ógi c o,
sua ca pa ci da de d e pr oduz i r a fon i a e de or gan iz ar a subst â n ci a . E ssa
phonê nã o se pr en de a um sen t i do de m a n eir a i m edi a t a: só pr ocur a seu
l ugar . Assi m , o que se pr op õe à a t en çã o é o a s pect o c or por a l dos t ext os
(…), seus m od os de exi st ên ci a que, a pós t an t os sé cul os, r ea l ça m em par a
n ós “e ss e t i po de m em ór i a , sem pr e em r ecuo, m a s pr est es a in t er vi r par a
fa z er r essoa r a l ín gua (…)”. (Zum th or , 1997: 21).
Portanto verificar o Fandango a partir de uma poética da vocalidade, em performance, é
observar a sua competência, demanda, conhecimento e capacidade de realização, a ação pelo qual
há um saber-ser, onde é necessária a presença e a conduta de corpos brincantes. É a prática e a
concretização de algo conhecido que se faz passar da virtualidade à realidade. É o que permite
situar o contexto, seja ele cultural e situacional. É por onde se permite observar a conduta, o
comportamento, a repetição é, portanto, um ato que engendra e que marca.
Pois a performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é
simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. A cada momento que a performance se
realiza ela coloca tudo em causa, já que se oferece no instante é o modo vivo e eficaz da
comunicação poética do Fandango e por onde se pode percebê-la.
Para se chegar a esse conhecimento é necessário escandir e penetrar nas especificidades
dos elementos que compõem a brincadeira, mesmo sabendo que é o todo da obra que contribui para
seu significado. Nesse sentido parte-se da construção do texto poético, poema, observando que é
deste que “a voz em performance extrai a obra” e a partir do qual o Fandango se configura em sua
vocalidade.
IV. Bibliografia
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_______________. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia
Diniz Pochat, Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.
_______________. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Genival Mangabeira, 78 anos. Brincante do Fandango de Canguaretama-RN.
Klebinho, 52 anos. Brincante do Fandango de Canguaretama-RN.
92
CIDADE E POESIA: MOSSORÓ NO OLHAR DE ANTONIO FRANCISCO
Alessandro Teixeira Nóbrega
docente da UERN e pós-graduando das Ciências Sociais UFRN
APRESENTANDO ANTONIO FRANCISCO
Antônio Francisco Teixeira de Melo nasceu em Mossoró-RN aos 21 de outubro de 1949. É
filho de Francisco Petronilo de Melo e Pêdra Teixeira de Melo. Xilógrafo, confeccionava placas de
carro antes de se dedicar só ao cordel. Dedicado ao esporte, fez muitas viagens de bicicleta pelo
Nordeste. Cresceu no bairro de Lagoa do Mato onde reside ainda hoje. Prestou serviço militar
obrigatório, teve participação política no PC do B e é Bacharel em História pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Aos 46 anos iniciou sua carreira literária e sua primeira poesia foi “Meu Sonho”. Apresenta,
aproximadamente, uma produção de trinta folhetos de cordéis que foram reunidos em dois livros:
Dez Cordéis num Cordel Só e Por Motivos de Versos.
Em 15 de maio de 2006, Antonio Francisco foi imortalizado pela Academia Brasileira de
Literatura de Cordel (ABLC) ocupando a cadeira de número 15, cujo patrono é o cearense Patativa
do Assaré.
Isso foi noticiado em vários jornais de circulação local no Estado. O Jornal O Poti anunciou
o acontecimento chamando “o poeta mossoroense Antônio Francisco, um dos mais importantes
nomes da Literatura de Cordel do Brasil”. E concluía:
“Antônio Francisco também terá uma de suas obras - Dez Cordéis num
Cordel Só – requisitada para o Processo Seletivo Vocacionado (PSV) do
próximo ano, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN)[...]” (Jornal O Poti, 21 de maio de 2005).
A obra de Antonio Francisco foi selecionada novamente para o vestibular da UERN de
2007. Juntamente com Vinicius de Moraes, está sendo trabalhado no Centro de Educação Integrada
(CEI) em todos os níveis de ensino. Para XAVIER1 “a eleição pela Academia Brasileira de Cordel
para a cadeira anteriormente ocupada por Patativa do Assoré não foi aleatória, e revela a dimensão
de sua obra”. E continua o articulista afirmando que a produção cordelista de Antonio Francisco
vem sendo muito elogiada pela crítica literária atual, a ponto de considerá-lo “a grande revelação no
campo da Literatura de Cordel do RN nos últimos anos”.
Muito antes de ser reconhecido pela ABLC, nas manifestações públicas artístico-culturais,
Antonio Francisco já emocionava as pessoas presentes ao declamar suas criações literárias, sendo
muito bem aplaudido nestes eventos. Antonio Francisco fez seu nome ser conhecido em Mossoró
pelos seus versos.
93
Não é por acaso que no sitio Cortina de Vidro, o livro de Antonio Francisco Dez cordéis
num cordel só está a exposição para a venda no mesmo lado das poesias de Drummond, Cecília
Meireles, Castro Alves, Manuel Bandeira, Pablo Neruda e Fernando Pessoa.
O OLHAR DA CIDADE DE MOSSORÓ NA POESIA DE ANTONIO FRANCISCO
Poesias como O Rio de Mossoró e as lágrimas que eu derramei e Um bairro chamado
Lagoa do Mato são bem característicos do tema do progresso destruindo espacialidades e
sociabilidades citadinas anteriores, em prol de uma modernidade.
Na poesia sobre o Rio Mossoró, por exemplo, o autor canta um progresso que matou o rio
através da poluição, degradando o meio ambiente:
Este rio no passado
Tinha uma força incomum,
Mas o progresso dos homens
Que vivem sempre em jejum
Partiu ele em três pedaços
Pra comer de um em um
Mas nenhuma das poesias de Antonio Francisco é mais enfática do que sobre o bairro Lagoa
do Mato. Bairro de Mossoró que originou-se de um povoado ao redor de uma lagoa e que hoje, a
lagoa não existe mais.
Nesta poesia, o autor canta sobre espacialidades semelhantes às da cidade pequena. Na
cidade pequena habita-se junto com os animais e a brisa. O sol e a lua instituíam os horários a
serem cumpridos pelos homens, formando uma imagem de vida determinado pela natureza. A noite
iluminada pela lua era encoberta pelo cantar dos animais noturnos e o momento oportuno onde os
mais velhos juntavam a criançada para contar histórias. A máquina que eles conheciam de mais
moderna era o trem “Maria Fumaça”. Trem que chamava mais atenção pelo apito, o seu anúncio,
anúncio da chegada da festa do que pela representação de qualquer modernidade.
A vida era simples, barata, tão boa,
Que a gente nem via o tempo passar.
O tempo passa depressa porque se vive intensamente cada instante. Quando vive-se com
prazer, o tempo é nosso inimigo.
Os peixes abundavam nos rios, tornando a pescaria rápida e eficiente, fartando as mesas das
refeições do dia-a-dia dos moradores do local.
Faltava dinheiro, sobrava alegria
Naquele pequeno pedaço de lar.
94
E depois, na metade da poesia – isto pode ser motivo de devaneios posteriores quando da
análise deste canto – inicia as mudanças do Bairro.
A lagoa é destruída com o tempo, as construções impedem a brisa, “a máquina do trem
deixou de passar” agora só “descarga de carro [...] pra gente cheirar”, a Lua não brilha mais devido
à incandescência da iluminação dos postes de néons, os animais foram embora, a noite agora reina o
silêncio em relação ao cantar dos animais e chegam as contas a pagar. 1 Acabou-se o sossego.
“E pegue zoada por trás do quintal:
Salada, paul, pomada, paçoca,
Pamonha, canjica, bejú, tapioca,
A do Zé tem mais coco, a do Pepe é legal!
Dez bola, dez bola, só custa um real!
Mas traga a vasilha pra não derramar”
Apuveite! Apuveite! Que vai se acabar!
E alguém grita: gol! Minha casa estremece
E eu digo baixinho: meus Deus se eu pudesse
Armar minha rede no fundo do mar!”.
No mergulho das profundezas do mar encontra-se novamente com o sossego. Não se escuta
barulho. A própria língua falada transforma-se. O homem volta ao seu estado primitivo – no sentido
de primeiro, originário – onde predominava os gestos, pois a fala era desarticulada ou no máximo
em sons.
No “fundo do mar” o ser humano em sua solidão encontra-se com sua paz de espírito uma
vez que está longe do movimento perturbador da modernidade.
No ritmo acelerado da vida urbana o ser do humano só encontra-se em paz, só se reencontra
com seu passado reconfortante – nada mais tranqüilizador do que uma rede –, a vida campestre de
aparente harmonia com a natureza, através da solidão nas profundezas do mar.
E poder-se-ia continuar este devaneio imaginando a tática da mãe desesperada com seu filho
recém-nascido aos choros intermitentes, verdadeiros alarmes de mal-estar arrebatadores, quando
arma a rede na última tentativa de confortá-lo como exemplo de que a imagem poética da “armar
uma rede no fundo do mar” como uma tentativa de buscar a tranqüilidade em algo reconfortante: o
refúgio, a introspecção solitária. A vida da cidade pequena passa a ser um espaço de saudades.
De acordo com Simmel (1979) as condições psicológicas, os fundamentos sensoriais da vida
psíquica, que a vida na cidade pequena e a vida rural criam é diferente das condições psicológicas
criadas pela metrópole.
O ritmo intenso e a multiplicidade da vida ocupacional e social na metrópole, contrastam
com a vida na cidade pequena e com a vida rural (SIMMEL, 1979, p.12).
As poesias de Antonio Francisco parecem mais com as criticas, observações que os homens
da ciência em suas diversas especializações, chamam a atenção para o que está acontecendo nas
95
relações sociais e no meio ambiente em virtude do progresso da modernidade ou pós-modernidade.
Mas o autor cordelista não aparenta apenas nos chamar a atenção. Além disso, Antônio Francisco
parece nos chamar, convocar para uma reflexão com objetivo de nos tocar o coração para uma
mudança de atitude perante o outro e a natureza.
Nas poesias de Antonio Francisco a denuncia social, apesar de estar presente, concebe a
mudança social advinda sem rupturas violentas, no sentido mais comum da concepção de revolução
social. A transformação social adviria da mudança pessoal de atitude. O individuo colocado em uma
determinada situação muito comum em nossas vidas reais, ou um reino ou cidade com problemas
sociais muito semelhantes aos das nossas cidades reais; em um momento crucial, a catarse, através
da ação de um terceiro personagem, o individuo, cidade ou reino imaginários mudam de atitude ou
situação. Geralmente é uma solução simples, um idoso experiente ou ainda um homem simples que
resolve o problema.
Mas Antonio Francisco parece querer demonstrar em suas poesias que, apesar da
responsabilidade da transformação social partir da ação de cada individuo ou dos governantes
desejarem buscar as ações devidas, a mudança individual não é suficiente. É preciso a mudança de
atitude coletiva. Por isso que em suas poesias ele sempre termina, quando trata deste tema,
referindo-se a necessidade de modificar as atitudes da humanidade, do outro, do “nós”.
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BAKHTIN, M. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.279-358:
problemática e definição, o enunciado, unidade da comunicação verbal e o problema do texto.
(tradução do francês por Maria Ermantina Galvão G. Pereira).
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97
A REELABORAÇÃO DA CULTURA E AS ORIGENS DO MOVIMENTO
ARMORIAL
Anderson Bispo de Farias
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o
espírito mágico dos "folhetos" do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel),
com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus "cantares", e com a
Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e
espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados53.
O Movimento Armorial, fundado oficialmente em 18 de outubro de 1970, na cidade do
Recife, é caracterizado por uma tentativa de reatualização cultural, bem como por um esforço para
reafirmar a identidade para a região Nordeste54. Para tanto, um grupo de artistas se reúne em torno
da figura de Ariano Suassuna, então diretor de Departamento de Extensão Cultural da Universidade
de Pernambuco, a fim de organizar sucessivas ações de afirmação dos valores conservadores
regionais.
Esses valores, pautados numa moral católica, e numa organização das relações de força entre
as elites políticas e econômicas e o governo central, passam por uma crise de contestação dadas as
influências nacionais e externas nos campos artístico e cultural, e também pela reformulação dos
padrões de moral e comportamento, que refletem diretamente na organização social como um todo.
No contexto da reorganização política ocasionada pela assinatura do AI-5, os grupos
políticos regionais passam a perder seu espaço de atuação dada a forte centralização do poder na
figura do Estado, alterando as relações e privilégios políticos locais.
Uma observação importante a ser feita, é que há um duplo movimento com a criação do
Movimento Armorial. Uma vez que a intenção dos artistas era buscar uma matriz ou verdadeira
origem cultural para a região, essa mesma matriz também estaria na base da formação da cultura
nacional, projetando, portanto, o movimento para além das fronteiras regionais. Nesse sentido, notase uma disputa por espaço e influência no campo cultural por parte dos integrantes do movimento
em oposição ao deslocamento do eixo de produção cultural e conseqüente perda de importância da
região no cenário nacional.
A procura por uma identidade regional nasce da reação a dois processos de
universalização que se cruzam: a globalização do mundo pelas relações sociais e
53
Ariano Suassuna, Jornal da Semana, Recife, 20 maio 1975. Disponível em
http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=
309&textCode=884&date=currentDate. Acesso em: 23 mar. 2008
54
SANTOS, Idelette Muzart Fosnceca dos. Em demanda de uma poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento
Armorial. Campinas: Ed. Unicamp, 1999. p.21.
98
econômicas capitalistas, pelos fluxos culturais globais, provenientes da
modernidade, e a nacionalização do poder, sua centralização nas mãos de um
Estado cada vez mais burocratizado.55
O Armorial surge como um esforço para demarcação do espaço de uma intelectualidade
regional frente às mudanças culturais e políticas ocorridas em âmbito nacional, bem como às
influências internacionais que começam a interferir na sociedade brasileira a partir da década de
1960. Em âmbito nacional, a reformulação dos valores morais através do advento de diversos
movimentos culturais como o Tropicalismo e Jovem Guarda contrapõem-se à ordem estabelecida
pela moral católica. Em relação às influências externas, a incorporação do Rock, dos Beatles e do
movimento Hippie sedimenta as transformações na cultura nacional.
Essas influências nacionais e externas são observáveis no Nordeste inclusive na Literatura
de Cordel, forma de expressão artística mais cara ao Movimento Armorial, com o surgimento da
figura dos cabeludos56 enquanto elemento que se infiltra no imaginário e na sociedade nordestina e
que representa uma reestruturação nos referenciais de comportamento, provocando um rompimento
na ordem social conservadora.
Em busca de ressaltar a importância nordestina como centro de uma cultura genuinamente
brasileira o Movimento Armorial constrói um discurso em torno do Nordeste enquanto mantenedor
de uma cultura original, sobre a qual a nação pautaria seu referencial cultural. Este seria então, o
depositário da matriz cultural brasileira, uma vez que na região seriam observáveis os traços
originários da cultura nacional, dado o isolamento da região e a baixa influência externa na mesma,
pois nela as características formadoras da cultura nacional estariam conservadas
Nos modos de produção, nas relações negociais, na religiosidade, na moral, inclusive a
sexual, na linguagem (...) em tudo, enfim, a mumificação dos costumes provocada pelo
isolamento deitou seu braço poderoso, a ponto de respirar ali, ainda nas primeiras décadas
do século passado, um clima humano muito próximo do quinhentismo e do seiscentismo
trazidos pelos portugueses do primeiro momento da colonização.57
A incorporação da cultura popular, através de um viés erudito, é utilizada enquanto
instrumento de identificação regional e como meio de contraposição às manifestações culturais
estrangeiras. Dessa forma, ao colocar o Nordeste como centro de referência para o estabelecimento
55
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed.
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 77.
56
Sobre este termo, ver: CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo,
2003. p. 191-192.
57
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A
Girafa Editora, 2004. p. 20-21.
99
da cultura nacional, o Movimento Armorial tenta restabelecer a influência da região sobre o restante
da nação.
Nota-se a construção de um discurso que visa uma tentativa de recuperar o prestígio regional
a partir do campo das artes, a fim de redirecionar o eixo de produção cultural, espaço de poder, em
virtude das transformações políticas e sociais ocorridas no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970.
Assim, ao tentar reforçar uma nordestinidade e reelaborar a cultura brasileira, o Movimento
Armorial busca reafirmar a importância do Nordeste enquanto difusor cultural, bem como
influenciador das decisões políticas em nível nacional, assegurando espaços de atuação das elites
locais na nova organização de poderes.
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife:
FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 77.
CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo,
2003. p. 191-192.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do
Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004. p. 20-21.
SANTOS, Idelette Muzart Fosnceca dos. Em demanda de uma poética popular: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. Unicamp, 1999. p.21.
SUASSUNA,
Ariano.
Jornal
da
Semana,
Recife,
20
maio
1975.
Disponível
em:
http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCo
de=16&pageCode=309&textCode=884&date=currentDate. Acesso em: 23 mar. 2008.
100
GUIMARÃES ROSA E MIGUEL DE UNAMUNO: HETEROTOPIAS
DISCURSIVAS NO SERTÃO
Ana Paula Silva Souza
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
O homem vive imerso em uma eterna busca. Por sermos dotados de consciência da própria
existência, nossa vida é permeada por imensas questões sobre a própria condição humana na Terra.
Constantemente procuramos um lugar onde possamos mais do que encontrar respostas, sentir-nos
seguros para mergulhar dentro de nós mesmos e, dessa forma, elaborar tais questões num diálogo
pessoal. Para Guimarães Rosa, este lugar é o Sertão. O sertão oral, necessário para o
estabelecimento da conversação a que vai dar lugar Riobaldo com um suposto interlocutor, referido
como senhor, ou doutor, aquele que tornará transcrevível o sertão riobaldiano, fazendo-o por fim
um sertão letral.
Este espaço – ora vazio, ora recheado de ações, murmúrios e pensamentos, pessoas e
sentimentos – aparece como um cenário ideal onde se realizarão as peripécias do personagem que
colocarão em jogo o sertão e o mal. É onde todas as posições são transitórias, tais como o comboio
dos jagunços que abrem na lei da própria escrita do sertão, veredas transgressivas, projetando
espacialidades que podem ser tomadas como “uma amálgama extraordinária de relações porque é
algo que atravessamos, é também algo que nos leva de um ponto a outro, e por fim é também algo
que passa por nós”, consoante o conceito espacial de Foucault (2006), designado como heterotopia,
espaços outros, ou espaços do fora. Veremos que esses lugares outros – as heterotopias – agem na
textualidade do sertão como um espelho cuja presença está além das cenas retratadas, porém tem a
função de trazer o que está fora de si para dentro delas, como uma concretização dos espaços
ilusórios e idealizados das sociedades – as utopias (FOUCAULT, 2006). Desta forma, os espaços
assumem características que fogem à mera unicidade, nestas relações, quem olha também é
observado e o observador também é paisagem, assim a época na qual estamos vivendo mostra-se
marcada, principalmente, pela “simultaneidade” dos sítios, onde o que está longe se faz perto e
vice-versa. E quando percebemos que também somos como espelhos, vemos que há uma infinidade
de enquadramentos os quais refletem uns aos outros, como planos que se desdobram e compõem o
que há de humano no espaço e dentro do próprio sujeito.
Assim, diante da incomensurabilidade que é o sertão rosiano, podemos também
encontrar espacialidades não previstas pelo leitor. Ao tratar o sertão como uma heterotopia,
podemos assumir – de acordo com as leituras em Foucault (Ib.) – que “outros espaços” se fazem
presentes ali. Na configuração de uma densidade no tecido narrativo do sertão, deparamo-nos com
101
um espaço que se enovela, insinuando uma relação conceitual com o nivolismo, novela ou neblina,
de Miguel de Unamumo, desenvolvido no romance Névoa (1989) e no Prólogo de suas Três
novelas exemplares e um prólogo (1995), como uma invenção da linguagem metafísica do poeta e
filósofo e que surge como a ficção de uma visão espacial de opacidade e espessura perturbadoras.
Estes espaços estão além do sujeito, mas ao mesmo tempo se manifestam em sua corporeidade. Em
ambos os autores, Guimarães Rosa e Unamuno, isso traz para a problemática da ficção
experiências-limite, ligadas ao sentido trágico da vida, do qual se revela o nada e a finitude humana.
Constitui-se, desse modo, um pensamento literário comum aos romancistas e que
incide no processo de criação de cada um, em diverso tempo e lugar de produção na modernidade
do século XX, o romance unamoniano publicado em 1914 e o rosiano em 1956. Nosso autor
mineiro considera que Unamuno concebeu uma metafísica própria, conforme situa-nos em
entrevista a Günter Lorenz, para o Suplemento Literário de Minas Gerais, de 1974: “Ele criou uma
metafísica própria. Afinal, Unamuno inventou a Nívola e o Nadaísmo. E isso são invenções de um
sertanejo”. E, ainda: “...nós, homens do sertão, somos fabulistas por índole. Contar estórias está no
nosso sangue, isso já vem do berço” (Ib.)
Numa espécie de prefácio em Névoa é o escritor espanhol que diz entre irônico e
brincalhão ter consistido isso em princípio numa burla “para intrigar os críticos”, que “se ativeram à
minha diabólica invenção da nívola” (p.17). Invenções que servem de “passe” para Guimarães Rosa
encontrar na literatura uma forma de entender que a língua estaria então além da filosofia e da
racionalidade agindo como um “meta-pensamento”, refletindo sobre e para além de si mesmo.
Assim, se constituirá a novela dentro do sertão, na densidade do nivolismo unamuniano: névoa,
novela, nivolismo, novelo, também uma forma de visão e um procedimento filosófico de ver o
objeto a se descortinar.
O sertão é trasladado, na medida em que o romance de unamuno consiste em
Guimarães Rosa num gênero de espaço do outro, espaço do fora, inter-comunicante em nível das
idéias e das zonas sombrias da circulação das palavras. Riobaldo segue o rastro unamuniano da
névoa ou da neblina para a constituição da visão espacial do sertão, tomada por sua própria neblina
que é Diadorim, elaboração de seus fantasmas, que obriga a experiência de ver através de
espessuras. Esta é uma imagem recorrente: “Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a
minha neblina” (Ib, p.27).
Diante do espelho, o ser-tão é provocado pelas imagens deformantes e ilusórias que desfilam
diante de Augusto, no teatro tragicômico que representa para si mesmo. E, no romance rosiano,
diríamos, a céu aberto, na “profundidade” da caverna, ou na exterioridade longínqua,
acompanhando-o em toda a travessia, até se abrirem as “clareiras”, no sertão. Augusto, por sua vez,
102
é levado, por digamos, a “vadiagem” de aristocrata, sem ocupação, com a imaginação à solta, com
os
pensamentos
sempre
envoltos
em
névoas,
em
sonhos,
em
fantasias.
Inteiramente mergulhado em névoas, cai nas próprias armadilhas dessa nebulosidade, confundindo
um tanto quixotescamente o que se lhe passa ao redor, embotados sentimento e visão.
Gradativamente, as certezas que ele trás em si ficam para traz e só no final da narrativa ele
contabiliza as ilusões e suas perdas, mas já não se destaca das sombrias, que se desdobram
desdobrando-se em quadros de forma infinita. A sua conclusão em face do processo: “Quando o
homem fica sozinho, e fecha os olhos para o futuro, para o sonho, revela-se para ele o povoado
abismo da eternidade” (Ib, 1989, p. 50). Se ele não é um matador, um jagunço como Riobaldo, joga
com a vida como o xadrez no cassino, jogador que sempre perde para o amigo por distração,
dissipação, aparecendo nessa singular versão de matriz neoplatônica com um semblante de certo
modo ressingularizado de um Quixote, enquanto representação de representação, como a eternidade
sem fundo.
Se podemos divisar em Riobaldo o logos como um ser vivo selvagem, uma “animalidade
ambígua” (DERRIDA, 1991, p.62) inicial, ligada à cena da caverna. Em Augusto, a singularidade
selvagem estava quase aniquilada já que, por ser um homem urbano, o simulacro de civilização em
que está mergulhado colocou-lhe uma doma. Um resquício desse indomável ele identificaria no
cãozinho que encontra recém-nascido abandonado nas ruas, levando-o para casa e adotando-o
irmanado na orfandade. No final, as heterotopias sagradas, o lar, a casa, a esposa, a mãe, a família,
surgem como ilusões deixadas para trás, sumidas nas miragens dos tempos.
Tal processo faz-nos observar em Foucault que as heterotopias estão ligadas a um
determinado tempo, sua função então, se perde quando ocorre alguma ruptura do “homem com sua
tradição temporal” (FOUCAULT, 2006). Da mesma maneira ocorrerá com o sertão como região
simbólica geográfica de Riobaldo: não existe mais, a ruptura com o tempo dos jagunços já
aconteceu: “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar. Cidade acaba com o sertão. Acaba?”
(ROSA, 1994, p. 230). Novos tempos e novos laços de pertença, entretanto, aparecerão no
horizonte.
O sertão será o campo fértil para esse pensamento. Ele se abre em imagens espaciais, em
que se movimentam nebulosamente personagens, em luta com os constantes devires e em busca do
que lhes retire do transitório, se enovelando na multiplicidade enquanto caminham para o Uno.
Percebemos que os romances se utilizam de matrizes neoplatônicas para a escritura do que se
apresentará como uma fábula do Ser numa exterioridade incomensurável aberta a experiências do
trágico, do Absoluto e Deus, com suas contradições, ambivalências e paradoxos. Fábula que
pareceria anti-moderna, se não fosse o fato de essas matrizes ressurgirem numa espécie de
arqueologia, dentro da qual se desenrola a história do ser e do não-ser, que, para o homem moderno
103
como o personagem unamuniano, o intelectualizado, mas sonhador, Augusto, se põe num universo
de crise, em que parece caminhar para o nada “que nunca existiu” (Op. cit., p.50), mas persegue-o,
levando-o em direção a uma eternidade sem fundo, como ser de ficção, o que traz um sentido
tragicômico para o debate ontológico em que o próprio Unamuno se sente , apesar de em toda a sua
obra sustentar suas convicções católicas e sua fé em Deus, ao olhar para a Espanha dos finais do
século XIX e inícios do século XIX, vendo nela onde começa a morte.
Mas não menos de crise e desvio se faz o sertão rosiano. Embora, para nós, seguindo
caminhos diversos dos de Augusto, o seu protagonista, Riobaldo enfrentará uma travessia de morte,
crime, violência, crueldade, trocando seu ofício de matador por uma tarefa de busca de redenção.
Não é como Augusto o é o anti-herói burguês. Suas insígnias de matador, profissional da morte,
revestem-no de uma maneira blasfêmica de um caráter de guerreiro medieval, numa espécie de
cruzada, que é também uma encruzilhada entre Deus e o Diabo, nas trevas do sertão. Augusto
aponta para o ocaso de um tempo, desmoronado na sua existência até no projeto amoroso.
Convertido pelo amor, Riobaldo, ao contrário, assinala várias vezes durante sua narrativa para a
aurora, para a procura da claridade, o sinal divino da proximidade de Deus, para um tempo por vir.
Durante a travessia, os protagonistas não só procuram, mas também esperam, por um
desfecho que por vezes não se mostra. A instauração lírica do sujeito do discurso, introduz no
caráter dito como épico do gênero romance um imaginário simbólico. A travessia é do múltiplo para
o uno, do devir para a direção mística e metafísica, em que os seres ou entes são retirados da
fragilidade do transitório para o universal, o imutável. O múltiplo e os devires consistem em ilusões
que devem ser atravessadas para se ir ao encontro dessa realidade metafísica e mística. A travessia é
o caminho para essa busca do essencial, do repouso e da elevação, pois é o que há no final do
romance. É o encontro com a estabilidade, a permanência, que se descortina entre as cintilações
ilusórias para se oferecer como consistência e mesmo como princípio da razão que se realiza não na
separação, mas no uno, na reunião entre “logos” e “mythos”, ficção e real, sensação, percepção e
pensamento.
Dessa forma, as heterotopias podem servir também como lugares onde as ilusões se abrem
para realidades, tal qual no Mito da Caverna de Platão. Este lugar iluminado pelo sol ardente, ou
pela lua pálida está permeado de sombras das quais o devir se extrai. O ser, então, é aquele sem
ideais fechados, uma quimera a ser descortinada. É preciso ser-tão, para poder encontrar seu lugar
dentro daquele universo. “Sertão: é dentro da gente” (ROSA, 1994, p. 434), espaço heterotópico
propiciador da travessia. Configuração como projeto de buscar no finito, o infinito, num tempo
sócio-histórico,
de
volta
a
veredas
e
realidades
perdidas,
esquecidas.
Neste espaço de projeção de espelhos, nada é totalmente bonito ou feio. Na verdade, nada é
totalidade, tudo está em constante desconstrução para uma posterior reorganização, com uma única
104
exceção para os valores de bem e mal, já que o ambiente sagrado da religião é uma constante.
Porque sertão é uma imagem da vida e esta não é perfeita. Esta conclusão e a espera que suscita
tornam-se subsídio da reflexão e do questionamento.
Assim sendo, são os personagens que garantem a mobilidade espacial dentro o campo
incomensurável desse Ser-tão, são eles que garantem tanto a acessibilidade quanto a sua
“hermeticidade”. Estão fora das normas, mas que obedecem a um código próprio, oferecem-se
lançados numa espécie de exterioridade selvagem, aqui usando outro conceito do pensamento
espacial de Foucault (1999, p.53) Esses seres viventes circulam entre heterotopias arqueológicas:
lugares sagrados, profanos, proibidos, protegidos, lugares abertos, que estabelecem permanente
comunicação com dimensões visíveis e invisíveis; espaços obscuros, espaços do alto relacionados à
transcendência, espaços fixos ou móveis. Movem-se entre recortes do tempo ou heterocronias, na
denominação dada por Foucault (Op. cit., p.418).
“O sertão é sem lugar” (Ib, 1994, p 500), diz Riobaldo em uma das suas passagens, por isso
mesmo, ele se torna propício a reunir sistemas de pensamentos e experimentá-los como parte da
cultura humana, daquilo que está em forma de cinzas que podem ser reacendidas. Os caminhos
dessas experiências suscitam o mesmo e o diverso, debatendo-nos entre modelos, idéias, valores,
proibições, transgressões.
A partir da narrativa de Guimarães Rosa, vamos além do sertão concreto e partimos para um
terreno que habita as arqueologias humanas imaginárias. Assim como vamos além da pura neblina
em Unamuno e passamos a uma metáfora do olhar em seus constantes desvelamentos. Enfim, são
tecidos de uma rede heterotópica, envolvendo relações com o espaço do social, abrindo-se para
conexões com heterotopias possíveis, utópicas ou reais. Desfuncionalizadas umas, outras
ressignificadas, como são no tecido romanesco as matrizes platônicas que expõem espaço e
linguagem e à sua própria morte.
_______________________________________________
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras,
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ELIADE,
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Tannus
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8
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Inês Autran Dourado. Cidade: Forense Universitária, Ano, 2006. p. 411-422. Col. Ditos e Escritos.
105
v.
PLATÃO.
III.
A
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Rio
de
Janeiro:
Martin
Claret,
2002.
SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS. Belo Horizonte: Editora do Diário de Minas
Gerais,
23
de
março
de
1974,
n.395.
UNAMUNO, M. de. Névoa. Trad. José Antônio Ceschin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
UNAMUNO, M. de. Três novelas exemplares e um prólogo. Trad. Mustafá Yasbek. São Paulo:
Nova Alexandria, 1995.
106
HIBRIDISMOS E NEGOCIAÇÕES CULTURAIS NO MANGUEBIT
Francisco Gerardo Cavalcante do Nascimento.
Mestrando: Universidade Estadual do Ceará
Bolsista CAPES.
1 – A PROPOSTA MANGUEBIT
Dentre as várias vertentes em que um historiador pode enveredar sua pesquisa está a música,
elemento fundamental na compreensão da cultura de uma determinada sociedade, em especial a
sociedade brasileira contemporânea.
Destarte o MangueBit apresenta-se dentro da música contemporânea brasileira como um ser
híbrido em sua gênese, rebento de um processo histórico em que o Estado de Pernambuco e
principalmente o Grande Recife foram submetidos.
Todo um circuito histórico-cultural foi proposto pelo MangueBit, ou seja, as análises que
foram feitas sobre o mesmo expõem a necessidade de um estudo permeado pela contextualização do
sujeito histórico, não apenas como um indivíduo passivo esperando pelo trem da história, mas como
uma criatura identificada pelas diferenças culturais que o moldaram durante os anos, uma espécie
de conjunção estratégica do caráter.
Para entendermos o MangueBit de uma forma mais clara, faz-se necessário a compreensão
de uma forma panorâmica do mundo, do Brasil e da cidade de Recife respectivamente, ou seja, o
MangueBit foi contemporâneo do fim da União Soviética, do voto direto com a eleição de Fernando
Collor de Melo, ou seja, uma realidade caracterizada pela ditadura militar, época de incertezas, além
do “boom” do consumismo brasileiro, Internet, da chegada do Mcdonald’s e MTV, além do
governo de Miguel Arraes no início da década de 90, com violência e falta de perspectiva de vida
para sua juventude,, conseguiu fomentar toda uma cena cultural, em que as tradições culturais como
os Maracatus, cirandas, Côcos, afoxés, caboclinhos, entre outros, conseguiram coexistir em uma
movimentação cultural liderada por jovens insatisfeitos com a cultura que era produzia em Recife.,
pois o enfrentamento das correntes culturais deve eclodir nos momentos de maior torpor artístico,
social e cultural, assim os jovens artifices que fomentaram o Manguebit, vislumbraram Recife
através deste estigma que a capital pernambucana o Brasil e o mundo atravessavam
No decorrer de nossa pesquisa percebemos que a indústria cultural vigente no Brasil na
década de 1990 delineou aos artífices do MangueBit ações culturais no intuito de mudar a realidade
cultural na qual estavam inseridos, ou seja, “a ação cultural tem sua fonte, seu campo e seus
107
instrumentos na produção simbólica de um grupo58”, porém, supomos que estes agitadores culturais
não foram meros objetos manipulados pela grande indústria cultural, mas iconoclastas da cultura
contemporânea, construtores do multiculturalismo urbano.
O caminho de autopromoção que o MangueBit enveredou, está calcado nas
descentralização das visões culturais de dominância, sendo definidas por desdobramentos das
resistências históricas, gerando novas visões periféricas, aprofundadas no cotidiano das relações
pessoais, principalmente, porém este estudo tanto de identidades culturais, como da própria cultura,
nos desafia a aprofundarmos ainda mais o cerne da questão, em suma a cultura.
Acreditamos que o ser humano concebido de forma primária, deve ser considerado antes de
mais nada como cultural, pois sua vida e suas relações presentes e futuras, são definidas de forma
majoritária por sua cultura acumulada, e “ em qualquer hipótese, a construção cultural deve ser
tratada como um problema, e não como premissa, e um problema merecedor de análise mais
detalhada59”
Dentro desta problemática suscitada por Burke, a identidade cultural se torna o filho
primogênito de qualquer cultura, ou seja, o “eu” cultural, foi gerado antes de qualquer premissa pelo
“todo”, e desta forma as comunidades imaginadas sintetizam nossas argumentações, perpetuadas
pela memória do passado, pelo desejo de viver em conjunto, e pela perpetuação da herança.
Neste momento nos perguntamos que heranças culturais nós recebemos de nossos antepassados?
Quais heranças nos foram impostas pelos discursos outorgados das elites? E mais adiante nos
questionamos, qual será o legado cultural deixado por nós para as futuras gerações?
Certamente, entramos em um debate complexo da construção e permanência das identidades
culturais, o seja, as identidades culturais são perecíveis.
Estas respostas serão dadas no decorrer dos séculos, principalmente quando as sociedades
em questão, passam neste exato momento por uma construção de identidades gradativa e paradoxal,
lenta e imbuída de interesses pro várias partes, principalmente pelas elites.
2 – OS MANGUEBOYS ENTRAM EM CENA
58
59
COELHO, Teixeira. O que é ação cultural? São Paulo: Brasiliense, 2001.p.16.
BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Unesp, 2000.p.171.
108
Vindos de várias partes da Grande Recife, o Manguebit teve em sua conjuntura, uma mescla de
indivíduos formando um grande balaio sócio-cultural, em que elementos como Fred 0460, Renato
L61·, HD Mabuse62, Xico Sá63, Lúcio Maia, etc, eram jovens de classe média de Recife,
universitários na sua maioria, oriundos de bairros como Boa Viagem, Candeias, Graças, típicos de
classe média; também elementos da classe média baixa como Chico Science64, Jorge du Peixe,
Gilmar Bola Oito oriundos do Bairro de Rio Doce um grande conjunto habitacional de Olinda,
pertencentes ao típico perfil do jovem de periferia brasileira com escolaridade ao nível médio e que
trabalha em algum emprego seja no funcionalismo público ou empresas privadas e que possuíam
um ponto em comum que era a baixa remuneração e, por último, os outros integrantes da Nação
Zumbi que são oriundos dos bairros mais carentes, como é o caso de Toca Ogan e Gira da Nação
Zumbi vindos da comunidade de Peixinhos periferia de Olinda com baixíssimos índices de
desenvolvimento humano, e conseqüentemente altas taxas de violência, principalmente entre os
jovens da comunidade.
O Manguebit uniu extratos sociais de uma certa forma que antes eram segregados
socialmente, economicamente e certamente, culturalmente, colocando para dançar a juventude
Maurícia e reafirmando nossa etnia, podendo ser considerados cronistas pós-modernos da vida
urbana, em que a realidade das veias brasileiras se faz presente , pois somos todos mestiços como
Chico Science versou e não há fuga para nossa condição de miscigenados, a capoeira, o samba, o
frevo, ou seja, as cores que compõe o Brasil são múltiplas, vivas, unidas, harmônicas na sua
composição original e disforme devido aos que fazem arte com o povo.
Devemos verificar não somente as heranças culturais genuinamente brasileiras citadas
anteriormente, mas a presença sem distinções da cultura estrangeira como o hip hop em uma
embolada, assim é o Manguebit, miscigenação à flor da pele, com cultura popular e estrangeira
formando uma grande etnia cultural entre várias raças.
Entretanto, a música foi um fator imprescindível para unir estes jovens de origens distintas,
pertencentes à mesma etnia e com vontade de movimentar-se culturalmente e construir na cidade de
Recife uma rede de produção cultural.
60
Fred 04 é o vocalista da banda Mundo Livre S.A e um dos principais articuladores do movimento MangueBit, sendo
também um dos autores do manifesto Caranguejos com cérebro que será citado posteriormente em nossas indicações
metodológicas básicas.
61
Renato l é jornalista trabalha atualmente no periódico o Diário de Pernambuco, foi um dos principais articuladores do
MangueBit na sua concepção, é co-autor do Manifesto caranguejos com cérebro e considerado pelos músicos das
bandas o Ministro da informação do MangueBit, participando ativamente das negociações com as gravadoras.
62
Mabuse é músico, artista plástico e produtor cultural da cidade de Recife, entre seus trabalhos está o festival de
música eletrônica “Recombo” realizado na cidade de Recife.
63
Xico Sá é jornalista e escritor, e participava ativamente da consolidação da cena Mangue na cidade de Recife.
64
Chico Science é considerado o idealizador do movimento MangueBit, foi vocalista da banda Chico Science e Nação
Zumbi, morreu precocemente em 1997 em um acidente de carro.
109
Nesta seara dos artífices proposta em nosso texto, devemos nos questionar qual a
identificação cultural predominante dentro dos fomentadores do movimento? Mesmo que esta
predominância não tenha sido verificada nas entrevistas já realizadas com estes artistas, seja pelo
presente pesquisador, ou qualquer outra fonte hemerográfica, ou audiovisual.
Primeiramente, o termo predominante não se adequa em nenhum aspecto ao universo do
MangueBit, ou seja, as negociações foram interpeladas justamente para evitar que de alguma forma
as predominâncias, imposições e restrições que por ventura restringissem a criatividade dos poetas
do Mangue65, fossem cogitadas.
Dessa forma o termo “cooperativa cultural” defendido por Renato L em uma entrevista concedida
ao presente pesquisador na cidade de Recife em julho de 2007, coaduna diretamente com a idéia de
um processo de auto-identificação, ou seja, os próprios artífices defendem a idéia de construção
multiculturalista, em que as experiências de todos aqueles jovens pernambucanos foram levadas em
consideração, desconstruindo a idéia do ídolo muito presente no campo artístico.
Certamente, o termo que poderíamos considerá-lo como constante dentro da prerrogativa
Mangue, seria a Diversidade, contudo devemos explicitar a não desintegração de outros termos que
já foram usados pela imprensa e academia para nomear e definir o MangueBit; assim nossa
argumentação será embasada por este termo de uma forma dinâmica e aberta.
Alma e conceito, reconhecimento e ressurreição, destarte o Mangueboy se reconheceu como
parte integrante de toda uma cadeia sócio-cultural presente na cidade de Recife, produto legítimo
das disjunções inerentes a uma metrópole, ou: “estas disjunções se tornaram fundamentais para a
política da cultura global66” ; como tais são presupostos de problemáticas amplas, vicissitudes de
um enredo complexo, em que o diálogo deve ser uma constante, pois” em qualquer hipótese, a
construção cultural deve ser tratada como um problema.
Dentro desta premissa acreditamos que a identidade de um ser humano que se reconhece
como agente cultural está conectado diretamente com o imaginário coletivo que o seu habitat, ou
melhor ainda seu ambiente de produção e consumo cultural lhes oferecem, certamente, não estamos
falando em passividade do sujeito diante as ofertas de signos que suas experiências recebem e
deslocam, mas uma participação ativa destes cidadãos, entranhados pelo passado secular, e a
convivência contemporânea.
A tradução do MangueBit através da sua metrópole brasileira, afogada em um caos urbano,
não foi apenas social e econômico, mas cultural, todavia é necessário apontarmos quase sempre
65
O termo Mangue em nosso texto, também fará alusão ao movimento MangueBit, posto que em sua idéia original de
1991, o falecido compositor pernambucano Chico Science, o definiu assim.
66
FEATHERSTONE, Mike (org). Cultura global. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.pp.312-313
110
para o bojo cultural que o Estado de Pernambuco proporciona aos seus patrícios, ou seja, o Grande
Recife e adjacências foram o mote para os poetas do mangue, a articulação do local com o global,
sem privilégios, ou:
O essencial é que a ideologia cultural em questão articula o mundo segundo o modo mais
funcionalmente útil, ou ainda, segundo modos que possam ser funcionalmente
reapropriados. A razão porque certa fração de classe proporcionaria essas articulações
ideológicas é uma questão histórica67.
A mentalidade dos artifices do MangueBit foi definida por Jameson de forma apropriada
como o próprio Chico Science afirmou: “não conseguimos acompanhar o motor da história, mas
somos batizados pelo batuque e apreciamos a agricultura celeste”, ou seja, coaduna com a união de
fragmentos proposta pelo MangueBit de uma sociedade caótica e a construção de sua própria
identidade, porém esta identidade não pode ser definida como um novo gênero musical, mas como
uma criação de uma cena musical que oxigenou culturalmente a cidade de Recife, com bandas,
bares, espaços culturais, oportunidades para os músicos, e assistentes de palco e etc; ou seja, criou
toda uma cadeia cultural que começava nos idealizadores do movimento como Fred 04, Chico
Science e Renato L e se estendia até os roadies.
A legitimidade da imposição impera nos meios de comunicação e é sabido que os discursos
dominantes estão embasados justamente na verdade silente das classes menos favorecidas, ou seja,
a legitimação da barbárie cultural é tão intensa que uma crítica ao discurso hegemônico seria no
mínimo inaudível, intimado pelo historicismo arraigado no domínio datado desde as épocas
ultramarinas porém este questionamento nos remete diretamente às mentiras salientes do póscolonialismo, ou: “É a perversidade radical, e não a sensata sabedoria política, que impulsiona a
intrigante vontade de saber do discurso pós-colonial68 ” resta para aqueles que são citados pelas
elites pós-coloniais como objetos de caridade, paternalismo, ou até mesmo vencidos; restando como
única saída, uma intervenção negociada e consciente, para consequentemente alcançarem uma
inserção, dentro desta disputa em que o primeiro golpe é desferido sempre na cultura e muitas vezes
é letal.
A produção e consumo de bens culturais, requer antes de tudo uma tomada de consciência,
ou seja, o exercício da produção de ações culturais deve ser uma constante nos agentes culturais da
contemporaneidade especificamente, ou: “O agente cultural é, aqui um animador é dele que parte a
67
JAMESON. Fredric. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro:civilização brasileira,
2006.p.83.
68
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.p.292.
111
ação nessa terminologia teológica, é ele o criador69”, contudo devemos fazer algumas ressalvas com
relação ao agente cultural citado anteriormente, ou seja, devemos defini-lo não apenas como um
manipulador de massas, especialmente as urbanas, mas colocá-lo de uma forma ampla como
qualquer indivíduo que promova a cultura, seja ele músico, ator, pintor, escultor, dramaturgo,
produtor cultural, ou até mesmo o empresário que de alguma forma prática o mecenato, embora seja
uma denominação ampla para o termo “agente cultural”, nossa intenção é desconstruir o mito da
arte em si, ou seja, não apresentá-la como um fetiche, algo inalcansável, mas como uma produção e
reprodução dos bens simbólicos acessíveis ao grande público, pois é nesta democratização do fazer
arte que reside o alicerce da construção das identidades culturais, ou seja, a partir do momento em
que o sujeito histórico se reconhece não apenas como um espectador, mas como parte integrante da
arquitetura cultural de uma forma direta, as identidades tornam-se legítimas representantes da
constituição e significação cultural.
69
COELHO, Teixeira. O que é ação cultural? São Paulo: Brasiliense, 2001.p.16..
112
A PRODUÇÃO DA LEI 10.639/03: REFLEXÕES SOBRE SOCIEDADE,
CURRÍCULO E TEORIA DO CONHECIMENTO
Ana Maria do Nascimento Moura – UFRN∗
As disciplinas de Artes
Literatura e História
Cumprirão esse papel
De resgatar à memória
Da história africana
Feita de luta e glória70
O nosso problema se constitui a partir de algumas evidências presentes em textos elaborados
sobre a lei 10.639/03 – a qual “altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira” (BRASIL, 2003) – e consiste em
questionar quais os discursos construídos sobre a necessidade e as maneiras de implementação da
lei e suas conseqüências para o ensino de História. Buscamos compreender o processo de
construção da mesma, investigando as características do momento histórico que lhe deu origem e
assim perceber seus significados. Nesse artigo, vamos expor algumas inquietações que motivaram
este trabalho, refletindo sobre alguns caminhos possíveis para análise da questão, à luz das
possíveis relações entre as demandas sociais e a teoria do conhecimento histórico na produção de
currículos.
Entendemos a instituição da obrigatoriedade do ensino de “História e cultura afro-brasileira”
como parte de um processo mais amplo no qual se desenvolvem discussões sobre as relações
étnico-raciais na educação. Assim, antes da promulgação da lei 10.639/03 já era incluído nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (publicados em 1996 e 1997) o tema transversal “pluralidade
cultural”. Também é importante destacar que, em março de 2008, o artigo 26-A da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação é novamente alterado pela lei 11.645 para a inclusão da cultura indígena no
currículo escolar. Sendo assim, fica evidente que a lei 10.639/03 não é uma ação isolada do
governo71, mas é propiciada por um contexto histórico específico, nos quais as discussões entre
educação, identidades, cultura e grupos étnico-raciais são privilegiadas.
A luta do movimento negro em relação aos aspectos educacionais não é nova. O jornal
“Quilombo” e o I Congresso do Negro Brasileiro na década de 1950 já colocavam a educação como
∗
Graduanda do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bolsista PIBIC/CNPq.
LIMA, Maria Luzinete Dantas. Diretrizes Curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana. Prefeitura de Macaíba, s.d. (Texto adaptado em poesia
popular).
71
É importante destacar também que a lei é promulgada no início do mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva,
no qual ocorre a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e que, portanto,
o movimento negro, assim como outros grupos étnicos marginalizados, tem força institucional no governo.
70
113
importante forma de ascensão social para a população negra. No entanto, há um refluxo dos
movimentos anti-racista durante o período da ditadura militar no Brasil, só reaparecendo com
significativa intensidade a partir de 1978 (SANTOS, 2005). Por isso, o momento histórico que
pretendemos analisar engloba apenas o período posterior ao final da década de 1970, já que o
movimento negro assume uma nova configuração desde então, com a organização do Movimento
Negro Unificado (MNU) e posteriormente da Coordenação Nacional de Entidades Negras –
CONEN. Destacamos também que desde então ocorreram importantes eventos que permitiram a
união e o fortalecimento dos diversos segmentos que compunham o movimento, assim como a
elaboração de uma pauta de reivindicação bem definida: a Convenção Nacional do Negro pela
Constituinte (1986); a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida
(1995); o Encontro Nacional de Entidades Negras (1991); e a I Conferência Nacional de Promoção
da Igualdade Racial (2005).
Estamos, pois, em um momento no qual chama-se atenção com veemência para as
desigualdades étnico-culturais e importância das ações afirmativas, o que permitiu uma ampla
aceitação da lei 10.639/03. Não podemos, contudo, naturalizar a legislação como produto de um
crescimento contínuo de reivindicações e conquistas de um setor da sociedade. O processo que
culminou na elaboração da lei envolve disputas e sua implementação traz concepções e problemas
que refletem as tensões que lhe deram origem. Longe de ser um problema exclusivo do movimento
negro, ou mesmo dos afro-brasileiros, está em jogo visões da sociedade, concepções de educação,
de escola e, no caso específico que queremos trabalhar, da disciplina histórica, criando diferentes
expectativas, discursos, (re)ações e silêncios na sociedade civil, no Estado, nas escolas e nas
academias, não podendo ser excluído o cidadão comum desvinculado de movimentos sociais
organizados.
A epígrafe deste artigo é um exemplo dos discursos sobre esta questão, retirado de um texto
de literatura de cordel, escrito por Maria Luzinete Dantas Lima (licenciada em História) e publicado
pela Prefeitura de Macaíba/RN. Sem destoar do pensamento do movimento negro como um todo, o
texto demonstra a expectativa e o papel atribuído à disciplina de História, assim como Artes e
Literatura, de “resgatar a memória da história africana feita de luta e de glória”. Espera-se que essas
disciplinas contribuam para o fortalecimento da auto-estima das crianças e dos jovens afrobrasileiros, mostrando os aspectos positivos da história desse povo e seus ancestrais.
Outro exemplo, a Revista Nova Escola, principal periódico destinado aos professores da
Educação Básica no Brasil, traz uma breve discussão sobre a lei ainda no ano de sua promulgação,
questionando se o Ensino de História Afro-Brasileira deve ser obrigatório – tema da seção “Fórum”
do mês de maio de 2003, no qual três professores expressam sua opinião sobre assuntos polêmicos
(NOVA ESCOLA, 2003, p.13). A mesma revista dedica mais espaço à discussão sobre a
114
diversidade cultural no ano seguinte, destacando-se aqui a matéria sobre a questão racial nas escolas
em novembro, mês da consciência negra (Ibid, 2004). Esta traz discursos significativos para que
entendamos as expectativas e responsabilidades criadas com a promulgação da lei 10.639/03,
expressas em frases como “Está nas suas mãos, professor, o sucesso dessas crianças, negras e
brancas, como alunas e cidadãs” e “há sinais concretos de mudanças para o futuro nas relações
inter-raciais”.
Mas como a História (como disciplina) poderia fazer isso? É necessário refletir sobre as
conseqüências que a inclusão obrigatória dessa temática nas escolas tem para o ensino de História,
sendo necessário considerar a partir de que concepções e princípios isso se define: Para que serve,
afinal, o ensino de História? Quem e como se deve definir o que ensinar? Que interesses envolvem
essas definições?
Para Sales Augusto dos Santos, em artigo publicado pela própria Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC), “a legislação federal [...] é bem genérica e
não se preocupa com a implementação adequada do ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira”
(SANTOS, S. A., 2005, p.33). Já Lucimar Rosa Dias, na mesma coleção, afirma “que, do discurso
da escola sem distinção, chegamos à escola que começa a distinguir para compensar processos
desiguais entre a população brasileira” (DIAS, L. R; 2005, p.60).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Cultura
Afro-Brasileira e Africana – principal documento responsável por orientar os profissionais de
História e a Escola como um todo para a efetivação do ensino de história e cultura afro-brasileira –
parece não responder a questão. Seguindo a concepção de que as escolas são responsáveis pela
elaboração de seus projetos pedagógicos (com a qual concordamos), o documento se constitui como
diretrizes, norteando as ações pelo estabelecimento de princípios e paradoxalmente por
determinações, que incluem conteúdos obrigatórios e materiais a serem providenciados (BRASIL,
2004). Não encontramos, no entanto, uma reflexão específica da contribuição do ensino de História
para a consecução dos objetivos traçados – esse papel cabe aos profissionais de nossa área.
No entanto, os trabalhos produzidos nessa área mostram uma grande preocupação com a
aplicabilidade da lei na sala de aula, deixando de lado as análises sobre sua elaboração,
implementação e conseqüências. Isso decorre de uma grande demanda por parte de professores da
educação básica, cujo problema da má formação vem sendo amplamente discutido e que não
tiveram contato com o debate sobre a questão étnico-racial, nem conhecimento da História da
África nos seus cursos de graduação. Diante desse quadro, a produção historiográfica que trata
desse tema aborda questões metodológicas, conteúdos específicos, ou ainda reflexão sobre relatos
de experiências bem sucedidas, que podem subsidiar o professor na difícil tarefa que lhe foi legada.
115
Faz-se mister, contudo, entender como essas idéias assumem a forma de lei, principalmente
considerando que não se constitui em uma lei isolada, mas em uma alteração na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Também se torna evidente a necessidade de compreender os significados dessa
lei, ou desse discurso, a fim de que possamos orientar nossos estudos e práticas, visto que este é
presente não só na legislação, mas nos documentos e publicações que se destinam à sua
implementação.
Levantamos algumas hipóteses que mostram a necessidade de investigação desses problemas
apontados a partir de uma visão mais ampla, que busque a complexidade da produção da lei e a
especificidade do conhecimento histórico. Uma delas é de que o objetivo central do ensino desses
temas é o fortalecimento da auto-estima, a formação de uma identidade negra positiva, procurando
se transmitir valores quanto à aceitação de diferenças. Remetendo-nos mais uma vez à nossa
epígrafe, procura-se contar uma história “feita de luta e de glória”. Mas a História não deveria
desconstruir essa memória sacralizada? Não nos ensinaria a analisar, historicizar e criticar os
valores? Questionamo-nos, então, qual seria o objetivo do ensino de História e se esse não vem se
constituindo no senso comum e no ambiente escolar – especialmente para a primeira fase do Ensino
Fundamental – como uma educação cívica; acreditando existir, inclusive, uma confusão quanto às
noções de História e Memória. É evidente que é atribuído um papel político ao profissional de
História, do qual ele não pode se isentar, mas lembramos, como afirma Eric Hobsbawm (1998,
p.292), de que
uma história que seja destinada apenas para judeus (afro-americanos, ou gregos, ou
mulheres, ou proletários, ou homossexuais) não pode ser boa história, embora
possa ser uma história confortadora para aqueles que a praticam.
Lembramos também que o movimento de renovação do ensino na década de 1980 foi
provocado principalmente pela crítica no regime militar, ao uso abusivo da História para a formação
de uma identidade nacional ligada aos interesses do Estado (CAIMI, op. cit.). Considerando isso, a
simples substituição dessa identidade nacional por outras associadas a grupos marginalizados da
sociedade não mudaria a natureza do ensino, permanecendo uma História utilizada de forma acrítica para atender a determinados interesses. Dessa forma, a implementação do ensino de História
e Cultura afro-brasileira por si só não garante a concretização de um ensino crítico, renovado e
inclusivo. É nesse sentido que Christian Laville aponta para um paradoxo “de um ensino destinado
a uma determinada função, mas acusado de não cumprir outra que não lhe é mais atribuída”, ou
ainda, o paradoxo:
116
de se acreditar que pela manipulação dos conteúdos é possível dirigir as
consciências ou as memórias, quando a experiência do presente século mostra que
está longe de ser tão certo assim quanto tantos parecem acreditar; o que
provavelmente não passa de uma grande ilusão. (LAVILLE, 1999)
Intrinsecamente relacionada a essa questão, a discussão sobre a memória é outro aspecto
fundamental do nosso trabalho, à medida que esta “é um elemento constituinte do sentimento de
identidade” (POLLAK, 1992, p.5). Júnia S. Pereira coloca que a abordagem da história africana por
meio de literaturas e lendas tem formado uma imagem mitificada e homogênea do continente,
levando a uma percepção irreal, primitivista e distante da complexidade cultural, histórica e social
que lhe é característica, visto a dificuldade de confrontar diferentes tipos de fontes
(PEREIRA,2007). Assim, faz-se necessário uma reflexão sobre as relações entre memória, História
e ensino, observando como isso é pensado pelos produtores da lei.
Por outro lado, nossa reflexão sobre os objetivos do ensino de História parte de uma
afirmação corriqueira de que a História serve à formação do cidadão. É nesse sentido que é posta a
lei 10.639/03 para a sociedade, como ação que visa a promoção da igualdade e da cidadania. É
necessário, no entanto, problematizar a noção de cidadania que se coloca. Marcelo de Souza
Magalhães sintetiza como o conceito de cidadania assumiu diferentes significados ao longo da
época, sendo essas mudanças compreendidas por duas perspectivas: via ampliação de direitos (civis,
políticos, sociais e humanos), com base na igualdade e universalidade; e por uma ruptura cognitiva,
discutindo-se o direito à diferença, explicitando tensões entre a universalidade e a particularidade
(MAGALHÃES, 2003, p.179).
Nesse sentido, cabe questionar que cidadão se pretende formar e como se definir os valores
que o formarão. A afirmação de que o Ensino de História serve antes de tudo a formação do cidadão
fora questionada por outros autores, entre eles Ivo Mattozzi. Intitulando sua conferência de “A
história ensinada: educação cívica, educação social ou formação cognitiva?”, o autor mostra como a
transmissão de valores por meio do ensino de História não obtém resultados, afirmando que a
História escolar – tal como aparece nos manuais didáticos – não é capaz de alicerçar uma identidade
nacional forte e resistente, de formar o sentido crítico para interpretação das diferentes versões
construídas sobre a história local e pode ser bem menos influente do que as construções abusivas
dessa história. Além disso, ele aponta que os valores, as boas intenções, não se traduzem
necessariamente em ações eficazes: é preciso desenvolver uma capacidade para tal. Questiona-se,
também, como definir o sistema de valores a ser ensinado, não existindo algum que possa se
sobrepor aos demais, considerando-o universal (MATTOZZI, 1998).
Outra questão é que a discussão sobre a importância e pertinência da lei 10.639/03 leva-nos a
compreendê-la como ação afirmativa, mecanismo para inclusão de um grupo historicamente
117
excluído pelos saberes escolares – a população negra. A criação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) no Ministério da Educação (MEC) em julho de
2004, na qual há o Departamento de Educação para Diversidade e Cidadania, também induz a esse
pensamento, visto que o tratamento dos temas de História e cultura afro-brasileira passa a ser
responsabilidade da Secad e não da Secretaria de Educação Básica (Seb). Contudo, se esta
obrigatoriedade se dá por se tratar de uma “História dos excluídos”, não deveria então haver
também a inclusão da História dos diversos grupos minoritários que compõe a sociedade brasileira?
Dessa forma, consideramos que apenas a obrigatoriedade de conteúdos referentes a História e
cultura afro-brasileira no currículo escolar não é suficiente para a formação de uma visão plural da
sociedade e para uma educação inclusiva. Para tanto, é necessária antes uma reflexão sobre os
objetivos da disciplina histórica, suas especificidades e as relações étnico-raciais no Brasil; ou seja,
é necessário construir um currículo escolar que atenda as demandas da sociedade, mas a partir dos
pressupostos teóricos do conhecimento histórico.
Referências Bibliográficas
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relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília.
Out. 2004
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União de 10 de janeiro de 2003.
CAIMI, Flávia Eloísa. Conversas e controvérsias: o ensino de História no Brasil (1980-1998)
Passo Fundo: UPF Editora, 2001.
DIAS, Lucimar Rosa. Quantos passos já foram dados? A questão de raça nas leis educacionais – da
LDB de 1961 à Lei 10.639, de 2003. In: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
continuada, alfabetização e diversidade. História da educação do negro e outras histórias. Brasília:
Ministério da Educação, 2005. (Coleção Educação para todos).
Hobsbawm, Eric. Não basta a história de identidade. In:______. Sobre História. São Paulo:
Companhia das letras, 1998. p. 281-292.
LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 138, p.125-138, 1999.
LIMA, Maria Luzinete Dantas. Diretrizes Curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana. Prefeitura de
Macaíba, s.d. (Texto adaptado em poesia popular).
MATTOZZI, Ivo. A História ensinada: Educação Cívica, Educação Social ou Formação Cognitiva?
O Estudo da História, n. 3, Lisboa: Associação dos Professores de História, 1998. p. 23-50.
NOVA Escola. A Revista do Professor. São Paulo: Editora Abril, maio 2003.
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ENCONTRO NACIONAL PERSPECTIVAS DO ENSINO DE HISTÓRIA, 6., 2007, Natal.
Anais... Natal: EDUFRN, 2007.
118
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10,
1992, p.200-212.
SANTOS, S. A. dos. A lei 10.639 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In:
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação continuada, alfabetização e diversidade.
Educação anti-racista. Brasília: Ministério da Educação, 2005. p.21-37. (Coleção Educação para
todos).
119
“UMA FACA DE DOIS GUMES”: O USO DAS “RELAÇÕES
DIDÁTICAS” E A PRESENÇA DO ANACRONISMO NA PRÁTICA
PEDAGÓGICA DO PROFESSOR DE HISTÓRIA.
Kêlia Raquel Bezerra da Costa72
Graciane Maria Morais Alves73
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN
1.1 O Ensino de História e a “História ensinada"
O Ensino de história é um tema que provoca algumas inquietações. Em presença desse
cenário surge a necessidade de novas propostas nesse campo de ensino, provocando dessa maneira a
abertura de novos olhares. “A história do ensino de história apresenta linhas de continuidade e
rupturas quanto as suas características, metodologias, conteúdos e materiais didáticos”.
(FONSECA, 2006, p. 95).
No final da década de 70 do século XX o Brasil passava por um processo de
redemocratização, em razão da crise do regime militar, ascensão de novas possibilidades de se
pensar a realidade brasileira. Nessa perspectiva o ensino de história é centrado na visão positivista e
reprodutivista, a narração da História era feita através de uma sucessão de fatos, utilizando a
linearidade, dando atenção principal a História dos “vencedores”.
Em vista disso, notava-se uma ênfase na reconstrução dos métodos de ensino, os
professores se apropriavam de recursos audiovisuais para “modernizarem” suas aulas. Neste sentido
compreendemos certa dicotomia entre o método tradicional e os ditos instrumentos renovadores.
A partir dos anos 80 o argumento “reformas do ensino” foi se propagando cada fez mais
(BRASIL; Ministério da Educação, 2006 p.66). Essas “reformas do ensino” decorriam como uma
crítica a história escolar focada na “grande história”, consistia em uma proposta na qual se exigia
menos a memorização de fatos e datas. Buscava-se a análise critica dos alunos, ajudando dessa
forma a romper com a história alienante e levando o professor a ser mais que um mero reprodutor.
Diante desse momento de repensar o ensino de história Bittencourt afirma: “Estamos vivendo um
momento importante, no qual, conteúdos e métodos estão sendo reelaborados conjuntamente”.
(BITTENCOURT apud CUNHA, 2005, p.88).
As propostas de mudanças, no campo de ensino da história, principiadas no final da década
de 1980, no contexto “neoliberal conservador” momento este de busca de novos olhares para a
História, adquirindo o seu espaço de disciplina escolar, já que antes era englobada na disciplina
ciências sociais, juntamente com a Geografia. Nesse viés, em 1996 é elaborada a LDB (Lei de
72
73
Estudante de Graduação
Estudante de graduação
120
Diretrizes e Bases), norteando a qualidade educacional e a formação cidadã dos alunos, preparandoos para a vida.
Em 1997 foi criado os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), no qual a disciplina
História objetiva estabelecer relações históricas em múltiplas temporalidades e espacialidades,
ultrapassando a ordenação mecânica e eurocêntrica, na qual ensinar é transmitir o conteúdo e
aprender é reproduzir o que foi transmitido. Contudo, essa proposta contribui para uma melhor
aprendizagem do aluno, implicando na reflexão dos mesmos sobre sua realidade e identidade. A
idéia dos PCN”s foi uma ocasião onde a disciplina História conquista mais significação.
Os Parâmetros curriculares Nacionais da disciplina aludida cogitam com algumas categorias
tais como: processo histórico, temporalidades históricas, sujeitos históricos, trabalho, poder, cultura,
memória, e cidadania. É interessante ressaltar que essas categorias devem ser introduzidas na vida
escolar dos alunos nos seus primeiros anos de escolarização, ou seja, ainda na alfabetização. No
tocante aos sujeitos históricos não significa dar importância aos grandes personagens da história. “É
perceber também que a trama histórica não se localiza nas ações individuais, mas, no embate das
relações sociais no tempo”. (BRASIL; 2006, p.75).
1.2 Relações Didáticas aplicadas pelo professor de História no cenário da sala de aula.
As relações didáticas podem ser determinadas a partir de artifícios empregados pelos
professores em suas argumentações durante o desenvolvimento de suas aulas. Demonstra como
desígnio tornar as narrativas históricas mais interessantes, facilitando a captação do aluno, o
professor
dessa maneira na sua prática de ensino se utiliza dessas estratégias tais como:
exemplificações, analogias e metáforas, provocando o processo de ensino – aprendizagem.
No tocante a Metáfora seria uma figura de linguagem bastante integrada à analogia, as
mesmas são utilizadas quase sempre como sinônimos, se confundem, ambas comparam fatos, no
caso se tratando da metáfora equivale a uma maneira mais concisa e resumida de argumentar,
podemos perceber suas especificidades quando trabalhamos sua contribuição na prática de ensino.
O resultado da derivação, da condensação, dos elementos analógicos,
mantendo-se na estrutura do discurso o recurso de comparação, advertindo
ainda os autores que o processo que engendra a metáfora enviará uma
expressão que basta a si mesma, para estabelecer um raciocínio de tipo
comparativo”.74
As exemplificações consistiria em um recurso argumentativo também muito aludido pelos
docentes, baseado nas relações com o presente. Deste modo propõe em suma à ampliação do saber,
sendo de tal jeito uma atitude pelo qual se fundamenta o conteúdo, isto é, uma forma de explicitar
melhor a “regra”, no caso da disciplina História explicitar melhor os processos históricos..
74
PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA apud CUNHA, André Victor Seal. A (re) Invenção do saber
histórico escolar: apropriações das narrativas históricas escolares pela prática pedagógica dos professores
de História, 2005, p. 242.
121
Os exemplos são concebidos como instrumentos didáticos contribuindo com
aprendizagem por facilitarem a compreensão através do estabelecimento de
links, certos saberes históricos escolares, materializados na narrativa
necessitariam desta ponte, suporte ou mediação como queiram. Parece - nos
aqui está implícita a concepção de que existem temáticas portadoras de um
grau de dificuldade maior, precisando assim da estratégia do uso do exemplo,
para promover sua didatizaçao. (CUNHA, 2005, p.233).75
Diante deste prisma da História ensinada analisaremos nessa ocasião a habilidade analógica,
Monteiro (2007) aponta ser a busca de semelhanças em situações diferentes para propiciar a
compreensão do aluno. As analogias são freqüentemente utilizadas pelos professores de história na
sua prática de ensino com o intuito de adequar o saber acadêmico ao saber ensinado, com a tentativa
de que o aluno aprenda aquilo que considera de maior importância.
O professor de história com sua maneira própria de ser, pensar, agir e ensinar,
transforma seu conjunto de complexos saberes em conhecimento
efetivamente ensináveis , faz com que os alunos não apenas compreenda, mas
que assimile, incorpore e reflita sobre estes ensinamentos de variadas formas.
É uma reinvenção permanente.76
Deste modo, o professor de História em sua prática pedagógica costuma se aplicar dessas
analogias objetivando a simplificação do assunto para que o aluno compreenda, tornando-se dessa
maneira um recurso significativo na transmissão dos conteúdos. Nessa ótica, Monteiro (2007) nos
mostra em seus estudos que as analogias permitem a familiarização do saber ensinado. O
importante é que o professor vá além da limitada exposição do assunto, de maneira que o aluno fica
reprimido a decorar e sendo um mero receptor do que lhe é imposto. Devendo de tal modo
proporcionar um saber escolar com mais complexidade, capaz de despertar o interesse dos
discentes.
O trabalho com a racionalidade analógica, ou seja, a busca de semelhanças
em situações diferentes para propiciar a compreensão histórica, é um recurso
muito utilizado. Situações do mesmo tipo em tempo e sociedades diferentes,
sendo uma delas a atual, no tempo presente, são relacionadas ao mesmo
tempo, em que se busca promover a compreensão, este recurso permite
contemplar uma exigência de contextualização do objeto de estudo na
“realidade” do aluno, demanda que está pronta no campo educacional
brasileiro de forma acentuada.77
É apropriado ressaltar algumas visões distintas encontradas em relação ao uso de analogias
na prática de ensino de história. Deste modo segundo Duit citado por Monteiro (2007), considera o
75
CUNHA, André Victor Seal, Ibid, p.233.
76
FONSECA apud CUNHA, André Victor Seal, ibidem p. 26.
77
MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas, 2007, p.140.
122
uso de analogias bastante útil, o conteúdo fica mais familiarizado para os alunos. Prontamente
Lopes, também citado por Monteiro (2007), alude que as analogias podem fazer com que o aluno
não aprenda a apontar os conceitos históricos em diferentes tempos, articulando ainda que essas
habilidades possam diminuir o caráter científico dos conteúdos.
O que abrangemos deste modo são duas abordagens eminentes de autores, a de Lopes,
enfatiza que as capacidades analógicas estão intimamente ligadas ao risco de se perder o potencial
explicativo, já que ocorre uma aproximação com o senso comum. Não obstante Duit ressalva que o
processo analógico é de grande relevância, pois, pode transformar em familiar “aquilo” que era
“alheio” para o aluno. Apesar de sua aproximação com as analogias Duit não abandona o cuidado
que se deve ter com sua utilização.
1-Como nunca existe uma equivalência absoluta entre a analogia e o objeto
alvo, os traços de diferenças podem ser fontes de engano; 2- o raciocínio
analógico pressupõe um bom conhecimento da analogia, pois, o que for mal
compreendido na analogia será transferido para o objeto alvo também
incorretamente; 3- o uso de analogias, apesar de freqüente no cotidiano exige
orientação cuidadosa no ensino, não devendo ser espontâneo. 78
Com a intenção de fazer com que o aluno aprenda mais facilmente, usando as analogias, o
professor corre o risco de cometer um anacronismo, pois a comparação que ele faz pode ser
simplificada, podendo com isso atribuir à situação do passado o mesmo significado da situação do
presente, fazendo nesse viés com que os educandos não atentem as diferentes temporalidades. O
tempo é visto como um recurso de grande importância para o entendimento da disciplina história,
em vista disso dar-se relevância as suas diferenças e semelhanças no contexto histórico. “Sendo
assim é necessário lembrar que o tempo histórico não tem uma dimensão homogênea, mais
comporta durações variadas, como ter sido largamente discutido na historiografia”. (BRASIL, 2005,
p.70).
Destarte, em vista da não percepção da importância das diferentes temporalidades é que se
nota a ocorrência do anacronismo em sala de aula, o professor utiliza-se das relações didáticas
procurando transformar o “estranho” em “íntimo”, mas, no entanto não tendo prudência ao tempo
acaba transmitindo uma história com alguns equívocos.
Quando falarmos em anacronismo estamos nos referindo a uma falha que constitui em
situar fatos ou acontecimentos em tempos distintos. Acontece geralmente quando se refere ou se
escreve sobre uma época anterior. Nesse sentido o professor de história esta em constante risco de
cometer um anacronismo, já que está sempre dialogando com o passado.
78
LOPES apud MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas, 2007, p.140
123
As considerações sobre a riqueza e a complexidade do conceito de tempo são
imprescindíveis para que sejam evitados os anacronismo, não tão raros nas
explicações teóricas. o anacronismo consiste em atribuir a determinadas
sociedades do passado nossos próprios sentimentos ou razões, e assim,
interpretar essas ações ou aplicar critérios e conceitos que foram elaborados
para uma determinada época , em circunstância específica, para avaliar outras
épocas de características diferentes. (BRASIL; Ministério da Educação,
2006, p.71).79
Contudo, apesar de não existir um passado, como diz Bittencourt, “puro”, que possa ser
reconstituído como era, percebemos, deste modo que essas relações didáticas são válidas, não
obstante podem levar ao anacronismo, tornando-se um risco para a apreensão do aluno, podendo
levá-lo a entender de forma equivocada o conteúdo ensinado. Assim, o anacronismo seria uma
análise imprecisa dos processos históricos, justamente porque estes são explanados a partir de um
nexo específico da atualidade, que é transplantado para explicar o objeto ou fenômeno em estudo.
79
BRASIL; Ministério da Educação, 2006. P. 71.
124
O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO RN E SUAS POSSIBILIDADES
Úrsula Andréa de Araújo Silva80
O ensino, de forma geral, carece de mudanças e a discussão sobre a sua precariedade, tanto
do ponto de vista estrutural como, por exemplo, as reformulações curriculares constantes, os PCN’s,
a inclusão e/ ou exclusão de determinado tema no currículo - tem preocupado autoridades,
professores e a sociedade civil. Sabemos que as mudanças estão ocorrendo a médio e longo prazo,
embora de forma muito lenta e, por isso, é necessário realizar análises, compreensões acerca do
currículo e da formação do professor e do material que o auxilia – o livro didático e os demais
instrumentos auxiliares na formação do aluno, para a partir daí sermos propositivos quanto as
possibilidades da formação do conhecimento e elencar grupos, ou seja, instrumentos, facilitadores
na formação do corpo discente em geral. Circe Bittencourt coloca em seu trabalho quatro visões
para o livro didático: mercadoria, depositário dos conteúdos escolares, instrumento pedagógico e
veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Acrescente-se a isso a
incompatibilidade do discurso acadêmico e a postura tomada por parte dos profissionais que os
adotam. Assim quero procurar entender de que maneira o processo de produção, circulação e
recepção do livro didático de História do Rio Grande do Norte tem sido estabelecido no Estado do
Rio Grande do Norte entre as décadas de 1970 e 2000 procurando observar os efeitos dessa História
veiculada.
A EXPERIÊNCIA
O que eu vou apresentar aqui é uma proposta de pesquisa que surgiu através de minha
experiência como professora do Ensino Fundamental I nos anos de 2004 e 2005. Então, vamos a
ela. No primeiro ano atuei como professora polivalente do 3º ano do Ensino Fundamental I apesar
de estar me graduando em História e conseqüentemente não ser adequada para essa função a qual
deveria ser exercida por uma pedagoga. Contudo, pelas circunstâncias, ali estava eu e como
professora desse nível não lecionava os conteúdos sobre a História do Rio Grande do Norte por
serem trabalhados na série seguinte. No entanto, eu era na escola naquele momento um referencial
para a professora daquela turma para conversas sobre os temas, os assuntos, retirar dúvidas, sugerir
pesquisas, etc.
No ano seguinte a escola modificou sua metodologia de trabalho sendo as disciplinas
distribuídas entre as antigas professoras polivalentes e cada uma ficou responsável por duas
disciplinas. Eu fui incumbida de lecionar Português e História, o que em muito me agradou. A partir
80
Licenciada, bacharela e mestre em História pela UFRN. Atualmente é professora substituta no mesmo departamento.
125
daí eu era a professora de História de todas as turmas. Por causa disso, tive a oportunidade de
desenvolver um trabalho sobre o Rio Grande do Norte com a turma do 4º ano naquela escola.
Foi então que passei a conhecer mais de perto o livro didático sobre o estado e seus limites.
Mas, antes de apontar algumas preocupações acerca dele, vamos pensar um pouco sobre o livro
didático de forma genérica.
Segundo Circe Bittencourt, o livro didático “é um objeto de ‘múltiplas facetas’ e possui uma
natureza complexa”.81 Podemos dizer que esta afirmação relaciona-se com o fato de haver uma
série de influências no processo de composição de um livro, principalmente quando este
instrumento de auxílio didático é encarado como uma mercadoria que precisa atender ao mercado
editorial e incorporar as novas tecnologias. Muitas vezes os livros passam por reformulações que os
autores não estão conscientes, como veremos mais adiante.
Circe Bittencourt coloca em seu trabalho quatro visões para o livro didático: mercadoria,
depositário dos conteúdos escolares, instrumento pedagógico e veiculo portador de um sistema de
valores, de uma ideologia, de uma cultura.
Assim, podemos dizer que a problemática na qual o livro didático está inserida é bastante
controversa na medida em que observamos uma exigência de mercado, a fabricação de livros
regionais através de modelos previamente estabelecidos e a incompatibilidade do discurso
acadêmico e a postura tomada por parte dos profissionais que os adotam.
Alguns professores e/ ou escolas para demonstrar a insatisfação mediante o exposto ou para
tentar preencher lacunas temáticas partem para a fabricação e utilização de apostilas produzidas por
conta própria. Exemplo disso são as apostilas sobre o Rio Grande do Norte que são comercializadas
corriqueiramente nas escolas. Muitas delas são produzidas sem o devido tratamento ou
conhecimento histórico ou historiográfico e acabam por reproduzirem o modelo tradicional ao qual
teoricamente confrontam ou mesmo estão apoiadas nesses mesmos dados.
Além de questões teóricas e reflexões metodológicas, o mercado e o seu público-alvo
precisam de material de boa qualidade para que efetivamente possamos despertar nos alunos o
prazer da descoberta e a prática reflexiva.
Um grave problema que se relaciona a isso é a desqualificação profissional, principalmente
no que se refere aos professores das séries iniciais (os polivalentes) e o medo de aplicar novas
tecnologias e didáticas em sala de aula. Não quero com isso dizer que os profissionais da Pedagogia
deveriam dar conta de todas as diversas disciplinas que lecionam porque isso equivaleria a
obrigatoriedade de cursar as diversas licenciaturas. E convenhamos que isso não garante a eficiência
desse aprendizado. Porém, isso é uma outra discussão: a reformulação dos cursos superiores.
81
BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In: ______ (org.). O saber histórico na sala de
aula. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2001. p. 71.
126
Voltemos aos livros didáticos com um pequeno histórico. Kazumi Munakata demonstra em
seu trabalho que durante as décadas de 1970 e 1980 houve
uma série de pesquisas acadêmicas [que] dedicaram-se a flagrar nos
livros didáticos e paradidáticos brasileiros a presença insidiosa da mentira,
da manipulação, do preconceito, da mistificação, da legitimação da
dominação e da exploração burguesas – em suma, da ideologia. Os títulos e
os subtítulos de algumas dessas pesquisas já lhes indicavam a intenção:
‘versão fabricada’, ‘história mal contada’, ‘belas mentiras’.82
Era corrente em todos os níveis da sociedade a crítica à ditadura no Brasil. Isso era
favorecido pela conjuntura política da época. O livro didático era suspeito assim como qualquer
organização escolar relacionada ao regime. Ocorreu a reformulação dos currículos das disciplinas.
O autor atenta para o fato de que, sem dúvida, muitas mentiras foram inseridas nas
produções da época, que por trás de frases inocentes havia sempre um interesse, uma tendência
ideológica a ser absorvida, ainda que a forma sutil e discreta não despertasse a atenção do público
em geral. Ele considera que os autores foram contribuintes conscientes para a propagação desse
estilo, fazendo “o jogo do ‘outro lado’, adversário ou inimigo”.83
As pesquisas acadêmicas continuaram em 1990 e uma comissão concluiu que os livros
didáticos “apresentavam ‘distorções e erros crassos’ de informação”.84 Alguns livros estimulavam o
preconceito, além de não despertarem os alunos para a compreensão da realidade, bloqueando a
formação da cidadania.
Os livros foram acusados abertamente de serem instrumentos de difusão da ideologia do
Período Militar. As críticas de 1970 a 1990 são idênticas, ressaltando sempre uma tendência
alienante.
Contudo, o livro enquanto mercadoria precisa acompanhar as vertentes do mercado e estar
equipado para atender o público consumidor (entenda-se corpo docente) com suas preferências.
Assim as editoras passam a produzir livros para todos os gostos, crítico, tradicional, inovador. Mas
essa também é uma via de mão dupla. Muitas vezes os professores têm que se contentarem com o
que o mercado oferece.
Com o desejo de introduzir resultados de pesquisas e a reflexão nas salas de aula foi que as
inovações herdadas da Escola dos Annales começaram a fazer parte do novo modelo de livro
82
MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In:
FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 271.
83
Ibid. p. 272.
84
Ibid. p. 273.
127
didático. Isso ocasionou o aumento no número de editoras e a especialização dos seus trabalhadores,
visando o atendimento à demanda. A proposta da Nova História começou a ser integrada no
cotidiano escolar. É verdade que nem todos obtiveram o sucesso desejado, seja pela falta de
qualificação profissional ou porque se questionam: para quê fazer o aluno refletir se ele pode
decorar e não causar problemas?
Munakata mostra que as editoras não se preocupam somente com os lucros. Elas também
querem apresentar um produto de qualidade para não perder a sua clientela. Para garantir essa
qualidade as editoras procuram colocar em cargos como revisão, editoração e produção pessoas que
sejam das áreas específicas e que estejam em contato com as renovações dos currículos acadêmicos.
Para atender conjuntamente a todos os requisitos que um livro devem ter para ser bem aceito e bem
vendido, as editoras tentam incorporar as exigências do mercado, da produção acadêmica, das
propostas curriculares e dela própria.
O mercado também é diversificado e, segundo o editor Lizâneas de Souza Lima, o livro
acompanha as preferências dos professores que são quem decide qual será o nível que sua clientela
atingirá. Esse editor relata que muitas vezes os representantes já sabem de antemão qual o livro que
mais agrada determinada equipe. Para ele, livros que não são nem sequer divulgados no Sudeste
fazem grande sucesso no interior do Nordeste, estereotipando a prática pedagógica nordestina como
ruim.
Para Munakata os livros didáticos optaram por tratar conteúdos consagrados pela tradição.
Os modelos, os assuntos e as abordagens também se mostram similares. Os críticos denunciam que
a nova roupagem esconde a perpetuação da concepção de “história ‘pronta e acabada’”, impedindo
a reflexão e propagando a “história oficial”.85 Isso gerou a necessidade de explicitar, por parte dos
autores, seus princípios, comumente na introdução de seus livros. Quando isso não ocorre, é
possível observar sua declaração de princípios ao tratar da ditadura militar no Brasil. Os autores
produziram ou tentaram produzir uma História dos vencidos. Para isso utilizaram a “História oficial
com temas, períodos e personagens, invertendo o significado ou reorganizando-os mediante certos
conceitos”.86 Mas será que podemos dizer que eles atingiram seus objetivos? Produziu-se a História
dos vencidos a partir de fontes oficiais? Onde está a sua versão? Bem, acreditamos que isso não é
possível.
A partir de tudo o que foi explanado, podemos dizer que apesar de terem ocorrido mudanças
de atitude e inovações acadêmicas e historiográficas, os livros didáticos de História obedecem
primeiramente ao mercado e às exigências editoriais. Esses fatores condicionam o produto que
85
MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In:
FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 290.
86
Ibid. p. 293.
128
nossos alunos consomem e absorvem. Isso acarreta a manutenção dos quadros de ensino e desmente
a propaganda que os profissionais de hoje fazem. Conclusão: muita teoria e pouca mudança prática.
É certo que sabemos das dificuldades que existem para a ruptura de uma tradição, porém se
desejamos realmente que se desperte a partir de agora para uma prática reflexiva e uma maior
afinidade do público em geral com a História devemos agir como podemos: em sala de aula e
produzindo material de boa qualidade, tentando com isso também contribuir para a formação de
uma nova imagem, contrária a corrente que professa a inabilidade pedagógica nordestina.
Talvez haja realmente motivo para se acreditar nesse estereótipo dado que não agimos para
mudar o quadro de pouca qualificação profissional e muitas vezes acadêmica. Muitos reclamam e
pouquíssimos fazem no âmbito didático. O que existe é uma passividade imensa por parte dos
pesquisadores da academia que parecem não se interessar pelos outros níveis de ensino ou quando
muito detectam problemas, mas, em geral, não propõem nem produzem soluções que possam ser
postas em discussão e experimentado como uma possibilidade de mudança ou ao menos para
mostrar que uma educação de qualidade só será possível se arriscarmos a aplicação de alguns
modelos que possam ser aprimorados com a experiência prática saída do contato entre
pesquisadores e professores da rede de ensino.
Depois de observar todas essas interfaces do livro didático em geral, precisamos nos ater ao
objeto escolhido e as preocupações que norteiam essa pesquisa. E dessa forma, surgem vários
questionamentos tais como: Quem são os autores? Que informações eles possuem sobre a História
do estado? Quais são suas fontes? Como a editora intervém nessa produção? Quais são os prazos
disponibilizados para as etapas da produção? Como é feito o acesso às demandas de conteúdos?
Utilizam pesquisadores locais? Como averiguam a qualidade da informação recebida? Qual o
conhecimento do estado e de sua história? Qual o porte da editora? Qual a tiragem desse exemplar?
E o mapeamento da adoção do livro?
Essas são algumas questões que podem ajudar a entender quais as possibilidades que o livro
didático de História do Rio Grande do Norte oferece aos professores e alunos, buscando entendê-lo
de forma ampla através do processo de produção, circulação e recepção do mesmo neste Estado.
Essa experiência teve como base e a pesquisa tem como base os livros didáticos de História
e Geografia do 4º ano do Ensino Fundamental I produzidos pela Editora do Brasil e de autoria de
Aleuda Marinho e Carlos Noronha intitulado “Rio Grande do Norte, meu estado” e o livro didático
produzido por Lílian Sourient, Roseni Rudek e Rosiane Camargo denominado “Rio Grande do
Norte: Interagindo com a História e a Geografia”.
129
OS INDÍGENAS NA HISTÓRIA: UMA ANÁLISE DE SUA
REPRESENTAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA PÓS PNLD
2007 E 2008
Fabricia Maria Lucas Lima.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN.
Com o fim último de entender a proposta de uma educação de qualidade, democrática e
isenta de visões etnocêntricas ou superficiais e a reflexão sobre os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN)87 leva-nos a observar que a preocupação constante com a nova percepção de
História e de como ensiná-la no intuito de ofertar uma disciplina formativa, foi o que levou a
problematização e a teorização de tantas produções acadêmicas focadas nas perspectivas apontadas
por Marc Ferro implicando numa:
tendência acadêmica sistemática que acabaria por exercer um papel importante no
sentido de constituir uma forma de pensar o livro didático de História e as políticas
públicas a ele associadas exclusivamente enquanto políticas sociais discriminatória
e homogeneizadoras88.
A partir disso o que nos propomos é uma análise da recente produção didática aprovada no
processo avaliativo do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Nosso foco é o discurso e
problematização da temática indígena. Enquanto livro didático compreenderemos e o abordaremos,
sob o conceito de “obras produzidas com o objetivo de auxiliar no ensino de determinada
disciplina”89. Na perspectiva de trazermos esse gênero textual como uma fonte histórica nos
baseamos em Alain Choppin quando diz que “os livros didáticos não são apenas instrumentos
pedagógicos são também produtos de grupos sociais que procuram por intermédio deles, perpetuar
suas identidades, seus valores, suas tradições, suas culturas”90.
É precisamente nesse sentido que o trabalho com o livro didático encontra o referencial teórico
metodológico da história, uma vez que remete a uma história cultural, inserindo-se numa história
das representações e das idéias, e uma abordagem da história do discurso91.
Apropriando-nos dessa concepção de “construção” podemos dizer que o livro didático
também é construído trata-se, pois de “um objeto cultural de difícil definição, por ser uma obra
bastante complexa que se caracteriza pela interferência de vários sujeitos em sua confecção,
87
BRASIL- lei 9.394/96-PCN
MIRANDA, Sonia Regina; LUCA, Tânia Regina. O livro didático de história hoje: um panorama a partir do
PNLD. In: Revista Brasileira de História, nº. 48, 2006, p. 126
89
BATISTA, Antonio Augusto Gomes & ROJO, Roxane. Livros escolares no Brasil: a produção científica. In:
VAL, Maria da Graça Costa & MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento e
cidadania. 2005, pg. 15
90
CHOPPIN, Alain apud BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. (Org.) O saber histórico na sala de aula.
2002, pg. 69
91
BARROS José daAssunção. O campo da história: especialidades e abordagens, 2004 pg. 19
88
130
circulação e consumo”92, estando as mesmas ligadas a produção e difusão do conhecimento ou
indústria cultural junto ao controle curricular.
É inerente ao livro didático a exposição do conteúdo de forma clara e coesa, de acordo com
uma perspectiva pedagógica93 que orienta sua organização, a mesma servindo de critério para
distribuição dos conteúdos nos volumes destinados a cada nível da educação básica regular “em
seus dois seguimentos: os de 1ª à 4ª e os de 5ª à 8ª série. Para o primeiro seguimento são avaliados
adquiridos e distribuídos títulos de alfabetização, ciências, estudos sociais, matemática e português;
para o segundo, de ciências, geografia, história, matemática e português94.
Como não é pedagogicamente recomendável a produção de um volume único do
material didático, o conteúdo fragmenta-se em assuntos ou blocos de contexto que são abordados de
forma seqüencial pelas coleções e de acordo com a concepção de ensino histórico ao qual a equipe
autoral e a editora se filiar, por exemplo história integrada ou história temática.
Assim, há conteúdos e temáticas que são abordados com mais ênfase em alguma séries que
em outras, subseqüentemente engendrando novos aspectos, aumentando a visão e complexidade do
aluno, para os diversos fatores que atuam no processo histórico. Lembrando que isto vem
concomitante a seu avanço nos anos de ensino e idade, funcionando como determinadores de sua
maturidade cognitiva. “A partir da quinta série, momento em que a disciplina é ministrada por
especialistas, a cultura histórica está mais sedimentada e as inovações ocorrem na maioria das vezes
na apresentação formal do livro, sendo mais limitados quanto aos conteúdos”95.
A finalidade e apresentação do livro didático torna-o um dos objetos preferenciais de estudo,
e entre estes destacam-se os de história, tendo como dimensão de análise o seu conteúdo, sua
produção, circulação e distribuição. Esta preferência de objeto, explica-se na tradição de que a
história tem um peso importante na formação das pessoas seja na afirmativa de formar um cidadão
com espírito patriótico ou na concepção de sujeitos históricos atuantes e conscientes.
Em estudo recente sobre o predomínio de investigações da produção didática nessa
área a partir da segunda metade do século passado(...), a historiadora Verena R.
Garcia, destaca o papel político dos manuais escolares de história considerando-os
verdadeiras autobiografias dos Estados modernos.96
Isso porque desde que existe a disciplina, existe à propósito os currículos que remetem aos
procedimentos e ao que é ensinado, postulando dessa forma uma seleção primária dos conteúdos,
embora que, no tocante aos livros didáticos por mais que dividam e proponham uma prévia
92
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2004, pg. 301
IDEM, pg. 296
94
BATISTA, Antonio Augusto Gomes; ROJO, Roxane; ZÚÑIGA, Nora Cabrera. Produzindo livros didáticos em
tempos de mudança (1999-2002) In: VAL, Maria da Graça Costa & MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de
língua portuguesa: letramento e cidadania. 2005, pg. 49
95
BITTENCOURT. Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2004, pg. 309
96
BITTENCOURT. Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2004, pg. 303
93
131
ordenação dos fatos, o que se apreende dos textos é uma postura mais neutra, a qual “demonstra que
ele diferentemente de outros textos impressos, tem desde seu processo inicial de confecção, o
pressuposto de uma leitura que necessita da intermediação”97.
Contudo desejamos descobrir não só o quê e como, mas também o por quê dessa
configuração do material didático, obedecendo a essa proposta, para o estudo de seu texto
utilizamos das perspectivas analíticas de Bakhtin. Quando consideramos a introdução da prosa
comunicativa nos discursos contemporâneos, aparece, como que por encanto, a emergência de uma
nova forma de percebermos os textos e sua construção. Esta nova forma deve estar apta a
contemplar o caráter comunicativo dos textos atuais, impregnados de uma capacidade de
interação98, contrapondo-se a classificação dos gêneros textuais e das ordens do discurso. Como no
paradigma e hierárquico da teoria aristotélica, que prescreve o estudo das práticas discursivas para a
retórica.
Ao criar um espaço para as diversas manifestações não restritas às palavras, típicas a
comunicação de massa moderna, tais como: imagens, efeitos especiais, música, letreiros luminosos,
jingles99, distanciando-se da teoria clássica, a teoria bakhtianeana mostra-se sensível a compreensão
da adequação textual ao ritmo da vida moderna. Que necessita de objetividade para atingir com
eficiência de tempo o maior número de pessoas, permitindo a influência da prosa na premissa de
uma interação direta e simples.
Assim, Bakhtin distingue os gêneros discursivos primários (da comunicação
cotidiana) dos gêneros discursivos secundários (da comunicação produzida a partir
de códigos culturais elaborados, como a escrita). (...). Em acontecimentos como
esses, ambas as esferas se modificam e se complementam. Assim, um diálogo
perde sua relação interativa com o contexto da comunicação ordinária quando
entra, por exemplo, para um texto artístico, uma entrevista jornalística, um
romance ou uma crônica.100
Trouxemos a análise discursiva desta teoria para o estudo dos discursos no livro didático,
por compreender o mesmo como um exemplar dos textos contemporâneos, percebendo, então, uma
intensa relação interativa manifestada na apresentação e organização das idéias. Através da
construção de uma relação próxima em suas linhas que ainda assim necessita da intermediação para
uma leitura compreensiva.
Segundo o relato mitológico, os gregos são descendentes de Hélen daí o nome de
helenos como eles próprios se denominavam.
97
98
IDEM, pg. 317
MACHADO, Irene. Genêros discursivos In. BRAIT, B eth (Org.) Bakhtin conceitos chaves, 2005. pg. 151-
152.
99
100
Idem. pg.168.
Idem pg.157.
132
De todas as civilizações antigas a mais estudadas tem sido a grega. Isso
porque consideramos que lá estão as origens da atual civilização ocidental que é a
nossa própria civilização101.
Propondo-se a sistematizar a produção historiográfica, realizando uma transposição didática não de
origem docente ou intelectual, mas uma derivada da noosfera. Nossos critérios de seleção foram
formulados para uma análise comparativa entre os volumes. Nosso primeiro critério de seleção foi
optarmos pelo número de quatro coleções: Projeto Araribá da editora Moderna, História sociedade e
cidadania da editora FTD, Construindo consciências-História da editora Scipione e História Hoje da
editora Ática:
Características
Coleções
Projeto
Araribá
(História)
História
Autores
(org.)
Maria
Raquel
Apolinário
Volume
(História)
Moderna
1
FTD
Proposta
Trabalho
de Temática Indígena (nº
de capítulos)
História por eixos 1 (Unidade 6, capítulo 4
temáticos
e 5)
1
História integrada
1 (capítulo 15)
Scipione
1
História temática
2 (capítulo 6 e 7)
Ática
1
História temática
3 (capítulo 8, 9 e 14)
Melani
Alfredo
Sociedade e Boulos
Cidadania
Editoras
Junior
Leonel
Construindo
Consciências
História
Itaussu
de
A. Mello &
Luís
CesarAmad
Costa
História
Oldimar
Hoje
Cardoso
P
A duas primeiras coleções foram as mais adotadas na cidade de Mossoró. As outras duas,
são coleções bem recomendadas pelo processo avaliativo no PNLD do corrente ano, corroborando
com nossos resultados preliminares e análises primordiais dos dados retirados dos livros didáticos
estudados, indicam-nos dois pontos de partida, o primeiro, acreditamos ser uma permanência.
Identificamos que de maneira recorrente o conteúdo histórico nas coleções recentemente aprovadas,
ainda obedecem a explanação de temáticas específicas em volumes e capítulos isolados.
101
TOTA, Antônio Pedro e LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. Vol.5ª; cap.2, 2002. pg.27.
133
Isto reduz nosso universo de análise de uma coleção inteira para uma média de dois a três
volumes dentro da mesma coleção. Posto isso, estamos considerando a delimitação do objeto à uma
coleção composta por quatro volumes, para a disciplina e um volume que se dispôs a trabalhar com
maior ênfase, o assunto correspondente ao nosso foco de estudo.
Na maioria das vezes esta fragmentação está em conformidade ao período intermediário da
Educação Básica regular: doze anos de estudo (nove para o ensino fundamental e três para o ensino
médio), observando uma divisão em níveis e uma distribuição gradativa do conteúdo dentro dos
livros. Dessa forma, no nível Fundamental nos livros destinados para os anos iniciais do 1º ao
5ºano, o conteúdo possui uma organização de perspectiva geográfica, do mais distante ao mais
próximo (círculos concêntricos). Já no período compreendido entre o 6° e o 9° ano a perspectiva é
cronológica, como se fosse mais fácil aprender o tempo mais retrógrado do que o tempo
contemporâneo ou estivesse tentando estabelecer origens para o conhecimento e tempo histórico
numa clara menção aos povos ágrafos. Quem nunca teve um livro que trouxesse “os homem das
cavernas ou a pré-história?”.
Embora não exista um fundamento ou estudo cognitivo, como nas ciências exatas, que possa
oferecer um embasamento para justificar e afirmar a necessidade desta usual gradação do
conhecimento. Aparentemente esta organização corresponde a uma tradição bem vinda, e reforçada
pelas editoras, uma vez que lhes garante a compra e que o professor, último responsável pela
escolha do livro, sente-se mais confortável com uma organização conteúdistica já conhecida.
O Projeto Araribá junto com a Construindo consciências-História assume a característica de
trabalhar por eixos temáticos. Já a coleção: História sociedade e cidadania e a História Hoje
trabalham na perspectiva de uma história integrada. As editoras Ática e Moderna tem se destacado
por suas coleções terem uma larga aceitação na região Nordeste, correspondendo ao que
acreditamos ser uma compartilhamento do mercado editorial de didáticos no Brasil, o investimento
pesado (técnicas de venda, assessoramento no trabalho com suas coleções, e divulgação do
material) das mesmas, repercutiu em lucros para as companhias ou grupos aos quais estão
vinculadas. O histórico dessas editoras, mostra que é crescente a participação de grandes
companhias, inclusive internacionais, na expansão do setor editorial de didáticos e na
mercantilização do setor educacional. Em outras palavras, o mercado de livro para crianças é coisa
para gente grande.
O segundo ponto de partida identificado em nossas análises relaciona-se diretamente com
nosso foco. No tratamento da temática indígena as coleções têm se esforçado em encaminhar seus
discursos na base de oferecer um mínimo de reconhecimento da importância de se enfatizar a
pluralidade e a diversidade das matrizes étnicas que compõem a formação dos povos ameríndios.
Das coleções analisadas uma apresentou inclusive o diferencial de trabalhar em capítulos distintos
134
as nações indígenas da América pré-colombiana e as que ocupavam o território brasileiro. Quando
geralmente aparece a opção de se trabalhar apenas uma das duas e a referência às demais recaia na
acertiva: “ existem muitas diferenças”
No tocante ainda à organização do conteúdo e apresentação do material didático, o PNLD
responde por uma parcela significativa de influência no empenho das editoras em adequar suas
coleções as políticas públicas. Sobretudo a partir de 1996, quando tem início a avaliação pedagógica
das coleções a serem adquiridas com os recursos públicos. E as editoras fazem isso para que não
diminua sua cota de participação e lucros na compra realizada pela União, claro que isto é ocultado
numa reafirmada disposição das editoras de produzir coleções que compartilham um ideal de
educação.
Como nos aponta Cassiano102 em seu artigo que realiza considerações e aponta dados
importante para compreensão da dinâmica do mercado editorial de didáticos e suas ações
focalizando o PNLD. Segundo esta autora as políticas educacionais do país são a chave para se
entender não só a configuração do material didático bem como as práticas de mercado tão usuais na
educação, circunscritas as estratégias e práticas comerciais, que tem no representante seu agente de
comunicação entre a escola e as editoras, nesse mecanismo, temos a localização estratégica dessas
representações103 sempre próximas ao setor escolar, tanto o público como o privado. Interessante
também é perceber que apesar de o livro ser destinado aos alunos, idéia inclusive reforçada nas
primeiras páginas denominadas de carta ao aluno ou dedicatória, as práticas dos representantes de
editoras visam sobretudo ao professor como última instância de decisão sobre o que e como os
alunos vão aprender, obedecendo as premissas de escolha democrática do PNLD em que o
professor escolhe o livro com o qual irá trabalhar.
Ao iniciar o estudo de História neste livro, você perceberá que ele contém muitos
textos. Nossa intenção foi deixá-lo com o conteúdo bem completo para que você
encontre aqui o que precisa ou deseja saber sobre o estudo de História de sua série.
O importante não é decorar todos os nomes das pessoas, lugares e acontecimentos,
mas entender com a orientação do seu professor(...)104.
Ainda no pensamento da autora, essa política incide sobre a produção didática gerando uma
outra característica das ações do mercado editorial, a adequação das coleções em sua formatação e
conteúdo circunscritas nesta dinâmica. Justificadas por estarem inseridas e voltadas para uma
política de educação das massas com eficiência de tempo à baixo custo.
102
CASSIANO, Célia Cristina Figueiredo. Reconfiguração do mercado editorial brasileiro de livros didáticos no
início do século XXI: história das editoras e suas práticas comerciais, 2005.
103
CASSIANO, Célia Cristina Figueiredo. Reconfiguração do mercado editorial brasileiro de livros didáticos no
início do século XXI: história das editoras e suas práticas comerciais, 2005.pg.301
104
BONIFAZI, Elio; DELLAMONICA, Umberto. Descobrindo a História: Idade Antiga e Medieval. Vol. 7ª,
2007.
135
Então a política da indústria editorial visa garantir o mercado, ao produzir livros didáticos,
compreendendo o equilíbrio entre inovação e permanência sustentado na primazia da rentabilidade,
denotando a configuração de suas coleções. Marcadas por uma permanência da segregação
temática, pois a abordagem dos povos indígenas restringe-se à volumes e em capítulos isolados.
Embora, que mencionem a diversidade e complexidade das matrizes étnicas na formação desses
grupos. Dessa maneira temos colocada a interrelação existente entre a organização e configuração
dos conteúdos nos materiais didáticos as proposições das políticas públicas voltadas para a
avaliação e compra dos mesmos, e as práticas comerciais, como esferas separadas, entretanto com
ações de influência que insurgem umas sobres as outras.
REFRÊNCIAS:
BATISTA, Antonio Augusto Gomes & ROJO, Roxane. Livros escolares no Brasil: a produção
científica. In: VAL, Maria da Graça Costa & MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de
língua portuguesa: letramento e cidadania.Belo Horizonte: Autêntica, 2005
; ZÚÑIGA, Nora Cabrera. Produzindo livros didáticos em tempos de mudança (19992002) In: VAL, Maria da Graça Costa & MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de língua
portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: Autêntica, 2005
BARROS, Jose D’Assunção. O Campo da história especialidades e abordagens. 4ªed. Petropólis:
Vozes, 2004
BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2005
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CHOPPIN, Alain apud BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. (Org.) O saber histórico na sala
de aula. São paulo: Contexto, 2002
BITTENCOURT. Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São
Paulo: Contexto, 2004
O saber histórico na sala de aula. 7ªed São Paulo: Contexto, 2002
BONIFAZI, Elio; DELLAMONICA, Umberto. Descobrindo a História: Idade Antiga e
Medieval. Vol. 7ª. São Paulo: Ática, 2007.
CASSIANO, Célia Cristina Figueiredo. Reconfiguração do mercado editorial brasileiro de
livros didáticos no início do século XXI: história das principais editoras e suas práticas
comerciais. Revista em questão.vol.II.Nº2.Porto Alegre, Dezembro 2005
MACHADO, Irene. Genêros discursivos In. BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin conceitos chaves. São
Paulo: Contexto, 2005
MIRANDA, Sonia Regina; LUCA, Tânia Regina. O livro didático de história hoje: um
panorama a partir do PNLD. In: Revista Brasileira de História. Vol 24. Nº. 48. Produção e
divulgação dos saberes históricos e pedagógicos. São Paulo: Prol Editora Gráfica, 2006
TOTA, Antônio Pedro e LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. Vol. 5ª. São
Paulo: FTD, 2002
VAL, Maria da Graça Costa & MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de língua
portuguesa: letramento e cidadania.Belo Horizonte: Autêntica, 2005
136
O ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA ESTADUAL “PADRE EDMUND
KAGERER”
Paulo Mácio Azevedo Pontes105
e-mail: [email protected]
Iane Karine da Silva106
e-mail: [email protected]
Joaquim José Ferreira Targino107
e-mail: [email protected]
A realidade das escolas públicas é o problema que objetiva-se ser analisado aqui, segundo as
circunstâncias particulares do caso estudado, ou seja, constitui-se aqui uma analise no que diz
respeito à Escola Estadual Edmund Padre Edmund Kagerer (antiga Escola Estadual Santo Estevão
Diácono).
Mediante pesquisa feita na escola tendo contato com funcionários, professores e estudantes
este presente artigo objetiva de forma estrutural expor um diagnóstico acerca da escola levando em
consideração sua estrutura e condição de funcionamento ao mesmo tempo em que também vem a
aprofundar a analise no que diz respeito ao ensino de História, se valendo de trabalho de campo
representado por um contato direto com alunos de uma turma específica (o 7º ano B da referida
escola).
O trabalho de coleta de dados no colégio tanto acerca da estrutura da escola, como quanto ao
trabalho em sala de aula com a professora e a turma de História dependeu relativamente da
colaboração e boa vontade dos envolvidos, uma vez que este trabalho atingiu basicamente todos os
quadros da escola, portanto representando uma atenção a mais a um assunto fora da rotina escolar
seja diretamente como indiretamente.
A Escola Estadual Padre Edmund Kagerer localizada na zona leste de Caicó na Rua:
Edmilson Rodrigues de Paula nº1, no bairro Maynard Caicó/RN com cep: 59.300-000 e de telefone
(084) 3421 6074, é uma escola que atende apenas ao ensino fundamental de 1º a 9º anos, nos turnos
matutino e vespertino. A escola tem seu decreto de nº 18.709 datado de 25/11/05 segundo a
regulamentação de lei nº 8.728/RN de 09/11/05 e tem sua portaria de nº 015.276/78 pela SECD/RN
e parecer nº 25/80 pela CEE/RN datado de 04/06/1980.
Antes a escola tinha o nome de Escola Estadual Santo Estevão Diácono e funcionava em um
prédio cedido pela diocese, próximo ao local onde esta hoje. A escola era nesse período conveniada
105
Graduando em História (licenciatura) pela UFRN CERES de Caicó.
Graduanda em História (licenciatura) pela UFRN CERES de Caicó.
107
Idem ao ¹.
106
137
com a diocese, mas quando a primeira passou a ser de cunho estadual a diocese reivindicou o prédio
de volta e então foi necessário construir um prédio próprio para abrigar a escola. Tendo sido
inaugurada em novo prédio em julho de 2005 ainda com o antigo nome, foi então feito um abaixo
assinado na comunidade para que a então escola viesse a se chamar Padre Edmund Kagerer,
adotando assim o nome deste austríaco que havia dado origem a escola no passado. Após a
confirmação a escola passou a se chamar Escola Estadual Padre Edmund Kagerer. As informações
referentes ao histórico dos diretores que já passaram pela a instituição de ensino não estavam
disponíveis e, portanto só nos foi constatado gestão de Lorena Warney Santos S. Medeiros que
terminara em 2005 e a gestão de Nilson Teixeira de Araújo (formado em Geografia) e sua vice Ana
Lúcia de Medeiros (formada em letras com pós-graduação em Gestão) que segue de 2006 até os
dias atuais.
A escola tem um ótimo aspecto físico, já que ela é de construção bem recente e possui ótimo
acabamento físico. Hoje a escola conta com: 06 salas de aula, 01 tele sala, 01 biblioteca, 01
secretaria, 01 sala de professores, 01 sala de apoio pedagógico, 01 cozinha, 04 banheiros (sendo 02
para alunos e 02 para os funcionários) e um depósito. A escola conta com poucos equipamentos de
apoio pedagógico sendo: 01 retro projetor, 02 videocassetes, 02 televisões e 01 dvd.
As salas de aula possuem tamanho razoável para seu funcionamento e boa iluminação, todas
são equipadas com quadro branco e possuem a particularidade de terem um portão lateral que dá
acesso ao lado de fora servindo também como forma de manter a classe ventilada, esses portões são
de madeira, mas em grande parte são constituídos de vidro, permitindo a observação do espaço fora
da sala não direcionado ao pátio mais sim para o fim das dependências da escola, mas todas também
contam com ventilação artificial (ventiladores).
As carteiras utilizadas pelos alunos e professores em sala de aula, mostram-se adequadas
para a utilização necessária em aula, mas é perceptível a falta de carteiras, sendo constatado que
realmente muitas estavam quebradas, inviabilizando seu uso. Os quadros bracos em sala de aula
estavam em ótimas condições de utilização.
No que diz respeito aos serviços disponíveis, não foi constatada nenhuma sala de leitura, a
não ser as dependências da biblioteca local onde foi observado sendo utilizada para esse fim. A sala
de vídeo da escola mostra-se bem aparelhada, com 03 televisões, 02 videocassetes, 01 dvd, 01
antena parabólica e 01 receptor. Ela se constitui de uma sala fechada com muitas cadeiras que são
viradas em favor da televisão principal, a sala tem uma cortina traseira para manter a sala escura
ajudando a melhorar a visualização do que é exposto na TV. A proposta da sala de vídeo mostra-se
de integração entre a comunidade e a escola, na utilização dos programas da TV Escola para auxilio
didático, contribuindo assim com as aulas e com o aperfeiçoamento dos professores. O acervo de
vídeos chega a tender bem as necessidades da escola, e os filmes são exibidos sempre com o intuito
138
de ampliar os conhecimentos dos alunos. Infelizmente a escola ainda não fora contemplada com
sala de computação sendo esta uma necessidade da mesma.
A Biblioteca da escola em termos gerais possui um espaço razoável, tal como seu
acabamento físico que permanece em perfeito estado, esta também possui em sua estrutura 04
portões tal como as salas de aula deixando o ambiente mais agradável e bonito, ajudando também
em sua iluminação sem desmerecer a iluminação artificial que também possui.
O acervo da biblioteca é muito bom segundo nos informou Eunice Maria da Silva Medeiros
(pedagoga) responsável pelo atendimento. Segundo ela um dos poucos problemas encontrados por
lá é o de que poucas atualizações chegam em tempo hábil, principalmente no que diz respeito a
enciclopédias. Mesmo assim ela constata que a biblioteca contribui muito com as necessidades
escolares dos alunos e mesmo alguns professores levam turmas inteiras para fazerem pesquisa e
sessões de leitura nas dependências da mesma.
O trabalho e organização técnico pedagógico da escola segue todo um planejamento
estrutural, como nos foi passado por Maria das Dores de Araújo (formada em Pedagogia pela
UFRN – CERES) e por Fátima Pereira de Medeiros Ferreira (formada em Pedagogia e com
especialização em Orientação Educacional, contando também com pós-graduação em Pesquisa da
Educação). Segundo elas existe um planejamento bimestral pelo qual segue a orientação
educacional, sendo que estas reuniões sempre são feitas em um horário que não atrapalhe as aulas.
O planejamento é feito em conjunto com a equipe de professores com analise e posteriormente
seleção de conteúdos. Perguntadas sobre o Projeto Político Pedagógico (PPP) foi nos informado que
o projeto vigente é muito ultrapassado sendo datado de 2003, e que segundo elas necessita de uma
revisão e reavaliação. Quanto ao plano escolar foi constatado que o mesmo segue um planejamento
anual, e que em si é organizado nas propostas bimestrais. O cronograma escolar segue o calendário
escolar que tem um caráter flexível já que se fundamenta no prosseguimento anual e suas
necessidades. Com relação ao Regimento Interno nos foi informado que o mesmo está
fundamentado segundo as normas da nova LDB, e dessa forma rege as normas e regras da escola. O
quadro de professores da escola conta com 18 professores sendo a maioria graduados contando
apenas com 03 professores que só possuem magistério.
Para a coleta de informações foi necessário o contato com diversas fontes na escola tais
como diretores, supervisores, assim como a orientadora educacional e a coordenadora
administrativa, ressaltando aqui a cooperação e o interesse em nos ajudar, sentimento presente até
mesmo nos alunos. Na secretaria foi nos constatados uns dos últimos dados requeridos segundo o
questionário base da nossa pesquisa (Elaborado pelos professores da disciplina Estágio
Supervisionado, a saber Paula Sônia de Brito e João Quintino de Medeiros Filho), que diz respeito à
existência dos livros administrativos na escola. Tanto livro de matrículas, como livro de ponto, de
139
boletim, caderneta e de diploma foram encontrados e nos foi mostrado pelas funcionárias da
secretaria, contando desta forma com a ajuda delas nosso trabalho foi dinamizado, demonstrando
agilidade no atendimento da escola.
No segundo momento deste trabalho foi realizado a uma atividade de avaliação sobre o
ensino de História em sala de aula. Mediante a orientação da professora de História da escola Suenir
(formada em Filosofia com especialização em psicopedagogia), foi selecionada a turma do 7º ano B
com o total de 26 alunos, para a realização do trabalho.
Com olhares apreensivos e curiosos a intromissão de um estagiário na turma foi logo
recebida como caso especial pelos alunos constituindo-se em um fator incomum, o que deixou
alguns bem tímidos e outros bem motivados a participar. Em todo momento com o auxilio da
professora Suenir objetivamos expor as particularidades das questões propostas na avaliação.
Como esperado algumas questões exigiram mais atenção que outras tanto no momento em
que os alunos ouviram a explicação, como no momento de responder as mesmas. As questões que
levavam em consideração principalmente recursos áudio visuais e procedimentos de ensino
causaram mais confusão. As opiniões se dividiam muito quanto à confecção de raciocino pessoal
com respeito às indagações sobre a História.
Muitos alunos responderam que a História é importante para entender o passado, para
conhecer culturas e inclusive para entender alguns fatos do presente, relacionando sempre a História
ao aprendizado de conhecimento sobre nós mesmos. Divergiram muito no que diz respeito a
dificuldades na aula, enquanto uns não gostavam da forma que a professora apresentava os assuntos
outros gostavam, mas criticavam as provas ou atividades, tendo em alguns casos os alunos
reclamado da quantidade de assuntos.
Quanto ao livro didático, percebe-se na turma que eles gostam do livro didático que a profª
Suenir trabalha, o livro, a saber, é “Projeto Araribá: História” organizado por Maria Raquel
Apolinário Melani, nele percebe-se uma variedade de textos mesclados com imagens e textos
complementares além é claro com muitas atividades que vão desde perguntas simples até questões
de discussão ao qual a professora comentou se utilizar muito.
As questões que se referiam a temas, recursos audiovisuais e procedimentos, foram a que
mais chamaram a atenção, tanto pelo descaso e embaraço de alguns como pelo capricho tratado por
outros. Os temas geraram um barulho na sala, muitos respondiam pedindo ajuda aos amigos para
lembrarem de temas e trabalhos a pouco vistos, enquanto alguns se deteriam a explicar como
gostaram de alguns temas outros se limitaram a não responder, no mais percebe-se que a maioria se
identificou com temas relacionados a Idade Média. Muitas pessoas não entenderam o que era
recurso audiovisual mesmo com muita explicação e limitaram-se a se apegar a exemplos dados em
aula (principalmente com relação a cartazes) enquanto outros pediram a utilização de músicas,
140
filmes e etc. No que diz respeito aos procedimentos um consenso quase geral declarava ótimos os
procedimentos na disciplina, expondo em alguns casos a explicação como procedimento melhor e
em outros os trabalhos em grupos que a professora passa, tendo inclusive alguém declarando que o
melhor procedimento da professora era o de não faltar nas aulas o que não chega a atingir bem a
proposta do questionamento, mas demonstra a forma que os alunos vêm a professora, quanto as
negativas, alguns declaram não gostar das provas, e muito preferiram não expor nada.
Tratando do trabalho em sua totalidade é interessante perceber que mesmo uma escola como
a Escola Estadual Padre Edmund Kagerer com um aspecto praticamente de modelo para outras
escolas da região, por sua aparência e zelo, pode sim conter problemas estruturais básicos como é o
caso da falta de carteiras ou mesmo em si tratando de aparelhagem a ausência de uma sala de
informática para os alunos. No que diz respeito ao tratamento dado aos alunos, percebe-se o
tratamento impecável, já que sempre percebemos a orientadora educacional conversando muito com
as crianças tentando resolver os problemas, tal como sempre se pode contar com a presença do
diretor ou da vice-diretora por lá.
No trabalho junto à turma de História contando principalmente com o auxilio e as
recomendações da professora Suenir, percebeu-se uma ótima interação da turma com a presença de
estagiários. Após os contatos iniciais e todo o clima de novidade, percebe-se que o ensino de
História vem sendo bem desenvolvido embora os alunos apresentem algumas dificuldades em
interpretação e escrita, necessidades estas discutidas com a professora .
No mais é evidente que um trabalho dessa magnitude só vem mesmo a acrescentar uma
ótima experiência em meio o campo da educação, na medida em que você passa a conhecer a
realidade das salas de aulas e mesmo das escolas. Pertinentemente é possível se projetar com os pés
no chão ao perceber que em muito a estrutura educacional depende dos professores e que como os
alunos estão diretamente ligados a estes, mais do que responsável deve ser a sua postura mediante
suas realidade e necessidades.
BIBLIOGRAFIA
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Ensino de História: Fundamentos e Métodos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 99-132.
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141
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. Por uma História Prazerosa e Conseqüente. In:
KARNAL, Leandro. História na Sala: Conceitos, Práticas e Propostas. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2004. p. 17-48.
142
O ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA ESTADUAL “MANOEL CORREIA”
Maria da Conceição Nóbrega Azevedo108
e-mail: [email protected]
Francisco Nascimento de Assis109
e-mail: [email protected]
A Escola pública, como sabemos, enfrenta diversos problemas relacionados tanto a sua
estrutura física quanto ao ensino, pois para chamar atenção dos alunos o professor sabe que
necessita de outros recursos, não só o livro didático, quadro e giz. Porém, a realidade obriga
professores e alunos a se adaptar aos meios que têm disponíveis, mesmo que estes sejam poucos.
Nesse sentido o presente artigo objetiva apresentar um diagnóstico relacionado a estrutura e
caracterização da Escola Estadual Manoel Correia, como também a concepção dos alunos que
cursam o 9º ano B do ensino fundamental com relação ao estudo de História. O estágio aconteceu
no período de 12 a 20 de Maio e nesse tempo foi possível perceber o universo do professor e do
aluno na escola pesquisada.
A Escola Estadual Manoel Correia (EEMC), de cunho público (estadual), localiza-se no
centro da cidade de Ouro Branco-RN, tendo seu prédio situado na rua Professor Isaías, número 110
e telefone (84) 3477 0992. Foi fundada em 1967, porém não funcionava ainda como um órgão
oficial, por este motivo esteve em atividade por vários anos, mas o seu decreto oficial de Criação
data de 09 de Dezembro de 1988, nº 10.234/88. E a portaria de autorização data de 14 de Outubro
de 2004, nº 645/2004.
Desde 1967 até o ano em curso, 2008, passaram pela escola vários diretores. A primeira
diretora da escola foi à senhora Ady Medeiros (1967-1968), logo após vieram Maria Maura de
Lucena (1968-1972), Maria José da Nóbrega (1973), Maria do Socorro de Jesus Nascimento (19741979), Maria do Socorro Lucena (1980-1982), Francisca Salete da S. Souza (1983-1994), Rosa
Núbia Dias dos Santos (1994-1995), Josilene Siqueira da Costa (1995-2003), a partir deste ano
assumiu a direção Marilene Lucena de Souza Teixeira que dirige a escola de 2003 a 2005, e após é
reeleita através de eleição para a gestão 2006-2007. Atualmente a escola encontra-se na
responsabilidade dos senhores Francisco Souza Costa e José Francisco de Figueiredo,
respectivamente diretor e vice-diretor (2007-2008).
A escola funciona nos três turnos, matutino, vespertino e noturno do ensino fundamental ao
médio e EJA, totalizando 588 alunos sendo 276 do ensino fundamental, 255 do ensino médio e 57
alunos do Programa Educação para Jovens e Adultos (EJA). A estrutura física da escola é
108
109
Graduanda em História (licenciatura) pela UFRN CERES de Caicó.
Graduando em História (licenciatura) pela UFRN CERES de Caicó.
143
considerada como ótima, pois a mesma foi reformada e ampliada em 2005, suas instalações
possibilitam o acesso inclusive para deficientes físicos (cadeirantes), a entrada e os banheiros
tiveram sua estrutura mudada para atender esta necessidade. Com relação à estrutura física já
mencionada constatamos que a escola possui: 08 salas de aula, 01 sala de laboratório, 01 sala de
informática, 01 sala de multiuso, 01 biblioteca, 01 sala de professores, 01 secretaria, 01 sala de livro
didáticos, 01 sala de direção, 01 sala de supervisão, 02 salas de arquivos (uma com informações dos
ex-alunos, e outra com dados dos alunos da escola), 01 tele-sala, 01 sala para o grêmio estudantil,
01 sala de material esportivo, o6 banheiros, 04 depósitos para fins diversos e ainda uma sala
destinada ao funcionamento do programa do leite (governo estadual), que, segundo podemos
constatar, já veio especificada na planta oficial de reforma da escola.
No geral, na Escola Estadual Manoel Correia as salas de aula são consideradas como boas
ou ótimas, segundo os próprios alunos e administração escolar. Porém, ao longo do período de
estágio foi possível perceber a tristeza dos professores, da supervisão e direção escolar, como
também dos próprios alunos no que diz respeito ao funcionamento, ou melhor o não funcionamento
da sala de informática, da sala de vídeo e do laboratório. Quanto ao grêmio estudantil, os próprios
alunos reconhecem não ter interesse no assunto e a sala também permanece desativada.
A supervisão da escola informou que é impossível atender a comunidade escolar através do
trabalho de videoteca ou nas aulas de computação, pois a televisão, a antena e o aparelho de vídeo
da escola encontram-se com alguns defeitos. Já a sala de computação existe, porém a secretaria de
educação do estado não enviou profissionais qualificados para a capacitação dos professores em
curso de informática; por enquanto os computadores são utilizados para a digitação de trabalhos dos
alunos.
Em todos os momentos também constatamos o empenho da equipe pedagógica em buscar
melhorias para os alunos no sentido dos recursos de ensino, mesmo que as dificuldades impostas
sejam muitas e que a escola tenha posse apenas de revistas informativas para serem utilizadas.
Segundo uma das supervisoras da escola, a senhora Núbia Maria da Fonsêca, a biblioteca funciona
como recurso para os alunos, pois realmente cumpre com sua função, encontra-se aberta nos três
turnos e contém um ótimo acervo literário, revistas e alguns trabalhos universitários que foram
doados para a escola. Segundo a supervisão, os alunos valorizam e fazem bom uso da biblioteca,
esta é tratada com extremo respeito, pois seus livros representam a “internet” dos alunos, já que
estes infelizmente não têm acesso aos computadores para fazerem pesquisas.
Já com relação à organização e funcionamento pedagógico da escola, podemos perceber que
este também apresenta-se de forma organizada, porém, quando questionados sobre o Projeto
Político Pedagógico (PPP) e o Regimento Escolar, a supervisão nos informou que ambos existem na
escola, mas não estão sendo seguidos pois na concepção dos supervisores precisam de mudanças.
144
Estas modificações estão programadas para serem feitas no segundo semestre deste ano, pois o PPP
e o Regimento que ainda vigora foram elaborados em 2003 e apresentam idéias e planejamentos
algumas vezes diferentes dos atuais.
A supervisora pedagógica da escola, Maria Eunice de Souza, explicou que é seguido um
planejamento elaborado a cada novo bimestre com a ajuda dos professores e diretores da escola.
Sendo importante lembrar que por enquanto as ações da EEMC para os anos de 2007 e 2008 foram
reformuladas seguindo as diretrizes das novas propostas pedagógicas. A equipe pedagógica da
escola reconhece que houve um certo desinteresse por parte deles mesmos em modificar o
Regimento Interno e elaborar o novo Projeto Político Pedagógico (PPP), já que as ações estão sendo
postas em prática, mas não há um projeto escrito.
A equipe técnica da EEMC é formada pelos já citados diretor Francisco de Souza Costa e o
vice-diretor José Francisco de Figueiredo, ambos com graduação em Matemática. A escola conta
com cinco pedagogas que são responsáveis pela supervisão escolar: Maria Eunice de Souza, Zenilda
de Sena Silva Araújo, Rosângela Dias dos Santos, Marinez Pereira da Silva Medeiros, pós-graduada
em linguagem, e Núbia Maria da Fonseca, pós-graduada em supervisão escolar. A coordenação
administrativa da escola fica sob responsabilidade da professora Eurinete dos Santos Silva,
graduada em Ciências Físicas e Biológicas.
A direção nos passou a informação de que não há um orientador educacional na escola. De
acordo com os dados informados, a escola tem atualmente 42 professores. Ao longo do período de
estágio percebemos o quanto a equipe pedagógica da escola mostra-se empenhada em cumprir suas
funções administrativas. Quando questionados sobre quais livros administrativos existem na escola,
a informação cedida foi que fazem uso do livro de matrículas, livro de ponto, cadernetas, boletins,
diplomas e também livro de controle de empréstimos ocorridos na biblioteca escolar, o que
demonstra ótima organização na formalização destes dados educacionais.
Nessa primeira etapa de caracterização da Escola Estadual Manoel Correia mantivemos
maior contato com o professor de História Amariudo dos Santos Silva, com a supervisão e direção
escolar. Sendo importante lembrar alguns professores, como Marluce Dantas da Silva e Aldemir
Dantas de Araújo, respectivamente, graduada em Geografia e graduado em Ciências Biológicas.
Não podendo esquecer também de alguns alunos da escola que passaram informações importantes,
principalmente relacionadas à sala de computação que encontra-se sem funcionar.
Direcionando este estudo diretamente a sala de aula foi então proposto um questionário
sobre História a disciplina (O que é história? para que serve? E etc.). Em primeiro lugar os alunos
da turma escolhida mostraram-se interessados em responder o questionário que lhes foi proposto, e
todos estavam curiosos em saber qual era o objetivo da universidade com esse trabalho. A turma foi
receptiva, mas reconheceram que tiveram algumas dificuldades em responder as questões, já que
145
estas em vários momentos falavam em recursos didáticos, melhor procedimento de ensino e isso
parecia algo esquisito para os mesmos, pois estão acostumados a assistir aulas expositivas e usar
apenas o livro didático. Sendo importante falar que todos os alunos da turma elogiaram o professor
Amariudo dos Santos Silva, dizendo que ele é o máximo, sabe muito, e que a explicação nas suas
aulas funciona como recurso mais importante.
Quando os alunos foram questionados sobre por que seria importante estudar História, as
dificuldades encontradas no estudo para que serve a História, as respostas foram em grande parte
semelhantes. Na concepção dos alunos, a História é importante para que possamos conhecer nossos
antepassados, outras culturas, alguns também reconheceram ser apaixonados por História, e que
esta é interessante. Muitos alunos explicaram que sentem dificuldade em prestar atenção no assunto
que é explicado na aula por que geralmente estes são muitos extensos e eles só têm duas aulas por
semana, sempre estão correndo contra o tempo para poder entregar os trabalhos da disciplina. Para
estes, a História tem como finalidade permitir que saibamos o que aconteceu com os povos do
passado, com as culturas antigas. Um fato curioso percebido nos questionários é que um dos alunos,
segundo ele mesmo, considera-se desinteressado em estudar, mas acha que a História serve para
quase tudo que as pessoas pensam em fazer nos dias atuais.
Com relação ao livro didático os alunos consideram o mesmo como muito bom. A coleção
utilizada é História e Vida Integrada, de Nelson Peletti e Claudiano Piletti, apenas um aluno
respondeu que considera o livro como muito resumido. Analisando os questionários percebemos
que a turma se interessa pelos temas discutidos nas aulas e a opinião variou muito com relação ao
melhor tema e pior tema visto na sala de aula. Mas foi possível perceber que o maior interesse pela
Primeira Guerra Mundial, e muitos consideram como pior tema a Revolução Russa.
Quando os alunos perceberam as questões relacionadas aos recursos audiovisuais utilizados
na sala de aula, todos mostraram dificuldade para entender o que o questionário estava pedindo.
Dadas algumas explicações, os alunos resolveram responder. A explicação dada pelos alunos foi a
mesma na maioria dos casos, dizendo que o único recurso disponível é o livro didático e que o
melhor procedimento seria a explicação do professor, pois é através desta que conseguem entender
os temas de estudo. Alguns responderam que só têm a explicação do professor e quando os colegas
não cooperam com as aulas a situação piora, porque além de não existir recurso a não ser o quadro e
o giz, torna-se complicado a concentração na aula.
A maioria dos alunos explicaram que desejam assistir filmes históricos, pesquisar temas
diferentes na internet, porém as condições da escola não permitem que isto aconteça. A única forma
é acostumar-se com o velho amigo, o livro didático, que na opinião deles muitas vezes chega a dar
preguiça só de olhar. No geral todos elogiaram o professor e também o livro, mas reclamavam em
todos os momentos na falta de internet e de filmes interessante sobre os temas de estudo.
146
Considera-se a partir deste estudo que todo esforço de um professor que lecione em uma
escola pública torna-se pequeno em comparação com os diversos obstáculos enfrentados na
educação de cunho público, pois os próprios alunos como constatamos parecem cansados de assistir
aulas tradicionais, mas entendem que o único jeito é aceitar a situação.
Enquanto observamos e entrevistamos a equipe pedagógica da EEMC, entramos em contato
com a realidade docente dos dias atuais. O estágio ocorreu numa escola bem organizada, que teria
tudo para crescer, porém é uma escola pública e isto já representa uma dificuldade. O
descontentamento da equipe técnico-pedagógica e dos alunos era percebido facilmente.
É perceptível através do desenvolvimento deste trabalho a forma como as escolas públicas
sofrem com as adversidades do dia a dia, pois os problemas aqui estudados se evidenciam de forma
particular, mas em amplitude ou de forma ampla da para se perceber como as instituições públicas
estão sujeitas a problemas técnicos, estruturais e educacionais.
BIBLIOGRAFIA
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Conteúdos históricos: como selecionar? In: ______.
Ensino de História: Fundamentos e Métodos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 137-179.
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Fundamentos e Métodos. São Paulo: Cortez, 2004. p. 99-132.
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Conceitos. In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (org). O
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KARNAL, Leandro. História na Sala: Conceitos, Práticas e Propostas. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2004. p. 17-48.
147
EM BUSCA DE UM BEM ENSINAR: OBSERVAÇÕES SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA
Evanuel Marques da Silveira -UFRN
O presente trabalho expõe elementos importantes observados a partir de duas distintas
avaliações. A primeira a observação de modo geral da instituição de ensino, sua composição física
estrutural, sua forma administrativa, ações pedagógicas, comportamento e ação da comunidade
escolar como um todo. A segunda inicia uma observação mais específica, a análise da ação de
ensino-aprendizagem em sala de aula.
A observação aconteceu na Escola Municipal Hermann Gmeiner, entre os dias 03 e 17 de
junho de 2008; onde selecionamos a turma do 7º ano “A”, do turno matutino, composta por alunos
com faixa etária entre 13 a 18 anos, para aplicação de um questionário de análise do ensino
específico da disciplina de História.
Todo esse trabalho visa a construir um perfil da escola e do seu alunado para que a partir dele,
possamos formular meios e métodos de ensino que venham a atender as necessidades de cada aluno,
auxiliando assim, a difícil tarefa que é a o ensino do conhecimento histórico.
A escola municipal Hermann Gmeiner está localizada na Rua Manoel Avelino da Costa, nº.
186, no bairro Castelo Branco, município de Caicó – RN, é uma escola recente, teve sua compleição
no dia 30 de dezembro de 2002, anteriormente no seu prédio funcionava uma escola pertencente ao
sistema das aldeias SOS. Seu nome é em homenagem ao médico austríaco Hermann Gmeiner, que
fundou as Aldeias Infantis SOS com objetivo de dar um lar, alimento, educação e uma mãe a
crianças órfãs de guerra ou abandonadas.
O diretor atual é o Sr. Gilmar Donizete Ferreira da Fonseca, atua na escola como diretor desde
a fundação como instituição municipal, tem na vice-diretoria a Sra. Maria Inês de Araújo Marinho.
Sabendo da importância que se faz ter uma boa administração escolar, tais profissionais
demonstraram um visível comprometimento com o desenvolvimento do ensino oferecido pela
escola. Percebemos então, uma boa relação das dependências administrativa com os demais setores,
pois a escola apresenta um quadro especifico para as realizações exigidas a comunidade escolar,
assim possibilitando um maior rendimento quanto ao ensino-aprendizagem oferecido.
O funcionamento da escola dá-se em dois períodos, matutino e vespertino, comportando,
assim, em torno de 396 alunos, com a faixa etária entre 4 a 16 anos de idade. No turno matutino
funcionam uma 4ª e duas 5ª do Ensino Infantil e um 1º ano, um 2º ano, um 3º ano, dois 6º ano, dois
7º ano, um 8º ano e um 9º ano do Ensino Fundamental. No turno vespertino funcionam um 1º, dois
2º, um 3º, dois 4º e dois 5º do ensino fundamental. Para atender essa demanda a instituição conta
148
com quarenta e seis funcionários, o corpo docente é formado na sua grande maioria por
profissionais graduados e os que não possuem estão fazendo um curso superior na área especifica
de ensino.
Em relação ao aspecto físico, a escola possui um amplo espaço e uma boa divisão, tendo em
sua formação doze salas de aula, uma biblioteca, uma sala de vídeo, oito banheiros, uma diretoria,
uma sala para supervisão, uma secretaria, uma sala para os professores, uma cozinha, uma copa
para os funcionários, dois depósitos, uma quadra poliesportiva, um parque infantil e um refeitório
com capacidade para setenta pessoas. É importante observar a forma física da escola, pois, como já
citado, o prédio antes de ser uma escola municipal era usado como Aldeia Infantil SOS, sendo
assim, suas características de residência permanecem, diferenciando-a das demais instituições de
ensino do município.
A observação do espaço é uma ação necessária para se buscar entender às pessoas que nele
se encontram, nesse sentido, devemos passar a entender que se faz preciso analisar a escola não
como um lugar estável, um espaço mórbido, mas tentar percebê-la num contexto sociocultural e
político e que sua autoridade na organização escolar é determinante para se alcançar o progresso no
ensino e aprendizagem.
Neste sentido façamos uso das palavras do Gabriel Perissé110, quando afirma que:
A escola não é ilha isolada no oceano social. Não é lugar para
guardar crianças, ou reformá-las, embora possa ajudar orientar e até
alimentar. A escola não é paraíso. Nem inferno. A escola não está aí
por acaso. A escola salvará a sociedade se a sociedade salvar a escola.
(PERISSÉ, 2008).
Com relação à turma analisada, o 7º ano A, matutino, tem matriculado 25 alunos, sendo que
no dia observado (10 de junho de 2008) só estavam presentes 20 alunos, tendo em média de 14 a 17
anos de idade. Durante a aula observada a professora Edineide Moreira dos Santos, graduada em
História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de Caicó aplicava um
exercício avaliativo da unidade especifica do assunto estudado, no caso, Mercantilismo. Segundo a
professora, o uso de tal método se faz necessário, tendo em vista que os alunos não procuram ler o
livro sem um incentivo avaliativo visível. Numa visão piagetiana, que segundo a mesma, o processo
de aprendizagem pelo individuo dá-se quando existe situação-problema que provoque um conflito
cognitivo de busca por soluções, seja a partir do repertório do conhecimento acumulado ou por
busca de outros meios, por exemplo, a leitura do livro. O exercício aplicado era composto por três
questões discursivas que visavam abranger de um modo geral todo o conteúdo estudado. Eram elas:
110
O fragmento exposto no texto foi retirado de um artigo intitulado “Mais o que é escola?”, publicado no
site www.correiocidadania.com.br no dia 15 de abril de 2008, acessado no dia 25 de junho de 2008.
149
1. O que é e quais são as características do mercantilismo?
2. Quais são as práticas do mercantilismo?
3. Qual o sistema de colonização objetivado pela política mercantilista?
Os alunos foram informados que o exercício poderia ser respondido em casa e que sua
entrega seria para próxima aula, objetivando assim dar tempo para que eles possam fazer a leitura
do conteúdo com maior atenção, já que precisavam responder o exercício. Na aula do dia 17 de
junho de 2008 os exercícios foram recolhidos pela professora e, segundo os alunos, não
encontraram grandes dificuldades ao responder as questões; a professora ao corrigir afirma terem
tido um bom desempenho na execução da tarefa proposta.
Neste mesmo dia, 17 de junho, aplicamos na turma o questionário especifico de avaliação do
ensino da disciplina de História. O questionário é composto por oito questões que objetiva traçar
um perfil da turma; partindo deste, formularmos os melhores meios e métodos de aplicação da
disciplina para o próximo semestre.
Dentre uma diversidade de respostas, no total foram entregues 20 questionários, obtivemos
algumas semelhanças com relação a algumas questões, como no caso da primeira, que ao serem
questionados a respeito da importância do estudo da História, em torno de 90% respondeu achar
importante o estudo da disciplina, fazendo relação normalmente com o conhecimento do passado,
numa aparente relação da História e sua visão de temporalidade. Respostas parecidas encontramos
também quando responderam à questão de numero três (Para que serve a História?).
Com relação às dificuldades encontradas na disciplina pelos alunos, cerca de 80% bate na
mesma tecla, a dificuldade está no entendimento do assunto tratado, muitos afirmam se dedicarem à
leitura, mas não conseguem assimilar o que lêem. Assim, a dificuldade também se estende quando
passam por avaliação por escrito, ou seja, afirmam ter dificuldades de expor o conhecimento
adquirido a partir da leitura dos textos, contradizendo assim, com as suas afirmações verbais
quando questionado a respeito do exercício sobre o Mercantilismo aplicado pela professora, tendo
em vista que a grande maioria considera como melhor tema discutido nas aulas de História assuntos
relacionado à Europa Feudal.
Em relação ao livro didático, as respostas foram distintas, algumas respostas o consideram
como um bom recurso, enquanto outros o consideram cansativo e complicado de ser entendido.
Com base nos Parâmetros Curriculares, o livro didático não pode ser analisado singularmente, ou
mesmo sem a contextualização escolar e social, pois o mesmo é um produto cultural, com suas
ações particulares, mas dentro de uma lógica escolar e da sociedade onde está inserido. Neste
sentido, sua ação efetiva no processo de ensino-aprendizagem, seja ela positivo ou negativo, não
pode ser analisada pelo seu conteúdo, mas, também a partir do modo que ele é utilizado.
150
Sabendo da importância dos recursos didáticos como instrumento de trabalho do profissional
de ensino e do alunado, sendo ele suporte fundamental na mediação entre o ensino e a
aprendizagem, busquemos compreender a relação de tais meios pela turma observada e percebemos
que cerca de 90% dos alunos não tem conhecimento sobre o que seriam recursos didáticos, assim
como também aos procedimentos de ensino, tendo em vista suas respostas, percebe-se claramente
não ser comum à substituição do quadro negro por outros recursos didático.
O diagnóstico da turma é importante para se buscar compreender o aluno como um elemento
ativo para o processo de ensino, percebendo assim, que se faz preciso nos atualizar para suprir
possíveis lacunas já existentes no ensino.
A escola e a sala de aula para um professor devem ser entendidas como seu mundo
profissional; compreende-lo é uma difícil missão, mas quando visto como algo satisfatório pode ser
amenizada. Espaço do inesperado é muito mais que um simples ponto de transmissão de
informações, mas um espaço de construção de sentidos. Sendo assim, buscar analisar o espaço de
ensino, seja por uma pesquisa ou mesmo através dos estágios de final de curso, nos parece ser
bastante importante para contribuir com a formação do professor, pois o diálogo construído no
espaço escolar, unindo força com a teoria aprendida na academia nos mostra um horizonte além do
qual estávamos habituados. Conhecer a realidade escolar é a melhor forma para se perder
preconceitos muitas vezes formados pelo “achismo” que vai nos aprofundar e ampliar nosso
conhecimento.
BIBLIOGRAFIAS
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estudo das relações entre objetivos e avaliação na escola. Revista da Faculdade de Educação.
São Paulo: Faculdade de Educação, USP, v. 1, n. 1, 1975.
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introdutório. Nov., 1995.
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geografia na escola. Em Aberto. Brasília: INEP, n. 37, p. 25-30, 1988.
FLORES, Elio Chaves; BEHAR, Regina (org). A formação do Historiador: tradições e
descobertas. João Pessoa, Editora Universitária, 2004.
151
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KARNAL, Leandro. História na Sala: Conceitos, Práticas e Propostas. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2004. p. 17-48.
152
OS CAMISAS VERDES”: O DISCURSO DO SIGMA E A MANUTENÇÃO
DOS PODERES POLÍTICO EM BARBALHA- CE. ( 1933-1945)
Samuel Pereira de Sousa∗
[email protected]
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho pauta-se na temporalidade que circunscreve a fundação da Ação Integralista
Brasileira em Barbalha em 1933, e termina no ano de criação do Partido da Representação Popular
(PRP)111, concretizado por Plínio Salgado pós - ditadura do Estado Novo, em 1945, quando este
visita Barbalha, difundindo suas propostas. Procuramos fazer a análise, de que mesmo com a
implantação do repressivo Estado Novo e a ilegalidade de movimentos políticos, onde se enquadra
o Integralismo, percebemos em Barbalha, uma maior resistência da A.I.B., pois, apesar da
interventoria posta por Getúlio Vargas nesta cidade, não houve de fato o embate das forças
administrativas municipais com o Integralismo. Tal proposição foi percebida através da análise dos
depoimentos orais e entrevistas feitas junto aos militantes do Integralismo de Barbalha. É também,
nesta temporalidade, que encontramos um maior número de documentos, tangentes ao Integralismo
neste município e percebemos uma maior vitalidade desse
movimento político em Barbalha.
Lembremos que a referida cidade se tornou o núcleo central do Integralismo na Região do Cariri
cearense, segundo depoimento de seus militantes, o que justifica o nosso recorte espacial.
INTEGRALISMO, INSTITUIÇÕES E PECULIARIDADES
O Integralismo em Barbalha dominava, porque foi comandado por uma família
importante... o Integralismo tava muito radicado, o Integralismo aqui tava
entrando muito, devido os seus chefes, porque eles tinham muita força, muito
prestígio. 112
Percebendo a recorrência deste tipo relato nas fontes obtidas, abordaremos o movimento
integralista em Barbalha como instrumento utilizado para a seguridade dos poderes políticos locais,
∗
Mestrando em História e Culturas na Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bolsista da Fundação Cearense de
Apoio ao Desenvolvimento Cientifica e Tecnológico (FUNCAP).
111
Foi fundado por Plínio Salgado em 26 de setembro de 1945. Reagrupou os ex-integrantes da Ação Integralista
Brasileira, e tinha orientação ideológica nacionalista de direita. In: SOUZA, Maria do Carmo Campello de , Estado
e Partidos Políticos no Brasil, 1930 a 1964, São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976. p.87.
112
Segundo José Sampaio, 98 anos, comerciante aposentado, residente na Rua da Matriz, Babalha-ce. Entrevista
realizada em 14/05/2008
153
sendo esta característica importante para entendermos a história do pensamento político integralista
neste município e as múltiplas formas que envolvem suas práticas e discursos no Cariri cearense.
O Sr. Antônio Gondim Sampaio, militante da Ação Integralista de Barbalha relata a
importância deste movimento no cenário público desta cidade na década de 1930, ressaltando que:
A juventude quase toda era integralista. Todo mundo usava camisa verde na
cidade, diminuiu mais depois do golpe de estado de Getúlio... era muito forte,
chegamos a eleger vereadores na câmara, entendeu e talvez se não tivesse havido o
golpe, nós teríamos feito o prefeito, certamente.113
Vale ressaltar a forte presença do Integralismo na memória social de uma parcela expressiva
da população de Barbalha. Isto fica expresso nos depoimentos e entrevistas realizadas. Assim a
memória se apresenta como elemento importante para a abordagem na construção da identidade
social114. René Granjeiro, memorialista e admirador do integralismo, referindo-se a este movimento
nos relata:
O Integralismo, essa doutrina, esse sentimento nobre... na cidade de Barbalha...
um povo de sentimento nobre, viu, porque esse sentimento cívico, desde do início
da fundação de Barbalha, que plantaram a semente do bem. . Porque as pessoas
que dirigia a sociedade, tudo era ... aderia se houvesse uma coisa séria, eles
aderiram o Integralismo, viu. E assim, assim é o sentimento barbalhense115.
Suas palavras nos demonstram a pertinência do Integralismo na localidade estudada, e
também, a formação deste movimento político na cidade.
A Ação Integralista se espalhou por todo o Brasil. Aqui em Barbalha, ela teve uma
acolhida muito grande. Porque as principais lideranças da cidade assumiram esse
movimento político... assumiram todos eles a bandeira da Ação Integralista
Brasileira, de tal modo, que aqui ficou sendo o núcleo principal do integralismo na
região do Cariri.116
Plínio Salgado, em uma carta enviada ao líder local da A.I.B. Pio Sampaio e a sua mulher
Letícia Lima , em 1973, relembra sua visita à cidade de Barbalha, em meados da década de 40, e o
período de ascensão do Integralismo na década de 1930:
113
Segundo o depoimento do senhor Antônio Gondim Sampaio, 89 anos, ex-comerciante ex-militante do Integralismo
neste município, residente na Rua do Vídeo n. 132, Barbalha-Ce. Entrevista realizada em 29/11/ 2005
114
POLLAK. Michel. Memória e Identidade Social In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, p. 205, 1992
115
Segundo Francisco René Granjeiro, falecido com 82 anos, ex-servidor público aposentado, residente na R.
Salamanca, Barbalha- Ce. Entrevista realizada em 03/06/2006
116
Segundo Napoleão Tavares Neves, 77 anos, médico aposentado e memorialista, residente na R. Princesa Isabel n.
654, Barbalha – Ce. Entrevista realizada em 20/05/2006.
154
Evocamos as imagens querida desse casal que festivamente nos recebera, quando
de nossa excursão pelo Cariri, recebendo homenagens tão sinceras das populações
de Crato, Juazeiro e, principalmente de Barbalha. De minha parte recordava os
tempos heróicos da década de 30, quando Letícia, mocinha inteligente e bonita,
despertava para o grande ideal e Pio Sampaio se alinhava entre os vanguardeiros
de um pensamento hoje, em grande parte vitorioso no Brasil. (FIUZA, 2004 :
121)
Neste sentido, apontaremos para o preenchimento de lacunas tangentes a historiografia sobre
o integralismo, na região do Cariri, no sul do Ceará, facilitando desta forma, o entendimento da
dinâmica desse movimento político, através dos
discursos utilizados pelas elites locais e
instrumentalizadas pela doutrina integralista. Ao analisar a produção historiográfica sobre o tema,
Oliveira percebe a importância dos
Estudos regionais tendo em vista que os primeiros estudos não conseguiram ( ou
não pretenderam) dar conta da estruturação do movimento integralista nas diversas
regiões do país, ficando em discursão ao movimento enquanto nacional, havendo
uma grande lacuna sobre as peculiaridades em cada região.( OLIVEIRA,
2004:301)
O estudo do Integralismo em Barbalha, e nas diversas regiões que este se concretizou nos
proporciona uma maior discussão e melhor compreensão do funcionamento da Ação Integralista
Brasileira e também, da própria atuação e inserção dos seus integrantes na sociedade brasileira,
visualizando os contrastes existentes. Lembremos que cada localidade se apresentou com suas
especificidades.
Napoleão Tavares Neves, memorialista desta cidade, deixa transparecer no seu
discurso, a resistência que o pensamento integralista desempenha na memória desta população.
Quando ao proferir uma palestra para jovens do ensino médio do Colégio Nossa Senhora de Fátima,
em Barbalha, em comemoração aos 500 anos do descobrimento do Brasil, enfatiza que: “na
realidade, os bons é quem constroem o mundo, enquanto os maus apenas os desfrutam! É sempre
bom e gratificante chegar-se ao porto seguro do dever cumprido para com o país, para com o
próximo, para com a família, para com Deus.” (NEVES, 2000:138)
Os Ideais Integralistas neste município é identificado como instrumento de discurso dos
grupos conservadores para a manutenção de suas convicções políticas. Para melhor argumentar esta
proposição, analisaremos a propagação dos ideais integralistas presos ao papel de instituições,
principalmente de cunho educativo e religioso, que convergiram ideologicamente com a A.I.B.
155
local. Estas, supostamente serviram de base para irradiação do pensamento Integralista e foram
utilizadas como instrumento ideológico na formação de valores, favorecendo a seguridade de uma
ordem conservadora, ligada aos grupos dominantes locais.
Procuramos perceber como este consolidado aparato, formado por instituições importantes
para o contexto estudado, sendo estas na sua maioria presididas por membros da A.I.B. local, foram
utilizadas como instrumentos para construção do sentimento de identidade política na população
barbalhense. Neste sentido, o nacionalismo e a religião, o civismo e a fé apresentavam-se como
estruturas indissociáveis, ao mesmo tempo confundiam-se com as aspirações da elite local,
facilitando a expansão ideológica e o controle sistemático sob a população de Barbalha.
Torna-se pertinente analisar de que forma a participação ativa de alguns membros da Igreja
católica no movimento integralista, fez com que o discurso religioso se tornasse um mecanismo
articulador e aglutinador das massas e de sua inserção na Ação Integralista em Barbalha. Conforme
depoimento do Dr. Napoleão Tavares Neves ao discorrer sobre a atuação da Igreja, assim nos relata:
O Integralismo atingiu as camadas populares, tenho a impressão que foi pela
espiritualidade. Barbalha sempre foi uma cidade muito católica, muito
espiritualista e o povo viu o integralismo como uma extensão da Igreja. Então,
houve muita adesão popular no Integralismo.117
O então vigário local, José Correia de Lima, aderiu ao Integralismo, logo quando este
movimento chegou à cidade, ocupando o cargo de secretário de educação do núcleo integralista.
Esta característica nos possibilita problematizar como se deu a relação entre a Igreja Católica
municipal com o movimento integralista local.
Conforme Parente, ao analisar a relação que se estabeleceu neste estado, entre o
Integralismo e Igreja Católica ele nos mostra que:
No Ceará a Igreja num crescendum, marca sua presença na sociedade civil. É
responsável pelo o sucesso da Legião Cearense do Trabalho118, vinculou também,
117
Napoleão Tavares Neves. Depoimento obtido em 20/05/2006.
Legião Cearense do Trabalho (L.C.T.) fundada em Fortaleza, em 1931, pelo tenente Severino Sombra, foi um
movimento de natureza corporativista, integralista e católica de organização e mobilização dos trabalhadores. JUNIOR,
Raimundo Barroso Cordeiro. A Legião Cearense do Trabalho In. SOUZA, Simone (Org.). Uma Nova História do
Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. p.325
118
156
desde a década de 1920, idéias do Patrinovismo119. E agora, terá uma parcela de
participação no sucesso da A.I.B. local.120 (PARENTE, 1999:123)
Vale ressaltar ainda as considerações de Antônio Gondim Sampaio, militante A.I.B. neste
município. Referindo-se ao Integralismo e a afinidade de alguns membros da Igreja Católica por
este movimento político em Barbalha, ele assim se refere:
A igreja, pelo menos aqui em Barbalha... nosso secretário de educação do
movimento era o padre José Correia Lima, entendeu, de forma que ele via com
bons olhos. Assim esporadicamente um padre, ou outro, entendeu, ficava assim,
meio, como é que eu posso dizer meio desconfiado, entendeu, mas de modo geral
eles viam muito bem. Como eu disse pra você, o vigário da freguesia era secretário
doutrinário do núcleo, aliás, secretário de educação.121
Havia também, em Barbalha, uma escola Integralista, que tinha um funcionamento diário e
sede própria, onde se estudava a doutrina do pensamento integralista e outras disciplinas. Desta
forma, procuraremos entender a importância deste movimento político para esta cidade, o caráter de
continuidade desenvolvido por seus pensamentos e como os valores propostos pelo Integralismo
foram introjetados na formação de identidade desta população.
Ressaltamos o relevante papel do Circulo Operário de Barbalha na cooptação dos setores
operários para o Integralismo, visto a expressividade destes setores no movimento integralista local.
Oliveira analisando a peculiaridade da A.I.B. como movimento regional, enfatiza o papel dos
Círculos Operários como instrumento de expansão do pensamento integralista no estado do Ceará.
Igualmente peculiar foi à inserção do Integralismo junto ao movimento operário
do Ceará. Um fato que chama atenção, devido a pouca influência dos camisasverdes nos Círculos Operários de outras regiões do país. A incorporação da L.C.T.
pela A.I.B. garantiu essa grande influência juntos aos operários e ainda
possibilitou estabelecer amistosas relações com a Igreja Católica, tendo em vista
que essa possuía grande poder junto aos operários cearenses. ( OLIVEIRA,
2004: 37)
Assim percebemos que estes questionamentos são válidos para problematizar a experiência
integralista na cidade de Barbalha e a forma como se deu seu processo de organização e
particularidade, percebidas a partir dos discursos e das formas como este foram utilizados.
119
A Ação Imperial Pátrianovista, organização monarquista católica e corporativista, foi fundada em 1928, com a
finalidade de restaurar a monarquia tradicional, isto é, um regime que deve se apoiar sobre o Rei, a Igreja Católica e as
corporações medievais. In: TRINDADE, op. cit. p. 122.
120
PARENTE, Josênio Camelo. Anauê: os camisas verdes no poder. Fortaleza: edição UFC, 1999. p.142
121
Antônio Gondim Sampaio. Depoimento obtido 29/11.2005.
157
BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Integralismo e política regional: a ação integralista no
Maranhão. São Paulo: Annablume, 1999.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 13ª edição. Traduzido por Laura Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo: Loyola, 2006.
__________. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2006.
JUNIOR, Raimundo Barroso Cordeiro. A Legião Cearense do Trabalho In: SOUZA, Simone
(Org.). Uma Nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
NEVES, Napoleão Tavares. Barbalha Cultural. Fortaleza: UFC, 2000.
OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. “Perante o Tribunal da História”: o anticomunismo da Ação
Integralista Brasileira (1932-1937). Rio Grande do Sul: Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da PUC-RS, 2004.
PARENTE, Josênio Camelo. Anauê: os camisas verdes no poder. Fortaleza: UFC, 1999.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.
10, 1992. pp.200-212.
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil, 1930 a 1964, São
Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976.
158
UMA VISÃO ILUMINISTA DA MORTE: A MUDANÇA DE PARADIGMA A
RESPEITO DO MORRER TRAZIDA PELA DOUTRINA DOS ESPÍRITOS
Eline de Oliveira Campos (UFPB)
INTRODUÇÃO
Tão antiga quanto o homem, a morte ainda desperta interesses de áreas de
conhecimento tão distintas como a ciência e a religião. Seu conceito é complexo e mutável, sendo
relativo tanto à cultura, à época e ao contexto situacional quanto à idade cronológica. No decorrer
da vida, o conceito elaborado pelos indivíduos sofre modificações.
Hipóteses levantam a possibilidade de que, o fato de o homo neanderthalensis
sepultar seus mortos em covas decoradas seriam indícios da prática de cerimônias fúnebres já na
pré-história e até mesmo a existência de uma crença na vida após a morte. Bem mais tarde, o
Cristianismo estabeleceu a unicidade da existência, indo a alma após a morte para o céu, inferno ou
purgatório. Esse último foi inclusive, acrescentado às doutrinas cristãs no ano de 593, no intuito de
amenizar o castigo da permanência eterna no inferno por aqueles que tinham pecados “leves”.
O desconhecimento da dinâmica do processo de morte revestiu-a de mistério. O
receio que o indivíduo tem dela “inclui o indesejável prospecto de sofrer” (HENNEZEL e
LELOUP, 1999, p.44). Por essa razão, o homem tenta dar um sentido ao sofrimento ocasionado
quando de sua proximidade ou concretização. A religião foi empregada como suporte para superála, tendo-se tornado “um dos esforços culturais altamente organizados para triunfar sobre a morte,
para transcendê-la” (KASTEMBAUM e AISENBERG, 1983, p.101).
Quanto à visão negativa da morte, comentam Robert Kastenbaum e Ruth Aisemberg,
nem sempre foi assim, pois “nossos ancestrais pensavam na morte e em sua natureza íntima como
literalmente unidas na mesma respiração” (1983, p.1). Era vista, portanto, como uma apenas uma
etapa da própria existência.
Essa noção de morte como um evento profundamente negativo deriva do
cristianismo medieval que ensinava que ela era um castigo infligido por Deus ao homem por seus
pecados:
Ao fenecer da Idade Média, toda visão da morte podia resumir-se na palavra macabro em
seu sentido moderno (...) o sentimento que ela incorpora de algo repulsivo e funesto, é
precisamente a concepção de morte que surgiu nos últimos séculos da Idade Média.
(HUIZINGA apud KARSTEMBAUM e AISEMBEG, 1983, p.159)
OS RITUAIS FUNERÁRIOS
159
Rituais fúnebres são tão marcadamente encontrados nas culturas ao redor do mundo
que o homem chegou a ser definido antropologicamente como “o animal que pratica ritos
funerários” (THOMAS apud HENNEZEL e LELOUP, 1999, p.128). Essa acepção traduz o fato de
que o ser humano é o único que tem consciência de que vai morrer.
Eles simbolizam a passagem do morto para uma nova “realidade”. Têm como
objetivo principal a despedida do indivíduo do grupo social em que se inseria, logo após extinta a
vida. Segundo João José Reis, “muitas são as sociedades nas quais prevalece a noção de que a
realização de rituais funerários adequados é fundamental para a segurança de mortos e vivos”
(1991, p.89). Oriundo desse encadeamento de idéias, os cuidados com o cadáver e com o
sepultamento revestem-se da maior importância, pois “as pessoas para quem não se observam os
ritos funerários são condenadas a uma penosa existência, pois nunca podem entrar no mundo dos
mortos ou se incorporar à sociedade já estabelecida” (VAN GENNEP apud REIS, 1991, p.89).
No passado, a preparação para a morte era comum: uma forma de não ser apanhado
subitamente por ela. Eram corriqueiros os testamentos, as instruções minuciosas a respeito de quais
trajes deveriam ser usados, da maneira de lidar com os restos mortais e os cultos que seriam
cumpridos. Por causa da diversidade das manifestações religiosas vários foram os locais a as
maneiras de executar desde a preparação para a morte até os rituais fúnebres.
Na Europa medieval, o sepultamento em igrejas era uma prática comum até que o
aumento da população inviabilizou a prática. No Brasil, até a construção dos primeiros cemitérios,
no ano de 1820, o mesmo se dava. Ao morrer, os sujeitos se instalavam “nos mesmos templos que
tinham freqüentado ao longo da vida” (REIS, 1991, p.171), como se pudessem, com isso, continuar
participando do cotidiano da sociedade em que vivera.
Os rituais mortuários ensejam ocasiões de reflexão. Pensar a respeito da morte faz
com que o ser humano se remeta ao verdadeiro sentido da vida. Presenciar a morte de um parente
ou amigo altera, muitas vezes, conceitos e maneiras de proceder. As mudanças trazidas pelo
falecimento de um indivíduo influenciam significativamente os que fazem parte de seu grupo social.
A ocorrência da “morte sempre ativa comportamento coletivo de um tipo ou de outro – uma
convergência, uma integração social” (KASTEMBAUM e AISENBERG, 1983, p.107).
Os adeptos da Doutrina Espírita participam de velórios comuns, em casas
apropriadas, como os praticantes de outras denominações religiosas. Nessas ocasiões, procuram se
comportar de forma respeitosa. Acreditando na sobrevivência do Espírito, entendem que os bons
pensamentos são determinantes para o bem-estar daquele que está findando a existência. Pensam ser
essencial referirem-se ao morto com discrição e não fixar o pensamento em lembranças que possam
perturbá-lo.
160
De acordo com as observações empíricas realizadas, a grande maioria aparenta uma
tranqüilidade superior a que é comumente observada nesses momentos. Muito embora não sejam
rezadas missas, cultos ou outros rituais institucionalizados são feitas preces espontâneas e
“sentidas”122, por amigos, familiares e representantes de instituições espíritas que o falecido
freqüentava.
Realizam há três anos – segundo seus registros – uma campanha anual que é
denominada de “Divulgando da Imortalidade”123. Nas semanas que antecedem o Dia de Finados são
colocadas faixas com frases relativas ao assunto em pontos estratégicos na área metropolitana de
João Pessoa, a capital paraibana e, no dia é realizada a distribuição de panfletos em cemitérios que
falam a respeito da continuidade da vida após a morte física.
Os executores dessa campanha trabalham voluntariamente e são instruídos para não
fazerem propaganda doutrinária, ou seja, não aproveitar a ocasião para tentar convencer ninguém a
aderir à sua religião. Oferecem os panfletos e só tecem comentários sobre a temática, caso alguém
manifeste o desejo de adquirir maiores informações.
A DOUTRINA DOS ESPÍRITOS E SUA VISÃO DE MORTE
Produto do legado intelectual do Iluminismo essa doutrina que se denominou de
Espiritismo ou suas variantes Doutrina Espírita ou Doutrina dos Espíritos, trouxe uma visão
diferenciada do fenômeno da morte.
Advindo de um período da história ocidental em que as averiguação no campo do
conhecimento deveriam ser guiadas pela razão, o Espiritismo incorporou esse caráter. Procurou
antes de tudo, as explicações possíveis da fenomenologia através dos conhecimentos científicos da
época. Examinou com cuidado fenômenos antes relegados à categoria do sobrenatural, em
ambientes controlados para evitar a fraude. Exemplo disso foi a investigação realizada a respeito da
comunicação dos vivos com os mortos, que foi conduzida de forma sistemática e é praticada com
base nesses estudos. Incluída nos seus postulados, foi denominada de mediunidade, e abriu novas
perspectivas na forma de lidar com o fenômeno.
A ênfase dada ao ideário de progresso, usando como meio o conhecimento racional
para alcançar a renovação das idéias e superação de conceitos e preconceitos e a busca pela
perfectibilidade do ser humano, típicas do Siècle des Lumières124, foram também absorvidas por
essa doutrina.
122
Conforme definição de seus praticantes são preces não decoradas que podem ser proferidas por qualquer um
dos presentes com profundo sentimento de carinho e respeito pelo morto.
123
Segundo dados colhidos no site oficial da Federação Espírita Paraibana: http://www.fepb.org.br/ divulgando/
divulgando1.htm.
124
Século das Luzes ou Iluminismo.
161
Conta-se entre os nomes que estudaram essa fenomenologia, profissionais de várias
áreas como o filósofo e diplomata Alexander Aksakov, os astrônomos Nicolas Camille Flammarion
e Giovanni Schiaparelli, os engenheiros Eugène Auguste Albert de Rochas e Gabriel Delanne, o
fisiólogo Charles Richet, o físico William Crookes, o criminólogo Césare Lombroso, dentre outros.
Partindo do pressuposto de que a matéria por si só seria incapaz de gerar e organizar
a vida na Terra, supõe a existência de um ser que em decorrência de sua bondade daria à criatura
humana – por ele criada – inúmeras oportunidades de vivências. Afirma Allan Kardec em O Livro
dos Espíritos125 que “...todos nós temos muitas existências corporais” (2007, p.168). O objetivo
seria o enriquecimento de conhecimentos e experiências pela individualidade com o fim de alcançar
um grau maior de moralidade e intelectualidade. A divindade facultaria portanto, aos seres humanos
meios de alcançar esse equilíbrio intelecto/moral através das múltiplas vidas em diferentes corpos
físicos, para “realizar, em novas existências, o que não puderam fazer ou concluir numa primeira
prova” (KARDEC, 2007, p.169).
Nessa conjuntura, a morte deixaria de ser um fenômeno definitivo, passando a ser
apenas a finalização de uma dada existência: “desde que cessa a vida do corpo, a alma o abandona”
e se desprende de forma gradual. (KARDEC, 2007, p.148). Com base nessa hipótese, a morte é
denominada de desencarnação126.
Quanto ao sofrimento no momento ao extinguir-se a vida, os ensinamentos dessa
doutrina dizem que “o corpo quase sempre sofre mais durante a vida do que no momento da morte”
(KARDEC, 2007, p.160), o espírito a ela sobrevive passando a outro plano, sem perder a sua
individualidade. Complementa Allan Kardec127 que “a existência dos Espíritos não tem fim” (idem,
p.119).
Segundo Robert Kastenbaum e Ruth Aisenberg no livro Psicologia da Morte, a sua
forma “pode influir no comportamento de muitos modos complexos e remotos” e até mesmo
“padrões de comportamento que não parecem ter nada de especial a ver com a morte podem ser
influenciados por essas cognições” (1983, p.5).
Educar para a morte desde a infância, no sentido de dar naturalidade ao evento
quando ele se apresentar, ajudará o adulto a lidar bem com o binômio morte/separação. Como existe
uma forte relação entre morte e religiosidade, a filiação religiosa é uma variável que influi
diretamente na resposta às experiências a ela relacionadas. Cada sistema religioso possui um
enfoque da morte e da vida após a morte que, absorvidos por seus devotos, influenciam suas
125
Livro básico da Codificação Espírita foi assim denominado por Allan Kardec, por atribuir o seu conteúdo aos
espíritos que possuíam conhecimentos superiores aos da época em que viveu e que os revelaram através de sua
transmissão por escrito. É estruturado em forma de perguntas e respostas.
126
Literalmente sair da carne. Abandonar o corpo quando do término de uma determinada experiência material.
127
Pseudônimo do professor Hippolyte-Leon Denizard Rivail, o codificador da Doutrina Espírita.
162
percepções e cognições e geram estados afetivos internos e padrões de ansiedade diferenciados
causados pelo fenômeno (KASTEMBAUM e AISENBERG, 1983, p.39).
Com base no que foi exposto até aqui e, levando-se em conta a modificação de
paradigmas a respeito do morrer trazidos pelo enfoque Espírita, pode-se apontar alguns resultados
decorrentes dessa mudança. Em primeiro plano, percebe-se uma melhor aceitação dos processos
relacionados com a morte.
A percepção Espírita a esse respeito, acreditando que apenas o corpo se extingue, de
que a vida continua em outros planos e o Espírito retorno ao corpo físico através da reencarnação,
dá uma nova proporção à responsabilidade sobre as ações do dia-a-dia. Assim, essa modificação de
pontos de vista pode influir diretamente na alteração dos padrões de conduta individual com
reflexos na coletividade.
A possibilidade da comunicação e de um reencontro com os afetos que foram
separados por ocasião do óbito proporciona uma diminuição do desconforto causado pela situação e
do sofrimento dela decorrente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mudança de paradigmas a respeito da morte trazida pela Doutrina Espírita, a
crença na reencarnação da forma como é por ela elaborada – acreditando que a existência presente é
apenas uma das muitas possíveis – induz seus adeptos a refletir a respeito de suas ações enquanto
aprendizados necessários ao crescimento intelectual e moral. Há um estímulo no sentido da
alteração de conduta para melhor.
Embora até o momento não se comprove cientificamente a sobrevivência do espírito
e a reencarnação, percebe-se que a aceitação desses postulados altera a percepção da vida e da
morte, acabando por modificar significativamente tanto a forma de viver do indivíduo como a
convivência no seu grupo social.
Essa maneira racionalista de perceber a morte e a transcorrência desse processo contribui
não somente para o viver bem, mas desdobra-se no morrer bem. O indivíduo que ao aproximar-se
do final da vida está consciente de ter vivido de forma pacífica e de ter contribuído para o bem-estar
da sociedade em que estava inserido, possivelmente poderá enfrentar a morte com relativa
tranqüilidade. Como também aquele que foi educado para percebê-la com naturalidade enfrentará
melhor a separação dos afetos em conseqüência de falecimentos.
BIBLIOGRAFIA
- HENNEZEL, Marie de, LELOUP, Jean-Yves. A Arte de Morrer: tradições religiosas e
espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. RJ:Vozes, 2003.
163
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Edição Comemorativa. RJ:FEB, 2007.
- KASTENBAUM, Robert, AISENBERG, Ruth. Psicologia da Morte. SP: Pioneira, 1983.
- REIS, João José. A Morte é uma Festa: rituais fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. SP:Cia das Letras, 1991.
164
A MORTE EM SAMUEL FRITZ
Úrsula Andréa de Araújo Silva128
A morte deveria ser encarada pelos ocidentais como algo natural, haja vista que essa é a
única certeza que temos e mesmo porque biologicamente podemos dizer que a partir do momento
em que nascemos já estamos em contagem progressiva ao encontro desse fático evento.
Ao longo da História os homens tiveram diferentes modos de se relacionar com a morte e
com os mortos. Genericamente, conhecemos o fato de que os homens primitivos tinham uma
consciência aflorada no sentido desse tratamento com a morte ao contrário do que ocorre
atualmente.129 Hoje ocorre um fenômeno bastante diferente daquele que ocorria com os antigos.
Cada vez mais as pessoas tentam se isolar da morte e dos mortos, distanciando-se quanto mais
possível dos moribundos e criando novos espaços para a celebração dos velórios e dos
enterramentos. Sabemos que esses espaços antigamente eram o quanto mais próximos possível da
família ou de lugares sagrados como a Igreja. Esse quadro foi sendo modificado à medida que foi se
descobrindo que a aproximação excessiva com os corpos em decomposição e seus odores faziam
mal à saúde dos viventes. Foi com esse tipo de discurso que os sepultamentos foram paulatinamente
saindo do interior das Igrejas e se transferindo a outros lugares sagrados – os cemitérios que cada
vez mais foram sendo construídos distantes das habitações da cidade.130
Na atualidade vemos que esse distanciamento ocorre com mais força e até mesmo de forma
discursiva. As pessoas utilizam eufemismos para se referirem ao fato de que alguém, estando pronto
ou não, morreu. Não quero dizer aqui que eu tenho uma relação totalmente natural com o fato, mas
acredito que não é o mais saudável fazer parecer que não existe essa possibilidade e que ela está
mais próxima a cada dia.
Bom, talvez por ter essa certeza ou pela impossibilidade de conhecer realmente o que nos
aguarda do outro lado da vida, desde a minha graduação eu me interessei pela temática da morte.
Porém, tanto na graduação quanto no mestrado estive vinculada a outros projetos e temáticas.
Contudo, esse interesse nunca foi totalmente desprezado e é por isso que trato dele agora.
Durante a minha pesquisa de mestrado pesquisei o diário produzido por um padre jesuíta
que viveu na Amazônia. Seu nome é Samuel Fritz. Ele nasceu na Bohemia (Áustria) em 1654 numa
família nobre. Aos 19 anos foi aceito para ingressar em um dos Colégios da Companhia de Jesus.
Nosso padre resume sua experiência na região de Maynás em seu Diário entre os anos de 1686 e
1715 e apresenta-se em seu discurso como um religioso preocupado com as almas a salvar, embora
128
Licenciada, bacharela e mestre em História pela UFRN. Atualmente é professora substituta no mesmo departamento.
REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
130
MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1985. Coleção Primeiros Passos.
129
165
não deixe de empreender uma defesa da Coroa, pois estava ali a serviço da Espanha e entrando em
confronto com as tropas portuguesas. Podemos ali observar a guerra e disputas pelo espaço, as
ações luso-brasileiras, espanholas, indígenas e missionais. Trata-se de uma fonte pouco explorada
em sua totalidade, mas por fornecer dados importantes sobre a inserção de inúmeras aldeias
indígenas à sociedade colonial e sobre o embate diplomático envolvendo as Coroas Ibéricas tem
sido referência nos estudos sobre os conflitos de fronteira entre Portugal e Espanha.
Trabalhamos com duas versões disponíveis: uma de Pablo Maroni131 sendo parte da obra
Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de las relaciones de los P. P. A. de
Zárate y J. Magnin (1735-1740), publicada em Iquitos, Peru pelo Instituto de Estudios de la
Amazonía Peruana e Centro de Estudios Teológicos de la Amazonía em 1988 e outra de Rodolfo
Garcia132 que está publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1917.
Além do Diário o padre produziu um mapa que traçou contendo os territórios que havia conquistado
para a Coroa de Espanha, porém ele não será trabalhado nesse estudo.
A compilação produzida por Pablo Maroni é mais extensa e detalhada, destacando o caráter
hagiográfico do padre e sua atuação diplomática, apresenta aspectos de interculturação não
explorados pela outra versão. A versão que Rodolfo Garcia escreveu é uma tradução do Diário para
a revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) na qual reconhece a importância da
fonte por narrar a inserção dos índios amazônicos na sociedade colonial e a disputa territorial
operada pelos luso-brasileiros e espanhóis, apresenta uma larga introdução e um estudo
historiográfico. Ambos os autores são jesuítas e caracteristicamente dão um caráter propagandístico
à obra, mesmo porque é sabido que a Companhia de Jesus tinham como característica e obrigação a
documentação das ações nas missões e que, obviamente, muitas coisas eram embelezadas.
Desta forma, interessa-nos aqui a edição compilada por Pablo Maroni, pois minha intenção
para uma pesquisa mais ampla é trabalhar questões relacionadas ao corpo, à morte e à hagiografia.
Falemos, então, um pouco sobre a experiência de Samuel Fritz. Naquela região tão adversa e
tão precária a única instituição que havia era o corpo que ali materializava o Estado e a Igreja, tendo
o missionário como seu reflexo. Era ele que desempenhava o papel de líder espiritual e “militar”
quando o combate se fazia necessário, pois o território de Maynás onde estavam localizados era um
espaço de disputas territoriais durante o período da União Ibérica.
A Amazônia representava naquele momento uma possibilidade de comércio muito vantajoso
e já profícuo através da ação de franceses, ingleses, holandeses e toda sorte de contrabandista, posto
que vigiar todo o território brasileiro era impossível e que em grande medida isso era feito por cada
131
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de lãs relaciones de los P. P. A.
de Zárate y J. Magnin (1735-1740). Iquitos (Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía Peruana; Centro de Estudios
Teológicos de la Amazonía, 1988.
132
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, 1917.
166
homem que se sentisse ameaçado e que também se sentisse dono ou nativo, um papel
desempenhado extensivamente pelos índios que desde os primeiros contatos mostravam-se
pacíficos, amigáveis, adjetivos e atitudes facilmente modificadas ao tomar ciência dos reais
objetivos de alguns conquistadores e desbravadores. Guerreiros e defensores eram esses homens
que lutaram por aquilo que acreditavam e que muitas vezes foram vencidos pela falta de apoio
institucional e administrativo.
A tarefa estava longe de ser fácil para qualquer religioso que tivesse que se deparar com
aquela realidade: toda uma população clamando por paz, mas que não podia e não devia, por
questão de sobrevivência, largar sua tradição bélica. A única instituição que havia ali era o corpo
tanto do padre como dos índios que deviam atuar como a própria fronteira. Samuel Fritz após
muitos anos de luta e diplomacia morre em 1715, o que acaba por dar mais espaço aos projetos de
interiorização da Amazônia.
O relato no diário de sua morte é comovente e constituída de uma mística que tentava lhe
atribuir ou reforçar uma imagem santa. Durante o período que pregou e peregrinou ali, passou
bastante tempo doente, chegando a quase morrer, porém sem esmorecer na fé e na missão. Por
causa de tantos feitos, foi possível construir uma imagem de santo. Sua morte foi um espetáculo à
parte e a transposição da última fronteira. Longe de estar despreparado para a morte devido a sua fé
e ao seu estado de saúde, o padre ainda consolava seus seguidores.
Dois dias antes, isto é, o dia 18 de março, disse a um Padre que lhe
acompanhava: “Non videbo diem nativitatis meae.” (É a saber que o dia 9
de abril completava os setenta e um de sua idade). Esse mesmo dia, em que
se pôde dizer se deu a si mesmo o viático, havendo feito pouco antes
confissão geral, depois da missa, estando junto todo o povoado na igreja,
como quem se despedia de seus amados filhos, com particulares mostras de
ternura lhes disse rogassem e pedissem a Deus se cumprisse na sua
santíssima vontade em quanto a viver ou morrer, que não pedia a vida
senão para cuidar de suas almas e mostrar-lhes o caminho de sua salvação;
e que, se morresse, rogassem a Deus pelo descanso de sua alma, pois lhes
havia querido muito.133
De acordo com Maroni, ele previu ou pressentiu não chegar a comemorar seu aniversario e
nem sequer rezar missa no dia do santo de devoção, São Joaquim em decorrência do seu estado
físico e espiritual. “Porém este não quis senão que fosse a celebrar sua festa no céu, pois amanheceu
133
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de lãs relaciones de los P. P. A.
de Zárate y J. Magnin (1735-1740). Iquitos (Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía Peruana; Centro de Estudios
Teológicos de la Amazonía, 1988. p. 370.
167
morto de um golpe, como se discorre, de apoplegía.”134 Ao se espalhar tal notícia, todo o povoado
pôs-se a chorar como quando perdiam um parente querido e a disputar um lugar para constatar com
seus próprios olhos o fato. Concorreram todos à casa do Padre, sem querer dia e noite apartar-se do
cadáver até que se enterrou entre prantos e soluços/ suspiros contínuos, não se satisfazia de olhar e
diziam que parecia vivo. Aqui e com estas palavras consolida-se a figura santa do padre Samuel
Fritz.
Na realidade, em havendo-lhe posto no caixão de defunto com
vestimentas sacerdotais, o rosto, que antes era pálido e mortal, se pôs muito
colorado e formoso, como quando era vivo, conciliando-se amor antes que
horror. Assim acabou seus dias este santo varão, digno de viver muitos
séculos, até acabar de converter a todos os infiéis do Marañon.135
Neste dia consagrou-se o apostolado de Samuel Fritz sem, contudo, finalizar sua missão que
foi propagada através de seu exemplo pelos que conheceram sua luta e a continuaram.
Podemos concluir que a partir de seu exemplo e principalmente da construção da imagem
santa derivada de sua atuação na Amazônia, Samuel Fritz cumpriu seu papel e foi mais além ao
desenvolver a esperança daqueles que o seguiram e viam nele a possibilidade de viver em paz.
Contudo, a vida em periferia é bastante dura e complexa, sobretudo quando esse espaço passa a
demonstrar características de potencialidade econômica.
Em razão disso, a comunidade acompanhada por Samuel Fritz esfacelou-se pouco tempo
após sua morte, pois não tiveram mais como enfrentar as forças luso-brasileiras que estavam em
intenso processo de conquista daquela região.
134
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de lãs relaciones de los P. P. A.
de Zárate y J. Magnin (1735-1740). Iquitos (Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía Peruana; Centro de Estudios
Teológicos de la Amazonía, 1988.
135
Ibid.
168
A DOR INSTITUCIONALIZADA:
SIMBOLIZAÇÃO DE AFETOS EM RITOS MORTUÁRIOS SERTANEJOS
Cristiano da Costa Cardoso - UECE
Apenas recentemente a música saiu do lugar obscuro em que era colocada na produção
historiográfica, sendo desprezada por historiadores que ignoraram, por longo tempo, a utilidade da
análise musical na compreensão da história. A linguagem musical, rebuscada, fugidia, quase
inacessível e ilegível, parece ter atemorizado os historiadores, que permaneceram destituídos de
fontes que os fariam “compreender aquilo que talvez só ela possa restituir à história”136. Nesta
perspectiva, não descartando o registro sonoro, pretendemos interrogar a música, fazendo-a exibir a
dimensão histórica que ela elabora, narra e expressa.
[...] ela [a música] elabora os signos sensíveis pelos quais os homens de um
momento do mundo revelam sua vontade e esperança. A obra literária, a obra
plástica e a obra musical não revelam as tensões e os antagonismos profundos da
realidade histórica? Então, uma verdadeira teoria da música deve mostrar como a
sensibilidade dos homens de uma sociedade dada pode se simbolizar pela escrita
musical.137
O catolicismo rústico do Cariri
A região do Cariri, localizada no sertão sul do Ceará, é caracterizada por uma
religiosidade constituída como um complexo devocional que pode ser enquadrado dentro de um
modelo religioso denominado por “catolicismo rústico”, termo que designa, neste trabalho, uma
forma de catolicismo desenvolvido de forma autônoma ou semi-autônoma, em locais onde a
ausência de um controle eclesial rigoroso engendrou uma religiosidade fortemente marcada pela
atuação de lideranças religiosas laicas na administração dos meios de salvação. No percurso
metodológico adotado pelo presente trabalho, iniciaremos por uma análise histórica dos papéis
adotados pelo laicato e pelo clero na gênese da religiosidade estudada. Em seguida, discutiremos o
resultado de análises que tomam como objeto os benditos fúnebres cantados por ocasião dos ritos
mortuários da região, investigando as relações simbólicas estabelecidas entre música e religiosidade
no contexto local.
136
CHIMÈNES, Myriam. Musicologia e história: fronteira ou “terra de ninguém” entre duas disciplinas? Revista de
História, 157, 2007/2, p. 29.
137
DUFOURT, Hughes apud TRAVASSOS, Elizabeth. Tradição oral e história. Revista de História, 157, 2007/2, p. 23.
169
Apesar da existência de uma corrente teórica que apresenta as formas “oficial” e
“rústica” do catolicismo como duas tradições situadas em pólos opostos e antagônicos, a prática
religiosa aqui estudada assume uma feição de caráter mais intricado e complexo que a visão
reducionista que corresponde, em um campo conflituoso, a primeira às classes dominantes, e a
segunda às classes dominadas de uma sociedade. De acordo com Bourdieu, as diferentes formações
sociais engendram polarizações que aludem à produção, reprodução, conservação e difusão dos
bens religiosos. Neste sentido, os termos “oficial” e “rústico” servem apenas como demarcadores de
campos, indicando uma maior ou menor conformação normativa de uma determinada prática
religiosa à norma oficialmente instituída.
De um lado, o domínio prático de um conjunto de esquemas de pensamento e de
ação objetivamente sistemáticos, adquiridos em estado implícito por simples
familiarização, e portanto comuns a todos os membros do grupo e praticados
segundo a modalidade pré-reflexiva e, de outro lado, o domínio erudito de um
corpus de normas e conhecimentos explícitos, explícita e deliberadamente
sistematizados por especialistas pertencentes a uma instituição socialmente
incumbida de reproduzir o capital religioso por uma ação pedagógica expressa.138
Em fins do século XIX, praticava-se no Cariri um catolicismo que se caracterizava por
um caráter popular, público e centralizado em atividades para-litúrgicas, no qual se estimulava a
relação direta entre o santo e o fiel. Em detrimento da rarefeita participação do clero, que se
restringia às visitas periódicas dos missionários, a participação laica na ordenação das práticas
devocionais era marcante.139 Encontra-se, deste modo, uma situação muito mais próxima daquela
descrita por Bourdieu como um “auto-consumo religioso”. No mesmo período, a Igreja oficial
atravessou uma grande crise, o que atenuou a sua força política, fazendo-a promover uma mudança
substancial em sua organização. Dentro desse processo, denominado de romanização, o episcopado
local objetivava remodelar o clero e restaurar a ortodoxia da fé católica140, promovendo uma
verticalização eclesiástica que buscava inverter a polarização da estrutura da produção religiosa, na
direção de uma “monopolização completa”, por parte do clero, dos meios de salvação
anteriormente outorgados a autoridades leigas.
138
BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”. In: A economia das trocas simbólicas. 2ª. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1987, p. 40.
139
“Esse tipo de catolicismo permitiu uma participação do povo bastante acentuada na vida a religião. Sendo
religião oficial do estado o catolicismo era considerado, pelos habitantes do país, como uma coisa própria, assumindo o
mesmo povo a iniciativa de diversas manifestações religiosas.” AZZI, Riolando. “Catolicismo popular e autoridade
eclesiástica na evolução histórica do Brasil.” In: Religião e Sociedade 1, 1977, p. 125.
140
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. 2a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 35.
170
É neste contexto, marcado pelas divergências entre um catolicismo laicizado de tradição
colonial e um catolicismo reformador que visa a uma atuação centralizadora do clero, a partir de
modelos morais e doutrinais ligados à ortodoxia tridentina, que se articula o catolicismo rústico do
Cariri.
Característica fundamental desta religiosidade é seu caráter penitencial, presente em
considerável parte de suas atividades religiosas. Antes da criação da diocese do Ceará, em 1859, a
catequese dos fiéis ficava a cargo dos missionários capuchinhos, por ocasião das missões
itinerantes, nas quais elaborava-se uma prédica que valorizava uma espiritualidade que tinha como
centro a imitação do sacrifício de Cristo, figurando o sofrimento como um sacramento na vivência
cristã. O discurso tinha caráter escatológico, e enfatizava o pecado, a morte, o juízo final e o
inferno, restando ao fiel o recurso às práticas penitenciais, com o fim de abrandar a ira divina.
Diante de uma situação social marcada pela seca, doença e fome, a ascese constituía no único meio
de prover um domínio simbólico para sua estadia sofrida na terra. Nesse contexto, a morte assumia,
para o povo sertanejo, um lugar fundamental. Daí a importância do rito de exéquias dentre as
práticas religiosas locais, sendo a sua execução um dos momentos em que mais fortemente se
manifestava a riqueza simbólica da religiosidade sertaneja.
O rito fúnebre articulava-se, neste contexto, em uma dimensão maniqueísta. Nos últimos
momentos de vida do moribundo, o mundo tornava-se palco de batalhas travadas entre anjos e
demônios, que disputavam entre si a alma que se desprendia do corpo. Para Eliade, após a morte
[...] o defunto deve enfrentar certas provas que dizem respeito ao seu próprio
destino post-mortem, mas deve também ser reconhecido pela comunidade dos
mortos e aceito entre eles. [...] Além disso, a morte de uma pessoa só é
reconhecida como válida depois da realização das cerimônias funerárias, ou
quando a alma do defunto foi ritualmente conduzida a sua nova morada, no outro
mundo, e lá foi aceita pela comunidade dos mortos.141
No contexto religioso do Cariri, o rito fúnebre funciona como instrumento simbólico de
expiação pelo destino post-mortem da alma. Nele o canto assume posição fundamental, sendo aceito
pelos praticantes como um meio eficaz e necessário para o êxito do ritual. A música constitui uma
linguagem sagrada, por um lado contribuindo para a manutenção da ordem social, através de uma
ordenação sagrada da morte, com o desligamento definitivo do defunto da comunidade dos vivos. E
por outro, promovendo uma comunicação efetiva com o sobrenatural, auxiliando a passagem da
alma a seu eterno repouso. Assim, “o rito religioso opera uma integração perfeita em dois níveis
141
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 151.
171
distintos, mas interdependentes: o primeiro e mais profundo é com o sagrado ou a realidade
transcendente; o segundo é com o próprio grupo”142.
Análise sonológica do bendito
A partir de material sonoro coletado em pesquisa etnográfica empreendida por Rocha143,
realizou-se análise sonológica144 das gravações digitalizadas dos benditos, realizadas com vistas aos
significados correlacionados a determinados elementos da execução do canto, visando a inferências
acerca de como e através de que elementos o tipo de sonoridade estudado constituía-se como signo
de instâncias devocionais presentes na visão de mundo dos produtores. Centramos a investigação
nos processos de percepção e de construção simbólica das estruturas sonoras, evitando analisá-las
desvinculadas dos aspectos simbólicos participantes no processo de significação musical estudado.
Desta forma, tentamos encontrar, a partir da organização do material sonoro, correlações entre as
práticas expressivas e seus significados sociais. Tal perspectiva
Abre mão do enfoque sobre a música enquanto “produto” para adotar um conceito mais
abrangente, em que a música atua como “processo” de significado social, capaz de gerar
estruturas que vão além de seus aspectos meramente sonoros.145
Considerações finais
Certas estruturas encontradas no material analisado146 têm uma função que transcende
uma dimensão puramente estilística, sugerindo a presença de uma sintaxe musical significante,
inerente às obras musicais. Desta forma, o ritual da Sentinela guarda notórias semelhanças com os
Lamentos Karelianos (itkuvirsi) da Europa Oriental, descritos por Tolbert147. Em ambos, o ritual se
142
AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: AM Edições, 1996, p. 97.
ROCHA, Ewelter. A sagrada obediência de cantar os mortos: um estudo da função do canto fúnebre na sentinela do
Cariri. Dissertação (Mestrado), UFBA, Salvador, 2002.
144
“A análise de características distintivas encontradas no som musical, por meio de processamento de sinal e técnicas
similares.” SCHNEIDER, Albrecht. Sound, pitch and scale: from ‘tone mesurements’ to sonological analysis in
ethnomusicology. In: Ethnomusicology v. 45, n. 3, fall 2001, p. 515.
145
PINTO, Tiago de O. Som e música: questões de uma antropologia sonora. Revista de antropologia. Vol. 44, n. 1,
São Paulo, 2001, p. 227-8.
146
Uma explicitação técnica e aprofundada das análises pode ser conferida em CARDOSO, Cristiano; ROCHA,
Ewelter. Heresia e (re)significação nos benditos do Cariri. In: Anais do IV Simpósio Internacional de Cognição e Artes
Musicais.
São
Paulo,
USP,
Maio/2008.
Disponível
em:
www.fflch.usp.br/dl/simcam4/download_anais/SIMCAM4_Cristiano_Cardoso_e_%20Ewelter_Rocha.pdf. Acesso em
20/07/2008.
147
TOLBERT, Elizabeth. Women cry with words: symbolization of affect in the Karelian Lament. Yearbook for
Traditional Music, 22, 1990, p. 80-105.
143
172
situa como uma “[...] saída institucionalizada para a dor individual, o medo, o pesar e a raiva.”148 O
fenômeno musical transparece como veículo de elaborações engendradas no interior do imaginário
social, configurando-se como espaço das representações forjadas a partir das visões de mundo dos
cantadores, associando-se à feição penitencial do catolicismo rústico local.
148
DISSANAYAKE, Ellen. Ritual and ritualization: musical means of conveying and shaping emotion in humans and
other animal. In: BROWN, S.; VOGLSTEN, U. (Eds.). Music and manipulation: on the social uses and social control of
music. Oxford, New York: Berghahn Books, 2006, p. 47.
173
A PROBLEMÁTICA DAS FALAS E A EXPERIÊNCIA INTEGRALISTA EM
BARBALHA-CE: A ORALIDADE COMO UMA METODOLOGIA DE ANÁLISE. (19331945)
Samuel Pereira de Sousa∗
[email protected]
Percebendo a importância da memória que se foi construída sobre o movimento integralista
nesta cidade e a disposição que ela nos foi apresentada, através das fontes orais, colocamos como
necessário o entendimento da memória, quando esta relacionada à identidade. Assim utilizamos
Pollak149 para a compreensão da problemática que envolve a memória como fator constitutivo da
identidade social.
Podemos dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também
um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
(POLLAK,1992:204)
Neste sentido trataremos à memória e a identidade como fenômenos construídos socialmente
e abertos a constates transformações. Desta forma, podemos argumentar que as experiências novas
ampliam com freqüência as imagens antigas e que estas geram novas formas de compreensão do
passado. Também, estes fenômenos possuem valores em disputas, o que reflete um conflito político
que estabelece aquilo que deve ser lembrado ou esquecido. Aqui “os silêncios são tão importantes
quanto o que é dito e tornado público, pois através deles, pode-se penetrar, nos diferentes sentidos
que os indivíduos conferem aos fatos” (REGIS, 2002:137). Neste caso, podemos entender o
processo de construção da memória e identidade política em Barbalha, através do trabalho de
enquadramento da memória, sendo este mecanismo utilizado para demarcar e assegurar interesses
de uma coletividade e suas diferenças, ou seja, “a referência ao passado serve para manter a coesão
dos grupos e das instituições que compõe uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementariedade, mas também oposições irredutíveis.” ( POLLAK,1989:9) Esta discussão nos
∗
Aluno do Programa de Pós- Graduação da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bolsista da Fundação Cearense
de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (FUNCAP).
149
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. pp.200212.
174
facilita compreender o aspecto político da memória em Barbalha e a construção da identidade desta
população ligada aos ideais integralista como forma de manutenção dos interesses políticos da elite
local.
Neste contexto abordamos que a construção de identidade política em Barbalha estar em
expressivos pontos ligados ao ideário do movimento integralista. Sendo esta construção solidificada
pelo papel das instituições que tiveram consonâncias ideológicas com a A.I.B. local. Esta
característica pode ser analisada e nos transparece de forma mais intensa quando abordada a partir
da memória.
Nestas condições, podemos relacionar o discurso integralista em Barbalha, tanto ao controle
social, quanto para a configuração da identidade social desta população, sendo estas características
relevantes para a problematização do movimento integralista neste município.
Buscando favorecer uma análise mais aprofundada sobre a memória integralista nesta
cidade, optamos pelo procedimento de cruzamento entre as fontes orais e as escritas, como forma de
entender a construção dos discursos integralistas no estado do ceará e a forma como estes são
apropriados e utilizados na cidade de Barbalha. As fontes escritas utilizadas foram os jornais, O
Nordeste dos anos de 1932 -1936 e A Razão, dos anos de1936-1937, sendo estes dispostos no
acervo da Biblioteca Pública Menezes Pimentel e no Instituto Histórico e Antropológico do Ceará,
estando estas instituições localizadas em Fortaleza-CE. Apontaremos para a necessidade do recorte
temporal destas fontes visto que o jornal O Nordeste, este vinculado a Igreja Católica, serviu, no
período proposto, como importante instrumento de divulgação dos pensamentos integralistas neste
estado. Sendo a utilização da imprensa católica pela A.I.B. no Ceará efetivada em 1933, através do
apoio da Liga Eleitoral Católica (L.E.C.) aos candidatos da Ação Integralista à concorrência da
Constituinte de 1934. A disseminação das idéias integralistas pelo o jornal O Nordeste se estendeu
até o ano de 1936, quando a L.E.C. rompeu politicamente com o Integralismo na escolha dos
candidatos para as câmaras municiais do estado, apoiando o Partido Republicano Progressista
(P.R.P.).
Para análise do Integralismo no Ceará, o estudo da imprensa católica e a sua doutrinação
jornalística se revestem com expressivo valor de análise para compreendermos a expansão do
pensamento integralista neste estado. Visto a importância deste instrumento de comunicação e a
infiltração de seus discursos nos meios populares, especificamente nos setores operários. Podemos
perceber a influência desse importante veículo da imprensa católica e a sua utilização na difusão das
idéias integralistas, na fala de Franklim Gondim, personagem importante do Integralismo neste
estado e fundador da A.I.B. em Limoeiro do Norte.
175
Lá o único jornal que chegava naquela época era O Nordeste. Meu irmão tinha uma
assinatura do jornal O Nordeste. Eu lia O Nordeste. Comecei a ler uns artigos que eu
achava muito interessante, de um político que eu não conhecia, Plínio Salgado. Eu então,
me entusiasmei por aquilo que ele preconizava, fui lendo e me tornei integralista. Foi uma
adesão por meio de idéias, achei aquilo muito bonito, foi quase que minha primeira
manifestação política... O Nordeste era quem publicava as notícias do Integralismo. Eu
comecei a ler e gostar e os que liam também gostavam.150
Em 19 de abril de 1936, o Integralismo no Ceará, sem mais a simpatia da Igreja Católica,
cria um jornal próprio: A Razão. O recorte temporal deste jornal é importante, visto que em 2 de
dezembro de 1937 Getúlio Vargas decreta a dissolução de todos os partidos políticos, inclusive a
A.I.B., fazendo com que toda as matérias ligadas ao pensamento integralista fossem perseguidas,
diminuindo desta forma, o raio de atuação do discurso integralista vinculada a imprensa, junto à
população.
Separaremos as matérias destes jornais que discorrem sobre a atuação e os ideais
integralistas no estado do Ceará. Apontaremos para importância desta fonte visto que, “o jornal foi
um instrumento de difusão das idéias de Plínio Salgado e criou todas as condições para organização
dos seus adeptos” (OLIVEIRA, 2004:21). Esta fonte será trabalhada a partir dos discursos
produzidos sobre o integralismo, no que relacionado ao apoio das propostas pregadas por este
movimento político e sua expansão neste estado.
Na tentativa de mostrarmos como esses discursos, serviram para ampliar o campo de
atuação da A.I.B. no Ceará, os jornais serão manuseados e problematizados na perspectiva
levantada por Santos (OLIVEIRA, 1980:21). Este entende que os jornais não expressão o cotidiano
na sua totalidade, nos remetendo a uma leitura mais cuidadosa sobre a produção dessa fonte.
Abordaremos os noticiários como fontes de análise que venham a contribuir para a compreensão
dos fatos e suas várias formas de abordagens, uma construção carregada de valores. Consoante a
esta abordagem Capelato descreve que
A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenções na vida
social. Partindo desse pressuposto, o historiador deve estudá-la como agente da história e
captar o movimento das idéias e personagem que circulam pelas páginas dos jornais. A
categoria abstrata, imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura de seus
produtores como sujeitos dotados de consciência determinada na prática social. (
CAPELATO,1994:33)
Desta forma, a leitura de jornais como fontes relevantes para a problematização de uma
época, apresenta-se como elemento importante para entendermos os embates das idéias que
150
Segundo depoimento de Franklin Gondim Chaves, obtido no Núcleo de Documentação Cultural – UFC, 21/03/1984.
Fita 03, p. 5;6.
176
cerceiam o contexto estudada, possibilitando também, ao pesquisador, uma análise das práticas
políticas que se desenrolam, nos vários setores da sociedade. Assim completa Capelato
A leitura dos discursos expressos nos jornais permite acompanhar o movimento das idéias
que circulam na época. A análise do ideário e da prática política dos representantes da
imprensa revela a complexidade da luta social. Grupos que se aproximam e se distanciam
segundo as conveniências do momento; seus projetos se interpretam, se mesclam e são
matizados. Os conflitos desencadeados para a efetivação dos diferentes projetos se inserem
numa luta mais ampla que perpassa a sociedade por inteiro. O confronto das falas, que
exprimem idéias e práticas, permite o pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o
significado da atuação de diferentes grupos que se orientam por interesses específicos. (
CAPELATO,1994:33)
Em nosso trabalho a oralidade é explorada a partir de depoimentos e entrevistas junto aos
integralistas e as pessoas que vivenciaram o período de ascensão desse movimento político em
Barbalha. Definimos o próprio lugar das falas destes entrevistados e depoentes, como forma de
entendermos qual a versão do passado que se registra e se projeta, o que ficou esquecido, quem
deseja recordar e por quê.
Ressaltemos a importância da oralidade, considerando-a como registro de lembranças de
vida de indivíduos que, ao focalizarem suas lembranças pessoais, constroem também uma visão
mais dinâmica do funcionamento das várias etapas da trajetória do grupo social a que pertence.
Desta forma, extraímos os elementos que são dados pela oralidade para investigar a
relevância do integralismo na construção da Identidade política em Barbalha, sendo a identidade
compreendida como uma construção social sempre em devir. A memória é entendida e analisada a
partir de Pollak, pois este enfatiza a memória como elemento constitutivo da identidade social. Essa
concepção é importante para compreendermos como a identidade social desta população foi
constituída sob a influência do pensamento integralista, abordada a partir da memória que se tem
sobre este movimento político, nesta cidade.
Ressaltaremos a importância de cada entrevistado ou depoente, pois consideramos estes
como sujeitos históricos construtores dos fatos sociais. “Cada pessoa é uma amalgama de grandes
números de histórias em potencial.” (PORTELLI, 1997: 17) Nesse sentido, as diferentes
experiências lembradas não se excluem, mas nos oferecem possibilidades de problematizar a
memória que se tem sobre o integralismo em Barbalha. “A História Oral tende a representar a
realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como um
mosaico ou colcha de retalho, em que os pedaços são diferentes, porém, forma um todo coerente
depois de reunidos.” ( PORTELLI,1997:16) Por isso, possibilita a construção de uma imagem do
passado muito mais abrangente e dinâmica.
177
Neste contexto, perceberemos que, “um mundo social que possui uma riqueza e uma
diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse
mundo perdido podem ser compreendidos por quem os viveu e até humanizar o presente.”
(BOSI,1994:82). Assim, a História Oral é utilizada como elemento para entendermos o integralismo
e a manutenção dos poderes locais, através das memórias que se foi construído sobre este
movimento político nesta cidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade, lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A Imprensa na História do Brasil. São Paulo: Contexto/
EDUSP, 2 edição:1994
OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. “Perante o Tribunal da História”: o anticomunismo da Ação
Integralista Brasileira (1932-1937). Rio Grande do Sul: Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da PUC-RS, 2004.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.
10, 1992. pp.200-212.
________. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2 n°.3, 1989,
pp. 3-15.
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na
História Oral. In: Projeto Historia. São Paulo: PUC, n.º15, p. 17, 1997
REGIS, João Rameres. Galinhas Verdes: Memória e História da Ação Integralista Brasileira:
Limoeiro do Norte- Ceará (1934-1937). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do CearáFortaleza: 2002.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Ciência Política na América Latina. In: Revista de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Campos, v.23, n.1, p.20, 1980.
178
A HISTÓRIA NO PAPEL DA IMPRENSA
Bruno Balbino Aires da Costa ( UERN )
O Prelúdio da Imprensa no Brasil
O nascimento da Imprensa periódica no Brasil se dá a partir dos anos iniciais do século XIX
com a chegada da família Real a colônia. A presença da corte portuguesa em terras brasileiras
inaugura, na sede do império, um momento de modernização urbanística, artística e burocrática,
sendo a exemplo dessas transformações o surgimento da imprensa no Brasil que “acompanha e
vincula-se a transformações dos espaços públicos, à modernização política e cultural das
instituições, ao processo de independência e de construção do Estado Nacional.”151 . A História do
Brasil e a História da imprensa andam lado a lado, “se auto-explicam, alimentam-se
reciprocamente, integrando-se num imenso painel.”152 A formação do Brasil enquanto nação e o
próprio desenrolar do processo histórico da nação brasileira cresce com a imprensa, uma explica a
outra, amadurecem juntas.153
Não há como escrever sobre a história da imprensa sem relacioná-la com a
trajetória política, econômica, social e cultural do país. A relação entre imprensa e
poder, o equilíbrio tênue da dependência e crítica, de observação e subserviência, a
busca da liberdade e a censura.154
O primeiro jornal brasileiro foi publicado em Londres chamado de Correio Braziliense
surgido em 1808, sendo oposicionista e crítico, discutindo, em solo Inglês, os problemas da Colônia
atravessando o Atlântico e circulando no Brasil. No mesmo ano que o jornal de Hipólito da Costa155
trilha os primeiros impressos a corte portuguesa desembarca no Brasil, em 1808, inaugurando a
Imprensa Régia que surge a serviço da própria corte. O primeiro jornal impresso no Brasil foi a
“Gazeta do Rio de Janeiro”, em 10 de setembro de 1808, publicado duas vezes por semana,
formado basicamente por comunicados do governo, sendo um jornal necessariamente monárquico.
A partir de dezembro de 1821 o jornal passou a se chamar “Gazeta do Rio”, e logo após a
Independência parou de circular. Podemos dividir o período inicial da imprensa brasileira em dois
momentos. Até 1821, quando a censura e a proibição dos prelos contribuíam para inibir o
151
MOREL, Marco, BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra,imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil
do século XIX. p.7
152
MARTINS, Ana Luiza, LUCA, Tânia Regina. História da Imprensa no Brasil. p. 8
153
Ibid. p.8
154
Idem
155
Correio Braziliense
179
surgimento de jornais e o momento posterior a 28 de Agosto do mesmo ano onde a partir dessa data
o príncipe-regente D.Pedro decretou o fim da censura, permitindo daí então a multiplicidade de
tipografias e jornais.156
A escrita da História da Imprensa no Brasil
Na década de 1970, no Brasil, o número de trabalhos que se valia de jornais e revistas como
fonte de pesquisa para a história nacional ainda era relativamente pequeno. Os estudos em torno
desse universo de pesquisa no país estavam vinculados apenas a História da Imprensa apresentando
poucas produções sobre escrita da História por meio da Imprensa. Isso se deve ao fato de que havia
certas ressalvas na utilização dessa fonte ou desse objeto de pesquisa, pois para muitos
pesquisadores não passava de simples canal de informações carregadas de paixões, pragmatismos e
subjetividade. Como aponta José Honório Rodrigues, falando sobre os jornais
o jornal como uma das “ principais fontes de informação histórica”, ponderava que
“nem sempre a independência e exatidão dominam o conteúdo editorial”,
caracterizado como “mistura do imparcial e do tendencioso, do certo e do falso157.
José Honório Rodrigues critica a atuação das abordagens feitas sobre os estudos realizados
pelos historiadores da imprensa no Brasil, uma vez que poucos exploraram o potencial que os
jornais poderiam fornecer para o campo historiográfico, “eles se limitaram sempre à exata ou
inexata narração dos periódicos e jornalistas que desde os tempos da independência formaram ou
expressaram a opinião pública.”158 Para Ana Maria de Almeida Camargo essa efêmera utilização da
imprensa, sobretudo, periódica nos trabalhos de História do Brasil se deve pelo fato de que alguns
historiadores terem limitado “seu uso por escrúpulo, já que encontram, tão em evidência e
abundância, as “confirmações” de suas hipóteses- e com a mesma facilidade, também, argumentos
contrários.”159 E que
a maioria, porém, pelo desconhecimento, pela ausência de repertórios exaustivos,
ela dispersão das coleções. Quando o fazem, tendem a endossar totalmente o que
encontram, aproximando-se de seu objetivo de conhecimento sem antes filtrá-lo
através de crítica mais rigorosa.160
156
AUGUSTO, Cid. Escóssia. p. 144
Rodrigues apud Tânia. LUCA, Tânia Regina de. Fontes imprensas: História dos, nos e por meio dos periódicos.
In: PINSK, Carla Bassanezi (org ). Fontes Históricas. p. 116
158
Idem
159
Ibid p.117
160
Idem
157
180
A partir de trabalhos mais recentes como “Palavra, imagem e poder: o surgimento da
imprensa no Brasil do século XIX”, organizado pelo historiador e jornalista Marco Morel e Mariana
Monteiro de Barros, bem como “História da Imprensa no Brasil” e “História e Imprensa:
representações culturais e práticas de poder”, organizados Ana Luiza Martins e Tânia Regina de
Luca, Lúcia Maria Bastos P. Neves e Tânia Maria Bessone da C. Férrea, respectivamente, é que
uma nova abordagem sobre a importância da utilização da imprensa como fonte e como objeto de
estudo historiográfico, vai da desconsideração à centralidade da imprensa na produção do saber
histórico, suscitará novos temas e novas problemáticas em torno dessa importante área de
conhecimento que é a imprensa.
A Imprensa como fonte e objeto de estudo historiográfico
A escrita da história mudou significativamente com o advento da escola francesa dos
Annales161. Nesse sentido, a referida escola rompe com o paradigma tradicional caracterizado por
uma história essencialmente política, vista de cima, objetiva, preocupada com a narrativa dos
acontecimentos, baseada exclusivamente em documentos. A Nova História162 traz ao conhecimento
histórico uma nova dimensão no campo das problemáticas, dos novos objetos de pesquisa e das
maneiras de se pensar o passado, permitindo que a História dialogue com outros campos de
conhecimento como: a psicologia, a literatura, a geografia, a sociologia, a antropologia, a
lingüística, a semiótica. É importante destacar também que as mudanças ocorridas com o advento
da escola francesa permitiram ao historiador uma abertura maior do número de possibilidades que o
profissional da história pode se apropriar de novos métodos e fontes, como atesta Peter Burke: “já
foi sugerido que quando os historiadores começaram a fazer novos objetos de pesquisa, tiveram de
buscar novos tipos de fontes, para suplementar os documentos oficiais”.163 É a partir dessas novas
possibilidades que o historiador tem ao se enveredar por novas fontes, que a presente pesquisa
encontra na imprensa periódica seu aporte pela busca de se fazer novos tipos de perguntas ao
passado.
Vale destacar duas abordagens sobre a imprensa enquanto fonte e objeto de estudo: a
abordagem positivista, socioeconômica e a cultural (escola dos Annales ).
Primeiramente, na abordagem dita positivista a imprensa é entendida como uma fonte que
“era vista como autêntica narradora dos fatos e da verdade.”164 Os jornais, no caso, eram
apresentados como:
161
História made in França, agrupada em torno da revista Annales: économies,societés, civilisations surgida em 1929.
Termo criado pelo historiador Jacques Le Goff, sendo associada à escola francesa dos Annales.
163
BURKE, Peter (org ). A escrita da História: novas perspectivas..p.25
164
MOREL, Marco, BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra,imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil
do século XIX. P.112
162
181
Pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que essas “enciclopédias
do cotidiano” continham registros fragmentários do presente, realizados sob
influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez permitirem captar o
ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.165
Mesmo que a escola dita positivista se utilizando da imprensa como fonte, é preciso
entender que esse trato sendo pioneiro era limitado, uma vez que reduzia a imprensa a um mero
canal onde o passado se encontrava exclusivamente na narração dos fatos “o que acabou por dar
uma margem ao principal argumento que postularia “o relativo abandono dessa fonte de estudo que
posteriormente sucedeu.”166
Para a abordagem dita socioeconômica a imprensa foi entendida “como mero “veículo” de
idéias e de forças sociais e como “falsificadora da verdade”, acabou, por sua vez, cedendo à
subseqüente transformação historiográfica.”167 . Para essa abordagem a imprensa estava
subordinada às classes dominantes como uma mera caixa de ressonância de valores, interesses e
discursos e ideológicos. Sendo assim:
a imprensa “entrelaçou-se às discussões sobre ideologia e “superestrutura” e passou
a ser relegada a uma condição subalterna, pois seria apenas “reflexo” superficial de
idéias que, por sua vez, eram subordinadas estritamente a uma infra-estrutura
socioeconômica.168
Com a terceira geração dos Annales169 a imprensa terá um local redimensionado na
produção do saber histórico graças aos “novos problemas”, as “novas abordagens” e os “novos
objetos” que a Nova História se propõe a discutir. Nesse sentido, a abordagem cultural (escola dos
Annales) entende a imprensa como cerne das relações de poder que perpassam a sociedade e que os
impressos interagem na complexidade de um contexto.170 Nesse sentido, vale destacar a Imprensa entendida na perspectiva foucaultiana como sociedades de discurso - tendo como função também “
conservar ou produzir discursos”.171 Com o advento das renovações das abordagens políticas e
culturais a imprensa passa a ser:
165
LUCA, Tânia Regina de. Fontes imprensas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSK, Carla
Bassanezi (org ). Fontes Históricas. P.112
166
MOREL, Marco,.P.8
167
Ibid.p.8
168
Ibid p.9
169
A primeira geração se dá com o lançamento da revista Annales d’historique économique et sociale em 1929 com
seus fundadores: March Bloch e Lucien Febvre. A Segunda geração datada em 1956 inicia-se com a morte de Febvre
quando Fernand Braudel assume a direção da revista. E a Terceira geração caracteriza-se pela gama de historiadores
mais recentes que advém das décadas finais do século XX como: Le Goff, Pierre Norra, Georges Duby, Jacques Revel.
170
MOREL, Marco, BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra,imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil
do século XIX. p.9
171
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.p.39
182
considerada fonte documental ( na medida em que enuncia discursos e expressões
de protagonistas ) e também agente histórico que intervém nos processos e
episódios, em vez de servi-lhes como simples “reflexo”. Força ativa, não mero
registro de acontecimentos. 172
Nesse sentido, há uma superação diante da perspectiva limitada de identificar a imprensa
como portadora dos “fatos” e da “verdade” e de posturas preconcebidas, que a interpretavam como
mero veículo de idéias ou forças sociais, que, por sua vez, eram subordinadas estritamente por uma
infra-estrutura sócio-econômica.173
Através das remodelações e novas abordagens sobre o conhecimento histórico a imprensa
tem sido utilizada como fonte e também como objeto de estudo que “como fonte documental,
integra-se a outros materiais que dão suporte a pesquisas e reflexões em áreas diferentes, como
objeto, transforma-se ela mesma no foco dos trabalhos”174 e que constitui
memórias de um tempo, as quais, apresentando visões distintas de um mesmo fato,
servem como fundamentos para pensar e repensar a História, quanto desponta
como agente histórico que intervém nos processos e episódios, e não mais como
um simples ingrediente do acontecimento.175
Mais detidamente a partir da década de 70 do século XX a imprensa terá o espaço devido,
em teses, dissertações, artigos, resumos, como aponta Vavy Pacheco176
[...] parece-me interessante registrar que o pequeno uso da imprensa como fonte,
apontado no início dos anos de 1970 [...], inverteu-se completamente; nota-se hoje
nos resumos[ das teses e dissertações consultadas ] uma freqüente uso da imprensa,
seja como meio fundamental de análises das idéias e projetos políticos, da questão
social, da influência do Estado e da censura etc., seja como fonte complementar
para a História do ensino, dos comportamentos, do cotidiano.
Por fim, falta ainda para compor esse trabalho reforçar a importância e a contribuição que a
imprensa traz para o conhecimento histórico. Se na visão dita tradicional a imprensa era vista como
uma mera difusora de fatos e de “verdade”, ou vista como um objeto subserviente a uma infraestrutura sócio-econômica, os estudos mais recentes vêm demonstrando que o seu potencial como
fonte e como objeto de estudo tem tido um espaço privilegiado pelos historiadores, sobretudo, da
História Cultural e da Cultura Política, uma vez que a imprensa está repleta de representações
172
MOREL, Marco, p.9
Idem
174
NEVES, Lúcia Maria Bastos P., MOREL Marco, FERREIRA, Tânia Maria Bessone (orgs). História e Imprensa:
representações culturais e práticas do poder. p.10
175
Ibid. p.10
176
Pacheco apud Tânia. 176 LUCA, Tânia Regina de. Fontes imprensas: História dos, nos e por meio dos periódicos.
In: PINSK, Carla Bassanezi (org ). Fontes Históricas. p. 130
173
183
culturais e práticas do poder servindo como subsídio para a reflexão sobre o próprio saber
historiográfico.
REFERÊNCIAS:
AUGUSTO, Cid. Escóssia. Mossoró: Coleção Mossoroense: 2000.
BURKE, Peter (org ). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: EDUSP,1992
LUCA, Tânia Regina de. Fontes imprensas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In:
PINSK, Carla Bassanezi (org ). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005
MARTINS, Ana Luiza, LUCA, Tânia Regina. História da Imprensa no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008
MOREL, Marco, BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra,imagem e poder: o surgimento da
imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2003
NEVES, Lúcia Maria Bastos P., MOREL Marco, FERREIRA, Tânia Maria Bessone (orgs).
História e Imprensa: representações culturais e práticas do poder. Rio de Janeiro: DP&A /
Lamparina, 2007
184
UMA (RE)LEITURA DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O CONCEITO DE
CULTURA POPULAR E IDENTIDADE NACIONAL A “LUZ” DO HISTORIADOR
ANTONIO CARLOS REIS1
Autor: Jair Barbosa ARAÚJO1 Uminho
[email protected]
Co-autora: Giovanna de Aquino Fonseca ARAÚJO2Uminho
[email protected]
Trataremos da cultura popular no Brasil sob a concepção de identidade nacional
brasileira construída de acordo com o campo da História, da Antropologia e da Sociologia. Nesse
sentido, dialogaremos com Antonio C. Reis, Francisco A. de Varnhagen, Silvio Romero, Renato
Ortiz, Gilberto Freyre, Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson W. Sodré, Caio
Prado Jr. Tomaz Tadeu Silva. Isso numa perspectiva interdisciplinar.
O conceito de cultura popular desde a idade moderna possui concepções diferenciadas,
pois até o século XVIII a cultura representava a arte, a literatura e a música. Após o século XIX,
graças aos estudos dos antropólogos, sociólogos, historiadores, além dos críticos literários, esse
conceito se ampliou e agregou valores do cotidiano, se relacionando, portanto, a tudo que é
apreendido por uma sociedade, como o vestir, o comer, as expressões populares.
Após o século XVIII, ainda no advento da Idade Moderna e da Formação dos Estados
Nacionais europeus, o termo cultura se associava ao termo civilidade, civilização, desassociado dos
aspectos da natureza, ao mesmo tempo em que se aproximava das instituições de coesão e de
controle. O momento histórico era de legitimação política na figura dos Estados Nacionais, com
exacerbação de valorização da racionalidade, bem como exaltação do eurocentrismo ocidentalizado.
Nesse contexto, emerge uma tentativa de recuperação das produções culturais do povo atendendo a
uma necessidade de formação de identidade social de grupo. Nesse período3 então vê-se a coersão
social dada a correlação de forças estabelecidas entre os poderes medievais e modernos. Por outro
lado surge também a tentativa de definição de cultura e de identidade não somente atrelada a uma
Nação, mas sobretudo pertencendo a um povo, povo esse potencializado na luta contra o poder
hegemônico, rico em luta social.
__________________
1- O autor é também graduado em História, Especialista em Teoria e Metodologia do Ensino de História(UEPB) e
Doutorando em Idade Contemporânea, pela UMINHO- Braga, Portugal.
2- A co-autora é graduada em História, Especialista em Teoria e Metodologia do Ensino de História, Mestre em
Ciências da Sociedade (UEPB) e Doutoranda em Idade Contemporânea, pela UMINHO- Braga, Portugal.
3- Na era medieval um homem primeiramente se definia como um ser cristão e depois pertencente a um
determinado território na condição de cidadão, com a modernidade e a formação das Nações essa lógica se
inverte.
É o que define Antonio Gramsci4 “ a cultura não é um apanágio de classes, pelo
contrário todos os indivíduos são intelectuais” . Nesse contexto, a cultura deve ser vista como
185
elemento que contribui para o entendimento diverso e plural das realidades humanas. Realidades
essas transformadas pelo próprio homem, com o objetivo de alcançar seus objetivos.
Fazendo uso de sua inteligência e criatividade o homem é capaz de transformar sua
realidade para além do que está posto, desenvolvendo astúcias silenciadas, antidisciplinada,
desordenada, ordinária e criativa, (re)inventando táticas e estratégias para transformar sua realidade5
O homem tem então vê na cultura a possibilidade de materializar, transformar, (re)criar, (re)inventar
sua vida.
No Brasil os estudos sobre cultura popular e identidade nacional tiveram início na
segunda metade do século XIX. Neles a miscigenação brasileira será entendida, a partir das críticas
de Sílvio Romero ao romantismo, como o cruzamento de três raças, a saber, a raça branca européia,
o negro africano e o índio autóctone.
No caso específico do Brasil essa discussão sobre cultura popular e Identidade Nacional
tardou a acontecer. O teórico, que iniciou essa discussão, tendo seu nome reconhecido como o
“Heródoto do Brasil”6 foi o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, que com a obra História
Geral do Brasil abordou a temática de Identidade nacional em 1850. Embora esta obra tenha sido
demasiadamente significativa para o entendimento da História do Brasil, Varnhagen, a serviço de
Dom Pedro II, adepto a permanência do escravismo e da cidadania restrita7, ainda encontrava-se
fortemente atrelada a todo o imaginário de submissão da ex- colônia a metrópole portuguesa.
Nesse sentido as obras de Varnhagen tinham atendiam muito mais a um estilo de
crônica, ligadas ao romantismo peculiar dos viajantes9. Não se concebia na historiografia
varnhageniana a possibilidade de temáticas ligadas as guerras, ou melhor aos conflitos vivenciados
no Brasil dado o momento histórico de lutas já republicanas e anti-imperialistas. Nem tão pouco
temáticas ligadas ao cotidiano dos brasileiros pobres, pois os principais personagens de sua História
eram os sujeitos brancos e o Estado Imperial.
Nessa direção a idéia de identidade presente era demasiadamente conflitante, uma vez
que não se sabia então qual o ideário de brasileiro que se pretendia ser, e a opção que a
_____________
4- GRUPPI, Luciano. (1978).
5- CERTEAU, Michel. (1994).
6- Ver REIS, Antonio Carlos. (2007).
7- ABREU, J. Capistrano. (1975)
9- Os viajantes, considerados como os primeiros a narrar a História do Brasil, antes mesmo da existência do IHGBInstituto de História e Geografia do Brasil
historiografia brasileira apontava a luz de Varnhagen era a de uma Nação recém “liberta” que para
manter a idéia de “civilizado”, precisava manter as características peculiares de seus colonizadores,
a branquidade era alienante, pois naquele instante ainda se via os portugueses como representantes
186
da Europa, das “Luzes”, do “Progresso”, da “razão”, da “civilização” e do cristianismo
eurocentrico.
Outros dois literários que levantaram a discussão sobre identidade brasileira
formada no século XIX, foi Silvio Romero10 e Euclides da Cunha11, ambos levantaram a discussão
a partir do binômio raça e clima, para ambos segundo Renato Ortiz12, tais temáticas se
configuravam como paradigmas com o desdobramento da miscigenação para se entender a
formação da civilização brasileira. Tal miscigenação se tratava no século XIX apenas no âmbito das
duas raças: branca européia e indígena, o negro só passou a ser estudado após a abolição. Vale
lembrar que os negros também tiveram esse mesmo tratamento nas obras de Varnhagen.
Em 1930, Gilberto Freyre, com sua obra13 leva um deslocamento do conceito de raça
para o de cultura, diferentemente de Varnhagen, Freyre pensa o Brasil não na concepção
racial, mas sim cultural. Nessa direção o que era visto até então como negativo em relação ao negro
se torna positivo e além de mestiço, nacional. Para Freyre a presença africana tende a enriquecer,
fertilizar, abrilhantar a obra portuguesa.
Entretanto as obras de Freyre são consideradas neovarnhageniana14, pois se trata de um
reelogio a colonização portuguesa, tida como justificação da conquista e ocupação portuguesa do
Brasil. Na apologia que Freyre faz a presença do escravo no Brasil, até como condição da época, em
oposição a “moleza” do indígena frente ao trabalho agrícola, há no sentido subscrito um apoio desse
sociólogo aos latifundiários e a própria escravidão, uma vez que em suas obras não valoriza o
momento atual que o Brasil está vivendo em plenos anos 1930, momento da passagem da nação
latifundiária e agrária para uma Nação propensa a modernização e industrialização.
Para Freyre15 a formação brasileira teria sido resultado de um processo de equilíbrio e de
antagonismos. Uma das mais democráticas, flexíveis e plásticas. Ela conseguiu equilibrar
harmoniosamente antagonismos dificilmente superáveis: cultura européia, africana e indígena,
___________________
10- ROMERO, Sílvio (1977)
11- CUNHA, Euclides ( 2002 )
12- ORTIZ, Renato. (1994)
13- FREYRE, Gilberto. [1933], (1987 )
14- Op cit REIS Antonio Carlos. (2007).
15- Op cit FREYRE, Gilberto [1933], (1987).
economia agrária e pastoril, fazendeiro e jesuíta, bandeirante e senhor de engenho. E equilibrou o
antagonismo maior: senhor e escravo.
Retomando um pouco os anos 1900, verificamos a presença na historiografia brasileira
do historiador que em muito contribuiu para a História do Brasil, em especial da identidade do povo
brasileiro, pois foi considerado o “Heródoto do Povo Brasileiro”, nos referimos a Capistrano de
Abreu que provocou mudança na concepção até então de povo brasileiro a luz da metrópole
187
portuguesa. Haja vista Capistrano ter sido o responsável por críticas construtivas e bem
fundamentadas a respeito das obras de Varnhagen e Freyre. Sua obra mais visitada17 consiste em
uma “Redescoberta do Brasil”, valorizando o seu povo, Para ele o conceito de “cultura” substitui o
de “raça”, valoriza a presença do indígena e pensa um Brasil mais mameluco que mulato, mais
sertanejo que litorâneo.
Dando prosseguimento a esse ideal de povo brasileiro emerge no presente texto à
contribuição nos anos 1930 do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que se distancia de
Capistrano no instante em que explora um Brasil urbano. Entretanto, percebemos uma aproximação
das suas teorias com Abreu, diante da valorização dada ao estudo do povo brasileiro a partir da
ambiência do próprio povo, ampliando esse ideal de povo.
Em sua obra18 com aporte político, Holanda explora a modernização política e
econômica-social e, sobretudo, mental do País. Pois considera que a miscigenação no Brasil não foi
um problema, a problemática se dá no instante em que não rompemos com essa ideologia
portuguesa que para ele, “ O Brasil é mais português do que gostaríamos que fosse. Somos
sobretudo neoportugueses e devemos nos tornar pós-portugueses, isto é, brasileiros.”
O cenário dessa revolução são as cidades, atendendo a uma sociedade urbana com
influências norte-americanas. O campo nesse contexto passa a ser o abastecedor das cidades, o
mundo se torna americano-urbano-capitalista e as cidades cosmopolitas, racionais e produtivas. O
tempo histórico brasileiro é outro, as continuidades e mudanças são inerentes do progresso, da
revolução, do futuro, do novo, não cabe mais nesse contexto ficar preso ao passado colonial
português e todos os seus legados. Os sujeitos da investigação de Holanda se ampliam para o
mundo urbano, dos comerciantes, operários, funcionários públicos, empresários, profissionais
liberais, classe trabalhadora atendendo as diferentes profissões presentes na urbe-brasileira,
americana por excelência.
____________
17- Capítulos da História colonial ( 1963 )
18- Raízes do Brasil, [1936], (1984)
Percebemos contudo, que em 1937, com o advento do Estado Novo, há uma
reconceituação do popular (ambigüidade), o povo passa a ser visto ora de forma positiva como ser
autêntico, criativo, trabalhador, ora de maneira negativa como inconsciente, analfabeto, deseducado,
“necessitando” portanto do Estado para ajudá-lo e instruí-lo, há então uma tentativa de alienação e
de ideologia por parte do Estado, e dos intelectuais que encontram-se a seu serviço, para legitimar o
papel ao governo, na tentativa de romper portanto com a possibilidade de emancipação e de
liberdade, peculiares do sujeito brasileiro considerado por Sérgio Buarque de Holanda.
188
Dando continuidade a periodicidade inerente neste estudo, verificamos em 1950 algumas
particularidades. Vejamos: influenciados pela burguesia Nacional e alguns intelectuais da época e
com o
advento
do
processo
de
industrialização,
atendendo
ao
lema
de
Nacional
Desenvolvimentismo, emerge a contribuição do historiador Nelson Werneck Sodré, marxista que
investiga os anos 1950 a luz de um olhar comunista, já que uma das grandes contribuições que
trouxe para a História do Brasil foi à teoria adotada pelo PCB e o projeto de “Revolução Brasileira”.
Entretanto tal projeto segundo os críticos não foi bem articulado entre as classes interessadas, nem
tão pouco apropriada à realidade brasileira, de maneira que tardou em acontecer, dando origem a
um novo momento histórico, de retomada a emancipação e autonomia nacional iniciada por Sodré e
continuada, nos anos 1960 por Caio Prado Jr.
Caio Prado em 1960 propõe um redescobrimento do Brasil, mas radical que
Capistrano e Sérgio Buarque juntos pois, adepto das teorias marxistas, trabalhando lado a lado com
Sodré, em sua obra19 de economia brasileira não aborda tão somente a mestiçagem do povo
brasileiro, mas sobretudo as classes sociais oprimidas e excluídas. Materialismo histórico e luta de
classes no Brasil contemporâneo são alguns dos conceitos que aborda. O sentido de colonização
para Prado se dá na relação estabelecida entre povoamento, vida material e vida social e os sujeitos
evidenciados em seus estudos são: os latifundiários, restos feudais, camponeses ricos, médios e
pobres, burguesia nacional. O presente não pode ser violentamente sacrificado em nome do futuro.
Acredita ser a solidariedade socialista marxista a saída.
Atualmente com o advento da globalização as identidades das Nações se confundem,
dialogam, transitam em meio a uma e a outra. Vivemos no mundo contemporâneo um fenômeno de
crise de identidade, resultado dessa tentativa de fusão e do não esclarecimento dos limites dos
envolvidos.
Referências Bibliográficas:
ABREU, J. Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro. In: Ensaios e estudos: crítica e
história. 2 ed. Rio de Janeiro/Brasília, Civilização Brasileira/INL, 1975ª.
______________________ Capítulos da História colonial (1500-1800) & os caminhos ntigos do
povoamento do Brasil. [1907]. 5 ed. Brasília, UnB, 1963.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: EDUSP, 2003.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. V.1- Artes de fazer. Petrópolis-RJ:Vozes, 1994.
189
CUNHA, Euclides da. Sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio O Minidicionário da língua portuguesa,
século XXI. 4 ed. Revisada e ampliada- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala [1933] 25 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1987.
GRUPPI, Luciano. Conceito de hegemonia em GRAMSCI. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. [1936]. 17 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1984.
Jr. ALBUQUERQUE, Durval Muniz. Enredos da Tradição: invenção histórica da região Nordeste
no Brasil. In: A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FIN, ed.: massagana São Paulo:
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Jr. PRADO, Caio. A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1966
OLIVEIRA, Lúcia Lippe. L. L. “Repensando a tradição”. Ciência Hoje, v.7, n. 38, dez/1987
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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Identidades do Brasil 1 de Varnhagen a FHC. 9 Edição ampliada. Rio de Janeiro: Editora FGV,
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ROMERO, Sílvio. Estudo sobre a poesia popular do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais.
Petrópolis:Vozes, 2000.
190
A CHARGE COMO LINGUAGEM HISTÓRICA: UMA REFLEXÃO
METODOLÓGICA.
Matilde de Lima Brilhante/UECE
Mestranda em História e Culturas
Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio F. da Silva
Como historiadores precisamos pensar nossa prática de escrita e dialogarmos com as
diversa áreas do conhecimento humano, haja vista as diversas possibilidades de construção desta.
A história, assim como as demais ciências humanas, tem ressignificado alguns paradigmas
explicativos da realidade. Essas mudanças de perspectivas possibilitaram novos olhares nos estudos
históricos, ampliando o campo de análise do pesquisador, com a utilização de “novos” objetos e,
portanto, de “novas” fontes/documentos. Surge, a partir de então, outros problemas, outros
métodos, outras tentativas de melhor explicar a complexidade do real e, esse “novo olhar” tende a
privilegiar a análise e a explicação em detrimento da descrição. Os estudos se voltam para as
diferentes atividades e criações dos indivíduos, revelando seu(s) sentido(s) para a sociedade na qual
estão inseridos, sendo a leitura desta, realizada também através de conflitos existentes nas relações
sociais.
Acreditamos que a reflexão teórica, da mesma forma que o método adotado, passa também
por uma redefinição epistemológica das temáticas possibilitando ao historiador (a) a visualização
dos espaços, práticas e idéias existentes no âmbito das experiências sociais. Assim sendo, a
construção da escrita histórica não é, ou pelo menos não deve ser, um conjunto de partes
dissociadas ou uma exposição de conteúdos isolados. Ela aspira a um estudo articulado das práticas
e sua relevância para o grupo em questão, assim como os sentidos que lhes são aplicados dentro de
um contexto. A importância do significado das ações humanas vai além das questões já apontadas
porque, estas, não correspondem apenas ao que é visível e/ou identificável. Portanto toda e qualquer
atividade dos indivíduos em sociedade é, ou pode vir a ser, um objeto passível de uma leitura
histórica.
É partindo da possibilidade de explorar essas “novas” abordagens que destacamos a
importância da cultura do humor visual, neste campo. Não é nossa pretensão, com este estudo,
elaborar um quadro teórico referencial sobre comicidade visual, mas tratá-la como produção
cultural acrescida de um valor social e um significado histórico.
Segundo nossa definição, a charge é um texto jornalístico, um tipo de comunicação visual
socialmente aceita, na qual uma idéia e/ou um acontecimento real é analisado e transmitido com
expressões risíveis e pretende ser veiculado ao grande público. Seus principais meios de
publicações são jornais impressos e revistas, que trabalham com assuntos do cotidiano; seja nos
191
aspectos político, econômico, sociais ou outros. Contudo, essa manifestação da caricatura, mais que
uma expressão artística, é uma representação do momento vivido.
Então, esta não é uma produção fechada em si mesma. Ela possui um campo de circulação
social, no qual será apropriada de acordo com as diversas subjetividades, embora que diferente da
intenção do autor.
Partindo do pressuposto que há uma intencionalidade na produção e publicação dos
desenhos humorísticos que se fazem presentes nos editoriais dos periódicos, então podemos falar
em uma defesa de ideologias. Isso significa dizer que, ela não é apenas uma construção realizada a
partir do real, mas também atua sobre esse real, propagando opiniões e concepções de sociedade
através de mensagens perceptíveis e/ou subliminares.
O objetivo do chargista é alcançado se ele conseguir externar conflitos, principalmente no
âmbito das relações políticas e econômicas da sociedade. No entanto, o público-leitor precisa
adquirir um conhecimento, mesmo que parcial dos fatos. Do contrário, a compreensão dos desenhos
será prejudicada completamente. Não se pode entender o desenho por ele mesmo, até porque as
mensagens subliminares que se pretende difundir, por meio destes, não são de simples
identificação. Requer uma relação dialógica entre texto (imagem), contexto e sujeitos.
Na charge, há uma representação do desejo “transgressor” que cada indivíduo comporta em
sua personalidade. Ela expõe publicamente idéias que, normalmente, as pessoas gostariam de
comunicar se assim tivessem oportunidade(s), o que vem a corroborar com o processo
identificatório entre autores e leitores desta atividade. O princípio de identificação cultural que
perpassa toda essa realização é fundamental para a construção de significados de suas mensagens. É
com essa preocupação que os chargistas procuram os temas de conhecimento do público para serem
representados e, quanto maior for a aproximação destas mensagens com as idéias dos leitores,
melhores serão os resultados obtidos, no sentido de fazer este desenho risível. Sendo preciso para
isso um objeto/alvo comum. Nesse sentido, o leitor deve se sentir compensado diante de algum
fato/acontecimento de envolvimento coletivo, é como se fosse uma espécie de punição social para
uma situação reprovada por um grande número de pessoas. Na verdade, a identificação cultural
depende menos de posição social que de idéias, valores e concepção de sociedade. Seu conteúdo
identifica um grupo; não um grupo homogêneo, mas um grupo que, pelo menos por um momento,
compartilha idéias e sentimento.
Como linguagem imagético/discursiva, a charge é uma possibilidade de investigação aberta
a uma diversidade de abordagens.
Ela pode ser utilizada como fonte ou como objeto de estudo. Como fonte ela auxilia o
pesquisador (a) na compreensão de um determinado fenômeno, revelando aspectos que as fontes
192
ditas sérias não apresentam. Como objeto de estudo podem ser abordados alguns aspectos de sua
construção e publicação.
A inspiração para formulação de um discurso político inerente à prática do humor de
imagens se estabeleceu pela necessidade de comunicá-la, transmiti-la. O caráter político na
construção de uma charge corresponde não só a um posicionamento do autor diante de um fato, mas
também se dá no contato com seu público leitor. Assim, o público tem um papel fundamental nesse
processo: o de validar as idéias divulgadas por tal produção.
A charge constitui uma unidade de significados a respeito do contexto em que foi produzida.
Não queremos atribui-la a característica de cópia fiel da realidade, mas acreditamos que ela é uma
construção que se realiza a partir desse real, como também evidencia perspectivas da sociedade.
Isso, porque ela pertence a um tempo e um espaço determinado. Sobre isso, Onici Flores comenta:
A importância da charge enquanto texto decorre não só do seu valor como
documento histórico, como repositório das forças ideológicas em ação, mas, também, como
espelho de imaginário de época e como corrente de comunicação sublimar, que ao mesmo
tempo projeta e reproduz as principais concepções sociais, pontos de vista, ideologia em
177
circulação .
No entanto, devemos ressaltar aqui, a subjetividade que acompanha essa produção, pois é
realizada por profissionais que pretendem apresentar suas idéias ao maior número de pessoas
possível. Assim sendo, os chargistas trabalham com escolhas, revelando os acontecimentos a partir
de seus olhares, portanto, não neutros. Na verdade, isso quer dizer que ao criar e publicar um
desenho, o chargista está tomando um posicionamento político. Por transformar algo ou alguém em
objeto-alvo do riso, o autor transforma este “alvo” em ridículo diante do público.
A charge não é definida pelo humor. Algumas, nem mesmo são risíveis, levando muitas
vezes mais à reflexão do que ao riso. Seu objetivo não é meramente fazer rir ou expor um
personagem ao ridículo. A crítica que ela realiza, seja de forma sutil ou mordaz provoca o leitor,
fazendo-o identificar-se ou opor-se à idéia ali representada. No mesmo sentido, essas imagens
proporcionam expressões visuais e visões construídas mentalmente.
Quando utilizamos o conceito de imagem, devemos lembrar que uma imagem física/material
está sempre relacionada às imagens que construímos mentalmente por meio de informações
adquiridas. Por isso, ela não pode ser dissociada de escolhas do produtor nem do contexto no qual
foi pensada e criada. De fato, ela é uma construção histórica, na qual está agregado um sistema de
representação.
As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste
mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência.
São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e
177
FLORES, Onici. A leitura da charge. Eanoas: Ed. ULBRA, 2002. p. 10.
193
coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio
das representações que constroem sobre a realidade178.
Através das representações do humor de imagens, cria-se espaços de luta cotidiana contra a
idealização forjada de pessoas e de sociedade: a irreverência desta arte pretende alcançar uma
verdade para além das aparências, nesse sentido ela também é libertadora.
Muitas vezes, tal produção é vista como uma ilustração meramente humorística de uma
notícia, ou seja, destituída de seu caráter crítico-informativo. Assim, é válido destacarmos as
intencionalidades dessa “arte”. Ela é um meio pelo qual se constroem possibilidades de críticas
morais e sociais.
Por mais regular que seja uma fisionomia, por mais harmoniosa que supomos
serem suas linhas, por mais graciosos os movimentos, seu equilíbrio nunca é absolutamente
perfeito. Nela sempre se discernirá o indício de um vezo que se anuncia, o esboço de um
esgar possível, enfim uma deformação preferida na qual se contorceria a natureza. A arte do
caricaturista é captar esse movimento às vezes imperceptível e, ampliando-o, torná-lo
visível para todos os olhos. Faz caretear seus modelos como eles mesmos o fariam se
chegassem ate o extremo de seu esgar. Advinha, por trás das harmonias superficiais da
forma, a revoltas profundas da matéria. Realiza desproporções e deformações que deveriam
existir na natureza em estado de veleidade, mas que não puderam concretizar-se, porque
reprimidas por uma força melhor. Sua arte, que tem algo de diabólico, reergue o demônio
que o anjo subjugara179.
Concordamos que a charge é uma das manifestações da caricatura, por isso tomamos este
referencial como ponto de partida para tentarmos compreendê-la de acordo com os interesses
propostos aqui. O que podemos apresentar como diferenciação entre esses dois gêneros da arte
cômica é o campo de atuação, visto que a charge integra um maior número de elementos sociais, a
começar pela capacidade de combinar imagem e texto, assim como a sensibilidade em refletir o
momento político, econômico, social e/ou cultural de uma cidade, estado ou nação. Portanto, suas
temáticas referem-se a uma coletividade específica. É significativo, também, o maior destaque
publicitário que lhe é dado, já que a caricatura propriamente dita refere-se a um personagem em
especial.
O riso tem muito a nos dizer sobre os grupos e suas identificações, assim como sobre o
imaginário social. Apropriamos-nos dos dois conceitos básicos da Nova História Cultural:
Representação e imaginário. Por imaginário entendemos um sistema que comporta idéias e imagens
de representações construídas por práticas culturais, pelo qual os homens e mulheres dão sentido ao
mundo. E por assim dizer, o riso, segundo alguns autores, é próprio e exclusivamente uma
habilidade da criação humana. Nele é intercalado comportamentos, ideologias, conceitos, valores.
178
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 39.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade, São Paulo: Martins Fontes, 2001 (coleção
tópicos). P. 19.
179
194
Através dele são construídas identidades e exclusões. Ele também divide, aponta diferenças e
semelhanças no meio social.
O riso é um fenômeno cultural. De acordo com a sociedade e a época, as atitudes
em relação ao riso a maneira como é praticado, seus alvos e suas formas não são constantes,
mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele exige pelo menos duas ou três pessoas,
reais ou imaginárias: uma que provoca o riso, uma que ri e outra de quem se rir, e também,
muitas vezes, da pessoa ou das pessoas com quem se ri. É uma prática social com seus
próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco180.
Sendo o riso uma manifestação inerente ao ser humano, vivenciado por práticas culturais e,
portanto, sociais, é pertinente que esse fenômeno seja pensado em termos históricos. Observamos
que o riso não é uma expressão aleatória. Apesar de ser um prazer natural ele não existe sem uma
causa; é necessária uma prática, uma razão capaz de “chamá-lo à vida”. Ninguém ri porque decidiu
manifestar o riso, mas porque se sentiu compelido a externar uma sensação que foi produzida
mediante uma situação∗ humorística. Situação esta, que deve ser compreendida para se tornar
risível, o que corresponde à racionalidade da produção cômica. Ou seja, ri ou provocar o riso é
próprio da inteligência humana.
A relação entre humor e política se estabeleceu de tal forma que no final dos anos de 1980,
ler uma charge significava entrar em contato com algum assunto relacionado à política, até mesmo
quando estava em foco outra temática. Se a política constituiu-se na grande inspiração para as cenas
ali representadas, significa dizer que a forma como as idéias foram apresentadas tiveram aceitação
pública. Ou seja, se as imagens apresentavam em seu discurso uma preocupação política era devido
à valorização do tema no meio social.
A representação imagética que se colocava no lugar da idéia nesta produção também era
portadora do simbólico; carregava sentidos que se faziam construir no meio social. Estamos
utilizando a idéia de representação num sentido amplo, incluindo a sua capacidade de construir
legitimidade cultural. Essa legitimidade se fazia por intermédio de identificações do leitor com a
idéia que estava sendo publicada.
A repetição não acontecia de forma aleatória, ela se fazia presente enquanto a assunto tratado
ainda estava em voga. Conteúdos de grande repercussão, que sempre exploravam uma informação
nova ou temas de interesse do leitor estavam propensos à reedição. Mas, a relevância das matérias e
o interesse dos leitores não são suficientes para explicar a repetição destes trabalhos. Isso nos leva a
acreditar que por algum motivo, o chargista responsável pela criação de tais dias não pôde entregar
seu desenho, cabendo ao editor do jornal a tarefa de selecionar um desenho já publicado que tivesse
relação com algum assunto da semana.
180
LE GOFF, Jacques. “O riso na idade média”. In: Jan BREMMER e Herman ROODENBURG (org), Uma história
cultural do humor, p. 65.
∗
Um gesto, uma cena, uma imagem, uma palavra etc.
195
Para nós não faz sentido tratar esse gênero caricatural desprovido de um valor/função social,
pois além de fonte, neste trabalho a utilizamos como o próprio objeto de estudo.
O processo de constituição da charge tende a articular relações bastante complexas. É
preciso elaborar um sistema interno e externo de significação. O que chamamos de sistema interno é
o momento de criação da charge, onde faz-se necessário associar imagem e texto que possibilitem
uma leitura, mesmo que superficial, do desenho. Já o sistema externo de significação corresponde
ao momento pós-publicação, em que o leitor precisará relacionar o conteúdo desse desenho com a
sociedade em que vive.
Para compreendermos melhor essas questões, partiremos de alguns enunciados conceptuais.
A charge é um texto usualmente publicado em jornais sendo via de regra constituído
por quadro único. A ilustração mostra os pormenores caracterizadores de personagens,
situações, ambientes, objetos. Os comentários relativos à situação representada aparecem por
escrito. Escrita / ilustração integram-se de tal modo que por vezes fica difícil, senão
impossível, ler uma charge e compreendê-la, sem considerar os dois códigos
complementarmente, associando-os à consideração do interdiscurso que se faz presente como
memória, dando uma orientação ao sentido num contexto dado-aquele e não outro
qualquer181.
A dificuldade em perceber os “não-ditos” da charge advém do elemento satírico que
perpassa sua construção. A idéia pode ser apresentada com o sentido inverso, o desenho pode
causar desproporções, a cena pode ser inesperada, já em outros casos a sátira é facilmente
percebida. É por utilizar esses recursos que vemos seus produtores com uma certa autonomia
perante a editoração dos jornais. De fato, não é possível se afastar da linha editorial da empresa. (lêse jornal e, no nosso caso, o Diário do Nordeste), como mostra um estudo realizado pela Folha de S.
Paulo; “Segundo eles, há plena liberdade de criação, desde que sigam o pensamento filosófico da
empresa jornalística”. Mas, há recursos técnicos capaz de suavizar o conteúdo.
181
FLORES, Onici. A leitura da charge. Eanoas: Ed. ULBRA, 2002. p. 14
196
DIÁRIO E VERDADE: A CONSTRUÇÃO DA VEROSSIMILHANÇA NO
DIÁRIO DE HENDRIK HAECXS (1645-1654)
Néliton Marcolino de Araújo182 – UERN
O diário de Hendrik Haecxs183 não é uma publicação incomum para o contexto em que ele
estava inserido. As memórias foram um gênero comum no século XVI e XVII. Podemos nos
apropriar de uma definição produzida na época pelo Dictionnaire de Furetière. “Memórias, no
plural, diz-se dos livros dos historiadores escritos por aqueles que participaram dos fatos ou foram
suas testemunhas oculares ou que contêm sua vida e suas principais ações. Corresponde ao que os
latinos chamam de 'comentários'”184 .
Ou seja, a participação nos fatos e conseqüentemente a sua exposição foram elementos
essenciais na construção deste tipo de gênero literário. No caso do nosso diário, Haecxs narra
diversos fatos e acontecimentos relativos a Companhia das Índias Ocidentais, ao governo holandês
no Brasil, às batalhas e às difíceis e perigosas viagens em alto-mar. Num trecho dentre vários,
podemos constatar essa afirmativa. Era 19 de fevereiro de 1649 e a batalha dos Guararapes
acontecia.:
“depois do meio-dia, vendo que o inimigo não queria sair a campo,
resolvemos retirar-nos pelas várzeas. O inimigo, atacando pela retaguarda,
provocou entre os nossos tal desordem e confusão, que aproximadamente mil
homens foram mortos, e os soldados fugiram como poltrões, abandonando
escandalosamente os seus oficiais que, em grande parte, também foram
massacrados: pelo contrário, se os soldados tivessem permanecido firmes,
parece que a vitória estaria do nosso lado, se Deus quisesse.
Alem de todo um trabalho de descrição proposto por Haecxs ao nos mostrar as estratégias utilizadas
durante o confronto, todo o texto é construído e trabalhado dentro da idéia do “nós”. O autor quer
construir através desta estratégia que esteve na batalha e que viu o desenrolar do combate. Ou seja,
o testemunho de um fato.
Esse testemunho irá se dar de um modo em que o escritor é muito mais observador da própria vida
ou da vida de quem está disposto a falar. Margaret Mac Gowan sistematizará isso de modo
satisfatório ao dizer que “O memorialista escreve como observador ou espectador da própria vida ou
da vida de alguem de quem foi amigo, servidor, companheiro. Não escreve como testemunha,
182
Graduando em história pela universidade do Estado do Rio Grande do Norte e bolsista do grupo PET de
ciências sociais da mesma instituição.
183
Hendrik Haecxs foi membro do Alto conselho do Brasil, Formado após a retirada de Maurício de Nassau do
Recife em 1645. Durante o período de 1645 a 1654, Haecxs escreveu seu diário. Este diário teve sua publicação em
português no ano de 1949, através dos anais da biblioteca nacional daquele ano.
184
Furetière, Dictionnaire universel, 1690. Publicado em 1690, essa obra constitui o melhor repertório que existe
do vocabulário da língua francesa e das definições do século XVII. Definição do dicionário, bem como a citação
retiradas de: FOISIL, Madelaine. A Escrita do Foro privado in ARIÈS, Phillippe; CHARTIER, Roger; História da
Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 331
197
confidente ou confessor, como analista de si mesmo, mas relata o que todos podem ver”185. Em
outras palavras, um dos elementos que suporta a criação da verossimilhança no texto são os relatos
em forma de testemunho. Testemunho esse que é gerado e apoiado no coletivo. Coletivo esse que
faz parte da vida pública.
A vida pública por sinal é o que procura ser escrito nessas memórias. Partindo da idéia do coletivo,
os escritores dessas memórias se preocuparam em escrever muito mais o que todos vêem (Ou a
forma que o autor desejou que eles tivessem visto) do que o que ele viu. Como diria Fumarolli:
“seus autores que dedicam muito tempo a construir, a representar uma 'personagem' pública, no
pouco tempo que lhes resta empenham-se em conferir-lhe uma forma definitiva. Há vida pública
nesses textos, mas nenhuma ou pouca vida privada”186. Como Madeleine diz, é mais a construção de
um “retrato oficial” que uma auto-biografia187.
Se coloca ai então uma diferença fundamental entre esse gênero e as auto-biografias. Phillipe
Lejeune irá definir as auto-biografias como “o relato retrospectivo em prosa que alguém faz da
própria existência quando coloca ênfase em sua vida individual, sobretudo na história de sua
personalidade”188. Relato da própria existência e uma ênfase no individual em detrimento do
coletivo. Ao contrário das memórias que irão privilegiar o fato histórico, subordinando o indivíduo
a ele.
E como poderíamos então relacionar isto com o nosso diário? Analisemos pois algumas passagens
para construirmos nossas considerações. Segundo o diário de Hendric, estamos em 5 de julho de
1645. No trecho que segue, ele irá narrar sua conversa com membros da Companhia das Índias
Ocidentais que querem propô-lo o cargo de Membro do Alto Conselho do Brasil. Dirá então:
“De manha por volta das 9 horas, chegaram à casa do Sr. Jean Bernart os Srs. Carel Looten
de Amsterdão, o senhor Jean Pelletier, da Zelândia e [...] Enchuysen, todos três como delegados do
conselho dos XIX. Êstes, depois de longo e circunstanciado relato acêrca do estado decadente do
Brasil, chegaram finalmente ao seu objetivo, delcarando que o conselho dos XIX, depois de muitas
e maduras deliberações, havia votado unanimemente ao meu nome, para atribuir-me, caso fôsse de
minha aceitação, o lugar de Alto e Secreto Conselheiro. Não duvidaram de que eu o aceitaria de
bom grado para glória de Deus, soerguimento do estado desolado da Companhia e de muitas viúvas
e órfãos interessados e *** reputação da minha própria pessoa (...) Eu lhes agradeci o fato de ter
sido a minha indigna pessoa em plena reunião, colocada em tão grande aprêço, ao lado de outros
homens eminentes (...) 'considerai tão somente que homens eminentes, o que há de melhor no país,
185
186
187
188
GOWAN, Margaret Mac apud, FOISIL, Madelaine, Ibidem, p. 332
FUMAROLLI, Marc apud,Idem, Ibidem, p. 332
FOISIL, Madelaine, Ibidem, P.332
LEJEUNE, Philippe apud FOISIL, Madelaine, Ibidem, p. 333
198
e além do mais nossos amigos, anseiam por êste cargo. Vimos, porém, convidar-vos a vós, da
mesma forma que um vassalo precisa de sua Soberana. Esperamos que vos animem a dilatação da
glória de Deus, os múltiplos anelos de inúmeros interessados e a nossa emprêsa, que não deve
resultar infrutífera'. Certamente, a honra, a reputação, o grande proveito, que disto resultaria e
sobretudo a admiração do mundo inteiro, e conseqüentemente renome imortal, tudo isso exigia
muita deliberação. Forneceram-me também uma instrução de 14 de abril de 1645 e uma resolução
de 3 de maio de 1645”
É explicito nesse trecho o que Haecxs deseja ao tornar-se membro do Alto Conselho do
Brasil. A busca pela honra, reputação e até o “renome imortal” dão respaldo pra afirmação que a
construção de sua imagem é algo que ele irá buscar. Mas podemos observar algo além das suas
intenções explícitas. Ele intenciona conseguir todas essas “virtudes” com o cargo, mas em sua
própria escrita já seleciona elementos para construir essa imagem de homem cheio de virtudes para
o seu leitor ao dizer que foi escolhido de forma unânime após deliberações maduras para o cargo.
Se colocando como expectador de si mesmo, ele constrói a imagem de que as outras pessoas, e não
ele, o consideram um “homem eminente”, que comporia, segundo os senhores que estavam la, o
que há de melhor no país.
A recorrência de situações em que sua “honestidade”, sua “honra” e a sua “calma” são
explicitas no texto reforça a nossa posição. Em 14 de dezembro de 1645, Haecxs narra uma
passagem onde ao ser chamado pelos senhores do conselho dos XIX para ser questionado se ainda
estava disposto a viajar irá dizer: “Respondi então que, se os reforços a serem enviados
correspondessem à atual situação, cumpriria a minha promessa e mostrar-me-ia um homem
honroso”. Se segue então a discussão onde os senhores XIX demandam uma resposta imediata dele
para o cargo a ser ocupado, pois ainda se encontrava indeciso. Após responder agradecendo a
“grande honra de me julgarem digno de ocupar cargo tão respeitável, ao lado de outros homens
eminentes”, mas que desistiria devido a pressa a qual eles demandavam a resposta, ele irá mostrar a
reação dos senhores XIX que “mostraram-se todos surpresos, não esperando de mim tanta
coragem”. O “ser visto” como um homem digno de estar ao lado de eminências e o reconhecimento
dele como homem corajoso são intenções claras no seu texto, mas trabalhadas de uma forma que o
reconhecimento parta do público, e não do privado.
Como diria Jean Marrie Goulemot, “as memórias procuram reduzir a pessoa a seus atos
públicos. Em certo sentido se detêm onde começam o privado e o íntimo”189. O dizível se encontra
189
GOULEMOT, Jean Marrie As Práticas Literárias ou a publicidade do privado In ARIÈS, Phillippe;
CHARTIER, Roger; História da Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991 p.390
199
unicamente na esfera pública, e essa esfera pública é onde se projetam as imagens que se pretendem
fazer sobre si.
“Como em geral representa uma apologia ou uma exibição satisfeita de ações
empreendidas, as memórias, se provam a importância da vida pública para a
valorização e o desenvolvimento do indivíduo – ninguém existe fora da vida
pública – mostram ao mesmo tempo a importância do sujeito individual
aumentada à custa do coletivo”190
Logo, como foi dito anteriormente, a sua importância enquanto indivíduo é construída muito mais
no âmbito público que através de opiniões pessoais. A apologia às ações empreendidas de maneira
satisfatória também está presente em nosso diário. Após um ano exercendo suas funções de membro
do alto conselho, ele irá retornar à pátria e ficará incumbido da função de apresentar um relatório à
direção da Companhia das Ìndias Ocidentais sobre a situação do Brasil, bem como ao príncipe.
Dentro deste período em que esteve apresentando o relatório, Haecxs irá deixar sempre claro o
quanto foi elogiado e cumprimentado pela sua “difícil viagem” e por seu “dever cumprido com a
pátria”. Nos chama a atenção porém, o trecho de sua audiência com o príncipe se deu. Segue o
trecho:
“(...) Depois que De Laet mo apresentou, S. Alteza estendeu-me a mão.
Beijei-a, lamentei a morte do Pai de S. Alteza e desejei-lhe toda sorte de
felicidade e prosperidade no seu nôvo govêrno.
Entreguei-lhe as credenciais, que S. Alteza conservou em suas mãos:
perguntou-me quando partira do Brasil e quando havia chegado; estava
admirado de que essa viagem pudesse ser feita em tão curto espaço de tempo
e, em seguida, indagou como estavam os negócios do Brasil. Disse a S.
Alteza que se quisesse ter a paciência de me ouvir, eu lhos relataria
resumidamente, conforme fosse possível. Esta foi a sua resposta: “com muito
prazer, pois estou desejoso de sabê-lo.” Em seguida fiz a minha narração do
princípio ao fim segundo o teor do relatório escrito, que ao mesmo tempo
entreguei a S. Alteza. Durante todo êste tempo S. Alteza permaneceu de pé,
como eu, de cabeça descoberta e com chapéu na mão, e cada reverência que
eu fazia êle não deixava de corresponder.
Dentro deste trecho podemos identificar situação interessante. Ela diz respeito ao fato de seu
encontro com o príncipe ser descrito com mais detalhes que os outros encontros onde apresentou
seu relatório. Detalhes esses referentes ao posicionamento, atitudes do príncipe e das suas atitudes.
Qual seria a intenção de Haecxs em dizer que o príncipe não deixava de retribuir um gesto seu da
mesma maneira? Ou o fato do príncipe encontrar-se em posição igual a sua? Dentro na nossa
leitura, podemos considerar este um elemento de construção de sua imagem. A identificação de
elementos entre ele o príncipe são colocados de maneira a transferir a ele a importância o qual o
príncipe, que é uma figura constituída publicamente, tem de sobra.
190
Idem, p. 391
200
Sem falar que ele expõe desta maneira o seu dever cumprido. O fato de ser indagado pela realeza
sobre a situação do Brasil o faz responder e saciar o desejo, segundo ele, “com muito prazer” irá
receber o seu relatório.
Mas por que então Haecxs buscaria essa construção de uma imagem positiva baseada nas
perspectivas coletivas? Podemos nos valer das considerações de Roger Chartier para nos ajudar a
explicar.
Podemos classificar o nosso diário como uma representação. As representações são construídas de
acordo com as categorias fundamentais de percepção e apreciação do real. Essas categorias podem
variar de acordo com a posição social ocupada por determinados indivíduos ou meios intelectuais
que ele freqüenta. Essas representações aspiram à universalidade de um diagnóstico fundado na
razão, mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.191
Nosso diário poderia ser então classificado como uma percepção do social. Percepção do social esta
que irá produzir estratégias e práticas. Como diria Chartier essas práticas “tendem a impor uma
autoridade à custa dos outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformar ou a
justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas”192
O diário de Haecxs seria então uma representação do passado em que ele viveu. Essa representação
estaria assim “contaminada” pelas categorias, intencionalidades e percepções de uma determinada
classe. E ela não é só uma representação por si só, mas uma representação que se apresenta. Se
apresenta no sentido de buscar um receptor e ter a intenção de apresentar uma dada realidade
através de um matiz.
Podemos localizar mais ainda essa sistematização ao trabalharmos com as considerações do próprio
Chartier sobre os membros das sociedades de Antigo Regime. Apoiado em definições da época, ele
irá dizer que há uma distinção entre representação e representado. Vejamos:
Por último, note-se que a distinção fundamental entre representação e
representado, entre signo e significado, é pervertida pelas formas de
teatralização da vida social de Antigo Regime. Todas elas têm em vista fazer
com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da
representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe.193
Essa perspectiva segundo ele é reforçada por Norbert Elias em seu livro sobre a sociedade
de corte, o qual vai afirmar que a posição objetiva de cada indivíduo como estando dependente do
crédito atribuído à representação que ele faz de si próprio por aqueles de quem espera
reconhecimento.
191
Ver em: CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Lisboa : Difel, 1987. P.
17
192
193
Idem, p. 17
Idem, p. 21
201
Sendo assim, a apresentação que o diário faz seria, em nossa opinião, uma prática que
visaria se fazer reconhecer uma identidade social, uma maneira de se estar no mundo, significar
simbolicamente um estatuto e uma posição que pode ser ou não real.
E em que posição social se encontra Haecxs? Dentro de uma lógica social, sua posição é a
de destaque. O próprio ato de escrever memórias é caracterizado por Goulemot como um prática de
eminentes figuras da elite social da época. Raras eram as situações onde medianos e humildes,
mesmo com condições culturais, poderiam escrever suas memórias.
Cabia então a Haecxs, representar-se de um modo valoroso, honrado e eficiente. Outro fato a
ser considerado é que ele desempenhava funções representacionais de um governo. Isso gerava a
cobrança de resultados e avaliação de sua eficiência que podemos exemplificar através da
elaboração do relatório já mencionado anteriormente.
Mais um fato que merece destaque, são os dados sobre Haecxs conseguidos além de seu
crivo. Nos valendo das afirmações de José Honório Rodrigues temos contato com uma nova
documentação. São interrogatórios, relatórios e processos que se dão após a queda do Recife.
Dentro de uma lista de documentos, José Honório irá dizer que:
No interrogatório de 11 de fevereiro de 1655, é ele apontado por algumas
testemunhas como o maior responsável pela queda do Recife. Haecxs foi o
mais acusado, caluniado e odiado de todos os conselheiros do Alto e Secreto
Conselho.
Isso nos dá novos elementos para uma reflexão sobre o diário. As relações extra-textuais são
de extrema importância para o historiador, e aqui nos fazem pensar numa questão: Estaria Haecxs
falando a verdade sobre a sua eficiência, valores e honra?
Não nos cabe buscar a resposta desta indagação, pois o que nos move aqui não é contestar a
veracidade do que foi dito por Haecxs, mas estudarmos os componentes dessa veracidade e como e
porque essa veracidade é construída.
A representação que estas testemunhas fizeram de Haecxs vão totalmente de encontro a suas
afirmativas, pois em seu diário ele não falha nem é culpado em nenhuma situação.
Dessa forma não podemos tomar o diário por verdade, muitos menos os relatos das
testemunhas que afirmam ser ele o maior culpado pela queda do Recife. Devemos aqui
compreender que essas duas representações estão em luta dentro de um contexto social.
Possivelmente Haecxs sofreu acusações e críticas durante o período em que esteve no Brasil ou na
Holanda, mas essas críticas não aparecem no diário.
Não aparecem no diário porque dentro de uma lógica de construção de uma representação
que justifica uma prática social, não seria interessante pra ele ter estas reclamações explicitas em
suas memórias.
202
REFERÊNCIAS
CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Lisboa : Difel, 1987.
FOISIL, Madelaine. A Escrita do Foro privado in ARIÈS, Phillippe; CHARTIER, Roger;
História da Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das
Letras
GOULEMOT, Jean Marrie As Práticas Literárias ou a publicidade do privado In ARIÈS,
Phillippe; CHARTIER, Roger; História da Vida Privada, 3: Da Renascença ao Século das
Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991
203
HISTÓRIA E ACERVOS: CONSERVANDO E SOCIALIZANDO INFORMAÇÕES
Felipe Tavares de Araújo
Rossilvam da Silva Linhares194
I - APRESENTAÇÃO
O presente trabalho tratará do arquivo do antigo Setor Fundiário da SEMURB (Secretaria
Especial de Meio Ambiente e Urbanismo) e da parceria desenvolvida com a UFRN para
organização e preservação da documentação daquele. Contudo, para melhor compreensão das
características deste acervo é necessário um levantamento histórico tanto da instituição quanto do
projeto, fruto da citada cooperação, em suas variadas etapas, para então, discutirmos a importância
da fase atual – digitalização das cartas de aforamento.
II - HISTÓRICO DA SEMURB
A atual SEMURB é oriunda da união de dois antigos órgãos distintos e de atuações diversas,
embora complementares. Eram eles o IPLANAT (Instituto de Planejamento Urbano de Natal) e a
ECO-NATAL (Fundação do Meio Ambiente do Natal). Como as atividades dessas extintas
entidades coincidem com as da atual Secretaria, cabe aqui uma explanação acerca das funções
desempenhadas por elas.
Apresentando o encargo de planejar a área urbana, supervisionar e fiscalizar o uso e
parcelamento do solo assim como administrar o patrimônio foreiro, o IPLANAT, criado em
dezembro de 1984, teve seu horizonte de ações expandido com o crescimento da cidade do Natal e
com a adventícia preocupação internacional e nacional com o meio ambiente. Diante disso criou-se
a Coordenadoria do Meio Ambiente (CODEMA), incumbida da preservação do patrimônio natural e
paisagístico bem como do patrimônio arquitetônico, histórico, arqueológico, étnico e cultural.
O Código de Meio Ambiente do Município, formulado em 1992, mostra uma maior ênfase
na questão ecológica e, logo após esse fenômeno, a CODEMA é desvinculada do IPLANAT e funda
a ECO NATAL, com o objetivo de executar as políticas ambientais do município, aliando expansão
urbana e conservação da natureza. Percebe-se, nesse contexto, a existência de atividades
convergentes entre as duas instituições; por isso, a solução encontrada para eliminar os conflitos
existentes entre elas e enxugar a máquina administrativa é a fusão de ambas e formação da
Secretaria Especial de Meio Ambiente e Urbanismo, SEMURB, que realizaria o que seus
formadores originais desempenhavam, porém de maneira mais eficaz.
194
Graduandos em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e bolsistas do
Projeto de Extensão intitulado “Criando acessibilidade para as informações: banco de dados e digitalização
do acervo do Setor Fundiário da SEMURB”.
204
III - HISTÓRICO DO PROJETO
No mês de julho de 2005, o Prof. Ms. Francisco Carlos Oliveira de Souza procurou a Chefia
do Departamento de História com o objetivo de restaurar a documentação do Setor Fundiário da
SEMURB. Tendo sido encaminhado ao Núcleo de Estudos Históricos Arqueológicos e de
Documentação - NEHAD, ficou acordado entre as partes que seriam realizadas visitas ao arquivo
para confecção de um Diagnóstico com pormenores acerca das condições de armazenamento e
organização do acervo em questão.
A parceria entre a UFRN e a SEMURB implicava o levantamento das condições de
organização interna dos livros contendo as cartas de aforamento; higienização do acervo;
conferência, catalogação e organização em ordem alfabética das plantas de loteamento e ordenação
dos microfilmes, além de elaborar estratégias de atuação que possibilitassem a adoção de uma
política de arquivos na instituição. A etapa de digitalização de documentos, analisada de maneira
mais específica no decorrer desse trabalho, não havia sido prevista quando da realização do
Diagnóstico do acervo documental da entidade, sendo acordada a posteriori, tendo em vista a
potencialização
do
acesso
às
informações
contidas
nesse
acervo,
seja
para
uso
burocrático/administrativo da Secretaria, seja para fins de pesquisa.
O extinto Setor Fundiário da SEMURB foi resultado da união do Setor de Apoio
Toponímico e do Setor de Patrimônio Foreiro. Ele esteve subordinado ao Departamento de Controle
Urbanístico e foi transformado em SEHARPE (Secretaria de Habitação, Regularização e Projetos
Estruturantes), mas possui as atribuições das subdivisões que o constituíram. A manutenção dos
objetivos de atuação afeta diretamente a produção documental e, portanto, cabe aqui citá-los:
Do setor do patrimônio foreiro:
O setor do patrimônio foreiro é a unidade administrativa responsável pelo controle
dos bens imóveis e do patrimônio foreiro do município, coordenado por um técnico de
nível superior, com a competência especifica de [dentre outras funções]:
I - Organizar e manter organizado o arquivo relativo ao domínio de imóveis
existentes no âmbito municipal;[…]
Do setor de apoio e toponímia urbanística:
O setor de apoio e toponímia urbanística é a unidade administrativa interna
responsável pelo apoio às atividades técnicas da SEMURB, coordenado por um técnico de
nível superior com a competência específica de:
II - Organizar e manter organizado o arquivo com os loteamentos urbanos
aprovados pela municipalidade, assim como os loteamentos urbanos;[…]
III - Organizar e manter organizado o arquivo com a identificação dos logradouros
públicos do município, bem como disciplinar e informar a respectiva numeração dos
imóveis neles existentes;[…]
205
Como é possível perceber, uma das atribuições deste aparelho administrativo é “Organizar e
manter organizado o arquivo […]”. No entanto, a instituição tem enfrentado dificuldades para
desempenhá-la, haja vista não dispor de profissional com formação na área e, conseqüentemente, o
desafio de implementar uma política de arquivos tem se tornado um agente dificultador.
Outra dificuldade que envolve o trabalho é a limitação de recursos, posto que se faz
necessário adquirir diversos materiais de essencial importância para o melhoramento das tarefas de
preservação e digitalização.
A documentação da SEHARPE (plantas de loteamento, cartas de aforamento e cadastros
imobiliários) data do início do século XX e segue cronologicamente até 2008, e é dividida em
zonas: Ribeira, Cidade Alta, Cidade Nova e Subúrbio, além da Fração Ideal, referente aos prédios.
Essa documentação é produzida com finalidade eminentemente administrativa, contudo, por meio
desta, é possível observar, por exemplo, a evolução dos preços de terrenos, a distribuição fundiária,
a verticalização e diminuição das áreas verdes da cidade do Natal.
Vários aspectos, que serão tratados no decorrer desse artigo, podem ser trabalhados por
diversos campos do conhecimento, não apenas da história. Sendo assim, a importância que envolve
o acervo em questão é imensa e deve ser considerada.
Numa freqüência quase rotineira, novas tecnologias têm sido colocadas no mercado e
adotadas por parcela significativa da sociedade. No campo da informação, sobretudo no que
concerne a sua produção e circulação, este processo tem se intensificado em proporções ainda
maiores, seja produzindo novos tipos documentais, seja ampliando o acesso a documentos já
existentes, por meio da digitação e/ou digitalização de acervos. Este último caso é recorrente
principalmente em centros de pesquisas, como museus, arquivos, memoriais, entre outros, visando
facilitar o acesso de suas informações a pesquisadores de áreas diversas. É neste aspecto que
centraremos as discussões a seguir.
V - DIGITALIZAÇAO E DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO AS INFORMAÇÕES
Com o avanço tecnológico, suas implicações sociais e o conseqüente aumento das
abordagens no campo da história, o profissional desta área do conhecimento tenta criar mecanismos
capazes de resguardá-lo dos assaltos da “aceleração da história” (LOPES, 1999).
Esse crescente avanço tecnológico e dinamismo social contribuem para a produção
desordenada de registros documentais que, em vista das conseqüentes mudanças, tornam necessário
a sua preservação. Para tal, profissionais da informação (biblioteconomistas, arquivistas, etc.) são
constantemente procurados com esta finalidade: Arquivar, arquivar, arquivar... Essa se torna a
palavra de ordem numa sociedade tecnológica que tenta acompanhar a velocidade com a qual se
206
processam os acontecimentos. Contudo, arquivar não no sentido de guardar desordenadamente toda
sorte de informações já que, de acordo com a acepção técnica, arquivar não seria só preservar, mas
sim preservar com organicidade, isto é, preservar somente o essencial, eliminando o resto de forma
controlada. Logo, se por um lado essa tecnologização das relações incentiva a produção de registros
documentais, por outro contribui para uma destruição sistemática (porém desordenada) deste.
“Nessa perspectiva, ou os historiadores passam a se preocupar com a organização e preservação de
suas [futuras] fontes de trabalho, ou essas atividades serão feitas à revelia de seus conceitos do que
seja história.” (LOPEZ, 1999, p.30)
O aumento da abrangência da ciência histórica acarretou igual aumento das possibilidades
de documentação, bem como um crescimento das possibilidades de abordagem desse documento,
isso relativo ao que pode ser considerado documento histórico, ou o que se entende como tal, indo
ao encontro das idéias de BLOCH (2001), que defende ser documento histórico tudo em que se
pode vislumbrar a ação humana.
Buscamos junto a CARNEIRO (S/D) a concepção da história que embasa esse trabalho,
segundo a qual história é a ciência que se dedica ao estudo dos eventos temporais, já ocorridos e,
portanto, do passado; mas que faz isso no presente, pois o passado não tem sentido em si mesmo,
ele interessa no presente.
Nesse contexto, entendemos o passado, mediados pelas teorias do presente. E essas,
paradoxalmente, são suportes e entraves. Suporte porque ajudam a nortear o trabalho do
pesquisador; e entraves, ao mesmo tempo, por limitarem o direcionamento da pesquisa. Toda
pesquisa é direcionada e norteada pelos fundamentos da teoria que a sustenta.
A abordagem dita a serventia! Sem pretendermos nos aliar a nenhuma das vertentes do
pensamento científico e, concomitantemente, admitindo a impossibilidade de não sofrermos as
inferências sociais, tal colocação nos faz anuir às afirmações de Leandro Karnal e Flávia Galli
Tatsch (2004, p. 43) quanto à definição de documento histórico, quando, usando a carta de Caminha
como exemplo, remetem a importância que esta veio adquirir, dentre os documentos, no período da
valorização da identidade nacional do Brasil Independente. Não fosse o contexto em questão, tal
objeto jamais teria sido imbuído de tal significado (o de documento histórico).
Após a explosão do nacionalismo e da necessidade da auto-afirmação política, viu-se
nascerem várias vertentes dentro da historiografia, tais como historia do cotidiano, do imaginário,
etc., as quais incutem caráter de documento histórico a objetos que antes não tinham essa
conotação. Desse modo, documentos cuja serventia havia sido esgotada, retomam sua função na
escrita da história passando a servir como fontes aos novos ramos da historiografia.
207
Nesse sentido, o projeto195, que aqui constitui o nosso objeto de apreciação, trabalha com a
recuperação e a viabilização do acervo documental do antigo Setor Fundiário da SEMURB.
Encontram-se presentes neste acervo, documentos produzidos por órgãos da administração do
município, podendo ser considerados, portanto, documentos oficiais. Entretanto, não escolhem seus
indivíduos, pois, por se tratarem de plantas de loteamento, cartas de aforamento e afins, referem-se
tanto à pessoa jurídica quanto à pessoa física. Neste sentido, sua atuação abrange todos os cidadãos,
sejam eles grandes personagens, representantes de importantes instituições, ou simples indivíduo
que adquire um lote de terra no município do Natal. Ainda corroborando com as afirmações acima,
podemos inferir que essas documentações quebram alguns paradigmas, porém, sem fugir aos
preceitos que as sustentam. Inserindo-as no contexto de “alargamento” do campo da história, tornase possível fazer história não só dos grandes personagens, mas também dos agentes populares do
cotidiano, sem fugir das fontes padrão (documentos oficiais). As novas abordagens permitem aos
documentos oficiais contribuírem com a escrita da história com cada vez menos restrições196,
utilizando-se de cada vez mais personagens.
As fontes aqui trabalhadas servem a inúmeras áreas do conhecimento. Além da utilidade
“imediata”, torna-se possível a investigação de elementos como axiologia, comportamento, entre
outras formas expressivas da cultura. Enquanto conhecimento produzido, ultrapassa os domínios da
história abrangendo áreas como arquitetura, urbanismo, ciências naturais, sanitarismo, antropologia,
lingüística bem como a todo e qualquer profissional da educação.
Reforçando a questão do avanço tecnológico, e compreendendo o aumento da produção de
fontes documentais decorrentes deste, a digitalização da documentação em questão facilitará o
acesso à mesma, poupando tempo ao pesquisador e o prevenindo de resolver problemas já
solucionados.
A digitalização/viabilização desses documentos traz à tona a efetivação da função do
arquivo. Um arquivo inacessível não tem funcionalidade. No caso da documentação aqui em
questão, a sua disponibilização, além de abrir possibilidades (pelo acesso) de produção científica a
outras áreas de conhecimento e facilitar o trabalho do usuário em potencial do arquivo (funcionários
da instituição), dinamizando a ação deste, permitirá o acesso pelo cidadão que permanece com
pouco conhecimento dos registros que a ele dizem respeito197. Endossando o que advogam
195
Criando acessibilidade para as informações: banco de dados e digitalização do acervo do Setor Fundiário
da SEMURB
196
Não nos pretendemos à uma discussão em teoria da história e falamos isso resguardados no
procedimento da crítica interna e externa dos documentos entendendo este enquanto obrigatoriamente
implícito no discurso de um historiador que preza pela “verdade” de seus fatos.
197
Tratamos aqui deste acervo não apenas na sua funcionalidade burocrático/administrativa, mas
também enquanto ferramenta pedagógica na construção de um conhecimento para formação social do
cidadão.
208
BELLESSE e GAK (2004), quando defendem que o trabalho arquivístico deve estar voltado para
valorização dos elementos de pertença social.
Encarando o arquivo enquanto universo de significados e práticas culturais mais amplos
(não só históricos), porém um universo que permanece hermeticamente fechado pela sua
inacessibilidade, acrescentamos a ele a concepção de instrumento pedagógico e, quiçá, colaborar
para politização democrática das informações contidas neste e na conseqüente emancipação na
educação para cidadania.
VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa civilização onde o documento é base para quase todos os procedimentos, torna-se
imprescindível o seu acondicionamento apropriado. Se, segundo KARNAL e TATSCH (2004, p.
41), de uma civilização sem registro nada pode ser dito, a fase atual deste projeto torna-se
fundamental para perpetuação de nossa história enquanto civilização. A digitalização desses
documentos tornará opcional e não mais obrigatório o uso destes, enquanto suporte papel, para
realização de suas funções, visto que esse procedimento conservará as cartas na mesma organização
dos livros. Desse modo, o procedimento de digitalização tanto será válido pela preservação dos
documentos originais (em suporte papel) quanto pela segurança e prevenção caso haja algum
incidente que comprometa a documentação original.
A ampla disponibilização dessa documentação contribuirá para a produção das
informações nas mais diversas áreas do conhecimento, abrindo a possibilidade de a pesquisa
histórica se ampliar largamente em diálogos com outras áreas do saber. Observamos, a partir desse
alargamento, o nascer de uma produção histórico/epistemológica que foge às definições e
transcende conceitos como o de “documento histórico” aflorando, assim, a preocupação em libertar
a história de seu isolamento disciplinar, de modo que as formas de pensar em História, estejam
abertas às problemáticas e metodologias existentes em outras ciências sociais, indo além dos limites
impostos pelas denominações “conceito” e “definição”. Isso é o que podemos denominar
transdisciplinaridade.
REFERÊNCIAS
BELLESSE, Julia; GAK, Luiz Cleber. Arquivística: a pertença cidadã. In: Cenário Arquivístico –
Revista da Associação Brasiliense de Arquivologia. Brasília, v.3, nº1, jan./jun. 2004.
BLOCH, Marc, Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar. 2001.
BOSCHI, Caio César. Por que estudar história? São Paulo: Ática, 2007.
209
CARNEIRO,
Néri
de
Paula.
História
e
tempo.
Disponível
em:
http://www.webartigos.com/articles/5229/1/historia-e-tempo/pagina1.html 24 de abril de 2008.
DIAGNÓSTICO DO ACERVO DOCUMENTAL DO SETOR FUNDIÁRIO DA SEMURB, Natal,
2005.
KARNAL, Leandro; TATSCH, Flávia Galli. A memória evanescente: documento e história. In: A
Escrita da Memória. São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004.
LOPEZ, André Porto Ancora. Tipologia Documental de partidos e associações políticas
brasileiras. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
PAES, Marilena Leite. Arquivo: Teoria e Prática. 3ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2001.
210
OS PROCESSOS CRIMINAIS COMO FONTE DE ABORDAGEM DO
COTIDIANO HISTÓRICO DAS CIDADES: UMA BREVE DISCUSSÃO
George Silva do Nascimento
PPGH-UFPB
A presente comunicação pretende construir algumas considerações no que diz respeito ao
uso dos processos criminais como fonte, dentre tantas outras possíveis, de abordagem para a
apreensão histórica do cotidiano das cidades; de como este tipo de documentação pode trazer a tona
o cotidiano dos espaços urbanos através das tensões sociais presentes nos escritos, sejam os
conflitos diretos – como os acontecimentos deflagradores do processo em si – como também os
indiretos – aqueles não ditos explicitamente e que se encontram nas entrelinhas do(s) processo(s),
na escrita e no lugar de produção de cada um dos seus construtores. Valendo ressaltar,
evidentemente, a primordial atitude de considerar a documentação como uma fabricação do real,
bem como a nossa própria interpretação como uma nova percepção desse real; buscar também não
fazer julgamentos de valor e se possível perceber os campos constitutivos de cada discurso, de onde
falam e por quem falam, enfim, recuperar, de uma forma ou de outra, as falas silenciadas dos
sujeitos e através delas perceber o cenário, encontrar o objeto-espaço no seu tempo de emergência.
“Eventos reais que têm o homem como ator.” Assim inicia Paul Veyne (VEYNE, 1987:17)
seu importante livro sobre a escrita da história. Porém o próprio historiador ressalta que: “nem a
essência, nem os fins da história fazem questão da presença deste personagem; eles resultam da
ótica escolhida;
198
[...]” (VEYNE, 1987: 17). Mas o passado por ele mesmo não é o objeto da
história (BLOCH, 2001:52), porque por trás de qualquer transformação e intervenção não natural do
espaço está o homem, pois “[...] o objeto da história é, por natureza o homem. Digamos melhor: os
homens. [...] São os homens que a história quer capturar” (BLOCH, 2001:54). E é a partir deste
horizonte, deste campo visual que nortearemos nossas impressões.
A nossa experiência com a utilização de processos criminais se deu na conclusão do nosso
curso de graduação em História, ano de 2007, no Campus III da Universidade Estadual da Paraíba,
na cidade de Guarabira. Tendo como título HISTORI(Cidade): AS TENSÕES SOCIAIS E O
COTIDIANO DE ALAGOA GRANDE-PB EM 1922 o nosso trabalho procurou, através da utilização
de processos criminais do ano de 1922 referentes à Comarca de Alagoa Grande-PB, apreender o
cotidiano desta cidade. Este tipo de documentação não foi escolhido apenas por mera predileção de
estilo ou de abordagem historiográfica, mas sim por ser a perspectiva de apreensão do objeto
histórico, a nosso ver, mais compatível com a documentação encontrada e o saber/ciência que
exercemos como também o presente que nos inquieta e nos faz questionar o passado, este o nosso
198
Grifos nossos.
211
primeiro impulso. Porém isto não quer dizer que a fonte utilizada por nós não possa ser abordada de
outra maneira, até porque nenhum estudo ou pesquisa é definitivo, muito menos possível de abordar
tudo o quanto a documentação nos revela, cabendo-nos mostrar apenas o pouco que a nossa simples
visão consegue enxergar através da bruma que separa o presente do passado, mas que não está tão
distante assim de nós, apenas turvado pelo indubitável passar do tempo.
Sabemos também que não há um modelo ou método único de abordagem da história
(BLOCH, 2001:49), logo não há aqui uma imposição à fonte e ao objeto, mas uma relação de
pertinência as suas próprias formas. Ora, quando pensamos em processos criminais é óbvio e
aparente o que vem sobre nossas mentes: alguém que por diversos motivos tenha infringido as
normas estabelecidas pelos poderes constituídos a ponto de ter sido investigado e na maioria dos
casos punido.
Há uma tentativa de construção do ‘real’ em todos os momentos e partes constitutivas de
um processo criminal. Uma manipulação da realidade imposta de uma forma tão contundente que
maquia os mecanismos utilizados, porém:
[...] o que os textos nos dizem expressamente deixou hoje em dia de ser o objeto predileto
de nossa atenção. Apegamo-nos geralmente com muito mais ardor ao que ele nos deixa
entender, sem haver pretendido dizê-lo [...] condenados sempre a conhecê-lo
exclusivamente por meio de [seus] vestígios, conseguimos todavia saber sobre ele muito
mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer. [É, [...] uma grande revanche da
inteligência sobre o dado.] (BLOCH, 2001:78).
Acreditamos assim poder apreender através deste tipo de fonte o que há de mais vivo nos
documentos, as vozes não só daqueles que os construíram como também dos que serviram de mote
para a sua elaboração; não somente o que disseram ou quiseram dizer e sim o não dito, o suprimido,
o interdito, visto que a “[...] faculdade de apreensão do que é vivo, [é] justamente, com efeito, a
qualidade mestra do historiador” (BLOCH, 2001:65-66).
Nada de veneração aos mortos ou de submissão ao passado, e sim uma atitude de saber que
o que temos de mais concreto é o passado que nos dá, porém não gratuitamente, mas a partir de
ferramentas que necessitam do trabalho, da escolha e do manuseio adequados exercidos pelo
historiador.
O Fórum da Comarca de Alagoa Grande, onde fizemos nosso levantamento e pesquisa
possui um acervo documental de extrema importância para a História da Paraíba a espera de
diversos pesquisadores interessados em observar e analisar outros aspectos da História deste
município e porque não também do Estado. Com documentos referentes desde a criação da comarca
em 1874 até os dias atuais, a boa conservação da maioria dos documentos se abre como um campo
vasto de abordagens para diversas pesquisas.
A catalogação existente obedece aos critérios referentes aos interesses do próprio órgão é
claro, com caixas concernentes ao ano e ao tipo de documento específico. No nosso caso como
escolhemos processos criminais da década de 1920, a documentação apresenta-se da seguinte
212
forma: caixas-arquivo com a identificação do ano (1920, 1921, 1922 em assim por diante) e o tipo
de processo, Criminal, então as caixas tem essa identificação, por exemplo: 1922/Criminal.
Utilizar este tipo de documentação como fonte de uma pesquisa histórica ainda não ocupou
um lugar de visibilidade/dizibilidade condizentes com o seu valor de testemunho na historiografia
paraibana. Não que pretendemos reverenciar os documentos oficiais e tratá-los como os únicos
donos de uma verdade a ser apenas descrita pelo historiador, mas de apresentar uma das inúmeras
possibilidades de leitura dos mesmos, que embora indiretamente surgidos pelo gesto sintético e
dominante dos escrivães, delegados, promotores e juízes, ainda revelam uma multiplicidade de
vozes, de gestos, de vidas.
Mas os textos não nos dizem nada assim de graça, o tempo em que os documentos por si só
bastavam, onde a História surgia como um produto sacro e espontâneo sem nenhuma influência
direta ou indireta de sua produção, não existe mais ou quem sabe nunca tenha existido de fato. É
preciso interrogar e saber o que perguntar aos textos, “[...] pois os textos [...], mesmo os
aparentemente mais claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los”
(BLOCH, 2001:79).
Como é preciso também aos historiadores situar os atores de seus relatos no mesmo tempo
em que eles se mostraram e surgiram para que não façam juízos de valor de acordo com as suas
práticas presentes, pois os problemas enfrentados pelos outros “[...] já não são exatamente os
nossos” (BLOCH, 2001:64).
Portanto, tendo como recorte temporal o ano de 1922, tencionamos, com este trabalho, não
justificar unicamente as atitudes dos envolvidos nos processos em questão como também observar
apenas os mecanismos jurídicos de autuação, mas esquadrinhar através dos documentos o cotidiano
de uma cidade do interior paraibano e seus comportamentos estabelecidos socialmente àquele
momento.
No entanto, na irrealizável proeza de ele mesmo verificar o acontecimento que analisa o
historiador se utiliza de indícios, sinais que se descortinam em sua empreitada. O conhecimento do
passado dá-se “através de vestígios” (BLOCH, 2001:69), as fontes, os documentos utilizados pelo
mesmo – ressaltemos aqui a multiplicidade de significados que esta palavra adquire à prática
histórica, porque “[...] o que entendemos efetivamente por documentos senão um “vestígio”, quer
dizer, a marca, perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em si mesmo impossível de
captar?” (BLOCH, 2001:73).
Os processos penais são fontes extremamente ricas e peculiares pela sua materialidade
encarada como uma validação de sua autenticidade, pois “cada processo é no período considerado
um produto artesanal” (FAUSTO, 2001:30) e esta “peça artesanal contém uma rede de signos que
213
se impõem à primeira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso” (FAUSTO
2001:30).
Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois
“acontecimentos” diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se
instaura a partir da atuação do aparelho repressivo. Este último tem como móvel aparente
reconstituir um acontecimento originário, com o objetivo de estabelecer a “verdade” da
qual resultará a punição ou a absolvição de alguém. Entretanto, a relação entre processo
penal, entendido como atividade do aparelho policial-judiciário e dos diferentes atores, e o
fato considerado delituoso não é linear, nem pode ser compreendida por meio de critérios
de verdade. Por sua vez, os autos, exprimindo a materialização do processo penal
constituem uma transcrição/elaboração do processo, como acontecimento vivido no cenário
policial ou judiciário. Os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se
instara para punir, graduar a pena ou absorver (FAUSTO, 2001:31-32).
Por conseguinte, o processo criminal apresenta-se como uma forma de interpretar a
realidade (através de símbolos e conceitos próprios) e de, muito mais que construir, impor uma
verdade, uma invenção do “real”, real esse construído através de juízos de valor peculiares ao saberpoder jurídico e policial.
Mas embora o testemunho sirva como a principal forma de validação do processo
construtivo da pesquisa histórica é preciso sempre desconfiar dos testemunhos a fim de não tornarse submisso aos mesmos e acabar apenas repetindo e reafirmando o que os documentos disseram.
(BLOCH, 2001:89-94).
Acreditamos que os processos criminais possam ser um instrumento de abordagem do
cotidiano das cidades, por que
A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer
que seja o seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico [...] A vida cotidiana á a vida
do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de
sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os
seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus
sentimentos, paixões, idéias, ideologias. [...] A vida cotidiana é, em grande medida,
heterogênea; e isso sob vários aspectos, sobre tudo no que se refere ao conteúdo e a
significação ou importância de nossos tipos de atividades. [...] O homem já nasce inserido
na sua cotidianidade (HELLER, 2000:17-18).
Embora este método de apreensão histórica sofra de inúmeros preconceitos entre os quais a
inutilidade e o senso comum, segundo MATOS (2002) “a abordagem do cotidiano [...] redefiniu e
ampliou noções” (MATOS, 2002:21) à pesquisa histórica como um todo e principalmente à cidade
tomada com objeto, pois por ser um espaço contínuo de mudanças e que provoca e instiga as
sensibilidades de quem a vivencia, este modo de abordagem histórica passou a “se colocar como um
desafio ao historiador” (MATOS, 2002:33).
Da cidade como o campo privilegiado às intervenções higiênico-sanitarista e todas as suas
implicações à cidade como campo de tensões sociais ou a cidade em sua materialidade em si
mesma, seus prédios ruas, crescimento e modificações do espaço, tudo passou a fazer parte das
pesquisas históricas que se enriqueciam extremante tendo o cotidiano como método de abordagem,
até por que:
214
O historiador do cotidiano tem como preocupação restaurar as tramas de vidas que estavam
encobertas, procurar no fundo da história figuras ocultas, recobrar o pulsar no cotidiano,
recuperar sua ambigüidade e a pluralidade de possíveis vivências e interpretações, desfiar a
teia de relações cotidianas e suas diferentes dimensões de experiência, fugindo dos
dualismos e polaridades e questionando as dicotomias. Ao recuperar o processo histórico,
pretende perceber suas mudanças e permanências, descontinuidade e fragmentação, as
amplas articulações, as infinitas possibilidades dessa trama multidimensional, que se
compõem e recompõem continuamente (MATOS, 2002:26-27).
Partindo de uma ação que racionaliza o acontecimento o historiador busca a diferença e
não a generalização; a história, digamos, dos grandes personagens torna-se a história de
personagens grandes, de pessoas ‘comuns’ que provocaram o incomum aos olhos do historiador –
porém não confundir com uma história das ‘curiosidades’, digamos. Percebe-se assim como o
tempo não se sucedeu da mesma forma para todas as pessoas. Mas isso não quer dizer que o
historiador não generalize que, ele não acabe por totalizar o diverso, que ele não produza a síntese,
providência última e normatizadora do seu trabalho.
A história do cotidiano é uma abordagem de pesquisa tão digna de nota quanto qualquer
outra como também passível de críticas e da mesma forma de acaloradas discussões e contribuições
ao saber/ciência história.
Esperamos que este breve relato de nosso percurso teórico e metodológico, apesar das
limitações espaciais desta comunicação, possa servir de alguma contribuição às discussões dos
instrumentos possíveis de serem utilizados na busca de se apreender o cotidiano histórico das
cidades. Objeto de múltiplas faces e abordagens, a cidade brande a sua história através de todos os
elementos – visíveis ou não – que a constituem. A sua materialidade, o seu espaço, nos tem muito a
dizer, basta apenas um exercício cognitivo do olhar e muito esforço e transpiração. Algo que o
historiador tem – ou deve ter – de sobra.
REFERÊNCIAS
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 160 p.
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001. 328 p.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro
Konder. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 124 p.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, SP:
Edusc, 2002. 208 p.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1987. 352 p.
215
FONTES E POSSIBILIDADES:
ALGUNS TRAÇOS DO SERTÃO DO RIO PIRANHAS ATRAVÉS DE
DOCUMENTOS CARTORÁRIOS
(PARAÍBA, SÉC. XVIII)
Ana Paula da Cruz Pereira de Moraes (PPGH-UFCG)
O contato com documentos do século XVIII nos levou a pensar o sertão do Rio Piranhas do
período colonial. Estas fontes são rastros produzidos por homens e mulheres que fluíam por todo o
sertão em caminhada para novos e velhos lugares, de acordo com os seus interesses e experiências
de vida.
Esses sujeitos, até o momento, anônimos, foram deixando suas marcas intencionais em
fontes eclesiásticas, para registrar seus nascimentos e apadrinhamentos; cartorárias, para explicitar
suas vontades; e judiciais (inventários), para apresentar e transmitir seus bens. Todavia, serão os
registros cartorários, o foco do presente trabalho e especificamente, trataremos sobre algumas de
suas subdivisões: as procurações e cartas de liberdade. De certa forma, já estamos adentrando a
prática do fazer história, onde selecionamos e ordenamos os objetos (registros) para que se tornem
“documentos” compulsáveis pelo pesquisador.
Os documentos escritos referentes ao século XVIII deixados no sertão do Rio Piranhas não
são vistos no presente artigo como reveladores de dados inquestionáveis e portadores da verdade,
mas como fragmentos legados pelo passado vivido por sujeitos sociais que viveram no espaço
sertanejo que fora marcado pela mobilidade e por disputas. Certamente que esses sujeitos estão
presentes nos documentos compulsados e não obstante, ausentes de nós pesquisadores, deixandonos várias perguntas em aberto, principalmente sobre os seus sentimentos e desejos, visto que os
documentos que trataremos apresentam apenas um dado momento da vida de nossos atores sociais.
Compreender o sertão do período colonial, primeiramente nos remete ao ofício de pesquisa
histórica diante dos documentos. No nosso caso, estamos lidando com documentos escritos de
forma intencionais, pois os registros cartorários têm o desígnio de manter dados e informações
comprobatórias a serem consultados posteriormente, apesar de não terem, os homens que
registravam, tido uma intenção explícita de contribuir com o conhecimento histórico sobre o
período colonial. Mas o importante, é que esta lida com o arquivo, a busca pelas vozes que ecoam
do passado no presente através dos documentos escritos, é uma das formas de nos tornarmos
historiadores não sedentários, andarilhos a busca da exploração e da aventura da descoberta.
Dentro do que está escrito nas cartas de alforria e procurações, estão os dados explícitos,
entretanto é possível com um olhar atento, percebermos informações deixadas involuntariamente
216
que tratam de experiências mais profundas como a própria busca pela liberdade e as relações
exteriores entre o sertão e grandes praças comerciais das capitanias do Pernambuco e Bahia.
Predominava na historiografia tradicional sobre escravidão, até certo tempo, o pensamento
de que a formação de famílias permanentes constituídas por cativos não era concebível devido às
grandes dificuldades que o cativo enfrentava no seu modo de viver. Poderia ser as uniões entre os
escravos ser algo indesejado pelos senhores, já que isto implicaria limitações a vendas de cativos e
que ocasionasse o esfacelamento das famílias.
Isso não é o que revela as cartas199 de doação de liberdade feitas pelo Comissário Francisco
Teixeira Soares aos membros da família do escravo Gregório (Gentio da Guiné) que era formada
por ele, sua mulher, chamada Grácia e oito filhos – Maria de 19 anos, Isabel de 16 anos, Quitéria
com 12 anos, Vitorianna com 03 anos, José e Luiz de apenas 04 meses, Manoel com 14 anos e
Alexandre de 05 anos de idade.
Esses documentos de liberdade são reveladores de uma família cativa no interior do nordeste
bastante estável e nos permite desconstruir antigos mitos em torno da família constituída por
cativos. De todo modo, é importante pensarmos que existiam, em torno da formação de famílias
escravas, um conjunto de variáveis como “o ambiente (rural ou urbano), a ocupação (mineração,
agricultura de plantation, cultivo de subsistência em pequenas propriedades, criação de gado) e os
talentos (ofícios mecânicos, conhecimento paramédico) [...]” (RUSSELL-WOOD, 2005, p. 252,
grifo do autor ), além do consentimento do senhor.
O jogo de lealdades e troca de favores, além da tentativa de formar uma camada de
dependentes era uma marca da sociedade escravista brasileira colonial. Não é de se admirar que, em
1740, o Capitão Mor Manuel Rabelo, morador do sítio São Pedro no Piancó, tenha alforriado200
uma mulatinha de nome Joana, filha de uma sua escrava de nome Tereza, gentio da Costa. A
menina tinha nascido em sua casa e ele tinha tratado a mesmo com “muito amor”.
Com um pouco de imaginação histórica é possível perceber claramente as astúcias usadas
por Tereza ao estimular laços afetivos entre o senhor e sua filha pequena. Essa alforria era fruto de
uma conquista de ambas. Aparentemente ingênuas, mas que souberam dentro da “convivência
cotidiana, na micropolítica da vida diária [...] negociar entre si, enfrentar-se, fazer acordos, enfim,
criar espaços em que um e outro [senhor e escravo] têm sua chance de exercer influência e
pequenos poderes” (BELLINI, 1988, p.74).
Além de negociações e conflitos interpessoais entre senhores e escravos, o sertão do Rio
Piranhas era permeado por teias de comunicação com outros lugares considerados distantes. Em
setembro de 1738, Sebastião Dantas Correa nomeou através de procuração como seus bastantes
199
Ver. Livro de Nota 1747 – 1750: Cartas de Alforria e liberdade dadas pelo Comissário Francisco Teixeira Soares.
Ver. Livro de Nota 1740 – 1742: Carta e escritura de alforria e liberdade que dá o Capitão Mor Manuel Rabello de
Figueredo à sua mulatinha por nome Joana.
200
217
procuradores na Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó, Francisco Gaya da Rocha,
João dos Santos e Sousa, Vicente Carvalho de Azevedo, o Sargento Mor Luis Peixoto Viegas e o
Tenente Coronel Frutuoso Barbosa da Cunha; na cidade de Salvador Bahia de Todos os Santos
nomeou os doutores Domingos Afonso do Carmo, Francisco Chimenes, Manoel Luiz da Rocha
Pitta, Alberto da Rocha Pita e Joaquim Alves dos Santos; na cidade de Olinda e Vila de Santo
Antônio do Recife de Pernambuco nomeou o Capitão Mor Manoel João da Silveira e Antônio
Lopes de Macedo; no sertão do Pajehú a Capitão Mor Fernando Dantas Barbosa e o Capitão Mor
Lourenço da Gama Barbosa; no Rio São Francisco nomeou o Capitão Mor Domingos Maciel de
Faria e o Sargento Mor Antônio Soares de Brito. Todos estes homens deveriam representá-lo com
plenos poderes em diferentes negociações como venda de bens, quitações e comparecimento a
tribunal eclesiástico e secular.
Em uma só procuração201 percebemos a presença de um habitante do sertão do Rio Piranhas
em diferentes lugares como a cidade de Salvador Bahia de Todos os Santos, a cidade de Olinda, a
Vila de Santo Antônio do Recife de Pernambuco, o sertão do Pajeú e o Rio São Francisco. Estas
localidades, na época, se revelavam estratégicas na economia sertaneja. Além disso, os
procuradores gozavam de influência social e política, pois os seus títulos oscilavam entre
Sargentos-Mores, Capitães-Mores, Advogados e Tenentes-Coronéis.
Assim sendo, o sertão poderia ser um lugar ermo e distante dos grandes centros
administrativos e de emanação de poder estatal, mas que estava conectado aos mesmos. Fazendo
parte do circuito do comércio através da economia criatória bovina que encontrava nas vastas terras
da caatinga um bioma ideal para suas características de sobrevivência e manutenção. Outro ponto
interessante é que além de seus aspectos materiais que já foram mais estudados pela historiografia,
os documentos cartorários nos apontam os indícios da presença, no alto sertão paraibano, de uma
população composta por atores sociais anônimos que aqui mantinham suas relações interpessoais,
políticas, afetivas e religiosas que carecem de melhor aprofundamento de estudos históricos.
Referência bibliográfica
BELLINI, Ligia. Por amor e por interesse: a relação senhor escravo em cartas de alforria. In: REIS,
João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1988. p. 71-86.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar:
2001.
201
Ver. Livro de Nota 1738 – 1740: “Procuração bastante que faz Sebastião Dantas Correa”.
218
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: LE GOFF, Jacques. História: Novos
Problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. p. 17-48.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. In: ______. Lembrar,
escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 107-118.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. São Paulo: Civilização
Brasileira, 2005.
219
PATRIMÔNIO: A MEMÓRIA HISTÓRICA ATRAVÉS DA ATIVIDADE
TURISTICA.
Maria Elizabeth Melo da Fonseca
Universidade federal da Paraíba
“Quase todos os lugares e quase tudo do passado pode ser conservado”
(Urry).
A história está intimamente ligada à atividade turística, e por meio dela, em alguns casos, a
prática turística é concretizada.
O passado histórico da humanidade vem sendo intensamente procurado, isto ocorre devido
a uma nostalgia que tomou conta da sociedade e por isso vai à busca de uma lembrança viva do seu
passado. Trigo ressalta: “o interesse das pessoas pela história, a arte e a cultura em geral têm gerado
grandes projetos integrando turismo e cultura” (1993, p.111). Segundo ele, este interesse não está
ocorrendo apenas por modismo ou de forma isolada, mas devido ao crescimento considerável do
nível de instrução das diferentes camadas da sociedade. Dentro dessa perspectiva, Paoli afirma:
o reconhecimento do direito ao passado está, portanto, ligado intrinsecamente ao
significado presente da generalização da cidadania por uma sociedade que evitou até agora
fazer emergir o conflito e a criatividade como critério para a consciência de um passado
comum. Reconhecimento que aceita os riscos da diversidade, da ambigüidade das
lembranças e esquecimentos, e mesmo das deformações variadas das demandas unilaterais
(1992, p. 27).
Para compreendermos melhor o nosso objeto de estudo procuramos uma noção de
patrimônio cultural. Conforme Pellegrin Filho, patrimônio cultural (1997, p. 90) “não se restringe à
arquitetura, a despeito da indiscutível presença das edificações como um ponto alto da realização
humana”. Outras conceituações também foram encontradas como: um bem material, natural ou
imóvel que possui significado e importância artística, cultural, religiosa, documental ou estética
para a sociedade. Acrescentaríamos, ainda, que são todas as manifestações culturais de um povo.
Pudemos perceber que, há uma variedade de conceitos em razão da “globalização” e de influências
de diversos setores socioculturais.
Para Paoli, “a noção de ‘patrimônio histórico’ deveria evocar as dimensões múltiplas da
cultura como imagens de um passado vivo: acontecimentos e coisas que merecem ser preservadas
porque são coletivamente significativas em sua diversidade” (1992 , p. 25).
Quando se fala sobre memória e história, Mattos (1992) aborda o pensamento Walter
Benjamin202 o qual diz:
202
Walter Benjamin -(1892 -1940) foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão.
220
[...] há duas formas de memória: o monumento e o documento. O documento faz parte da
memória oficial celebrativa; o monumento é feito para durar e significar; [...] (idem, ibid, p.
153). (Grifo nosso)
Os patrimônios foram construídos ou produzidos pelas sociedades passadas, por isso,
representam uma importante fonte de pesquisa e preservação cultural. Segundo Carsalade (2008),
“Ele é responsável pela continuidade histórica de uma comunidade que se reconhece como tal e
corporifica seus ideais e valores, transcendendo as gerações”. Dessa forma, quando se conserva e
preserva o patrimônio estamos, também, valorizando a nossa identidade. O patrimônio é a nossa
herança do passado, com o qual vivemos nos dias hodiernos e que, se cuidado, serão passados para
gerações futuras.
A preservação dos objetos (prédios, monumentos, etc.) de atração turística se traduz,
indiscutivelmente, na valorização do desses e, conseqüentemente, no resgate da história local,
regional e nacional. Aliás, há uma necessidade de manter os aspectos físicos originais dos prédios,
pois os mesmos conservam o significado e a memória social, política, econômica e cultural da
sociedade. De acordo com esse pensamento Silva assevera:
Ao invés de retirar o patrimônio de seu circuito próprio, é fundamental respeitar e
compreender os vínculos profundos com aqueles que o produzam: trata-se de reconhecer
que, neste saber-fazer, preservar, difundir, aprender e refazer práticas são elementos
indissociáveis. Por isto, é necessário afastar qualquer tentação de congelar este patrimônio,
como se esta fosse a única forma de garantir sua sobrevivência (1992, p. 19,20).
Considerando o patrimônio portador da memória histórica é de fundamental importância o
seu uso como meio de relacionamento com o processo de interação com a realidade. Ele é o objeto
visível, palpável, significa, do ponto de vista do sujeito, uma melhor assimilação da história, ou
seja, uma tomada de consciência; pois, se aprende quando estabelece significados e relações com o
objeto.
Conforme Pires (2002) há uma necessidade de incrementar o turismo cultural dos museus e
localidades históricas com atividades interativas e atraentes. Sendo assim, acontecerá o maior
número de visitantes das diferentes camadas da sociedade por interesses culturais diversos. A esse
respeito Beni destaca:
Com o atual crescimento do turismo endógeno, provocando a valorização das áreas locais
que possuam destacando diferencial histórico-étnico-cultural, acrescido em alguns casos de
cenários e paisagens únicos, percebe-se uma quase recomunhão do homem com a natureza
em experiência de trocas culturais pouco disseminadas no passado recente com o turismo
de massa (2003, p.97).
Na atividade turística o patrimônio possui a memória histórica de uma localidade a qual
deverá ser transmitida de maneira crítica, sem jamais descriminar as hierarquias sociais. Segundo
MacCannell (apud Araújo, 2005, p. 60), “as práticas turísticas atendem, os interesses do imaginário
do ‘homem moderno’”. Nesse sentido, Araújo destaca:
O turismo articula dessa forma uma linguagem por meio da qual uma série de questões
pode ser formulada, questões que se refere ao lazer, à oferta e ao consumo cultural, e à
própria definição da subjetividade moderna (2005, p. 61).
221
Por essa razão, MacCannel (apud, BANDUCCI, p. 22) defende: “o turismo aparece como
uma busca pela autenticidade a ser encontrada em outras culturas”. Ainda nesse sentido John Urry
(1996, P. 24, 25) ressalta: o turista “é uma espécie de peregrino contemporâneo, procurando
autenticidade em outras ‘épocas’ e em outros ‘lugares’, distanciados de sua vida cotidiana”. Para
Beni “O turista, esse incansável viajor, [...] participa da abertura e da conquista de novas e
surpreendentes regiões e espaços ambientais e culturais (2003, p. 17).
Contudo, toda preservação patrimonial implica, necessariamente, de manter todo o
contexto histórico no qual ele surgiu. Quando este trabalho torna-se impossível, muitas vezes, as
instalações dos prédios são adaptadas para centros culturais ou comerciais de atração turística.
Dessa forma, há uma necessidade de definir o espaço específico da cidadania, o qual permita “a
produção da história e de uma política democrática de patrimônio histórico [...]” (PAOLI, 1992, p.
27). Ainda a esse respeito, essa política se propõe em disputar :
pela memória social, que constantemente desmonta os mecanismos de institucionalização
do significado que a sociedade constrói a respeito de si mesma – de seus cidadãos, de suas
diferenças, de suas identidades e de suas desigualdades ( idem, ibid, p. 27).
Contudo, o “turismo cultural” apresenta-se como um meio de expandir a relevância da
memória histórica de um povo e suas manifestações de forma prazerosa. Logo, a oferta turística
deve incluir, nos seus roteiros, atrativos que privilegiem o patrimônio natural, histórico e cultural de
cada região, dando oportunidade aos diferentes setores sociais, sem favorecer as elites.
Constamos que a nossa Constituição estabelece que: cabe ao poder público com o apoio da
comunidade a proteção, a preservação e a gestão do patrimônio histórico e artístico do país.
Todavia, para acontecer à efetiva preservação e conservação dos prédios antigos e é preciso uma
parceria ativa e consciente daqueles que devem ou podem dispor de recursos para este fim.
Percebemos, especificamente na cidade de João Pessoa que, mesmo possuindo um rico
conjunto arquitetônico e existindo as leis de incentivo à cultura pelas esferas públicas, aqueles não
estão sendo devidamente aproveitado. Ressaltamos que, houve uma considerável restauração e
preservação (de alguns prédios). No entanto, não existe uma atividade cultural contínua que
incentive a valorização da memória histórica desses objetos. Lamentavelmente, para muitos turistas
ou habitantes o patrimônio representa apenas casarões antigos. Para reverter essa visão faz-se
necessário de uma política sociocultural que tivesse como objetivo o resgate da história regional e
nacional.
No Brasil, algumas cidades como Ouro Preto (MG), Salvador (BA), Olinda (PE), Rio de
Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Curitiba (PR), João Pessoa (PB) passaram por um processo de
conservação e revitalização dos centros históricos. Mesmo assim, iniciativas como esta não
conseguiram abranger um grande número de cidades, pois são muitas. Na opinião de alguns
especialistas o nosso país pouco preserva a sua memória histórica e, na desculpa do
222
desenvolvimento, encontram justificativas e saem derrubando prédios, quarteirões e alguns
monumentos. Estas destruições revelam o absoluto desprezo pelo que chamam de “velho”,
resultando, assim, um desconhecimento quase que total do que fomos.
É lamentável que riquíssimo conjunto arquitetônico esteja aos poucos sendo destruídos
devido às intempéries e ao descaso dos responsáveis. E no caso da Paraíba, especificamente, este
fato torna-se gritante, principalmente quando os objetos são de posses de particulares, como por
exemplo, os engenhos, os casarões, as fábricas desativadas e outros. Todo este conjunto transborda
de uma rica memória histórica e, na maioria das vezes, seu valor é ignorado.
A restauração do patrimônio está intimamente ligada ao apelo de um resgate permanente
da memória histórica. Os prédios contam a nossa história através da sua arquitetura, por retratarem
significados sociais, econômicos, políticos e culturais de uma época.
Devemos ainda permanecer alerta para a tradição, que muitas vezes “mascara as
desigualdades sociais e espaciais, introduz um consumismo e uma comercialização superficiais e
pode, em parte, destruir elementos ou artefatos que, supostamente, estão sendo conservados”
(URRY, 1996, p.150).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contudo, a questão fundamental que se coloca nesse estudo é a necessidade de valorizar e
preservar o patrimônio cultural, considerando ele uma fonte “viva” da memória histórica e presente
no turismo cultual ou de massa. Sendo assim, faz-se necessário um planejamento com o
envolvimento de todos como: a sociedade, os órgãos públicos e os privados, com o objetivo de
sensibilizar e valorizar o bem comum. Para Ruschmann, “o planejamento é uma necessidade vital
não só para as empresas como também para órgãos públicos” (1997, p.171). Como já foi dito, a
restauração do patrimônio está intimamente ligada aos apelos de um resgate permanente de um
processo histórico local, regional e nacional.
Sabemos que os avanços tecnológicos são os grandes responsáveis por influenciar toda a
economia mundial e principalmente o turismo. As influências da globalização e da tecnologia
resultam, para a sociedade, numa vulnerabilidade aos modismos, alterando, assim, o estilo de vida
dessa sociedade. Com a globalização deveria acontecer uma homogeneização dos locais turísticos,
das técnicas e mercados, mas esse fato recebe influências diversas da economia mundial, mantendo
assim as diferenças e desigualdades que estão arraigadas na vida dos indivíduos e na identidade de
cada região.
Portanto, devemos ter a preocupação de um olhar crítico sobre o patrimônio, pois sendo ele
a memória histórica não devemos correr o risco de transmitir e proteger alguns e esquecer a
realidade presente, contribuindo, desta forma, para a distorção dos fatos, e dando ênfase a uma
223
história positivista, ou seja, que omite, ignora e banaliza os processos históricos. Assim sendo, é de
grande relevância que exista uma preocupação em manter viva e presente a história por meio da
conservação e preservação do patrimônio. Para tanto, é preciso uma estratégia de marketing que
destaque não só as belezas arquitetônicas dos monumentos históricos, mas também os valores das
raízes históricas por eles representados.
REFERÊNCIAS
BENI, Mário Carlos. Globalização do Turismo: megatendências do setor e a realidade brasileira.
São Paulo: Aleph, 2003.
FENELON, Déa Ribeiro. Políticas Culturais e Patrimônio Histórico. In O Direito à Memória:
Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), 1992.
MATTOS, Olgária. Memória e História em Walter Benjamin. In O Direito à memória:
Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), 1992.
p. 53
PAOLI, Maria Célia. Memória, História e Cidadania: o direito ao passado. In O Direito à
Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH (Departamento do Patrimônio
Histórico), 1992.
PELLEGRIN FILHO, Américo. Ecologia, Cultura e Turismo. 2ª Ed. Campinas, SP, 1997. Col.
Turismo.
PIRES, Mario Jorge. Lazer e Turismo Cultural. Barueri: SP. Anole, 2002
RUSCHMANN, Doris. Turismo e Planejamento Sustentável a proteção do meio ambiente.
Campinas, SP: Papirus, 1997. Col. Turismo.
SILVA, Olga Brites da. Memoria, Preservação e Tradição Populares. In O Patrimônio Histórico
e Cidadania. São Paulo: DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), 1992.
TRIGO, Luís Gonzaga G.. Turismo e Qualidade: tendências contemporâneas. Campinas-SP:
Papirus, 1993. (Coleção Turismo).
URRY, John. O Olhar do Turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas Tradução
Carlos Eugênio, Marcondes de Moura. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 1996. Col. Megalopes
SITES VISITADOS:
www.projetur.com.br – [email protected] - maio de 2007. Acesso 08/07/2008
CARSALADE, Flávio de Lemos. Educação e Patrimônio Cultural. Acesso em 08/07/2008
http://www.pdturismo.ufsj.edu.br/artigos
224
CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO DA PARAÍBA: PATRIMÔNIO
ARTÍSTICO CULTURAL DE UM POVO
Idelbrando Alves de Lima – UFPB∗
A preservação da memória nacional deve ser uma preocupação constante
dos governantes e da própria comunidade. Nenhuma nação poderá conhecer
bem o sentido do seu futuro, sem, antes, procurar descer às fontes primaciais
de suas origens, de seu passado, de suas tradições. A História é igualmente
alma e corpo do Tempo, através da qual o espírito do povo se manifesta [...].
Tarcísio de Miranda Burity
A Ordem de São Francisco está presente no Brasil desde 1500. Entretanto, o seu
estabelecimento institucional (igrejas e conventos) só ocorreu a partir de 1585, na Vila de Marim,
hoje, Olinda. Não demorou muito para que os franciscanos expandissem a sua atuação no Brasil
colônia e rapidamente os frades fossem convidados a fundar um convento na Capitania Real da
Parahyba. Era o ano de 1589, quando os frades franciscanos se instalaram na recém-fundada cidade
de Filipéia de Nossa Senhora das Neves (1585). Foi dessa forma que surgiu o Convento de Santo
Antônio da Paraíba, como afirma Frei Hugo Fragoso (1980, p. 50): “Poucos anos após a chegada
dos franciscanos ao Brasil, a fim de se estabelecerem organizadamente em forma de Custódia
(1585), foram encaminhados pedidos de construírem uma casa na recém-fundada cidade da Paraíba,
ou de Filipéia”.
Na busca por atender às solicitações vindas da cidade de Filipéia de Nossa Senhora das
Neves, o Padre Custódio Frei Melchior de Santa Catarina e outros companheiros vieram a essa
cidade, em 1589, e constataram as reais condições para a fundação do convento paraibano. Como
era do interesse da Metrópole fincar as bases da colonização, logo se procurou viabilizar a fundação
do convento franciscano na cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves. Tal fato se verificou
através da receptividade com a qual os frades foram recebidos pelos habitantes da cidade, além da
disponibilidade de recursos ofertados pelo Governador Frutuoso Barbosa.
Percebendo a favorável viabilidade para a fundação do convento, Frei Melchior buscou
escolher o local para a construção, o qual se encontrava “[...] retirado do ponto povoado da cidade
sem comtudo [sic] ficar distante; [...]” (MACHADO, 1977, 113), além de oferecer o material
necessário, tais como madeira, pedra calcária e água. Vale ressaltar que o local escolhido por Frei
∗
Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB/ Especialista em História do Brasil pelas
Faculdades Integradas de Patos – FIP/ Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões – PPGCR
da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
225
Melchior para a construção do convento é o mesmo onde ele se encontra atualmente203. Feita a
aceitação da casa e escolhido o local para a edificação do convento, em 1589, foi iniciada a
construção que, à princípio, teve caráter provisório, possuindo doze celas, claustro204, oficinas e
oratório, construídos de taipa. A Frei Francisco dos Santos coube a responsabilidade de desenhar a
primeira planta do convento de Santo Antônio da Paraíba.
O início da construção em pedra calcária só ocorreu no ano de 1602, tendo sua total
conclusão no século XVIII. A construção do Convento de Santo Antônio da Paraíba passou por
quatro etapas, as quais estão registradas na Fonte de Santo Antônio (1717), no Frontispício 205
(1779), na Torre (1783) e no Muro (1788). Um detalhe que merece destaque é o fato da construção
em pedra calcária ter sido iniciada no ano que Frei Francisco dos Santos (1602-1606), foi eleito o
quinto guardião do Convento de Santo Antônio da Paraíba, justamente, o responsável pelo desenho
da primeira planta da obra.
De extrema beleza e grandiosidade, o convento franciscano da Paraíba sempre despertou a
atenção daqueles que descreveram a cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, conforme é
relatado no livro Diálogos das Grandezas do Brasil de Brandão (1962, p. 26, grifo nosso):
[A cidade] está situada pelo rio acima, ao longo dele, posto que pequena,
todavia é povoada de muitas casas, todas de pedra e cal e já enobrecida de
três religiões que nela assistem com seus conventos, a saber, o da Ordem do
Patriarca São Bento e os religiosos de Nossa Senhora do Carmo com os do
Seráfico Padre São Francisco da Província Capucha de Santo Antônio, que
têm um convento suntuoso, o melhor dos daquela Ordem em todo o estado
do Brasil.
Outro que exaltou a beleza arquitetônica do Convento de Santo Antônio da Paraíba foi o
governador holandês Elias Herckmans (1636 – 1639), o qual retrata o convento da seguinte forma:
“O convento de S. Francisco é o maior e o mais belo: está cercado de um muro, e por dentro foi
construído mui regularmente” (HERCKMANS, 1982, p. 13).
A suntuosidade do Convento de Santo Antônio da Paraíba é marcada pelo estilo barroco que
o ornamenta. De acordo com Burity (1988, p. 68, grifo nosso), as características do barroco são
203
O Convento de Santo Antônio da Paraíba está localizado na Praça São Francisco, s/n, Centro da cidade de João
Pessoa (antiga cidade alta).
204
Pátio interior, descoberto e cercado por galerias delimitadas por arcos, existente em conventos e destinado aos
momentos de meditação individual dos religiosos.
205
É a fachada principal da igreja.
226
[...], a assimetria, a predominância da ordem imaginativa sobre a ordem
lógica, expressando engenho e agudeza, ao mesmo tempo em que cria um
clima permanente de novidade, imprevisibilidade e movimento. Além da
superabundância decorativa na arquitetura, [...], tudo isto caracterizado na
expressão do pensamento íntimo de cada homem, da sua consciência, do
transbordamento da sua maneira particular de ver e interpretar a natureza.
O Barroco significa, portanto, movimento, ação, imaginação criadora e a
valorização da consciência individual.
Vale salientar que o barroco foi implantado no Brasil na região litorânea, sendo empregado,
principalmente, na arquitetura religiosa. Segundo Burity (1988, p. 69, grifo nosso), “O Barroco
torna-se, assim, uma manifestação típica e regional. [...]. O Barroco brasileiro pertence à história da
arte européia, principalmente aos colonizadores portugueses, e, sobretudo, às Ordens Religiosas
que, de início, se estabeleceram no litoral. Desenvolve-se sobretudo no século XVII [...]”.
Em virtude disso, a Paraíba vai está enquadrada no perfil da arte barroca brasileira, que
caracterizou a arquitetura religiosa da região litorânea nordestina, a partir do século XVII,
apresentando elementos da fauna, da flora e dos frutos típicos da região. Além disso, “Para nós,
paraibanos, falar de arte barroca é falar da nossa própria origem cultural, da nossa formação
histórica, das nossas razões espirituais e da íntima ligação do barroco com os nossos colonizadores
portugueses, [...]” (BURITY, 1988, p. 71).
Apesar de ter sido transplantado de Portugal para o Brasil, a arte barroca adquiriu
característica da nossa realidade tropical, na qual se observa a integração de pássaros, de frutos, de
flores com santos e anjos, compondo dessa forma uma arquitetura harmoniosa e tipicamente
brasileira.
O convento dos franciscanos em João Pessoa é uma obra monumental que causa
perplexidade, devido sua perfeita arquitetura. A primeira coisa que chama a atenção daqueles que o
visitam é o seu cruzeiro em pedra calcária, simbolizando o poderio da Igreja Católica na formação
colonial da Capitania Real da Parahyba. Posterior ao cruzeiro, encontra-se um grandioso adro206
com um piso de lajedo, ladeado por dois muros, nos quais estão assentados azulejos portugueses,
representando a Via Sacra. Segundo Oliveira (1995, p. 65)
As cenas retratadas nos azulejos do adro da igreja, alusivos à Paixão de
Cristo, podem ser interpretados como um indicativo de que sem se passar
206
Terreno em frente e/ou em volta de uma igreja, pode ser plano ou escalonado, aberto ou murado.
227
pelo sofrimento, mesmo que seja apenas observando-o, não é possível
adentrar à Casa de Deus.
A Igreja de São Francisco que compõe o Convento de Santo Antônio da Paraíba apresenta
um frontispício com ricos detalhes e de grande imponência. Sua estrutura está alicerçada sobre
cinco arcos de pedra lavrada e cornijas207 do mesmo material; os três arcos do centro correspondem,
na parte inferior, ao corpo da igreja e, na parte superior, ao coro. Os outros dois arcos que ficam nas
extremidades da fachada levam, do lado esquerdo, para a Capela da Ordem Terceira e, do lado
direito, para a portaria, dando acesso ao claustro.
Passando pela galilé 208 e adentrando na igreja, encontra-se o vestíbulo209, o qual apresenta
“[...] uma alegoria acerca da Santa Madre Igreja e da congregação franciscana: uma personificação
da Igreja protege com seu manto tanto seis frades quanto cinco cardeais, todos da Ordem de São
Francisco” (OLIVEIRA, 1995, p. 65).
Saindo do vestíbulo, pode-se visualizar a nave principal da Igreja de São Francisco, que
apresenta nas suas paredes um trabalho em azulejos que narra a história de José do Egito, além
disso, a nave traz em seu teto um painel de quarenta metros de comprimento por quinze de largura,
pintado em Trompe L’Oeil210, que retrata a vida de São Francisco. Indo em direção ao altar-mor,
encontra-se outra pintura, formada de vinte nichos que reproduzem os milagres de Santo Antônio.
Ainda dentro da Igreja de São Francisco, do lado esquerdo, são encontradas duas capelas, uma toda
em dourado, a Capela Eucarística (Capela Dourada), e outra dedicada a São Benedito, de menor
extensão e usada pelos escravos. Além dessas duas capelas, encontra-se, na parte exterior da Igreja
principal, a Capela da Ordem Terceira, com seu respectivo painel, a respeito do qual não existe um
consenso sobre a retratação nele pintada. Para alguns estudiosos o medalhão central do painel traz a
imagem do profeta Elias sendo arrebatado num carro de fogo, com cavalos de fogo, tal como o
relato bíblico211. Outros estudiosos acreditam que, na verdade, o homem retratado no painel é São
Francisco de Assis passando por um momento místico da sua vida.
O complexo arquitetônico do Convento de Santo Antônio da Paraíba ainda apresenta um
belíssimo claustro, formado de grandes colunas e com paredes trabalhadas em azulejos portugueses.
Ainda compondo esse complexo, está a sacristia, que possui um belo painel em seu teto, móveis em
207
Série de molduras sobrepostas que formam saliências na parte superior da parede.
Galeria existente na entrada de uma igreja, entre o pórtico e a porta de entrada do templo, sendo da mesma extensão
de sua fachada.
209
Nas igrejas barrocas, área imediatamente posterior à porta de entrada do templo, geralmente localizada sob o
mezanino que abriga o coro.
210
Literalmente, “engana a vista”. Na arquitetura é uma técnica que tem como propósito alterar a percepção de espaço
do observador.
211
A passagem bíblica do arrebatamento do profeta Elias está no livro de 2 Reis 2: 11.
208
228
jacarandá e um piso todo trabalhado em mirra. Outro aspecto que traduz a beleza e o luxo desse
complexo são os altares, ricamente trabalhados com delicados entalhos revestidos de ouro.
Na parte exterior do convento, encontram-se o relógio do sol e a Fonte de Santo Antônio,
considerada uma das mais belas do Brasil, feita de pedra e alvenaria, além de dependências como
jardim, horto, celas, entre outras.
Durante os 419 anos de fundação, o Convento de Santo Antônio da Paraíba passou por
diversos acontecimentos que merecem ser descritos. Com a ocupação durante o período de domínio
holandês (1634-1654), tornou-se quartel-general, residência do governador e abrigo para os
mercadores holandeses.
Os religiosos de São Francisco residiram nesse convento até o ano de 1885, quase 300 anos
de serviços sacerdotais prestados ao povo paraibano. De 1885 a 1894, o convento foi transformado
em Escola de Aprendizes Marinheiros e em Hospital Militar. Após a criação da Diocese da Paraíba
(1892), o então Bispo Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques instala no convento o Colégio
Diocesano Pio X e o Seminário Arquidiocesano, que estiveram em funcionamento até 1906 e 1965,
respectivamente. Cabe destacar que o Bispo Dom Adauto conseguiu adquirir o convento, em 1894,
para a Cúria Diocesana. De 1965 a 1979, o convento serviu de Museu Sacro – Escola da Paraíba,
Escola Estadual do Bairro do Roger e Escola de Teatro Piollin.
Em 1979, durante o primeiro governo estadual de Tarcísio de M. Burity, o convento
franciscano teve suas portas fechadas para a execução das obras de restauração. O projeto de
restauração de José Luiz Mota Menezes e Fernando de Barros Borba tinha os objetivos de restaurar
e conservar os bens móveis de todo o complexo – Igreja de São Francisco e Convento de Santo
Antônio –, além de buscar o retorno das linhas primitivas do convento. Reaberto em 06 de março de
1990, também, pelo então governador Tarcísio de M. Burity, o Convento de Santo Antônio da
Paraíba foi transformado em Centro Cultural de São Francisco e hoje abriga, em suas dependências,
a exposição de Arte Sacra, composta de imagens dos séculos XVII, XVIII e XIX; a Galeria da
Pedra; o Projeto Mostra Brasil de Arte Popular, no qual estão expostas peças de diversos artistas
brasileiros e a Biblioteca. O centro ainda funciona como galeria de exposições temporárias e é
utilizado para concertos de música clássica.
Tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Convento de Santo Antônio da
Paraíba encanta pela sua beleza arquitetônica de extrema riqueza. Esse monumento histórico é para
o povo paraibano uma testemunha viva da vida comunitária e religiosa da cidade de João Pessoa,
que em seus 423 anos, aguarda ansiosamente o reconhecimento do complexo pela UNESCO como
Monumento da Humanidade.
Hoje o Centro Cultural de São Francisco funciona plenamente. Possui uma equipe de guias
que são responsáveis por contar um pouco da história do convento e de apresentá-lo a todos que o
229
visitam. Recebendo turistas da Paraíba, do Brasil e do Mundo, o Centro Cultural de São Francisco é
parada obrigatória no roteiro turístico da cidade de João Pessoa.
Vale ainda salientar que a Ordem de São Francisco desempenhou um importantíssimo papel
na formação religiosa da Paraíba, fato que justifica a intrínseca relação existente entre esse
patrimônio e a memória do povo paraibano.
Referências
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. 1 ed. Recife: Imprensa
Universitária, 1962 (texto original de 1618).
BURITY, Glauce Maria Navarro. A Presença dos Franciscanos na Paraíba. Através do Convento
de Santo Antônio. Rio de Janeiro: Bloch, 1988.
FRAGOSO, Frei Hugo. Presença Franciscana na Paraíba 1588 – 1886. IN: Revista Santo Antônio.
Recife: Ano 58, Nº 98, 1980, pp. 49-71.
HERCKMANS, Elias. Descrição Geral da Capitania da Paraíba. João Pessoa: A União, 1982.
MACHADO, Maximiano Lopes. História da Província da Paraíba. João Pessoa: Universitária/
UFPB, Vol. I, 1977.
NÓBREGA, Humberto Carneiro da Cunha. Arte Colonial da Paraíba. João Pessoa: Universitária/
UFPB, 1974.
OLIVEIRA, Carla Mary S. As Igrejas Barrocas Paraibanas, A Divisão do Espaço Urbano e a
Consolidação da Dominação. In: Seaculum – Revista de História I (1): João Pessoa: Jul/ Dez/ 1995,
pp.59-74.
230
A RESISTÊNCIA DA MEMÓRIA: UMA REFLEXÃO SOBRE O MEMORIAL DA
RESISTÊNCIA EM MOSSORÓ
Cláudia Lago. (Profª Drª da Faculdade Católica Santa Teresinha e prof. Substituta do
CERES/UFRN).
Nos últimos tempos, tem-se falado muito do resgate da memória, da necessidade que as
sociedades têm de rever, repensar, reconstruir e restitui sua própria história. O problema é que
poucos resultados são vistos, em oposição aos muitos discursos pregados. Resgatar a memória é
trazer à tona o passado de uma sociedade, seus momentos áureos, de glória, mas também seus
momentos de ansiedade, apreensão, tensão. É mostrar ao seu próprio povo o que seus antepassados
fizeram em seu próprio tempo. Mostrar é necessário para que a sociedade se orgulhe, ou mesmo se
envergonhe do que ela já foi um dia. Relembrar o passado é mostrar às novas gerações o que as
antigas foram capazes de realizar, mesmo estando limitadas pela tecnologia da qual tão nos
orgulhamos de ter e tão acostumados estamos a usufruir.
Mas se o resgate da memória é tão importante, porque poucas sociedades buscam esse
retorno? É por temer seu próprio passado ou por simplesmente não querer lembrá-lo? Pierre Nora e
Maurice Hawbachs falam dessa perda de memória social, de como algumas sociedades desprezam
seu passado, em contrapartida que valorizam e enaltecem o presente e o futuro.
E essa é uma preocupação que todos devemos ter. Não que pensar no presente e no futuro
não seja essencial, mas repensar o passado torna-se imprescindível para a compreensão de ações
presentes e futuras.
Na verdade, até aqui o que tenho dito deve referir-se ao exemplo de demonstração da
preocupação com a memória, ao contrário do que muito se vê, quando buscamos falar do descaso
dado à memória. Recentemente foi inaugurado em Mossoró o memorial da Resistência, localizado
na praça que leva esse nome. O memorial é aberto, em praça pública, combinando maravilhosas
fotografias com textos primorosos que contam a história da resistência do povo mossoroense ao
bando de Lampião. A simples idéia de levar o povo a conhecer sua história sem que para isso tenha
que conduzi-lo a um museu, ou mesmo a um memorial em prédio fechado, em que poucos se
sentem atraídos em visitá-los, especialmente considerando que os brasileiros não possuem esse
hábito como motivação de lazer ou de conhecimento cultural. Na praça, todos passam, e a
convivência com sua história torna-se cotidiana.
O que se vê no memorial não é apenas uma combinação gráfica e textual, mas um conjunto
de elementos que fazem com que sua população se descubra entre tantos rostos, nomes e mesmos
231
ações citadas nos painéis que compõem o acervo. O que eu vi, enquanto visitante nesta cidade foi
uma fantástica demonstração do resgate da memória, e não apenas apreciada por mim, mas pelos
seus moradores, gente que nasceu e que convive com o mito de personagens como Rafael
Fernandes e o Padre Mota enquanto figuras heróicas que comandaram o ataque a Lampião. No
mesmo espaço, são vistas enormes fotografias que demonstram os “anti-heróis”, cangaceiros que
promoveram o medo e a ameaça de invasão, terror e destruição de uma cidade que ficaria na
história do cangaço, como uma das poucas cidades brasileiras que teve a coragem de enfrentar um
dos mais temidos bando de cangaceiros.
Sem levar pelos ânimos da exaltação, mas concordando com a belíssima história que
envolve de fato a resistência dos mossoroenses ao ataque dos cangaceiros, o que se vê no memorial
é realmente o respeito à História, à Memória e ao Patrimônio Cultural que essa gente possui.
E foi me colocando na condição de historiadora, professora das disciplinas de História do
Rio Grande do Norte e Patrimônio Cultural, e visitante em Mossoró, que me senti na obrigação de
externar essa honrosa ação, onde a população local pode simplesmente conviver com sua história,
mas também, num sentimento de lástima, por ver que idéias tão simples não são aplicadas em
outros lugares, pois, se assim fosse, as Histórias que trabalhamos em sala de aula não seriam apenas
História, passado visto em documentos, relatos ou fotografias antigas de lugares que não existem
mais, mas seria algo presente, e que fizesse a população refletir sobre a necessidade de preservação
para as gerações futuras.
232
NA CULTURA ESCRITA OS VESTÍGIOS DA COR: ANÚNCIOS E NOTÍCIAS DE
ESCRAVOS NO JORNAL “O ARARIPE” 1855 – 1865.
Maria Daniele Alves212
[email protected]
A escravidão negra esteve presente na vida social e econômica do nosso país por mais de
três séculos, tornando-se esta pedra angular do sistema produtivo. O Ceará não se excluiu dessa
característica que o Brasil apresentava desde o período Colonial.
A existência dos negros em terras cearenses é constatada principalmente nas áreas
consideradas produtivas da província que se destacavam em suas atividades agrícolas e pastoris.
Entre essas áreas encontramos a cidade do Crato. “Em 1808 o maior contingente de escravos estava
em Aracati – 1102; São Bernardo – 943; Icó – 1507; Crato – 1091; São João do Príncipe – 1856;
Sobral – 2978 e Campo Maior – 1270” (FUNES, 2000, p.110).
Na cidade do Crato, os escravos eram usados em diversas atividades, nos engenhos
existentes na região destinados à produção de rapadura e inclusive nos serviços domésticos que
desempenhavam, conforme aponta o estudo desenvolvido pelo historiador Darlan Reis. (JUNIOR,
2006, p. 121-136.). No entanto, pouco se escreveu sobre a mão-de-obra cativa existente no Cariri
cearense, especificamente na cidade do Crato, nosso espaço de análise.
Frente às lacunas com as quais nos deparamos sobre o conhecimento desta temática,
propomos analisar como os escravos estavam representados nos anúncios e notícias do jornal “O
Araripe”, perceber como se produziram e difundiram os fatos publicados relacionados a este
assunto em momentos de mudanças e transformações, perpassando os últimos momentos da
escravidão no Ceará.
Os jornais constituem-se como objetos de posição social e representações do cotidiano de
uma determinada sociedadexxiii. Preciosas informações sobre a escravidão nos são fornecidas, em
grande parte, pelos jornais da época que registraram o cotidiano desta. Devemos vê-los como
produtos sociais, como objetos de posições e representações.
Era na imprensa aonde “tudo virava notícia, ou seja, transformavam-se sempre pequenos fatos, incidentes
particulares e mesmo brigas pessoais em notícias de importância geral” (SCHWARCZ, 1987.p.60). Assim, a
imprensa torna-se um dos recursos de grande relevância para os historiadores que se dispõem a analisar a sociedade
brasileira e os acontecimentos no século XIX, mesmo porque era através desta que se destacavam os debates que
ocorriam naquela época, aonde eram veiculadas notícias acerca dos fatos locais e das cidades vizinhas.
212
Mestranda em História - Universidade Estadual do Ceará – UECE. Orientador: Francisco Carlos Jacinto Barbosa
233
Nosso recorte temporal remete a segunda metade do século XIX, mas precisamente aos
anos de 1855 a 1865. Nos propomos a investigar esse período ao fato que foi a partir de 1855, que
surgiu a imprensa no Crato, com o jornal “O Araripe”, seguindo à análise aos últimos momentos da
escravidão no Ceará, onde percebemos neste periódico a diminuição do número de anúncios e
noticiários publicados sobre o tema, relacionando tal fato ao processo abolicionista que se fez mais
intenso nesta província na época. Não podemos esquecer também que foi a partir de 1850 que as
mudanças na escravidão começaram a ocorrer mais intensamente devido ao fim do tráfico negreiro,
que trouxe como conseqüências mudanças significativas para os cativos do Brasil, como a ativação
do tráfico interprovincial, leis que surgiram para “proteger” os cativos, além de uma “dinamização”
na relação entre senhores e escravos, fazendo com que a escravidão passasse a ter seus dias
contados.
Os jornais nos prestam informações preciosas não apenas no sentido de descrever o cativo
em seus aspectos físicos, mas também a cerca de todo o complexo das relações sociais e culturais
no nosso país durante o século XIX. Os anúncios e noticiários publicados nestes, constroem e
divulgam particularidades essenciais da presença africana no Brasil, como os estereótipos, as
marcas tribais que alguns já traziam consigo, os sinais de castigos, etc.
No Crato, foram impressos vários jornais, mas a maioria teve vida curta. Segundo Irineu
Pinheiro, o fato de ter havido no Crato jornais de vida efêmera, se deve a vários fatores, entre eles, o
fator geográfico, ou seja, a distância do litoral, o que acarretava a falta de boa comunicação entre a
capital e o interior da Província, o analfabetismo da maioria do povo cratense somada à pobreza do
lugar e da região em que este estava inserido.
“Uns foram políticos como ‘O Araripe’ e a ‘Gazeta do Cariri’, que viveram há
quase cem anos, a ‘Cidade do Crato’, o ‘Sul do Ceará’ e o ‘Correio do Cariri’, no
começo deste século, outros literários ou religiosos, alguns críticos e
humorísticos”. (PINHEIRO, 1950, p.173)
O jornal “O Araripe” nos dará suporte para desenvolvermos a nossa pesquisa, sendo este o
primeiro jornal impresso na cidade do Crato, fundado e redigido por João Brígidoxxiv. Era um jornal
semanário que lutava pelo “progresso e pela grandeza da região em que floresceu” (PINHEIRO.
1950. p.177).
“O Araripe” teve uma duração de dez anos, sendo impresso no período de 1855 a 1865.
Neste jornal, os anúncios de escravos aparecem com certa freqüência, ganhando os cativos
destaques em diversos tipos de anúncios e notícias veiculadas na época. Entre eles, podemos
observar o caso da escrava “Maria”, cuja dona “Tereza Maria de Jesus”, mesmo depois de ter-lhe
concedido sua alforria condicional, pedia a revogação desta, por sua escrava ter-se “evadido em seu
próprio leito”.
234
Teresa Maria de Jesus, moradora que fui na cidade de Crato, e hoje no termo de
Exu, província de Pernambuco, no sítio: Lagoa dos Cavalos – declara que tendo
dado título de liberdade à sua escrava Maria, mulata, de idade de vinte e oito anos,
com condição de lhe prestar todos os serviços até o fim da sua vida, como escrava
que era, a anunciante acha-se na disposição de revogar, pelos meios que as leis
permitem, visto ter-se a dita escrava constituindo-se indigna dessa graça, não só
por atos de atrevidas desobediências que diariamente pratica, como por ter se
escandalosamente prostituído e viver em pública amancebia, chegando seu arrojo
a ponto de introduzir dentro da própria casa da anunciante seu Barregan, e até
profanar o próprio leito daquela a quem essa escrava por muitas respeitas devia
reverenciar! A presente declaração é um protesto contra o título de que se acha
munida essa escrava, para que em tempo algum não se alegue prescrição em favor
desta ingrata doada. Lagoa dos Cavalos, 16 de agosto de 1857. (“O Araripe”,
sábado, 16 de agosto de 1857)
A partir do anúncio, podemos perceber a situação ambígua em que se encontravam muitos
escravos alforriados condicionalmente, onde a maioria deles não se achava mais obrigado a prestar
serviços ao seu senhor, por já se considerar livre do cativeiro, e por isso tomava atitude condizente
de pessoa liberta. Isso fica ainda mais evidente, quando a senhora, fala que a escrava tem praticado
“atos de atrevidas desobediências diariamente” e por esta ter introduzido dentro da casa da sua
senhora o seu amante.
Em alguns casos era o próprio senhor quem revogava a alforria do escravo – conforme o
caso citado acima – alegando a ingratidão destes. O senhor tinha esse direito amparado pela “lei da
revogação da alforria por ingratidão”xxv que obrigava o liberto a manter-se respeitoso com seu
senhor, sendo esta também uma forma deste controlar o cativo “forro condicionalmente”, o que
demonstra a legitimidade do domínio exercido sobre o negro.
É importante analisar também, a alforria condicional que “Tereza Maria de Jesus” havia
concedido a “Maria”. Uma liberdade, que de fato não existia, uma vez que a escrava “Maria” devia
“lhe prestar todos os serviços até o fim da sua vida, como escrava que era”. Segundo Funes,
nos atos magnânimos de seus senhores estavam personificados os mecanismos de
controle sobre a força de trabalho liberta. Dar liberdade ao cativo, mas mantendoo como agregado, morador, criado (...) o sentido de posse, o controle e
disciplinarização não deixam de existir. (FUNES. 2000. p.131).
Não podemos esquecer que o anúncio citado é uma descrição das representações
dominantes da senhora “Tereza Maria de Jesus”, a respeito da alforria da escrava “Maria”. Seu
discurso torna-se uma estratégia usada para alcançar um objetivo que é a revogação da liberdade.
Para isto, ela usa de meios de “convencimento” ao público de que fora tratada “ingratamente” por
“Maria”. Ou seja, o fato narrado por “Tereza Maria de Jesus”, tem uma dimensão histórica, na
medida em que esta procura organizar “a realidade de forma a representar para si e para os outros
uma situação que é plausível, cujos significados são conhecidos e podem ser captados pelas pessoas
a quem ela se dirige.” (CHALHOUB, 2003. p. 135)
235
A partir da coleta de anúncios no jornal “O Araripe”, podemos perceber que as fugas dos
escravos eram uma prática cotidiana e a busca destes pelos seus senhores intensa. As redações dos
jornais eram, na maioria das vezes, locais onde vendedores e compradores, negociantes de um
modo geral, “se encontravam” para anunciarem suas mercadorias expostas à venda, ou para
gratificar àqueles que as encontrassem, no caso do escravo fugitivo. Tal fato nos convém dizer que
em situação alguma queria o senhor se apartar do seu cativo e dos demais bens. Não bastava ao
dono dos cativos terem que gastar com gratificações, ainda teriam que despender dinheiro para
pagar aos anúncios publicados nos jornais, conforme mostra a citação a seguir:
No dia 1 do corrente fugiu deste sitio Lameiro o escravo Rafael, crioulo de idade de 19 a
20 anos, preto, altura mediana, não tem barba, peitos largos, estomagudo, um tanto calado,
pernas finas, pés grandes, e um tanto zambeta, cara comprida, olhos em proporção, boca
grande, nariz nem chato, nem afilado, não tem falta de dentes na frente e os tem limados,
tem um enxaço em cima de uma mão a maneira de um lombinho, e abaixo da pá esquerda
uma cicatriz de um antrás ou pustema, vai vestido em uma camisa de algodão nova e foi
visto na cidade depois de fugido 8 dias em casa do tal Labatut, esteve um dia e uma noite,
dali desapareceu, e desconfia-se ele o ter ocultado e mandado vender. O abaixo assinado
paga com vantagem a quem lhe trouxer dito escravo, ou der notícia certa. Lameiro, 25 de
abril de 1855. José do Monte Furtado.
(“O Araripe”, nº17. Sábado, 27 de outubro de 1855)
Era comum nos jornais da época, encontrar um grande número de anúncios de escravos
foragidos. Freyre, em “O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX”, baseia-se
principalmente nos anúncios de fugas contidos nos jornais por ele analisados. Comenta que estes
apresentam fortes traços de honestidade, pois o senhor que tinha seu escravo evadido e queria
encontrá-lo, precisava dar sinais exatos destes para que fossem capturados o mais breve possível.
De acordo com Freyre, “A linguagem dos anúncios de negros fugidos, é franca, exata e às
vezes crua. Linguagem de fotografia de gabinete policial de identificação: minuciosa e até brutal
nas minúcias. Sem retoques nem panos mornos”. (FREYRE,1979. p. 26). Comenta ainda que os
escravos eram retratados com base em características relativas à origem étnica, ao sexo, à idade, à
forma do corpo, ao temperamento, ao modo de andar, aos vícios, ao comportamento, aos trajes e
adornos que costumavam usar, etc. Enfim, a imagem estereotipada do negro era sempre apresentada
em meio a defeitos e qualidades destes.
Embora em número insignificante, encontramos ainda no jornal, anúncios de compra de
escravos, tais como:
Severino d’Oliveira Cabral compra escravos de 10 a 20 anos de idade e os paga com
mais vantagem do que outro qualquer comprador, efetuando as compras na espécie
de moeda que exigirem: a tratar com o anunciante nesta cidade. (O Araripe, nº 36,
sábado 08 de março de 1856)
O comprador, geralmente devia estar atento “as velhacarias” sutis do vendedor, para que
este não lhe vendesse escravos doentes e defeituosos, daí ser comum em muitos casos, apalpar os
236
negros e fazê-los quase nus nos mercados, para que se pudesse melhor observá-los. Os anúncios de
compra vinham descritos pelas preferências do comprador, geralmente relacionadas ao sexo do
cativo e a idade deste. A preferência de “Severino” por escravos de 10 a 20 anos evidência o
cuidado que este tinha em adquirir escravos, uma vez que os mais novos, geralmente, eram garantia
de boa saúde e de melhor desempenho nos trabalhos, daí o interesse deste em pagar “com mais
vantagem do que qualquer outro comprador”.
Tais anúncios, comumente lacônicos, não nos permitem saber para que fins os raros
compradores os preferiam. Entretanto, não devemos esquecer que a redação do jornal era um lugar
específico para se saber maiores informações a cerca da negociação a ser consumada, o que nos
mostra que a redação do jornal não era apenas um meio de elaboração dos anúncios e notícias a
serem veiculadas neste, mas também um local de negociação e interesses comerciais.
Como percebemos, a imprensa passou a desempenhar uma função importante para a
sociedade, sendo esta instruída e informada sobre os assuntos locais e de outros lugares.
No Crato, o Jornal “O Araripe”, fazia denúncias contra pessoas que procediam a favor da
escravidão sem amparo legal, sendo este ato compreendido naquela sociedade como desonroso e
cruel. Neste jornal, encontramos mais de uma denúncia contra pessoas que assim procediam.
Inclusive devemos lembrar que o diretor do jornal em questão era um membro ativo do Partido
Liberal no Cearáxxvi.
Observamos também que os anúncios e notícias sobre os escravos foram lentamente
diminuindo, mesmo aqueles referentes às fugas. Aos poucos, o processo abolicionista ganhava
espaço na imprensa do Ceará e no lugar dos noticiários de fuga, compra, venda e maus tratos em
relação ao escravo, ganhavam espaços às notícias sobre alforrias, liberdade e acusações a senhores
de praticarem maus tratos aos seus cativos.
Era a abolição no Ceará que se aproximava trazendo em seu bojo toda uma conjuntura de
ações abolicionistas advindas inclusive da elite cearense, que fundaram jornais nessa intenção e
formaram associações libertadoras. Contudo, não devemos negar diante de tais fatos, a participação
dos escravos neste processo e os reais interesses dessa elite com o movimento, uma vez que a
escravidão seria incompatível com seus desejos de “progresso e civilização” para o país, para a
província cearense.
Assim, é através desse estudo que pretendemos analisar as representações do negro cativo
na imprensa que ali se desenvolveu, o que nos dá subsídios para também analisarmos a composição
da nossa sociedade atual, uma vez que aquela realidade vivida pelos negros escravizados, deixou
marcas na sociedade que se perpetuaram nas gerações atuais.xxvii
237
HISTÓRIA DA SEXUALIDADE NO EGITO ANTIGO
Josiane Gomes da Silva (UFRN)
Dentre todos os mitos que tratavam do tema da origem do mundo, o que mais explicita o
caráter da sexualidade no meio da sociedade dos deuses, é a Enéade de Heliópolis, a qual já foi
apresentada neste. Assim inicia o mito: ( Atum é o que veio à existência, o que se masturbou em
Heliópolis. O que empunhou o seu membro pra criar o prazer.)213.
A partir deste oceano primitivo, vai-se originar o deus Atum, que sozinho
procria a si mesmo e outras divindades, saindo do estado inerte, era ainda sujeito
subjetivo, passando para o estado cinético, vivo; tornando-se sujeito objeto do
universo. 214
Após ter conquistado o espírito da vida, Atum pensou e em seu coração as formas dos seres,
que logo em seguida seriam criados. Estando sozinho envolvido ao oceano primordial, Atum teve
em sua ação o ato da procriação. Esta divindade solitária colocaria a sua mão em seu falo, para em
seguida praticar o ato da masturbação. Ele expeliu o próprio sêmen e depois o engoliu e colocou-o
para fora, ou cuspindo ou escarrando na forma dos deuses Shu e Tefnut divindades do ar e da
umidade respectivamente. 215
O papiro de Bremner-Rhind assim descreve a criação:
Concebi em meu coração, criei diversas formas de seres divinos, como as
formas de meus filhos e dos filhos dos meus filhos... 216; Criei o desejo com minha
mão; copulei com minha mão, expeli com minha boca. Cuspi Shu e cuspi Tefnut...
217
; Depois de me tornar um Neter (deus) havia (então) três neteru(deuses) além de
mim... 218.
Prosseguindo o estudo desse mito oriundo de Heliópolis, após terem nascido de Atum, os
neteru(deuses) Shu e Tefnut ( o primeiro era o deus ar e o segundo umidade), entram em ação de
cópula.
213
“Textos das pirâmides”.
GANDALLA, Moustafa. A cosmologia egípcia. São Paulo: Madras, 2003. p. 35-36.
215
ARAÚJO, Luís M. Estudos sobre o erotismo do Egito Antigo. 2 ed. Lisboa: Colebri, 2000. p. 36.
216
Papiro de Bremner-Rhind.
217
Ibidem.
218
Ibidem.
214
238
Cresci em suas pernas, vim a existir em seus braços, criei o espaço em seu corpo.
219
e Não
fui feito em um corpo, nem amalgamado em um ovo, nem concebido em um ventre, meu pai Atum
escarrou-me num escarro de sua boca. 220.
Esta terceira geração de pares divinos, nesta etapa do mito, que acontecerá no plano terreno,
serão os deuses de organização do plano divino. É o quarteto de deuses mais singulares em todo o
Egito Antigo. Osíris, ou (Ausar); assim denominado pelos Antigos egípcios, sua irmã e esposa Ísis,
ou (Auset), os outros dois irmãos que também formam o casal são; Seth, ou (Se)t; sua esposa e irmã
Néftis, ou (Nebt-Het); sendo esta ultima de função mais apagada se comparada a sua irmã Ísis. 221
Outro mito que se semelha ao mundo das vicissitudes do mundo terreno e o mito que narra
as contendas entre os deuses Seth e o filho de Isis e Osíris, Horus. Ele vai vingar a morte de seu pai,
travando vários embate com Seth, para legitimar seu direito ao trono do Egito,
pois ambos
alegavam serem os legítimos herdeiros ao trono Egito, já que Osíris estaria reinado no submundo,
tornando-se o deus dos mortos.
Após varias disputas pelo trono sagrado do Egito. Seth convida Horus a ir a sua casa para
fazerem as pazes:
Set a Hórus - Vem, passemos um dia feliz em minha casa. 222.
Hórus a Set – Eu irei, eu irei. 223
Ao anoitecer prepara-se uma cama para eles e deitam-se juntos. De noite Seth fica com o
pênis ereto e penetra-o nas coxas de Hórus. Então Hórus põe suas mãos entre as coxas e colhe o
esperma de Seth. Em seguida Hórus vai contar ( o sucedido) à sua mãe Ísis. 224.
Neste trecho do papiro de Chester Beatt, nos esclarece como tal situação era percebida na
sociedade egípcia da Antiguidade. Isso não quer afirmar que o homoerotismo, era encarado como
algo comum, mas também não se pode interpretar como um ato totalmente repugnante, dependendo
apenas do contexto do qual o ato sexual ocorrera. Os valores que existiam no Egito Antigo eram de
uma enorme complexidade, para melhor captar estes valores e preciso lançar mãos dos hábitos de
nossa historicidade e tentar compreender a historicidade do período que aqui e o Egito Antigo.
Agora nessa fase da mitologia “Das contendas de Horus e Set”, a mãe de Hórus sabendo do
significado daquele ato, num eventual julgamento em um tribunal, tratou logo de fazer algo que
219
Capítulos 75 -80, dos textos dos sarcófagos.
Ibidem.
221
GANDALLA, Moustafa. A cosmologia egípcia. São Paulo: Madras, 2003. p. 23.
222
Papiro Chester Beatt I, época do reinado de Ramessés V.
223
Ibidem.
224
Ibidem.
220
239
invertesse aquela situação. Ísis foi logo ao servo de Set e perguntou-lhe qual era o legume que Set
se alimentava, o hortelão disse que era a alface:
Então Ísis esparge o esperma de Hórus nele. (depois) Set chega, conforme sua rotina diária, e
de habito como alface. Por isso ele fica grávido com o esperma de Hórus. Então Set procura Hórus.
225
.
Continuando o relato do papiro, que podemos compreender como era percebido o tratamento
para com as ações de homoerotismo entre os deuses do Egito Antigo:
( Set a “Hórus) – vamos, apressemos-nos para que eu possa discutir contigo no tribunal!, Hórus a Set – Eu irei,
eu irei.
226
.
Chegando ao tribunal, o mito contido no papiro de Chester Beatt, transmite a importância de
no momento de um ato sexual entre dos seres de mesmo sexo, aquele que fez o papel do macho não
seria tratado com repugnância. Mas para aquele que fez o papel de fêmea no coito homoerótico, no
caso Egito Antigo era o que recebia o falo e o sêmen. Ficando assim grávido como uma fêmea.
E justamente sabendo disto que Set o utiliza contra Hórus. Porém como Ísis havia retirado o
sêmen de Set em Hórus e feito com que Set engolisse os fluidos eróticos de Hórus. Set alegaria em
vão que havia agido como macho para com Hórus.
Na continuação desta narrativa, o deus Tot e chamado para verificar de onde respondem os
semens de Hórus e de Set. O deste último responde das águas e enquanto do primeiro fala de dentro
da barriga de Set. Este pelo fato de ter agido tal como uma fêmea perderia a oportunidade de
comandar o Egito.
Não só os mitos nos mostram um pouco da sexualidade que havia no Egito antigo. Também
podemos ver o sexo nos poemas de amor, todos advindos no Novo Império. Esses poemas são
carregados de romantismos e erotismo:
Vai para a morada de tua irmã
E entra para sua sala de visitas
Semelhante a um jardim.
Ela oferece canto e dança, vinho e cerveja,
(então) excita seu desejo
E ganha-a para a noite.
Ela te dirá: toma-me em teus braços
225
226
Ibidem.
Ibidem.
240
E quando o dia raiar farás o mesmo de novo!227
A sexualidade do Egito faraônico também
pode ser percebida através das
iconografias como esta do Novo Império:
Este papiro de turin nos proporciona um outro olhar sobre como eram percebidos as práticas
sexuais no Egito antigo. Aqui vemos cenas de relações sexuais, imagens estas feitas nos padrões
estéticos egípcios.
Por fim, o estudo feito sobra à sexualidade no Egito antigo vem para mostrar um outro
Egito, diferentemente daquele descrito pela historiografia que o Egito antigo e uma dádiva do Nilo.
Estudar sexualidade no permite ver que o Egito não foi apenas uma civilização de túmulos e
templos, mas sim tão importante em sua historicidade como os impérios ocidentais foram em seus
tempos.
Bibliografia
ARAÙJO, Emanuel Oliveira. Escrito para eternidade. A literatura no Egito Faraônico. UNB;
2000.
ARAÙJO, Luís Manuel de. Estudos Sobre Erotismo No Antigo Egipto. Lisboa, Colibri; 1995.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003. p. 85.
TRAUNCKER, Claude. Os deuses do Egito. Brasilia: UNB, 1995. p. 14-15.
MEEKS, Dimitri; FAVARD-MEEKS, Chrstne. La vida de los dioses egipcios. Madri: Temas de
hoy.
FUNARI, Raquel dos Santos. Imagens do Egito Antigo: Um estudo de representações Históricas.
NOBLECOURT, Christiane D. A mulher no tempo dos Faraós. São Paulo: Papirus, 1994. p.140141.
Heródotos. História. 2 ed. Brasília UNB, 1988.
227
Poemas escritas pelo escriba da necrópole Nakht-Sebek.
241
CULTURALISMO, HISTÓRIA E NORMATIVISMO: A ARTE DE FAZER
DIREITO NA MESOPOTÂMIA E NO EGITO ANTIGO.
Lucas Cavalcante de Lima228 - UFRN
Rogério de Araújo Lima229 - UFRN
A relação entre o Direito e a História tem sido de há muito explorada, sem a
preocupação, por nós considerada acertada, de estabelecer qualquer critério de subordinação ou
dependência entre os fenômenos histórico e jurídico, mas sim uma relação de interdependência sob
o enfoque normativo. Isso não significa que o tema seja pacífico e desprovido de divergências
doutrinárias, sobretudo no que se refere ao mundo do Direito. Pretendemos, neste artigo, discutir a
Teoria do Culturalismo Jurídico a partir do estudo concreto do direito vigente na Mesopotâmia e no
Egito Antigo, por se entender que ela permite compreender uma forma de pensar o Direito que mais
se aproxima da História, sem prejuízo de outras que venham estabelecer tal relação.
Com vistas à compreensão do Direito, muitas teorias ocuparam e ocupam lugar de destaque,
dentre as quais uma que, ao nosso entender, se sobreleva por buscar na História a explicação para o
processo de surgimento e desenvolvimento dos aspectos normativos que imprimem uma conduta
aos indivíduos em sociedade. Tal teoria se denomina Culturalismo Jurídico.
A referida teoria localiza o direito no mundo da cultura, encarando o Direito como a
resultante de um processo criativo dos indivíduos, tendente a adicionar às coisas, materiais ou
imateriais, um significado com vistas a aperfeiçoá-las (homo additus naturae).
Dentre os defensores do Culturalismo Jurídico no Brasil, destaca-se Miguel Reale, para
quem o direito resulta da conjugação dos fatos e dos valores, que podem ou não alçar um
acontecimento do cotidiano ao status de “conduta a ser observada” (por meio de uma norma).
Das características apontadas resumidamente acima se pode chegar a pelo menos duas
conclusões que reforçam a teoria do Culturalismo Jurídico, aqui analisada sob a óptica da
interdependência entre a História e o Direito, que são: a) que a conduta humana se desenvolve em
um contexto bilateral ou multilateral, historicamente estabelecidos; e b) que os fatos se dão no seio
da sociedade e são valorados, em regra, conforme o momento histórico vivido por ela.
Nesse sentido, é acertada a síntese conclusiva de Miguel Reale (apud DINIZ: 2005, p.143),
ao enunciar que:
[...] A ciência do direito é uma ciência histórico-cultural e compreensivonormativa, por ter por objeto a experiência social na medida, enquanto esta
228
229
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó/RN.
Docente do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó/RN.
242
normativamente se desenvolve em função de fatos e valores, para a
realização ordenada da convivência humana.
Há de se perceber que o autor dá primazia ao caráter histórico, pois a cultura, ela mesma, é
forjada no devenir histórico, e o direito, como objeto cultural, nasce nesse contexto, donde se pode
afirmar que o mesmo se fez presente tantas vezes e em quaisquer sociedades que o estabelecera,
quer seja para determinar condutas, que seja para solucionar conflitos. Na Mesopotâmia e no Egito
Antigo não haveria de ser diferente, mas com suas características próprias e seus institutos
específicos, o que se passa a verificar doravante.
A análise do fenômeno jurídico nas referidas civilizações serve-nos de constatação ao
mostrar o Direito enquanto uma produção humana. Ele constitui-se, portanto, como um artefato
produzido para atender a necessidades sociais, posto fazer parte do mundo da cultura. Este,
cognominado também como o “Mundo das Finalidades” (POLETTI: 1996, p.80), diz respeito à
produção acrescida à natureza do indivíduo e, concomitante, da coletividade. Desta feita, a cultura
pode ser conceituada, nas palavras de Maria Helena Diniz, como o “complexo de adaptações e
ajustamentos feitos pelo homem, para que as coisas sirvam aos fins humanos” (1999, p.132). Por
tudo isso, se pretendemos conhecer o Direito de uma sociedade necessário é entender sua cultura.
No Egito Antigo a manifestação do dever ser estava entranhavelmente ligado à moral, à
religião e à magia. Os princípios morais orientavam tanto o elaborador quanto o aplicador da
norma. Esta era legitimada pela crença de que amanava da divindade, e a conduta contrária à
prevista era considerada não só anti-jurídica mas também herética, pois assim descumpria-se a
vontade dos deuses. A arte de fazer direito é mágica assim como sua interpretação e aplicação.
Ritualística tal qual a cultura jurídica mesopotâmica, o Direito entre os egípcios seguia sob o
símbolo de Maet. Esta, conforme explica Antônio Brancaglion Junior, é uma “ordem moral e
cósmica que abrangia as noções de ‘verdade’, ‘justiça’, ‘equilíbrio’ e ‘ordem’, personificada como
uma deusa, filha do deus-sol [Rá ou Ré]” (2004, p.59). Este princípio divino de ordem protegia a
sociedade do caos e da destruição. Não é àtoa que o controle onipresente de Maet (ou Maat) era tido
como a razão para o Egito ter-se constituído como o mais duradouro império da antiguidade
oriental, quando por volta de 3000 a.C. constituiu-se como Estado soberano e unificado, sob
méritos de Menés. Esta simbologia, também compreendida como um princípio jurídico e filosófico
atuava não só entre os vivos como também na vida post mortem. Ela “é protagonista da maior
importância no julgamento dos mortos, no Tribunal de Osíris; [era] colocada na balança para
equilibrar o coração do julgado” [CUNHA: (s.d.), p.13]. Na Mesopotâmia o campo jurídico
restringia-se à experiência em vida, até porque os mesopotâmicos não acreditavam na vida pós-
243
morte. No Egito a experiência pós-túmulo também pretendia o controle da ordem, pois na cultura
egípcia acreditava-se que o mundo dos vivos e o mundo dos mortos mantinham estreita relação. Se
porventura a desordem reinasse numa dessas dispensações, a outra parte poderia ser afetada. Daí
porque Maat está tanto num quanto noutro mundo para manter o equilíbrio na inter-relação entre
ambos.
A normatividade pré-jurídica da Civilização do Nilo além de ser indissociável do mito e da
religião, também se mostra sintonizada como o poder. A cultura jurídica desse povo favorecia o
domínio do Estado sobre o indivíduo e, por conseqüência, do social, pois como esclareceu Weber a
sociedade é feita de indivíduos portadores da unidade compreensível da ação que mantém
referência à conduta de outrem. A sacralidade do Direito egípcio garantiu aos faraós longos anos de
reinado com raros períodos de turbulência. A organização político-religiosa do Império consagrava
o rei como uma espécie de divindade. Ele era a principal fonte do Direito e da religião. Desobedecêlo era conduzir-se contra os deuses e ignorar a ordem, a justiça e a verdade (Maet). A promulgação
de uma sentença não carecia de apelação haja vista ter-se definido-a em cooperação com os deuses,
onipresentes e oniscientes. Eles vêem e sabem de tudo, logo, suas decisões são verdadeiras e justas.
Mas esta constatação não pode ocultar o fato de que possivelmente em algumas situações uma
decisão jurídica tenha sido questionada e o réu tenha solicitado o veredicto do próprio Faraó. O
poder divino dessa figura podia ser considerado a “Constituição” do Egito Antigo. Daí porque para
uma segurança jurídica ele deveria ser evocado.
O Vizir era o principal encarregado de aplicar a lei. Esse era o título dado ao bemaventurado que era concomitante sacerdote da deusa Maat e funcionário real, incumbido de ser juiz
na solução das lides. Como esclareceu Cristiano Pinto “a jurisdição era titularizada pelo Faraó que
poderia a seu critério, delegar funcionários especializados para a tarefa de decidir questões
concretas” (2002, p.52). Como não havia um código sistematizado de leis escritas, tal qual o Código
de Hamurábi, o guia para orientar o aplicador do direito consistia basicamente nas prescrições do rei
para o plano do sollen (dever ser) e nas instruções para o campo do sein (ser). Muito mais que isso,
o corpo das decisões dos especialistas (chamados não só a aplicar a norma mas também a pensar
sobre o próprio fenômeno jurídico) contava no momento do julgamento e constituída conteúdo de
novas normas. Ou seja, dado um fato novo seria submetido a uma valoração subjetiva, no que
resultava em proposições normativas objetivadas. È a dialética da polaridade do tridimensionalismo
de Miguel Reale: Fato, Valor e Norma numa relação dinâmica. Além de tudo isso, também se
desenvolveu no Egito, como produto cultural, um sistema de leis baseadas no costume. Desde o
período pré-dinástico (5500-3050 a.C) o direito costumeiro teve sua importância a ponto de
posteriormente se impor até mesmo ao Faraó. “No Egito, então, havia um direito consuetudinário (e
permanência do “ontem eterno”, como diria Weber) e corpos de leis , orientados de acordo com a
244
determinação do soberano” (NASCIMENTO: 2002, p.21). O Rei era o juiz supremo e podia julgar
qualquer questão. Mas também havia “juízes singulares, que julgavam as causas menores, e um
tribunal composto de 31 membros, que julgava as causas mais importantes” (Idem, p.122). O povo
egípcio concebeu essa forma jurídica que foi o retrato de sua época, espaço e cultura. Não só isso
mas a própria forma daquela civilização enxergar o mundo circundante. “O direito será sempre uma
manifestação cultural. Inserido invariavelmente no mundo da cultura, e Le implica, nessa vocação
para a ordem, a cosmisação do mundo” (POLETTI: 1996, p.85)
Na Mesopotâmia encontraremos um direito menos fragmentário e uma ideologia normativa
mais consolidada. Naquela região banhada pelos rios Tigres e Eufrates desenvolveu-se não uma
civilização , mas civilizações das quais as mais importantes foram os sumérios e acádios (28002000 a.C), paleobabilônio (amoritas; 2000-1600 a.C), assírios (1300-612 a.C) e neobabilônios
(caldeus; 612-539 a.C). Caracterizada por um território freqüentemente invadido e de uma
instabilidade política, Ciro, em 539 antes de nossa era, comandou os persas na invasão e domínio
definitivo sobre a região.
No que tange à cultura (na qual está inserido o direito) sua essência não foi destruída pelos
invasores, tendo estes na verdade incorporado-as às suas próprias expressões culturais. O sistema
jurídico mesopotâmico, por exemplo, apresentou uma influência para muito além de sua época e
espaço. Para se ter idéia, muitas das questões normativizadas no nosso atual Código Penal
estabelecem uma equivalência comparativa com o Código de Hamurábi: o papel da testemunha; o
furto; a difamação; o estrupo; a vingança etc. Este código jurídico antigo, promulgado
aproximadamente em 1750 a.C, compõe-se de três partes: introdução, texto propriamente dito e
conclusão. Há nos 282 artigos determinações respeitantes aos delitos, à família, à propriedade, à
herança, às obrigações, muitos artigos de direito comunitário e outros relativos à escravatura. Essas
leis defendiam, especialmente, os direitos e interesses de cúpula da sociedade babilônica. Esta, à
época de Hamurábi, estava dividida em três classes sociais: Awilum (homens livres, cidadãos);
Muskênum (funcionários públicos); Wardum (escravos, prisioneiros de guerra). No topo da
pirâmide social estava o Imperador e sua família, seguidos pelos nobres, sacerdotes, militares e
comerciantes. Artesãos, camponeses e escravos compunham as camadas não privilegiadas. O
direito, nesse contexto, objetivava manter a ordem estabelecida e garantir a permanência da
estrutura sócio-política das Cidades-Estado. Haja vista a divisão da sociedade em classes e o desejo
de poder dos líderes políticos, não seria difícil constatar o princípio da desigualdade perante a lei.
Mas não podemos esquecer que este conjunto de leis sistematizadas apresentou algumas tentativas
primeiras de garantias dos direitos humanos. Vale aqui a anotação de Walter Viera do Nascimento
de que no sistema babilônico a posição da mulher na sociedade já lhe concedia direitos equiparados
aos do homem (2002, p.23). “O legislador babilônico consolidou a tradição jurídica, harmonizou os
245
costumes e estendeu o direito e a lei a todos os súditos230”. Outros estudiosos preferem afirmar que
o referido rei foi não o legislador mas o compilador. “Tudo indica, na verdade, que se trata de uma
grande compilação de normas anteriormente dispostas em outros documentos e de decisões tomadas
em casos concretos, que serviram de base para a elaboração dos artigos” (PINTO: 2002, p.48). De
uma ou de outra forma o certo é que esse sistema jurídico serviu de orientação aos aplicadores do
direito e manteve por um considerável período a coesão social. Como destacou Jayme de Altavila, o
rei jurista deixou em seu código muita punição, muita justeza e muito rigor. Dada a inexistência da
gradação da pena, crimes das mais diversas espécies (uns menos outros mais graves) eram punidos
com a pena de morte, e a lei de talião (“olho por olho e dente por dente”) era o princípio básico que
regia a aplicação das leis. Mas em tudo a finalidade é fazer justiça, ou nas palavras do próprio
Hamurábi registradas no preâmbulo de seu código, “trazer justiça à Terra” (Apud
GAVAZZONI:2005, p.34). Se no Egito a deusa Maat simbolizava a justiça e a verdade, na
Mesopotâmia esse papel era desempenhado por UTU (Shamasch em acádio)231, o deus do Sol e da
justiça.O conjunto de leis do rei Hamurábi não foi o mais antigo já descoberto. “Ao longo dos três
milênios de história, os mesopotâmicos criaram os mais antigos códigos de leis conhecidos: UrNammu (2100 a.C); Lipit-Istar (1930 a.C); Leis de Esnunna (1800 a.C); e o Código de Hamurábi
(1750 a.C), sendo os dois primeiros escritos em sumério e os dois últimos em acádio” [POZZER:
(s.d.), p.12].
A arte de fazer direito na Mesopotâmia também se caracterizou pelos aspectos simbólicos da
cultura jurídica da região. Assim como no Egito, a sacralização da justiça mesopotâmica ou ainda a
expressão jurídica do sagrado permitiu a interconexão entre o Universo Jurídico (da esfera real) e o
Universo Sobrenatural (da esfera mágica), representadas por suas práticas marcadas por essa íntima
ligação. Marcelo Rede232 apresenta como os principais elementos simbólicos: o juramento em nome
dos deuses, entendidos como a fonte do direito; e o ordálio, um ritual em que a pessoa mergulha no
rio233 para ser julgada: se sobrevivesse, era inocente; se morresse afogada, era culpada e recebia o
castigo merecido (2006, p.2 e 3). Por vezes a solução das lides era remetida ao julgamento divino.
Mas, a Assembléia dos magistrados (UNKIN em sumério e puhrum em acádio) tinha competência
para julgar os casos civis, penais, políticos ou administrativos. Dessa assembléia também
participavam membro do Conselho de Anciãos da cidade e cidadãos comuns. “Os juízes eram
homens letrados, que teriam freqüentado a escola dos escribas.” [POZZER: (s.d.), p.3]. Eles eram
230
Disponível em Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. USP.
Segundo convenção internacional, neste texto, as palavras em sumério são grafadas em letras maiúsculas, e as em
acádio são grafadas em itálico.
232
Doutor em História-Antiga (Assiriologia) pela Université de Paris.
233
Conforme anotou Katia Pozzer [(s.d.), p. 10] “segundoa crença mesopotâmica, os rios eram tidos como divindades
capazes de expiar e julga os pecados dos homens.
231
246
chamados de DIKU e não eram remunerados, recebiam apenas presentes (sulmânu) das partes
requerentes.
Muitas outras considerações poderiam ser feitas, mas as já apresentadas são suficientes para
compreendermos que as formas do direito se apresentar são delineadas no processo histórico. Para
entendê-las é preciso conhecer a cultura dos povos numa relação espaço-temporal. Por isso, a
Teoria do Culturalismo Jurídico permite-nos vislumbrar o Direito em sua inter-relação necessária
com a História.
REFERÊNCIAS:
ALTAVILA, Jayme de. Origem do Direito dos Povos. 9 ed. – São Paulo: Ícone, 2001.
CUNHA, Paulo Ferreira. Sob o signo de Maet: considerações sobre o direito no antigo
Egipto. (contexto, mito e sentido de um momento político-sacro-normativo). [s.l.;s.n.], [s.d.].
Disponível em: < http://www.ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros >. Acesso em: 10 ago. 2008.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 11 ed. atual. – São
Paulo: Saraiva, 1999.
GAVAZZONI, Aluísio. História do Direito: dos sumérios até a nossa era. 2 ed. atual. e
aum. – Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2005.
JUNIOR, Antônio Brancaglion. Manual de Arte e Arqueologia do Egito Antigo II. Rio de
Janeiro: Sociedade dos Amigos Museu Nacional, 2004.
NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. 14 ed., ver. e aum. – Rio
de Janeiro: Ed. Forense, 2002.
NORTE, Janaína Braga. O fenômeno da positivização do culturalismo no ordenamento
jurídico brasileiro. [s.l.;s.n.], [s.d.]. Disponível em: < http://www.priberam.pt/dIDLPO >. Acesso
em: 08 abr. 2008.
POZZER, Katia Maria Paim. O exercício do Direito na Mesopotâmia Antiga. [s.l.:s.n.],
[s.d.]. Disponível em: < http://www.finom.edu.br/direito/db/downloads >. Acesso em: 05 ago. 2008.
REDE, Marcelo. Aspectos simbólicos da cultura jurídica na antiga Mesopotâmia.
[s.l.:s.n], 2006. Disponível em: < http://www.locus.ufjf.br/c.php_artigo >. Acesso em: 05 ago. 2008.
WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. ver. e
ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
247
IDENTIDADE, ESPAÇO E CIDADANIA NA ESPARTA DE LEÔNIDAS
Autor: Cleyton Tavares da Silveira Silva – Bolsista PROPESQ/ UFRN.
Não existe Grego sem Bárbaro. Esta é uma definição simples proposta por François Hartog, apartir
de Tucídides. Pois a identidade entre os gregos se da não somente por suas características em
comum, mas pela relação de confronto entre eles e os bárbaros, mas a própria definição entre uns e
outros não é, de maneira inicial, tão clara. Mesmo os atenienses, não são gregos de origem, mas
Pelasgos, um povo bárbaro que através de uma Metábole, tornam-se gregos, pois modificação sua
língua e seus costumes. A grecidade é pensada inicialmente através língua, pois o termo Barbaroi
refere-se aqueles que não falam nem entendem o grego. Os únicos gregos por excelência seriam os
dóricos.
A chegada dos Dórios se dá na aurora do período Arcaico, um período bastante obscuro, devido à
insipiência de fontes. A pouca oferta de fontes acerca da época nos força a discutir o tema sob
circunstâncias hipotéticas. Partindo desta idéia, os Dórios ocuparam a região ao sudeste do
Peloponeso, o vale do rio Eurotas, na antes Esparta micênica. Essa região já seria habitada por
populações de origem aquéia, que através de conquista dórica foram reduzidos à servidão, tema que
discutiremos no momento propício.
Quanto aos aspectos político-administrativos somente nos seria possível discutir a gênese do tema
apartir das reformas regidas por Licurgo. Através da historiografia o que se pode afirmar, é que
Licurgo teria nascido em uma das famílias reais de Esparta – em Esparta vigorava o regime da
diarquia, dois reis – mas não fora rei, sendo tutor de seu sobrinho, o futuro rei, Carilau
(PLUTARCO, A vida de Licurgo, III). Hostilizado por alguns cidadãos, teria fugido e durante a
fuga visitara diversas regiões do Mediterrâneo, inclusive Creta, regiões da África e por fim a Índia,
onde estivera com os Brâmanes. Após esta longa viagem, Licurgo voltara a Esparta e percebendo a
desordem na qual estava a cidade foi ao oráculo de Delfos, onde teria sido recebido “não como um
homem e sim como alguém da raça dos deuses” (LÓPEZ MELERO, 1989, 53) . Lá Licurgo teria
recebido a Rhetra, conjunto de leis que regiam o regime espartano.
Esta adoção de leis demonstra a obtenção de noções de Dike, (justiça) e Nomos, (lei), o que está na
base para a legalização da igualdade entre os cidadãos, que em Esparta se conheciam por Homoioi,
iguais. Contudo, as leis aparecem ainda com origem religiosa, desta forma legitimadas por uma
ordenação divina. Com o tempo a origem divina é substituída pela salva-guarda das instituições
políticas. Tais modificações confluem para a chamada Revolução Hoplítica (MOSSÉ, 1989), evento
que retira da aristocracia o direito exclusivo à guerra, tornando-a acessível aos pequenos
proprietários, os quais já podiam adquirir a Panóplia, a armadura.
248
A falange, nome dado a um pelotão de Hoplítas, exemplifica o modelo igualitário adotado em
Esparta, assim como em outras cidades. Uma massa totalmente dependente entre si, cerrada em sua
posição cada guerreiro levava consigo o escudo, Hóplon, utilizado não somente para a defesa, mas
também como arma de choque, utilizada para empurrar o adversário, e a lança, menor que a
Arcaica, mais leve, utilizada tanto para fustigar o adversário, como para um lançamento de curta
distância. Ou seja, uma interdependência mútua, já que cada guerreiro guarnecia seu companheiro
da esquerda, e guarnecido pela da direita, como em um regime onde até mesmo as refeições se
faziam em união com os de mesma classe. Esta forma interdependente de combate exemplifica a
nova forma de vida obtida pelas póleis gregas no início da época Clássica, uma “Homologia de
Estrutura” (DÉTIENNE, 1968). Tais reformas segundo Plutarco foram responsáveis por
transformar a então aldeia de Esparta, em uma das cidades mais poderosas do Mundo Antigo, assim
como acredita Xenofonte no trecho por nós já citado.
Voltando a Licurgo, ele teria redividido a terra em 9.000 unidades, repartidas igualmente para cada
cidadão, tais lotes seriam da terra próxima ao Eurotas, as mais férteis, e 30.000 para os moradores
das redondezas, os Periekoi, da terra de menor qualidade. Mesmo Plutarco admite a dificuldade de
crédito nesta afirmação (PLUTARCO, A vida de Licurgo, XII.), uma vez que segundo ele, teria
Licurgo repartido apenas metade dos lotes, a outra fora adotado pelos reis que governaram
posteriormente ao tempo de Licurgo.
A propriedade da terra é um dos pontos mais complexos de investigação nas instituições políticas
espartanas, por suas características bastante singulares. Suas origens retomam desde a origem
dórica. O lote de terra chamava-se kleros, essa porção não tinha possessão definida, ou seja não
havia um proprietário, tornava-se portanto um trecho de posse estatal sob a guarda de um cidadão,
ou mesmo de vários, no caso de uma família. O lote, portanto, poderia ser repartido entre os irmãos,
que podendo inclusive partilhar uma mesma esposa, a poliandria (OLIVA, 1989, 38). Não há
clareza quanto a isto, assim como não há certeza quanto a inalienabilidade da terra. Ou seja, as
terras não poderiam de ser vendidas, ou negociadas de quaisquer forma possíveis, pois não
pertenciam ao cidadão, muito embora estivessem sob sua salvaguarda.
A origem dos hilotas é ainda bastante incerta, é consensual que seu estatuto estava ligado diretamente a terra,
uma vez que desta forma os cidadãos espartanos estavam liberados das atividades agrícolas. Plutarco define
que assim como o lote de terra, o espartano receberia também um determinado número de hilotas, para que
trabalhassem nela (PLUTARCO, A vida de Licurgo, XII). Hilota, originalmente tem origem na raiz, heil –
capturado, aprisionado – ou mesmo em helos – terra dos capturados. Denomina, portanto um povo cuja
origem é ligada às conquistas militares dos espartanos.
Os hilotas teriam sido conquistados apartir das primeiras conquistas dóricas, inclusive na conquista
da Lacônia. As discussões percorrem três teorias básicas. A primeira, a mais aceita, define os
hilotas como sendo descendentes das populações micênicas que forneceram algum tipo de reação
249
ou resistência ao domínio dórico, como defende Teopompo (OLIVA, 1989, 46). A segunda baseiase no pensamento do alemão K. O. Müller. Defende que os hilotas já seriam escravizados, seriam,
portanto pré-gregos, dominados pelo sistema colonialista micênico. Já a terceira, pensa o hilotismo,
como uma situação adquirida durante o processo de desenvolvimento econômico espartano. Entre
estas idéias a mais plausível e aceita é a primeira, devido principalmente pela fragilidade das outras
teorias.
Apesar das insipiências apresentadas pela hipótese, o hilotismo como característica adquirida tem
uma lógica de pensamento próprio. Partindo da idéia que todo cidadão deveria compartilhar junto
aos seus, uma determinada quantidade de alimentos, produzidos em suas terras. As chamadas
Syssitias, serviam não somente como locais para realização das refeições em comum, mas também
como lócus do exercício da cidadania, pois ali ele partilhava e contribuir com as rendas de sua terra,
a qual respalda como elemento definidor da cidadania:
“[...]comessem juntos das mesmas viandas e, notadamente, das que estavam
especificadas na ordenança [...] o que conseguiu por meio daquele estatuto de
mandá-los comer juntos com tão grande sobriedade no viver ordinário. Pois não
havia meio de usar, gozar e mostrar riqueza somente”.234
O trecho de Plutarco explicita a criação de um estatuto social definidor da cidadania, assim sendo
ele não denota uma possível perda de tal situação, continua o texto denotando as benesses da
partilha em comum do alimento. Uma vez que o cidadão que por algum motivo perdesse os meios
para participar da divisão dos repastos em comum, perderia também o cesso a cidadania, podendo
ser servido aos outros como servo. Entretanto essa discussão se faz sem comprovações imponentes,
lhe torna frágil e de difícil aceitabilidade. O que se sabe com maior certeza é que os hilotas após a
segunda guerra da Messênia eram em maioria messênios, como afirma Tucídides (TUCÍDIDES,
I.CI.II).
A situação dos hilotas indica um estado entre escravidão e servidão. Seriam inicialmente escravos
estatais, que sob a guarda dos cidadãos, estariam sob suas ordens para que os utilizassem para a
produção em suas terras. Assim como as terras não se poderia vender os hilotas, daí sua intrínseca
ligação com a terra; eles poderiam morar por toda vida em um mesmo lote de terra, junto à suas
famílias, em suas casas espalhadas pelos kleroi, o que demonstra a facilidade que tinham de
aumento sua populacional. Os hilotas não representavam uma mercadoria humana, como fora
comum no comércio de escravos no mundo Antigo. Sendo assim não poderíamos chamá-los
escravos, mas sim escravizados, uma definição conceitual seria a de submissão total de um povo a
outro. Essa forma de vida é reconhecida por vários como de total subserviência, há autores que
comparam a vida dos hilotas com as dos servos medievais, chegando a utilizar essa nomenclatura,
como faz Friedrich Engels, em seu A Origem da Família (OLIVA, 1989, 42). Os hilotas viviam nas
234
PLUTARCO, A vida de Licurgo, XV e XVI.
250
terras e lá poderiam formar família e viver entre os seus, muito embora, a produção da terra era
partilhada como os cidadãos.
Vejamos que apesar de compartilhar com os hilotas aspectos da sua helenidade, os espartanos não
consideravam os como tendo o mesmo sangue, como assiná-la Heródoto, ao enumerar os povos
colonizadores do Peloponeso (HERÓDOTO, VIII.LXIII). Quando Heródoto e Tucídides destacam
as diferenças entre Gregos e Persas, destacando os seus lugares de origem, e costumes em comum,
eles enfatizam as diferenças entre o grego e o bárbaro, enquanto isso diferenciam os gregos entre si.
Traços que os diferenciam entre si, são meramente políticos e de dialetos, tanto que em 479,
quando das guerras Médicas os espartanos convocam os atenienses à luta através da to hellénikón,
ou seja, a série de costumes que os tornam gregos. Não há esta relação entre espartanos e hilotas, o
que havia era uma constante relação de tenso conflito.
Fontes
HERÓDOTO. Historias. Rio de Janeiro: Prestigio, 2001.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: Ed. UNB, 1982.
PLUTARCO. A vida de Licurgo. IN: ______. As Vidas dos Homens Ilustres. Belo Horizonte:
Editora das Américas, 1953. Trad. Aristides da Silveira Lobo
PLUTARCO. A vida de Ágis e Cleômenes. IN: ______. As Vidas dos Homens Ilustres. Belo
Horizonte: Editora das Américas, 1953. Trad. Aristides da Silveira Lobo
XENOFONTE. La república de los lacedemônios. Madrid: [s.d.], 1987. Tradución. Aurelia Ruiz
Sola.
Bibliografia
CARDOSO, Ciro Flamarion. A cidade Estado Antiga. São Paulo: Ed. Ática, 1990.
HARTOG, François. Memória de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2004.
____________. Os Antigos, o Passado e o Presente. Brasília: Editora UnB, 2003.
LÓPEZ-MELERO, Raquel. El estado espartano hasta la Epoca Clásica. Madrid: Akal Editor,
1989. Histora del Mundo Antiguo, 19.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1989.
OLIVEIRA, Maria Aparecida. Plutarco Historiador. São Paulo: Edusp, 2006.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da historiografia moderna. São Paulo: Edusp, 2004.
251
OLIVA, Pavel. Esparta y sus problemas Sociales. Madrid: Akal Editor, 1983.
252
EDUCAÇÃO E MORAL GREGA SOB A ÉTICA DE ARISTÓTELES
Thiago Gladys dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
É bem sabido das diferenças existentes nas várias polis gregas, acentuadas principalmente
nas cidades de Atenas e Esparta. Os princípios atenienses serão a base para exemplificar o
pensamento moral e educacional, já que as fontes sobre Atenas são encontradas em maior
quantidade.
Para se compreender os princípios morais da Grécia, devemos entender a arete, que está
evidenciada na obra de Jaeger: “É no conceito de Arete que se concentra o ideal de educação dessa
época”.235 A arete remete a algo superior, que o homem comum não possui, é o atributo próprio de
nobreza. Pode ser física, com a representação de um corpo viril e saudável, ou de espírito, com a
sagacidade e a penetração. A honra está ligada intimamente a arete, valor esse, que vincula a obra
de Aristóteles com o pensamento de arete para os gregos.
Toda a formação do homem grego está voltada para a construção de um espírito nobre,
como respeitar os deuses e honrar os pais:
“Também entre os gregos foi assim. Reveste, em parte, a forma de mandamentos,
como: honrar os deuses, honrar pai e mãe, respeitar os estrangeiros; consiste por outro lado
numa série de preceitos sobre a moralidade externa e em regras de prudência para a vida,
transmitidas oralmente pelos séculos afora.” 236
Segundo Jaeger, os princípios de arete são evidenciados na obra de Homero e perdura por
toda a Grécia antiga.
Mais elevado que a arete é a Paidéia. A educação para o grego não era somente do ponto de
vista intelectual, mas compreendia o todo do homem. A Paidéia simboliza a educação na Grécia:
"Todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal
como nós o designamos por Bildung ou pela palavra latina, cultura. Daí que, para traduzir o
termo Paidéia não se possa evitar o emprego de expressões modernas como civilização,
tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas coincidindo, porém, com o que os Gregos
entendiam por Paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele
conceito global. Para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los
todos de uma só vez.” 237
235
JAEGUER. 1995. P. 25.
JAEGUER. 1995. P. 23.
237
JAEGUER. 1995. P. 1.
236
253
A Paidéia é a educação para toda a vida, que compreende tudo, a educação do homem
cidadão, preparado para as questões políticas da cidade.
Aristóteles dirige uma carta ao seu filho, Nicômaco, com princípios de Ética para que se
alcance a felicidade, que é uma atividade da alma, proveniente do espírito e da prática de ações
justas.
Trata-se de uma carta com ensinamentos e normas para que o discípulo siga. A prática das
virtudes é a chave para uma vida bem educada.
Aristóteles defende a educação como forma de integração e interação social, com isso ele
propõe um código de ética que colocado em prática acabaria com os vícios que é a culpa da vida
infeliz de um homem. Na Ética a Nicômaco encontramos o justo meio termo, necessário à vida
feliz, Aristóteles fornece a seguinte relação de vício e de virtude:
“Se, então, as virtudes não são paixões nem faculdades, só podem ser disposições.
Assim mostramos o que é a virtude quanto ao seu gênero, no entanto, não basta definir a
virtude como uma disposição; cumpre-nos dizer que espécie de disposição é ela.” 238
1) a mansidão é o ponto médio entre a iracúndia e a impassibilidade;
2) a coragem é o ponto médio entre a temeridade e a covardia;
3) a verecúndia é o ponto médio entre a imprudência e a timidez;
4) a temperança é o ponto médio entre a intemperança e a insensibilidade;
5) a indignação é o ponto médio entre a inveja e o excesso oposto que não tem nome;
6) a justiça é o ponto médio entre o ganho e a perda;
7) a liberalidade é o ponto médio entre a prodigalidade e a avareza;
8) a veracidade é o ponto médio entre a pretensão e o autodesprezo;
9) a amabilidade é o ponto médio entre a hostilidade e a adulação;
10) a seriedade é o ponto médio entre a complacência e a soberba;
11) a magnanimidade é o ponto médio entre a vaidade e a estreiteza da alma;
12) a magnificência é o ponto médio entre a suntuosidade e a mesquinharia.
Aristóteles
se
diferencia do pensamento aristocrático ao afirmar uma espécie de universalização da educação, e
que qualquer um mesmo com poucos recursos pode chegar ao espírito nobre.
“De fato, a auto-suficiência e a ação não implicam excesso, e podemos praticar
ações nobres sem para isso necessitarmos ser donos da terra e do mar. Mesmo com recursos
moderados, pode-se proceder virtuosamente (aliás, isso é evidente, pois se pensa que um
238
ARISTÓTELES. 2006. P. 47.
254
cidadão pode praticar atos não menos dignos que os dos que detêm o poder; e muitas vezes
até mais), basta que tenhamos o necessário para isso, pois a vida das pessoas que agem em
conformidade com a virtude será feliz.” 239
Ao afirmar que a felicidade independe da quantidade de bens materiais, Aristóteles pensa
diferente daqueles que defendem as práticas nobres apenas pela a aristocracia, a educação para ele
traria uma mudança para a vida do educando, mas não vemos clara mudança social que diz respeito
aos bens matérias, e sim de espírito e de nobreza, ou seja, arete e Paidéia. Em Ética a Nicômaco,
Aristóteles não valoriza os bens matérias, pois o dinheiro não seria garantia para que as virtudes
sejam praticadas.
Aristóteles não concebe o ensino sem a prática. Podemos dividir a virtude em duas, que para
correspondem as duas partes da alma, a moral e a intelectual. “As virtudes intelectuais procedem do
ensino; as virtudes morais, do hábito.” 240
Tornamos-nos justos, executando atos justos, ou seja, para que as virtudes existentes em nós
sejam postas em prática, é preciso primeiro que tomemos conhecimento delas. É isso que
Aristóteles escreve na Ética a Nicômaco. Do ponto de vista educacional, devemos ser obrigados a
adquirir bons costumes, pois como pensa, encontraremos prazer em executar boas ações, essas se
tornarão disposições de caráter.
Apesar de Aristóteles pensar no que chamamos de conceito universal de educação, ela se
restringia ao cidadão, pois dentro desse próprio conceito, é necessário que se tenha tempo para por
em pratica as virtudes.
“A justiça de um amo para com o escravo e a de um pai para com o filho não são
iguais a justiça dos cidadãos, embora se assemelhem a ela, pois não pode haver justiça no
sentido incondicional as coisas que nos pertencem.” 241
A Reciprocidade tem que ser algo presente na prática das virtudes, portanto um escravo ou
um filho dependente não estão no mesmo patamar do cidadão, o fato de pertencerem a alguém os
torna parte deles. Não há como praticar as virtudes sozinho pois assim não existiria sociabilidade.
“Deve-se, porém, tomar cuidado para não fazer do meio termo uma simples
mediocridade: toda virtude é uma excelência (o termo grego, arete, deveria ser assim
traduzido, ao invés de traduzido por virtude, palavra de origem latina, sobrecarregada com
conotações cristãs), uma linha demarcatória entre os dois precipícios do excesso e da falta,
uma perfeição.” 242
239
ARISTÓTELES. 2006. P. 233.
RUSSEL. 1967. P.201.
241
ARISTOTELES. 2006. P. 117.
242
STIRN. 2006. P. 53.
240
255
Quanto à virtude, podemos entender como a própria arete, ou como Stirn afirma, excelência.
Essa está indissociável da Paidéia, que é o conceito do cidadão bem educado, e preparado para a
vida política. Esses significados permanecem ainda distantes do nosso entendimento, mas para os
gregos eram a mais pura perfeição.
Ética a Nicômaco, é uma obra que trás a importância da educação moral para na composição
do cidadão, e também uma proposta para essa educação, sem que haja divisão entre os ramos do
conhecimento. Tudo é importante na formação do todo, e prepara o homem para a plenitude de
espírito.
A Educação é o caminho para a ética, e com a ética se faz a educação, sem essa os homens
serão injustos e cheios de vícios.
BIBLIOGRAFIA:
ARISTOTELES, Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006.
JAEGUER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
RUSSEL, Bertand. História da Filosofia Ocidental: Livro Primeiro. Tradução Breno Silveira.
3.ed. São Paulo: companhia Editora Nacional, 1967.
STRIN, François. Compreender Aristóteles. Tradução Ephraim Alves. Rio de Janeiro: vozes.
2006. 100p.
256
DIAGNOSTICANDO O ENSINO DE HISTÓRIA NA ESCOLA ESTADUAL CENTRO
EDUCACIONAL FELINTO ELÍSIO, DE JARDIM DO SERIDÓ/RN.
Hangleibe da Silva Barbosa - UFRN
Itamara da costa Dantas - UFRN
INTRODUÇÃO
Vários trabalhos têm sido apresentados por estagiários sob a caracterização de estabelecimentos
educacionais e o ensino que por eles são oferecidos. Partindo deste ponto e sobre as orientações dos
professores Paula Sônia de Brito e João Quintino de Medeiros Filho, nós, estagiários do Curso de
História, recebemos a importante tarefa de escolher um estabelecimento público de ensino, para que fosse
realizada a nossa primeira experiência como estagiários. O nosso objetivo estava centrado na
caracterização do estabelecimento escolar escolhido e no diagnóstico do ensino de História por ele
oferecido.
CARACTERIZAÇÃO DO COLÉGIO
O estabelecimento de ensino que escolhemos foi o “Centro Educacional Felinto Elísio”, (CEFE)
localizado na Avenida: Dr. Otávio Lamartine, 470 fone: (84) 3472-5793 localizada em Jardim do Seridó.
O decreto de criação do estabelecimento é a Lei nº 6632 de 26 de março de 1975, a autorização 316/76 de
30 de dezembro de 1976 e o reconhecimento 390/80 de 20 de maio de 1980. Desde sua criação até os dias
atuais, passaram por sua direção os diretores: Eurico Guilherme de Amorim Caldas (1975-1977), Maria
das Graças Cirne de Azevedo (1977-1988), Francisca Dulcinéa Medeiros de Azevedo (1988-1992),
Tarcísia Nóbrega de Azevedo (1993-1994), Josilene Medeiros Azevedo da Costa (1995-1999), Joaquim
Alberto da Silva (1999-2003), José Segundo de Medeiros (2003), Joaquim Alberto da Silva (2003-2004),
Ana Cristina Medeiros de Azevedo Silva (2004-2005) e Joaquim Alberto da Silva (2005 até os dias
atuais). O colégio funciona em prédio próprio e é propriedade da Secretaria Estadual da Educação, da
Cultura e dos Desportos. Possui um terreno de 5400m², uma área coberta de 2272m² e com área
construída de 5400m². É abastecido com a rede pública de água, energia e esgotos. As salas de aula e
outras dependências existentes na escola são: 01 diretoria, 01 secretaria, 01 sala de supervisão, 01 sala de
professores, 06 banheiros para aluno e 02 adaptados para deficientes físicos, 02 banheiros para
professores, 01 cozinha, 01 refeitório, 12 salas de aula, 01 sala para tele-sala, 01 laboratório de ciências,
01 laboratório de informática, 01 biblioteca, 01 depósito de alimentos/despensa, 01 quadra poliesportiva,
01 depósito de material de limpeza e 03 almoxarifados. Todas essas dependências estão adaptadas aos
portadores de necessidades especiais, possuindo rampas de acesso entre os blocos. Com relação aos
257
equipamentos de apoio didático, o colégio está um pouco precário, pois apenas possui 01 TV para vídeo,
01 retroprojetor, 01 caixa de som com gravador e 01 gravador/CD, todos em bom estado de conservação.
A escola, que passou por uma reforma em 2006, está com as salas de aula bem iluminadas e ventiladas, e
o espaço é adequado para o número de alunos. Em função do forro, a acústica é boa em algumas salas e
outras não. O mobiliário das salas de aula está ruim, visto que boa parte está sendo danificado pelos
próprios alunos. Dos serviços disponíveis pela escola só existe 01 sala de vídeo, 01 sala de computação e
01 biblioteca. A sala de vídeo, pelo fato de ser pequena não atende à todas as necessidades da escola,
porém, possui um ótimo acervo que contribui para o desenvolvimento de atividades em sala de aula. A
sala de computação, que conta com dez microcomputadores, ainda não está sendo utilizada pelo fato de
que a impressa encarregada da instalação ainda não ter vindo. A biblioteca é bem ampla e bem localizada,
esta conta com dois funcionários por turno que auxiliam os alunos em suas pesquisas. A organização e
funcionamento técnico-pedagógico da escola é feita através de um planejamento bimestral em conjunto
com os professores e equipe técnica. O plano escolar e o cronograma é feito junto com a elaboração do
calendário. A escola possui um regimento, segundo o qual todo o funcionamento da escola é regido por
ele, mas pelo fato de ainda não terem tempo pra se reunir e discutirem a respeito, este não está atualizado.
A equipe técnica é formada pelo Diretor Joaquim Alberto da Silva, com licenciatura plena em Geografia e
Pedagogia; pela vice-diretora Gerlane Alves da Silva Medeiros, com licenciatura plena em Geografia;
pelo Coordenador Administrativo Gilvani Alves da Silva, com licenciatura plena em Pedagogia; pelo
Supervisor Pedagógico Maria da Conceição Fonseca de Azevedo, licenciada em Pedagogia; e pelo
Orientador Educacional Janildo Dantas dos Santos, com licenciatura plena em Pedagogia. Os professores
de História são: Claudimar dos Santos Ramos, com licenciatura em História, Edilene Maria de Azevedo
licenciada em História, Eliziana Carneiro Gonçalves de Melo, licenciada em História, Maria da Luz de
Oliveira licenciada em História e Noroaldo Moura Palmeira, licenciado em História. Durante o período
em que estivemos em contato com o colégio, entramos em contato com o Diretor, com a Supervisora,
com o Orientador Educacional, com o Coordenador Administrativo e outros funcionários. Os livros
administrativos usados são o livro de matricula, o livro de ponto, o boletim, a caderneta e o certificado de
conclusão.
CARACTERIZAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA
A turma que escolhemos para que fossem respondidos os questionamentos e logo em seguida
diagnosticado o ensino de História foi a 9ª série do ensino fundamental, composta por 36 alunos. O nosso
primeiro contato com os alunos, se deu numa segunda-feira, dia 26 de maio de 2008, pela manhã. A
professora responsável pela turma naquele horário era Claudimar dos Santos Ramos, com licenciatura
plena em História. Ao entrarmos na sala a professora nos apresentou à turma e logo em seguida,
explicamos o questionamento e entregamos para que fossem respondidos. Nesse primeiro contato os
258
alunos notamos que a turma era muito tranqüila e boa de trabalhar, pois durante todo o tempo em que
tiveram para responderem aos questionamentos permaneceram calmos, talvez pelo fato de alguns alunos
estarem ausentes pois, do total de 36, apenas 23 responderam as questões. Após ser entregue todo o
material pelos alunos, ainda restava um pouco de tempo para o término da aula, então sentamos junto dos
alunos e assistimos o restante da aula. Analisamos todos os questionamentos e, através destes, chegamos
à conclusão de que o ensino de História que é oferecido naquela instituição é bom, mas precisa melhorar
um pouco mais. Percebemos que com relação à importância e significado da História, os alunos
necessitavam de mais conhecimento, principalmente quando se trata da teoria, fato este que observamos
nas respostas dos questionamentos. Pudemos identificar alguns obstáculos encontrados no ensino de
História que foram relatadas pelos alunos em suas respostas, dentre eles, a quantidade de conteúdo dado e
a dificuldade de se compreender um assunto novo, foram os principais pontos abordados.
O livro didático utilizado pela professora é bom e bem explicativo, possuindo temas variados e
muito ricos em imagens, o que auxilia os alunos na compreensão do assunto dado, este por sinal, também
foi bem avaliado pelos alunos. Os temas e assuntos discutidos nas aulas de História em nossa opinião são
bons, porém, merecia serem abordados temas mais variados e que o professor procurasse a melhor forma
de passar o conteúdo para os alunos, e que não constituísse um assunto muito longo, pois se tornaria
muito cansativo para eles, dificultando sua compreensão.
Dos recursos audiovisuais utilizados nas aulas de História percebemos que estes são bons e bem
utilizados, porém, se encontram em pequena quantidade, o que pode em algumas vezes não está
disponível para algumas aulas. O colégio deveria dispor de mais recursos para auxiliarem nas aulas, pois
existem apenas 01 retroprojetor, 01 caixa de som com gravador, 01 gravador/DC e uma TV para
utilização de vídeos, este por sinal é o mais usado pelos professores, e torna as aulas um pouco
repetitivas, causando o desinteresse dos alunos. Os procedimentos de ensino que são utilizados pelo
professor nas aulas de História são muito bons e, de fato, contribuem para a compreensão dos temas
estudados, merecendo destaque a explicação oral sem nenhum recurso, porém, seria interessante que o
professor procurasse outras formas de se passar o conteúdo de uma forma clara e de fácil compreensão e
que não fosse muito cansativa para os alunos.
Para nós o ensino de História está bem desenvolvido no colégio, só merecendo algumas
mudanças não muito significativas com relação aos procedimentos de ensino utilizados pelos professores.
Este estágio para nós foi de suma importância, pois visto como uma atividade que pode trazer imensos
benefícios para a aprendizagem, para a melhoria do ensino e para o estagiário, no que diz respeito à sua
formação, certamente trará resultados positivos. Estes se tornam ainda mais importantes quando se tem
consciência de que os maiores beneficiados serão a sociedade e, em especial, a comunidade a que se
destinam os profissionais egressos da universidade. Também foi importante para que percebêssemos
259
como andava o ensino de História e o que os alunos pensavam do mesmo. Além disso, contribuiu para
que pudéssemos aumentar o nosso conhecimento e nossa experiência como futuros decentes.
REFERÊNCIAS
BIANCHI, Ana Cecília de Morais: Alvarenga, Maúna; BIANCHI, Roberto. Manual de Orientação:
Estágio Supervisionado. 3.ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
BITTENCOURT, Cirne Maria Fernandes. História nas atuais Propostas Curriculares. In._.
Ensinos de História: Fundamentos e Métodos. São Paulo: Cortez, 2004.p. 99-132.
SCHIMDT, Mário Furley. Nova História Crítica/Mário Furley Schimdt_2.ed ver. E atual._ São Paulo:
Nova Geração,2002.
260
SEDUZIDA OU SEDUTORA?
ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS FEMININOS NOS DISCURSOS
JORNALÍSTICOS E JURÍDICOS, EM PRINCÍPIOS DO SÉCULO XX.
Edivalma Cristina da Silva243
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Bolsista CAPES
1922. Emerge mais um crime de defloramento no município de Caicó/ RN, no Sítio Boa
Vista. Rosa Cecília, “moça recatada”, “tôla” e “honesta” como assim fazem crer as testemunhas,
deixa-se seduzir e deflorar-se por Basílio Clemente que com seus galanteios, afagos e agrados
consegue levá-la ao coito, cedendo a “pobre infeliz”.
Basílio Clemente freqüentava assiduamente a casa de Lourival, pai da menor Rosa
Cecília, enquanto um rapaz de confiança “porque era casado com uma sobrinha do mesmo”244, não
lhe dando nada a desconfiar. Basílio era visto pelas testemunhas enquanto sedutor e metido a
namorador, de forma que elas testemunhas foram unânimes quanto à má conduta do réu, alegando
que o denunciado Basílio conseguiu deflorar Rosa Cecília “por meio de palavras jocosas, pois ele é
dado a empresas desta natureza, tendo segundo lhe consta, deflorado uma sobrinha della
testemunha”245. Essa confiança foi quebrada através da desonra que agora pairava sobre a casa de
Lourival, através dos atos libidinosos e “pecaminosos” de sua filha. Segundo o processo, através
dos insistentes galanteios e seduções de seu sedutor, embora a vítima tenha argumentado uma
constante resistência física à prática do ato sexual, cedeu encharcada na esperança rósea, tendo
Basílio Clemente marcado entre eles a noite seguinte para terem relações sexuais. Como
combinado, Basílio Clemente, com a sede de seu instinto sexual, jogou bolões de barro no telhado
do quarto de Rosa Cecília, a qual reconhecendo a chegada do mesmo, cedeu e deixou-se deflorar
aos arredores de sua casa.
Lourival sentiu sua honra ferida através dos atos de sua filha, por isso procurou a Justiça
para limpá-la, alegando que só notou o defloramento dela porque sua esposa “notará a suspensão
das regras de sua filha”246, devido a gravidez. As vozes polifônicas desenham Rosa Cecília
enquanto um “ser” bôbo, ingênuo, ignorante, uma criança enganada, o que propiciou a sedução.
Assim atesta uma testemunha que “acha que foi pela ingenuidade, ignorância, matutice que a
offendida cedeu a sua honra aos galanteios sedutores do denunciado”247. A própria promotoria da
243
Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Bacharela e Licenciada em História pelo
Centro de Ensino Superior do Seridó, da UFRN.
244
Processo-crime de sedução e defloramento, nº 3777, maço 20, ano de 1932. fl 20
245
Op cit. Fl.26
246
Op cit, Fl 06
247
Op cit. Fl.24
261
Justiça recalca sua defesa na emotividade “natural” do feminino, reforçando a imagem de mulher
frágil.
Embora Idelfonso tenha procurado a Justiça para limpar a honra248 familiar e de sua
filha, conseguindo a condenação do réu por sedução e defloramento, ela ainda continuou manchada,
pois não foi possível nem casar a filha, nem prender o réu Basílio, pois esse fugiu para lugar
indeterminado, antes de terminar o processo, não chegando nem mesmo a defender-se.
O corpo, os desejos, os movimentos de Rosa Cecília deixa de pertencê-la quando
publicisado pela Justiça, passando a ser tecido pelos discursos jurídicos e médico-higienistas.
Percebemos, então, que a identidade feminina é veiculada pela Justiça e pelo Jornal das Moças
enquanto forma de reafirmação natural de um corpo sexuado, calcado em papéis de gêneros
inteligíveis e bem delimitado, regulando, através de efeitos “verdade" sobre o sexo e dos confrontos
sociais e políticos, as subjetividades binárias249. Mas esta construção do feminino naturalizado em
identidades de gênero inteligíveis e coerentes250 também se fez sentir nos discursos jornalísticos do
Jornal das Moças251, os quais veiculam sua construção como o outro, a oposição, a natureza, “o”
sexo.
Em Rosa Cecília é notória a produção social do feminino enquanto um “ser” emotivo,
ingênuo, bôbo, frágil, poço de uma emotividade “natural”, naturalizados enquanto signos
construídos para um corpo frígido252, construtos culturais da feminilidade, como analisou Simone
de Beauvoir253. A Justiça tece o feminino em oposição ao masculino e não em relação, onde a
mulher é destituída de poder e saberes científicos passando a ser representada como uma autoinvenção do feminino pela Justiça: sem subjetividades, sem desejos próprios, sem razão, sem
prazeres, alheia a si mesmo254. Podemos perceber através das análises dos processos-crime que
todas as vozes polifônicas que perpassam os processos, sejam juízes, promotores, réus ou
testemunhas delimitam lugares, condutas, constroem o feminino como alienado em si, uma
248
As entrevistas realizadas mostram que o casamento amenizava o teor simbólico e cultural da “perda” da honra, de forma que
através dele a mulher voltaria a ter uma vida “normal” como antes do defloramento, podendo ir a bailes, circular normalmente pela
sociedade com o esposo. Todavia, percebemos que embora haja o reconhecimento social do corpo defendido, pesa sobre ele o peso
de sua “mancha”, estigmatizado pelo defloramento. Antônia nos falou que embora as mulheres desonradas casassem, os atos
corporais continuariam a ser lembrados e relembrados, por terem sido tatuados no corpo social: o corpo marcado.
249
Ver: BESSA, Karla. O crime de sedução e as relações de gênero. In: BASSANEZI, Carla (Org.). Cadernos Pagu: Sedução,
tradição e transgressão. São Paulo: 1994. P. 175-196
250
Ver: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003;
251
O Jornal das Moças constituía-se em um jornal informativo e veiculador de notícias ocorridas em Caicó ou no mundo, tratando de
fofocas, artigos condutas, moda, conselhos para as mulheres casadas e solteiras e entretenimentos. Consistiu uma publicação semanal
produzida por e para mulheres da classe elitista. Sua circulação se deu entre 1926 e 1932, embora o LABORDOC/ UFRN
(Laboratório de Documentação Histórica do Centro de Ensino Superior do Seridó/ UFRN/ Caicó) somente possua cópias das edições
que circularam no ano de 1926.
252
Essa visão de um corpo feminino vitimado, infantilizado, desprovido de razão e de cientificidade se faz sentir em todos os
processos-crime analisados, no total de vinte e cinco.
253
Ver: BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
254
OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. Corpos seduzidos, corpos deflorados: a honra e os seus significados nos processos-crime do
espaço Seridó (Caicó, 1900-1930) In: MNEME –Revista de Humanidades. V. 07 N. 17. Caicó: UFRN/ CERES, 2005. Disponível
em: http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/ed17/169.pdf. Acesso em 07/06/2007.
262
“invenção” da Justiça – e dos jornais – produzida e reafirmada através de cada processo-crime de
defloramento instaurado, suplantando o corpo feminino em silêncios255.
Nos discursos jornalísticos é perceptível a recorrência da higienização da mulher: moral
e física nos discursos jornalísticos. Tornava-se necessário discipliná-la, torná-la útil ao lar, a família
e a maternidade. Se a liberalização dos corpos, trazidas pela modernidade, atingia o corpo feminino,
logo, tornava-se necessário vigiá-lo, discipliná-lo para que sua “adesão” aos “ares modernos” não
vulgarizasse seu corpo e desapropriasse-o para a vida social, levando a desordem social e familiar.
Os dispositivos de saberes e poder adentravam os corpos femininos através da oralidade e dos
artigos em jornais ou revista que ensinavam (aconselham) a mulher a como ser elegante sem
parecer leviana, a saber se portar, a ser honesta e honrada com condutas nobres, a exemplo do artigo
Os Dez Mandamentos da Mulher Elegante256 publicado pelo Jornal das Moças, em Caicó, no ano de
1926:
1º A mulher resume-se na beleza;
2º Cultua o seo phisico como teu espírito;
3º Evita de ti mostrares pela manhã em desalinho;
4º Sempre bella para dominares o marido;
5º Não exageres a moda, mas vale a natureza que os melhores artifícios;
6º Veste-tes segundo a hora de acordo com as circunstâncias e seu
marido, si for casada.;
7º Abandona o mau humor que traz rugas precoces;
physionomia atrahente;
8º Consulta o teu espelho antes de te mostrares;
9º Sê natural nas suas atitudes;
10º Cuida de tua boca para o sucesso de teu amor.
Essa idealização do estereótipo feminino “burguês” também era propagada pela Justiça
a cada processo-crime julgado. Dessa forma, afirmamos que para Justiça a mulher seduzida era
aquela fosse atestada pelas testemunhas que anterior ao ato portava-se moralmente de acordo com
os bons costumes, com uma conduta exemplar e vista enquanto moça honesta. Para a Justiça, a
moça teria sido seduzida quando deflorada por justa confiança ou por não ter capacidade moral e
racional de discernimento das conseqüências do ato sexual, não (re)agindo a sedução,
infantilizando-a. O papel da Justiça era tutelá-la e “limpar” sua honra através da imposição ao réu
da realização do casamento.
Esta “incapacidade” feminina é construída nos discursos jurídicos enquanto sinônimo da
ausência de ação, ora, na lógica burguesa a mulher nunca age, às vezes reage, pois para a Justiça
ela representa o sexo passivo, maternal, emotivo. Logo, a mulher para a Justiça não seduz, ela é
seduzida, uma vez que a sedução é vista enquanto prática racionalizada, “terreno de jogos e astúcias
255
Sobre os silêncios do corpo feminino, ver: PERROT, Michele. Os silêncios do corpo da mulher. In:___.SOIHET, Raquel (org.). O
corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 13-28
256
Jornal das Moças, nº 23, anno I. Domingo, 25 de julho de 1926, p. 2.
263
sexuais”257 possível apenas ao homem, visto enquanto racional. A sedução pela qual as mulheres
devem ser tuteladas é a que consiste na utilização de meios capazes de influir sobre a vontade e
desejos do outro que é sempre o feminino 258. A mulher que se coloca no porte de sedutora
corresponde ao contra ideário feminino jurídico, não sendo merecedora do tutelamento da Justiça,
marginalizando-a.
As mulheres vistas enquanto o contra-ideal, a “mancha” familiar e estatal (a sedutora)
nos processos-crime, eram aquelas que negavam a maternidade - fosse por questão de honra ou por
falta de condições de criar a criança - , que se negavam a casar ao término de um processo-crime em
que o réu é condenado, ou ainda a mulher que transcendia o espaço privado para trabalhar - fosse no
comércio ou como empregada doméstica - é essa mulher que desnaturalizava a concepção de
“feminino” unívoco e universalista “burguês” elegido pela Justiça e pelos Jornais, levando-os a
legitimar o estereótipo de sedutora enquanto burladora da ordem.
Para a Justiça e moralistas essas mulheres modernas – sedutoras – ameaçavam a ordem
social na medida que os jovens rapazes “modernos” tornam-se indecisos se valeria à pena ou não
um casamento com uma moça de cabecinha fútil e doidivanas de forma que tomavam “por elegante
e de bom tom passar suas noites nas casas de divertimento livres, ao jogo ou nos cafés,
embrutecendo o espírito, alvitando a alma e arruinando o corpo pelas bebidas, cocaína, morfinas ou
cartas de pôquer”259. Os ideais republicanos estavam em perigo! E assim, o Jornal das Moças
deixou “escapar” que viu nas ruas de Caicó, “duas mocinhas da nossa elite passeando por fora da
pracinha somente para fiscalizarem os eleitos”260.
Essas mulheres modernas261, extravagantes, desconstroem a imagem de submissão
feminina naturalizada pelas instituições elevando o corpo feminino ao cuidado de si262, de sua
aparência, construindo subjetividades que não se ligavam aos estereótipos femininos tecidos pelos
discursos jurídicos e jornalísticos. Logo, eram vistas como “a outra”, “a louca”, “a desmiolada”,
tecida pelo discurso de exclusão. Temos, pois, a emergência de mulheres que deixam de ser um
adorno do marido para mostrar suas capacidades morais e políticas.
257
CAVALCANTI, Silêde. Mulheres Modernas, Mulheres Tuteladas: o discurso jurídico e a moralização dos costumes –
Campina Grande (1930/1950). Dissertação (Mestrado em História). Recife: UFPE, 2000. 210. p.28
258
Sobre a jurisprudência do crime de sedução e defloramento ver: SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (Segundo o
Código Penal mandando executar pelo decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou complementaram,
elucidados e a doutrina e jurisprudência). Vol II. Brasília: Senado Federal – Conselho editorial: 2003; CROCE, Delton; CROCE
JÚNIOR, Delton. Manual de Medicina Legal. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 480
259
Esta citação corresponde a um fragmento de um artigo da Revista Feminina do Rio de Janeiro, o qual foi incorporado por
MATTO e MALUFF no corpo de seu texto.
260
Jornal das Moças, nº 34, anno I. Domingo, 19 de setembro de 1926.
261
Segundo CAULFIELD, as mulheres modernas da década de 20 seriam as trabalhadoras das fábricas, mas também, as mulheres
petulantes, agitadas, namoradeiras, voluntariosas, a qual simbolizava o novo século, desafiando o domínio masculino e os valores da
família patriarcal que haviam cimentado a ordem social anterior (CAULFIELD, 2000, p. 1672)
262
Sobre o cuidado de si, ver: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. 7 ed. Rio de Janeiro: Graal,
2002;
264
O feminino é construído pela Justiça a partir de uma jurisprudência falocrática e
universalizante que o cartografa em torno do estereótipo de “mulher burguesa”, legitimando-o a
partir da reificação da esfera privada enquanto “naturalmente” feminina263, efeitos de poder e saber
que transforma construções sócio-culturais de valores e comportamentos femininos em
determinismo natural e inerente a mulher, a exemplo da reprodução enquanto natureza feminina.
Afirmamos que as técnicas jurídicas de controle e punição estabelecem escalas de valores no quais
os femininos são “encaixados” – universalmente – de acordo com o grau do crime, fortalecendo as
oposições binárias e as polaridades dos gêneros e hierarquizando comportamentos, condutas,
funções, papéis que solapam as diferenças em desigualdades sociais para os indivíduos.
Nessa perspectiva, afirmamos que o feminino é culturalmente e historicamente
construído, não sendo resultado causal do sexo, nem aparentemente fixo que nem o sexo. Como nos
mostra Butler (2003) o gênero e o sexo – aqui penso nos estereótipos –são construtos sóciohistórico que decorrem de significados culturais que são adquiridos pelo corpo sexuado. Dessa
forma, o caráter imutável e unívoco do “feminino” pode ser problematizado por constituir-se em um
efeito do que designamos de gênero264. Pensar na desconstrução do gênero possibilita a emergência
dos sujeitos e sua subjetividade através de corpos performáticos, transcendentes ao construto
cultural do corpo sexuado.
Pensar a construção do feminino pelos discursos jurídicos e jornalísticos nos leva a olhar
além das fachadas culturais, percebendo que a suposta uniformidade do termo “mulher” pode ser
questionado, por não ser um termo permanente, nem estável, uma vez que este estabelece
interseções com modalidades de classe, etnias, raças, sexuais entre outras, de forma que se tornou
impossível pensar o gênero dentro de seu caráter relacional sem perceber os entrecruzamentos
sociais, culturais e políticos que o constituem. Dessa forma, falar em feminino é pensar em
estruturas de relações e poder, em papéis de gêneros inteligíveis, coerentes e bem arrematados que
estabelecem discursos e implementam hierarquias na sociedade através de uma pluralidade de
sujeições, sejam elas étnicas, sociais, raciais entre outras. É olhar além dos olhares falocráticos
levando ao leitor a possibilidade de reler novamente o feminino, com um olhar crítico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980;
263
Ver: ROSALDO, Michele. O uso e abuso da antropologia: reflexões sobre o feminismo e o entendimento intercultural. In:
Horizontes Antropológicos: Gênero. Porto Alegre: PPGAS, 1994. p. 11-36
264
BUTLER, Judith. Op Cit. p. 26
265
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Cadernos Pagu: Sedução, tradição e transgressão. São Paulo: 1994. P. 175-196;
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(1918-1940) São Paulo: Editora Unicamp, 2000;
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moralização dos costumes – Campina Grande (1930/1950). Dissertação (Mestrado em História).
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história das mulheres. Nº 04. São Paulo: Unicamp, 1995. p 97-115;
MOTT, Maria Lúcia; MALUFF, Marina. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO,
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significados nos processos-crime do espaço Seridó (Caicó, 1900-1930) In: MNEME –Revista de
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entendimento intercultural. In: Horizontes Antropológicos: Gênero. Porto Alegre: PPGAS, 1994.
p. 11-36;
266
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estudo sobre a honra e o uso da justiça pelas mulheres pobres em Pernambuco Imperial (18601888). Dissertação (Mestrado em História). UFPE: 2007. 162 f;
SILVA, Edivalma Cristina da. De Espinhos a Rosas: A mulher sedutora enquanto produto da
modernidade (1900-1945). Anais América Equatorial: Cultura na Contemporaneidade.
Reunião Equatorial de Antropologia. Aracaju: UFS, 2007;
SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (Segundo o Código Penal mandando executar pelo
decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou complementaram, elucidados
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SWAIN, Tânia Navarro. Feminismo, corpo e sexualidade. In: RIAL, Carmem Silvia Moraes;
TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Genealogias do Silêncio: Feminismo e Gênero. Florianópolis:
Ed mulheres, 2004. p. 183-193.
i
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As Razões de uma cidade: conflito de hegemonias. Fortaleza: Stylus Comunicações,
1991, p. 110.
ii
BEZERRA, José Tanísio Vieira. Quando a ambição vira projeto: Fortaleza, entre o progresso e o caos (1846 / 1879).
Dissertação de Mestrado em História. PUC: São Paulo, 2000. p. 40.
iii
BRASIL, Thomaz Pompeo de Souza. Ensaios estatísticos da província do Ceará. Tomo I. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, Coleção Biblioteca Básica Cearense, 1997. (Edição Fac-símile da edição publicada em 1863).
Apud BEZERRA, José Tanísio Vieira. Quando a ambição vira projeto. op. cit., p. 41-42.
iv
CORDEIRO, Celeste. Brinquedos da memória: a infância em Fortaleza no início do século XX. Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha, 1996, p. 25.
v
Idem.
vi
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p. 13.
vii
Id. Ibidem., p. 41.
viii
Havia, porém, certas áreas da cidade onde a promessa de modernidade não passava mesmo de uma mera promessa.
Estas áreas eram as “areias”, conforme relata-nos Eduardo Campos: “Tempo, o dos anos trinta. Fortaleza estava
dividida em duas metades de gente: a que morava na área de calçamento... e a que vivia (vivia?) pelas “areias”, e
essa designação de ocupação do solo a significar quem morava nas embrionárias favelas de hoje, gente modesta
abrigada quase sempre em casebres”. CAMPOS, Eduardo. O Inventário do Cotidiano: Breve Memória da Cidade de
Fortaleza. Fortaleza: Edições Fundação Cultural de Fortaleza, 1996, p. 53.
ix
COLARES, Otacílio. “Fortaleza em Desamor”. In: Fortaleza 1910. Fortaleza: Imprensa da Universidade Federal do
Ceará, 1980. p. 13.
x
Idem.
xi
BENEVIDES, Artur Eduardo. Poemas de amor a Fortaleza. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2000, p. 117.
xii
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. op. cit., p. 59.
xiii
JOB. Daniel Carneiro. Praça do Ferreira: o inédito, o sério e o pitoresco. 2. ed. Fortaleza: Fundação de Cultura e
Turismo, 1992. p. 5.
xiv
MIRANDA, Ubatuba de; GIRÃO, Raimundo. Retrato de Fortaleza. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1954, p.
65-66.
xv
CARNEIRO, Caio Porfírio. Contagem Progressiva: reminiscências da infância. Fortaleza: UFC/Casa de José de
Alencar, 1998, p. 15.
xvi
SOUZA, Simone de; PONTE, Sebastião Rogério (org.). Roteiro Sentimental de Fortaleza: Depoimentos de História
Oral de Moreira Campos, Antônio Girão Barroso e José Barros Maia. Fortaleza: UFC-NUDOC/SECULT-CE, 1996, p.
175.
xvii
GOMES, Ione Arruda. Imagens indeléveis: primeiros contatos com o bairro Aldeota. Fortaleza: Stylus
Comunicações, 1991. p. 20.
xviii
DIAS, Milton. Relembranças. Fortaleza: Edições UFC, 1998. p. 73.
xix
Id. Ibidem, p. 75
xx
CAMPOS, Eduardo. “Culinária Cearense”. In: CHAVES, Gilmar (Org.). Ceará de Corpo e Alma: um olhar
contemporâneo de 53 autores sobre a Terra da Luz. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Fortaleza: Instituto do Ceará
(Histórico, Geográfico e Antropológico), 2002. p. 105.
267
xxi
xxii
BENEVIDES, Artur Eduardo. Poemas de amor a Fortaleza. op. cit., p. 118.
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 117.
268
“DESEJO DE CIDADE: CORREIO DA SEMANA E O DISCURSO DE SOBRAL
EM 1930”
Luciana de Moura Ferreira
Universidade Estadual do Ceará – UECE
A cidade é espaço dos sonhos e ideais de transformação, labirinto de emoções, ela surge
como uma incógnita que gera não só nos homens, mas nos historiadores como uma ânsia de
desvelar seus segredos, suas tramas, as idéias que as constituíram. A cidade causa nos historiadores
a necessidade de um mergulho profundo em busca destas “razões” e “sentimentos” que as
constituíram, não pode abster-se dos problemas que irão surgir, os rumos que pretendem seguir
podem mudar, portanto é necessário preparar-se para surpresas, sem fraquejar na sua busca pela
cidade.
Entendemos a cidade como espaço de conflitos reais ou imaginários, trazendo em si
múltiplas possibilidades que vão muito além do que se diz ou vê, pois em cada rua que se constrói
ou destrói existe um sentido que responde como desejo de transformação. Seguindo este raciocínio
a cidade nos direciona a suas representações, que foram apresentadas pelos jornais e fotografias, o
que possibilita aos historiadores reconstituir os sentimentos, desejos que transformaram a cidade.
A escolha desta temporalidade justifica-se no fato de ser este período de consolidação das
transformações urbanísticas da cidade e de uma forte campanha pelo controle da “moral e dos bons
costumes”, os quais irão ganhar espaço nos jornais, principalmente no jornal Correio da Semana,
xxii
órgão da igreja católica e principal veiculo destas campanhas e divulgação das transformações
urbanas. Pensando que algumas cidades se destacam das outras pela forma como superam suas
dificuldades e se elevam como expressão de sentimentos ou conquistas de seus habitantes, é
possível constatar que estes destaques ocorrem de forma descentralizada e heterogênea, desta forma
pensar Sobral como uma cidade que em meados de século XX apresentava uma economia baseada
na agricultura e de características rurais e na década de trinta apresentar um crescente
desenvolvimento urbano e social gera inquietações quanto às razões desta transformação e seus
impulsionadores.
Esta é a cidade que pretendemos estudar para assim entender a transformação e os
sentimentos que as moviam, assim como analisar os discursos que eram veiculados sobre esta
cidade que se constituía entre as folhas de jornal.
Sabendo que os discursos são fruto do orgulho de seus produtores e da ascensão que a
cidade almejava, pensamos ser este orgulho o objeto de interligação da cidade concreta e da cidade
desejada. Assim buscamos transformações ressaltando que iremos privilegiar o discurso do Jornal
269
Correio da Semana e entender como na década de trinta o poder deste grupo social interferiu na
transformação da sociedade.
A perspectiva desta pesquisa é possibilitar novas formas de “olhar” a cidade para assim
entender como os discursos se constituíam e qual a força que tinham sobre o povo. Enfim pensamos
ser o discurso uma constante, senão, as partes principais desta pesquisa, a que irá radiar-se em
direção aos problemas e as possibilidades. Neste sentido, pensamos discurso segundo Foucault, “o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo
Poe que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.xxii
O conceito por nós utilizado faz pensar discurso como uma disputa por controle
ideológico, o que contextualizado com a condição de Sobral na década de trinta, possibilita a
reconstituição da influência da igreja, através do Jornal Correio da Semana, na transformação de
Sobral neste período. A influencia do discurso produzido pelo jornal pode ser sentida até mesmo
naqueles que são reconhecidos como oposição ao poder público local, o jornal O Debatexxii, que em
suas paginas enaltece Dom José:
Dom José significa para nós um estandarte deslumbrantissimo de fé e fanal de luz
esplendorosa. S.EXA. Tem o seu nome ligado aos maiores surtos de progresso que até
hoje alcançou a nossa cidade e às mais radiantes aspirações que hão empolgado o espírito
do povo sobralense. Excusado nos é relembrar, neste singelo registro, os grandes e
elevados empreendimentos que tem realizado. S.EXA. Em prol da grandeza de sua terra
natal. Os edifícios em sua linguagem muda e forte, falarão com mais elegância e mais alto
xxii
que nossa pena.
Pode-se notar que o discurso mantido por Dom Joséxxii recebe elogios e reconhecimento
por suas iniciativas progressistas na cidade, observemos também que ele faz uso do discurso do
próprio Dom José para justificar seus elogios, quando afirma que mais forte que suas palavras são
os prédios, o que sugere que o progresso dessa cidade estava associado a sua transformação urbana.
Nota-se que o discurso de Dom José instituía-se pouco a pouco como a personificação das
aspirações dos habitantes em prol de uma cidade desenvolvida.
Envolta nestes discursos que Sobral foi desenvolvendo e fortalecendo a idéia de progresso
ocasionada por Dom José o qual contribuía para o fortalecimento deste discurso através da sua
política de desenvolvimento cultural e social e que tinha como instrumento divulgador de seus
discursos o jornal Correio da Semana, que além de ser o periódico de maior existência no período
era um órgão ligado, ou melhor, criado, pela igreja, desta forma desenvolvendo grande influência
sobre a população e a cidade que se modificava, gerando no povo a idéia de um desejo coletivo de
transformação. Neste sentido somos movidos por uma curiosidade em saber como estas
transformações refletiam na população, isto é, como o jornal veiculava estas transformações, ora se
270
a cidade era transformada arquitetonicamente em prol da melhoria da cidade e da população, como
se tratava do povo e “sua voz” no jornal? Como o jornal colaborava com a instituição da idéia de
Dom José como o responsável por todas estas transformações na cidade?
Sobral na década de trinta encontrava-se em processo de consolidação das transformações
urbanas, as quais tiveram inicio com o retorno de Dom José o qual segundo Soaresxxii,
ultrapassando os limites dos deveres de um prelado, dotou a cidade dos instrumentos básicos
necessários ao exercício da função social e cultural.
“Há em Sobral uma entidade inconfundível uma energia inquebrantável toda devotada à
grandeza de sua terra natal a que tem dado as mais inconcissas provas de dedicação, quer
elevando o expoente da sua perfeição espiritual, quer promovendo o seu progresso e
xxii
embelezamento phisico, dotando-a de monumentos notáveis...”
Percebemos que eram recorrentes no jornal as publicações de notas onde Dom José era
associado ao progresso e desenvolvimento que a cidade passava, a noticia acima bem apresenta esta
ligação quando trata Dom José de “Entidade”, insinuando a existência de um ser superior dando a
ele os louros pelo progresso que a cidade experimentava.
Enfim o jornal não apenas divulgava as transformações da cidade exaltando, com uma
pretensa pratica de Dom José como a razão do progresso e desenvolvimento da cidade como ainda
expunha o “poder” que este mantinha sobre a decisão de transformar a cidade, como bem expressa a
nota veiculada sobre o titulo de Reuniãoxxii:
“Exposto pelo senhor prefeito o objetivo da referida sessão, o Exmo. Sr. Bispo deu o seu
parecer sobre o assunto, segundo o qual não haverá inconvenientes contra a esthetica da
cidade, nem contra a higiene publica uma vez que sejam observadas as causas devido ao
sepultamento dos cadáveres”.
Ora a matéria sugere que a opinião do Bispo era decisiva sobre a reforma do cemitério,
porém ao mesmo tempo em que sugestiona seu poder de influência mostra uma face de líder
preocupado com seu povo, pois não se oporia a reforma se estas não prejudicassem a higiene
pública. Mais uma vez fica claro que o discurso de Dom José era apoiado pela igreja, instituição, a
qual tinha veiculado a si o jornal Correio da Semana e que facilitava o fortalecimento do discurso
de Dom José como o responsável pelo progresso e bem estar da cidade.
Enfim o que podemos perceber é que o progresso da cidade na década de trinta está ligado
intrinsecamente ao poder, afinal a transformação arquitetônica em Sobral justificava-se apenas pelo
sentimento de orgulho de Dom José, envolvido pelas suas idéias grandiosas de “menino educado e
formado intelectualmente” em Roma, que desejava transformar sua cidade natal em referência para
o desenvolvimento e progresso. Penso que a cidade foi utilizada como forma de auto-afirmação do
Bispo, a qual foi facilitada por seu discurso de progresso e abnegação em favor da melhoria da
cidade, afinal se este não fosse um desejo seu o jornal Correio da Semana veicularia a opinião dos
habitantes da cidade de forma constante o que no levantamento inicial das fontes não encontramos,
271
ou melhor, quando aparecem sempre são como exaltação da transformação que a cidade passa e
associando-as as ações de transformação de Dom José.
Em fim o que percebemos neste primeiro momento da pesquisa foi a ligação entre
discurso e poder em prol da “construção” de uma idéia de cidade desenvolvida a partir da figura de
Dom José, o que foi facilmente instituído como “verdade” por ser ele não só o Bispo da cidade
como o responsável pela criação do jornal de maior circulação local e meio divulgador de seus
discursos.
272
NA TELA DO CINE TEATRO LUX: CINEMA E VIDA COTIDIANA
Helmara Giccelli Formiga Wanderley(PPGH-UFCG)
Orientador: Dr. Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)
De repente começou um tiroteio, os disparos eram em direção à platéia que tomada de
espanto e, num rápido impulso jogou-se ao chão sobre um coro de gritos desesperados. Durante
alguns segundos os disparos foram constantes e as fagulhas projetadas pelos disparos iluminaram
aquele salão. Logo em seguida, um grande silêncio tomou conta do lugar, lentamente os
espectadores, ainda assustados começaram a se erguer. Era hora de olhar se havia alguma vítima
fatal.
_Todos estão bem! Gritou o jovem Barroso.
Realmente todos estavam bem, mas os olhos eram de espanto, alívio e encantamento... No
final? O herói salvou a mocinha, as luzes se acenderam, a platéia embebida de emoção ergueu-se
em palmas. “O cinema era a oitava maravilha! Tudo o que havia de bom”, afirma a Sra. Raimunda
Santana Evaristo. Para outros, “o cinema era só diversão”. Sem dúvida Pombal nunca mais seria a
mesma depois das películas cinematográficas.
A cena descrita acima se repetiu muitas vezes ao longo dos anos de 1950, arrancando risos e
lágrimas dos habitantes da pequena Pombal. O filme era um far-west. Talvez “Matar ou Morrer” ou
quem sabe “Moeda Quebrada”. Como essa cena muitas outras pegaram de surpresa o público
desavisado das sessões de cinema. Assim ficaram registrados nas memórias dos freqüentadores do
“Cine Teatro Lux” o medo que o Barroso tinha dos cavalos que pareciam correr em sua direção,
desaparecendo depois de atingir a borda da tela. Também não fugiram da lembrança dos
pombalenses as cenas em que o trem ocupa a tela e investe em direção à platéia, que em algumas
ocasiões saiu correndo. É impossível esquecer também “os beijos interrompidos pela ‘lanterninha
de Galdino’, que não deixava ninguém namorar em paz”(SILVA, 2008).
Não há dúvidas de que a exibição de películas cinematográficas tenha fascinado ou quem
sabe, espantado os habitantes de Pombal naqueles idos. Mais para além das experiências ocorridas
na hora da exibição do filme, a prática de ir ao cinema modificou sobremaneira o cotidiano dos
pombalenses dos mais diferentes segmentos sociais. Dessa forma, nos interessa também conhecer
as novas sensibilidades provocadas por aquela aparelhagem moderna.
Fato é que desde os anos 40 do século XX os habitantes de Pombal já tinham contato com
os filmes de cinema. As ocasiões em que as películas era projetadas era um grande acontecimento
para a cidade, “uma vez que não havia televisão, não tinha muito o que o povo fazer para se distrair.
273
Ai uma vez por semana, Seu Joquinha Queiroga, passava seus filmes para o povo de
Pombal”(JUNQUEIRA JÚNIOR, 2008).
A projeção dos primeiros filmes aconteceu no prédio do mercado público. Depois as sessões
passaram a ser na Sede Operária. “Somente em 1954 Pombal ganhou um cinema de
verdade”(FELINTO, 2008). De fato, naquele ano, foi inaugurado em Pombal o “Cine Teatro Lux”,
ocasião em que a elite pombalense rejubilou-se pela nova aquisição.
Sempre foi conhecido o povo de Pombal por estar à frente do seu tempo.
Só quem não conhece para dizer o contrário. O povo daqui sempre
acompanhou a melhor moda. Acompanhava tudo pelas revistas. E Recife
tinha uma influência muito grande. Nem foi preciso o povo reivindicar
nada. Seu Chiquinho viu que Pombal precisava de um Cinema Moderno e
construiu. O povo de Pombal era um povo que só dava valor ao que era
bom, a aquilo que tem qualidade. Sempre foi assim. Ai sim, o povo ficou
muito envaidecido por que finalmente Pombal teria um cinema Moderno
(QUEIROGA, 2004).
O prédio construído em estilo Arte-Décoxxii era considerado na concepção dos habitantes
daquela urbe, o que havia de mais moderno.
Em defesa dessa idéia o historiador pombalense Verneck Abrantes de Sousa em seu livro
“Um olhar sobre Pombal Antiga (1906 a 1970)”, afirma: Seu Chiquinho Formiga construiu o
melhor prédio cinematográfico do sertão paraibano” (SOUSA, 2002), o Cine Teatro Lux, localizado
na esquina da Rua Jerônimo Rosado com a Rua João Pereira Fontes, bem no centro da cidade.
Mas não só os ricos aplaudiram a iniciativa de construir em Pombal uma sala de projeções
cinematográficas “modernas”. Também os pobres celebraram a conquista daquela aparelhagem
tecnológica. Afinal, nos discursos da elite o cinema atingiria a todos. E finalmente, “o povo de
Pombal teria uma sala de cinema digna deles. Um lugar adequado para ver os filmes que eram
produzidos nos Estados Unidos, no México e também os brasileiros” (QUEIROGA, 2004).
Mas claro que “o povo” é muita gente. Acreditamos que a Senhora Francisca Queiroga ao
usar a palavra “povo” tenha se referido a um pequeno e seleto grupo que constituía a elite daquela
aldeia. Acreditamos que não havia uma preocupação em satisfazer as necessidades dos grupos
populares, mas tão somente aos anseios da elite. Contudo, mesmo em face das dificuldades
econômicas e das sanções sociais, também o populacho experimentou naqueles anos a magia do
cinema, isso porque
as cenas da vida privada da maneira como são mostradas pelo
cinematógrafo, cômicas ou trágicas apaixonam o público (...) A rapidez
dos movimentos aumenta a impressão de vida. Ela é, as vezes tão intensa,
274
que esquecemos a vulgaridade da história para nos divertirmos com os
detalhes (PRIEUR, 1995, p. 35).
Assim é que em Tempos Modernos, um clássico de 1936, Charles Chaplin, arranca dos
espectadores do mundo inteiro risos de situações trágicas: a exploração da classe operária e a
miséria dos pobres, provocada pelo desenvolvimento da Indústria.
O Sr. Raimundo Formiga de Sousa, nos falou sobre as sessões de filmes do Charles Chaplin,
mais conhecido por Carlitos.
No dia que era filme de Carlitos o cinema era cheio, era criança, moça,
rapaz, adulto, tudo. Todo mundo gostava, ele era muito engraçado. Com
um paletó velho, um sapato maior que o pé. Os pés eram um prum (sic)
lado e o outro pro outro. E tinha aquela bengala que ele girava. O filme era
mudo, mas agente só escutava era o barulho das risadas. Não tinha quem se
agüentasse não. Era muito bom os filmes de Carlitos (SOUSA, 2008b)
Embora tenha se referido aos filmes de Charles Chaplin o Sr. Raimundo Formiga de Sousa
não mencionou o nome, e tampouco destacou alguma cena que identifique algum dos filmes de
Chaplin. Assim, perguntei se algum dos filmes havia se destacado por trazer um tema diferenciado,
sua resposta foi: “não, todos os filmes dele eram mudos, preto e branco e de comédia. Eu mesmo
gostava de todos, a gente bolava de rir” ( SOUSA, 2008b).
Insatisfeita com a resposta que ouvi, insisti e perguntei se ele lembrava-se do filme Tempos
Modernos?
lembro do nome, era um filme que passava muito, agora da história eu não
lembro não, porque é como eu disse, os filmes de Charles Chaplin eram
todos muito parecidos (SOUSA, 2008b).
Em face da tendência marxista que Chaplin deixava transparecer em suas obras, os filmes
realmente apresentavam temáticas muito próximas, mas nas memórias de nosso colaborador...
nenhum episódio. Assim, por mais que os filmes cinematográficos tentassem mostrar cenas da vida
real, os movimentos dos atores, as cores e a velocidade em que as cenas do dia-a-dia eram
projetadas não permitiam que os espectadores se identificassem com as histórias ali expostas. Eram
as roupas, os móveis, a beleza dos artistas, os automóveis, os tropeções, o que mais chamava a
atenção.
Dessa forma, o cinema ia conquistando um público cada vez maior, que buscava somente
diversão. “Realmente o cinema era para todos!” Afirmou a Sra. Maria Adélia Felinto, e prosseguiu :
275
O cinema não era uma coisa cara não. Todo mundo podia ir. O ingresso era
um tostão, dois Cruzeiros! Acho que era um ou dois cruzeiros. Era muito
barato. E não tinha esse negócio de primeira classe, nem de segunda classe
não, nem de cadeira cativa. Quem chegasse primeiro sentava na frente e
pronto (FELINTO, 2008).
Também a Sra. Zumira Ferreira Viana recorda-se que:
Todo mundo gostava de ir ao cinema. Eu mesma sempre ia. Meu pai que
me criou sempre me deixava ir ao cinema. Era bom demais. O filme que eu
mais gostava era Tarzan. Mas eu também vi outros filmes. Os filmes de
faroeste era os que mais passavam e as chanchadas. Ai tinha uns tolos que
ficavam desviando as balas (risos), gritando com medo... era muito
divertido! (VIANA, 2008).
Havia sem dúvida, uma forte crença de que o cinema estava ao alcance de todos os
pombalenses, mas não foi isso que nos disse a senhora Nira dos Nascimento que aos noventa e
quatro anos de idade, lembrou-se tristemente que nunca esteve num cinema.
Toda vida eu ouvia o povo dizendo que o cinema era bom. Que os filmes
eram de primeira. Que tinha muitos artistas bonitos. Que as mulheres era
tudo (sic) de vestidos bonitos, da moda! O povo falava coisas lindas, mas
eu nunca fui ao Cinema, nem quando era no Mercado, nem nunca.
(NASCIMENTO, 20008).
O caso da Sra. Nira do Nascimento, nos revela um lado obscuro da modernização que a urbe
vinha sofrendo desde os anos vinte do século passado. Ou seja, as melhorias técnicas não atingiam a
todos os pombalenses, ou não atingia da mesma forma, e a exclusão de centenas de homens e
mulheres desse processo era uma triste realidade em Pombal. Contudo, mesmo diante desse quadro
o que se percebe é que havia entre os excluídos um forte desejo de partilhar das experiências
modernizantes pelas quais a cidade passava.
Mas os populares desejavam participar do progresso técnico que a cidade estava passando.
“Afinal, quem é que não quer ser moderno?” indagou a Sra. Maria Adélia Felinto (2008). E ela
responde: “Ah, o povo daqui toda vida teve essa tradição de ser moderno. Queria ser moderno a
todo o custo. Era rico, era pobre, tudo” (FELINTO, 2008).
Mas para além do desejo de tornar-se moderno, o cinema impõe-se aos homens e mulheres
daquela aldeia como um momento de lazerxxii, um tempo desocupado dedicado à diversão, ou ainda
uma tentativa de burla, uma recusa as limitações socialmente impostas, mais também uma
oportunidade de conhecer novas pessoas, fazer amigos, descolar um namorado/ namorada, ou
276
simplesmente ver pessoas aparentemente felizes desfilando com seus trajes finos. Ir até a frente do
Cine Teatro tem toda uma simbologia, muitas vezes só compreendida por aqueles que partilham dos
mesmos códigos sociais.
Dessa forma, a pratica de ir ao Cinema, seja para ver um filme, ou simplesmente para
avolumar-se à frente da casa de espetáculos, são também ocasiões de fuga, momentos de esquecer
os problemas e aliviar as tensões do dia-a-diaxxii.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2002.
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CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano I: Artes de fazer. 6ª edição. Petrópolis: Vozes, 2001.
DAMATTA, Roberto – O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro. Rocco, 2001.
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Rádio. São Paulo: Companhia das Letras; 2001.
SOUSA. Fabio Gutemberg R. Bezerra de. Territórios de Confrontos: Campina Grande (19201945). Campina Grande: EDUFCG, 2006.
277
SOUZA. Antonio Clarindo Barbosa de. Lazeres Permitidos, Prazeres Proibidos: Sociedade,
Cultura e Lazer em Campina Grande (1945 – 1965). 2002. Tese (DOUTORADO EM História
do Brasil) – UFPE, Recife.
278
A CONSTRUÇÃO DE UMA CIDADE IDEAL PARA O SERTÃO DO SERIDÓ
POTIGUAR: PROJETOS DE MODERNIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO
CAICOENSE (1950/1960)
Autor: Marcos Antônio Alves de Araújo
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ah! Caicó arcaico
Em meu peito catolaico
Tudo é descrença e fé
Ah! Caicó arcaico
Meu cashcouer mallarmaico
Tudo rejeita e quer
É com, é sem
Milhão e vintém
Todo mundo e ninguém
Pé de xique-xique, pé de flor.
Chico César
A epígrafe acima, companheira deste trabalho, extraída de uma canção escrita, nos
anos 90 do século passado, pelo músico paraibano Chico César em homenagem a urbe que o
acolheu durante um fragmento de sua vida e lhe foi apresentada pelas narrativas radiofônicas
ecoadas de seu espaço através da Emissora Rural de Comunicação de Caicó, representa, de certo
modo, uma cidade, de nome Caicó, que, embora fosse arcaica aos seus olhos, tudo rejeitava e,
concomitantemente, tudo queria.
Partindo dela, objetivamos neste trabalho, como parte integrante da dissertação de
mestrado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação e Geografia, da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, problematizar os discursos atinentes aos projetos de modernização urbana
pensados para a cidade de Caicó/RN, durante as décadas de 50 e 60 do século XX. Projetos estes,
que estavam inseridos nos planos elaborados, ora por representantes de uma elite políticoeconômica local e regional, ora por porta-vozes, na construção de uma cidade ideal para o Seridó
potiguar, tornando-a civilizada, ordenada, progressista, enfim, uma autêntica “capital” para essa
região
Esses projetos se constituíam em desejos de sujeitos que, ao correr dessas duas
décadas, se orgulhavam por habitarem uma urbe alicerçada nos baluartes do discurso progressista,
composta e entrelaçada por sonhos de construção de uma “capital” ideal, bela e civilizada em suas
279
linhas, contornos, formas, espaços e práticas. Para isso era necessário a constante comunhão de
metas e/ou objetivos do projeto de modernização urbana pensado para urbe, criado a partir de
concepções de cidade ideal, de cidade progressista, de cidade alvissareira e de cidade civilizada.
Caicó era visibilizada, através dos olhares de alguns sujeitos pertencentes a uma elite
econômica, política, intelectual e religiosa da época e sob o respaldo da principal imprensa escrita e
periódica local, ou seja, o Jornal A Fôlha, veículo de comunicação da urbe na época e principal
fonte documental de investigação desse trabalho, como uma cidade aspiradora do progresso,
embora que em alguns discursos esta já se considerasse progressista por natureza, mostrando uma
morfologia citadina de invejar a qualquer outra urbe, mesmo não tendo sido privilegiada por certas
características geo-climáticas, ditas influenciadoras e propícias para se ter uma vida urbana
agradável.
Isso porque a cidade era, e ainda é, acossada por temperaturas altíssimas e
causticantes, “topograficamente mal localizada. Circundada de pedras, quis outros condensadores
de calor”xxii. Era o espaço, a topografia, o relevo, “a presença de água, o ar mais ou menos nocivo, o
meio ambiente [juntamente com os objetos construídos socialmente] que representavam os fatores
determinantes das localizações e das direções da expansão do desenho urbano da cidade” (LAPA,
1996, p. 194). Em suma, os elementos naturais, inseridos, como parte integrante, no processo de
produção do espaço urbano, também contribuíam para a construção da morfologia da cidade,
encontrando nesta, “[...] as marcas daquilo que resiste e determina as transformações, bem como as
marcas do conformismo que resultam nas permanências e nas inércias” (OLIVEIRA, 2003, p. 137).
Mesmo com tantas intempéries naturais impostas a Caicó, escondida e perdida nos
rincões e recônditos do sertão norte-rio-grandense e martirizada pelos rigores das secas sucessivas
que assolavam o município, estas não eram suficientes ao ponto de produzirem grandes obstáculos a
uma cidade enxertada numa era de movimento e dinâmica. Ao contrário, parecia que, com base em
relatos auferidos das colunas da imprensa periódica local, era justamente dessas intempéries que os
caicoenses extraiam o sumo e a seiva necessária para a construção de uma cidade ideal para o sertão
do Seridó potiguar, emergida a partir de uma nova ordem urbana, pensada, sentida, aspirada e
desejada.
Esses sujeitos – a maioria, redatores do Jornal A Fôlha que se diziam ser
representantes da população caicoense, mas que mais pareciam ser porta-vozes das figuras políticoeconômicas da urbe – identificados como resistentes e perseguidores de uma cidade ideal,
pretendida e imaginada, eram atinados como homens de “[...] feitio tipicamente sertanejo. Antes de
tudo forte [...], [de] almas cheias de sol. Ávidas de luz. Realmente arejadas. Coração à flor da pèle.
Espancam de logo dobrez e refolhos. Essa realidade, de súbito, nos encanta” xxii.
280
Esses discursos, identificados como representações tipificadoras que tentavam
homogeneizar e criar um determinado arquétipo de homem para a sociedade urbana caicoense, se
constituíam em um dos elementos simbólicos evocados pelos perseguidores do progresso para
construção de uma urbe que deveria ser modelo e exemplo a ser seguido pelas outras que formavam
a região do Seridó, afinal, mesmo com todas as adversidades naturais, os moradores do espaço
urbano deveriam interiorizar o objetivo de tornar Caicó uma cidade moderna e desenvolvida.
Esse ultimo objetivo passava por uma concepção de desenvolvimento apenas
circunscrita ao aspecto do crescimento da mancha urbana da cidade, com a inserção de serviços
modernos e equipamentos inovadores que viessem a atingir somente a um determinado segmento da
população, não atentando para uma preocupação com o fato de se estes melhoramentos
contemplariam todas as classes sociais, tampouco, com os graves problemas espaciais disseminados
nos vários arranjos territoriais da urbe.
Na verdade, apenas algumas questões que por estarem acontecendo, na maioria das
vezes, em pontos estratégicos do espaço central das atenções urbanas, especificamente, numa faixa,
considerada vitrine caicoense construída sob um modelo clássico de ocupação e colonização das
principais urbes seridoenses, ou seja, sobre pedras e entre rios, poderiam ferir e/ou manchar a
imagem de uma cidade, com status de Capital do Seridó, que sobrevivia, além dos desejos de ser
progressista, também da sedução de ser moderna. Era necessário que a urbe caicoense
desempenhasse “seu lugar de capital irradiadora dos valores do progresso e da civilização,
cumprindo assim seu papel de ambiente formador do homem [e de práticas modernas]” (ARRAIS,
2004, p. 506).
Do desejo de ser moderna a realmente ser moderna para a época, era necessário que
a cidade passasse por algumas fases, adquirindo um ritmo de aceleração desenfreada e rompendo
com quase tudo aquilo que era referência ao passado. Todo o fenômeno que se apresentasse como
moderno partia de uma referência negativa àquilo que existia preteritamente e que a partir da
consolidação do novo se transformaria “no antigo ou no tradicional. O moderno possui[a] uma
ligação intrínseca com a contemporaneidade: substitui[a] alguma coisa do passado, defasada ou,
simplesmente, alguma coisa que não encontra[va] no [então] tempo presente” (GOMES, 1996, p.
48-49). Assim, se o novo deveria periodicamente ser imposto no lugar do “tradicional ou do antigo,
o mecanismo primeiro desta substituição [...] [era] a ruptura. [...] [Era] pela negação daquilo que
existia, pela prova de sua inadequação, pelo desvelamento do tradicional, que o novo [...] [deveria]
se afirmar” (GOMES, 1996, p. 49). Desse modo, a noção de moderno, visto como algo bom em
oposição ao antigo atinado como algo mau, ao propor algo novo, era sempre procedida por rupturas
e quebras, sendo utilizado para indicar a substituição de alguma coisa arcaica.
281
No entanto, em algumas situações o rompimento com o passado não deveria ser
total, pois este ainda poderia se apresentar como bom em contraposição ao presente que poderia
mostrar-se como algo eminentemente mau. Na cidade de Caico, nem sempre aquilo que era da
ordem do presente, portanto identificado como moderno, era considerado bom para a sociedade
caicoense. Antes de qualquer coisa, fazia-se mister preservar e comungar de alguns valores do
passado para, através disto, construir um novo pensamento e adquirir um novo comportamento.
Como exemplificação, pode-se mencionar a necessidade, preconizada pelos discursos e práticas
eclesiásticas, dos habitantes da cidade seguirem, inadvertidamente, os dogmas e os preceitos de um
catolicismo autêntico e verdadeiro, integrando-os as suas personalidades, as suas identidades e as
suas espacialidades. Retirando algumas exceções da regra, a construção de uma cidade ideal, de
feitio moderna e civilizada, passava por um envolvimento de uma implacável “ruptura com [...]
[boa parte das] condições históricas precedentes, como é caracterizada por um interminável
processo de rupturas e fragmentações internas inerentes” (HARVEY, 1992, p. 22).
Se por um lado, para os redatores do Jornal A Fôlha, Caicó se sentia auto-suficiente,
com uma cidade bem edificada e uma sociedade altamente digna dos melhores conceitos, ocupando
o terceiro lugar na cronologia topográfica do estado, por outro, contraditoriamente e
concomitantemente, desejava melhorias em vários dos seus setores urbanos. A rentabilidade da
cidade consistia de um comercio que exercia as suas atividades através da indústria leiteira, de
artefatos e de produtos agrícolas, movimentando o volume dos negócios de peles, algodão, cereais e
outras espécies da produção regional.
Embora a cidade apresentasse um mercado econômico limitado, sobrevivendo
basicamente da comercialização de uma produção primária, somente isto era suficiente para a elite
intelectual d’A Fôlha afirmar que ela já poderia concorrer com os mais privilegiados municípios
brasileiros e com os de maior progresso, crescendo e desenvolvendo-se a olhos nus. Nesse sentido,
Caicó, conforme se sentia na palavra efusiva dos seus filhos distantes ao discorrer para o Jornal A
Fôlha, em referência a urbe, era vista como uma cidade de alto porte social. A cidade era, tanto para
os olhos dos que habitavam outras paragens, como para aqueles que se apropriavam,
cotidianamente, dos espaços caicoenses, atinada como uma urbe que pelo peso que detinha já
poderia ser considerada uma cidade eminentemente de caráter progressista, mas que ainda precisava
de algumas intervenções e inserções de determinadas inovações para alcançar esse caráter, se
tornando verdadeiramente uma urbe moderna.
Paradoxalmente, a cidade sofria com a precariedade dos serviços prestados, sem
falar em sua tênue estrutura urbana “[...] que dificultava enormemente o seu progresso. Ruas
estreitas, becos, esgotos a céu aberto, redes elétrica e de água insuficientes, [...] de forma alguma
282
correspondiam à imagem de uma cidade ordenada, progressista e moderna” (WILKOSZYNSKY e
SOUZA, 1997, p. 183).
Dessa maneira, uma geografia modernizadora, construída sobre uma argamassa
progressista, se impunha sobre a cidade de Caicó, destacando a premência de edificação de novos
espaços esteticamente belos e saudáveis. Tal como um cenário de pura fachada, estes espaços foram
desejados por um segmento da sociedade, cujos seus ideais professavam uma modernidade urbana
atinada por uma perspectiva de nova fé republicana, no qual o futuro pertencia aos ditamos do
progresso por dois motivos principais: primeiro pelo fato de serem requisitos básicos para que a
cidade progredisse e segundo para que “novos grupos sociais em ascensão, ligados às atividades
tipicamente urbanas, [...], [se identificassem] no seu processo de vir a ser, à medida que só
passariam a existir, como classe, em função de vivência social” (ESSUS, 1997, p. 286).
Além da construção de novos espaços para uma cidade sonhadora, outros sinais de
progresso e de civilização deveriam ser inseridos em sua paisagem urbana, revestindo seu solo com
os símbolos e signos que remetessem a um ideal de modernidade. A cidade esperava, dentre muitas
coisas, a inserção de novas técnicas e artefatos mecânicos, vivendo da ansiedade e esperança de,
num certo dia, esses novos equipamentos serem enxertados em seu espaço urbano, melhorando a
vida dos seus habitantes.
Para tal realização, políticas público-privadas e formas de comportamentos, tidas
como salubres e higiênicas, eram almejadas e desejadas pelos preconizadores desses planos de
modernização urbana. A partir de discursos, ora simplesmente influenciados, ora realmente
produzidos por sujeitos dessa elite político-econômica e impressos, sobretudo, nas páginas do
Jornal A Fôlha, foi possível atinar os espaços, as práticas, os equipamentos e os serviços urbanos
considerados importantes e necessários para a materialização de desejos correspondentes a
edificação de uma cidade moderna no e para o sertão seridoense.
Referências
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283
imaginário urbano. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997, p.
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GOMES, Paulo César da Costa. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Tradução de Adail Ubirajara Sobral e de Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Ed. Loyola, 1992.
LAPA, José Roberto do Amaral. A cidade: os cantos e os antros: Campinas 1850-1900. São Paulo:
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Ano I. Número 6.
OLIVEIRA, José Aldemir de. Manaus de 1920-1967 – A cidade doce e dura em excesso.
Manaus: Editora Valer/Governo do Estado do Amazonas/Editora da Universidade Federal do
Amazonas, 2003.
WILKOSZYNSKY, Artur do Canto e SOUZA, Célia Ferraz de. Tristeza: a imagem que formou sua
imagem. In: SOUZA, Célia Ferraz de e PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens urbanas: os
diversos olhares na formação do imaginário urbano. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 1997, p. 181-188.
284
O FEMININO ESCRITO E O CORPO REPRESENTADO:
UMA ANÁLISE DA “CONSTRUÇÃO” DO “FEMININO” PELA SENSIBILIDADE
BURGUESA E SUA CIRCULAÇÃO EM ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE CAICOENSE.
xxii
Edivalma Cristina da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Bolsista CAPES
Corpos higienizados, castos, “puros”. Femininos recatados, honestos, honrados. Ideais
de “ser” mulher e de feminilidade passam a ser difundidos através das revistas femininasxxii,
sustentado em uma nova sensibilidade burguesa que entra em transformação em fins do século XIX
e estende-se pelo século XX, refletindo relações minuciosamente perpassadas pelo amor romântico
moderno e pelos discursos médicos-higienistas, jurídicos e principalmente jornalísticos.
Essas mudanças na sensibilidade, nos sentidos, nas concepções de feminino e de corpo,
refletiram-se principalmente através da literatura onde “a ficção romântica descreve uma atitude de
amor mais próxima a um estado da alma do que da atração física”. (D’Incao, 1997: 233). Logo, na
sociedade burguesa e moderna, o amor passa a ser apresentado como um estado da alma difundido
principalmente através da literatura romântica brasileira.
Duarte (1999) mostra que o sistema de significação que chamamos de cultura ocidental
está perpassado por relações que se entrecruzam em fenômenos ligados à sensualidade, sexualidade
e
sensibilidade,
categorias
de
pensamento
que
são
incorporadas
pelos
indivíduos
inconscientemente. De acordo com o autor, concomitantemente ao dispositivo da sexualidade –
pensado principalmente por Foucault – surge o dispositivo da sensibilidade ocidental que se refletiu
nos romances e se tornou um veículo de incitação dos sentidos que perpassa até dias atuais,
consistindo em mudanças no comportamento sexual e em novos estilos de vida sobrepostos ao
tradicional, como também em desenvolvimento de tecnologias que produzem a longevidade e a
qualidade do corpo, entre outros. Dessa forma, pensamos que este dispositivo da sensibilidade se
faz sentir, a partir da modernidade, em toda uma excitação dos sentidos e através de uma
preocupação maior com o corpo: o teatro, o cinema, o dancing, a higiene, as especialidades médicas
de saúde – odontologia, ginecologia, psiquiatria – todos esses instrumentos contribuíram para uma
ampliação da sensibilização do corpo através de relações de saberes e poderes.
Esse dispositivo de sensibilidade - aqui pensamos na sensibilidade burguesa - está
presente nos artigos e crônicas veiculados pelo Jornal das Moças retratando novas formas de
visibilidade e sensibilização para o feminino, construindo-o. Ao lado da sexualidade, os discursos
jornalísticos passam a difundir novas sensibilidades calcadas no amor romântico e centradas na
285
relação conjugal e familiar, como mostra D’Incao. O Jornal das Moçasxxii difundiu essa
sensibilidade através da idealização do feminino, concomitantemente tecida a do casamento e da
família, onde a mulher é constantemente comparada a anjos, por sua candura, simplicidade e beleza,
mas que deve amar, fazendo de tudo (ser submissa e perdoar) para manter a felicidade conjugal e
doméstica. Segundo o Jornal das Moças, “a moça deve ser como os anjos, que tendo olhos não
vêem senão o que é bom, mas não deve ser como os anjos, que não sabe o que é amor”xxii.
Este ideal feminino burguêsxxii calca-se na tríade femininaxxii: mãe, esposa, dona de casa,
perpassado por relações de poder e saberes de uma cultura falocêntrica. As representações do
feminino e do masculino são pensadas enquanto discursos “verdadeiros” inseridos em papéis e
“identidades de gêneros” inteligíveis, unívocos e universais: a mulher burguesa deveria ser recatada,
do lar, de boa conduta e honesta, e o homem deveria ser trabalhador, de bom caráter, sem vícios e
honesto. Dessa forma, percebemos que os discursos jornalísticos transformaram o feminino, o
casamento e o lar em ideais a serem alcançados. Logo, podemos afirmar que a opressão feminina
origina-se no fato da sua capacidade de reprodução (física e moral), onde a mulher passou a ser
pensada a partir do biológico, reduzida ao lar e as relações de dominação.
O gênero, pensado aqui como categoria analítica e relacional é constituído por partes
inter-relacionadas que não possuem significados independentes – masculino e feminino. No
entanto, como acrescenta Flax (1991), é notório que estas relações de gênero tem sido relações de
dominação, tendo como “pivor” o homem, as quais pensam o feminino de forma universal lhe
atribuindo características peculiares a cada sexo, naturalizando as categorias de gênero. Como
coloca Butler (2003), a unidade do sexo aliado à coerência interna do gênero e a estrutura binária do
sexo, constituem-se enquanto ficções reguladoras que naturalizam e cristalizam regimes de poder
heterossexista que tendem a opressão masculina. Afirmamos, dessa forma, que em contraposição a
visão do homem enquanto possuidor de um sexo, os discursos jornalísticos “constroem” a mulher
enquanto “o sexo”.
Através da poesia Parallelo, de Wanderley, notamos a construção do feminino pelos
discursos jornalísticos enquanto “o sexo” em constante comparação masculino:
A aspiração do homem é a suprema gloria. A aspiração da mulher é a virtude
extrema. A gloria faz o immortal, a virtude faz o divino.O homem tem a
supremacia. A mulher tem a preferência. A supremacia significa a força, a
preferência representa o direito. O homem é forte pela razão. A mulher é
invencível pelas lagrimas. A razão convence, as lagrimas commove. O homem é
capaz de todos os heroismos. A mulher de todos os martyrios. O heroismo
ennobrece, o martyrio sublima. O homem é um código. A mulher um evangelho. O
código corrige, o Evangelho aperfeiçôa. O homem é o templo. A mulher é o
sacrario. Ante o templo descobre se, ante o sacrario ajoelha se; O homem pensa. A
mulher sonha, Pensar é ter no coração uma lava, sonhar é ter na fronte uma aureola.
286
O homem é o occeano. A mulher é o lago. O oceano tem a perola que adorna., o
lago tem a poesia que deslumbra. O homem é a aguia que vôa. A mulher é o
rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço, cantar pe consquistar a alma. O homem tem um pharol –
a Consciência. A mulher tem uma estrella – a Esperança. A consciência guia ], a
esperança salva.
Enfim: o homem está collocado onde termina a terra. A mulher onde começa o
céoxxii.
Percebemos através deste artigo que o feminino é construído discursivamente
enquanto o oposto do sexo masculino, solapando as diferenças em desigualdades de gênero.
Segundo Wanderley, a aspiração do homem é a suprema glória, ele tem a supremacia que significa
força, é racional e pensa, capaz de heroísmos que o enobrece, é a águia e o oceano, tem a
consciência, é o código que corrige e localiza-se onde termina a terra. A mulher, em contraposição,
aspira à virtude extrema, é emotiva e convence pelas lágrimas, é capaz de todos os martírios que a
sublima, ela sonha e tem a esperança, ela é o rouxinol, o lago e o evangelho que aperfeiçoa e
localiza-se onde começa o céu. Imagens veiculadas que constroem um masculino enquanto forte,
punitivo e racional e o feminino enquanto frágil, reprodutora de valores, irracional e emotiva.
As representações do feminino e do masculino que são veiculadas através das
crônicas e artigos do Jornal das Moças estão ligadas concepções do saber médico sobre o corpo, nos
quais se desenha a mulher enquanto “sexo oposto ao homem”: O homem é pensado enquanto o
sexo forte, que trabalha fora e tem liberdades e a mulher tecida a partir de comparações com o
masculino, reduzindo-as a virtude, ao lar, ao doméstico e enquanto reprodutoras de valores e
comportamentos morais. Essa difusão do ideal feminino honesto e honrado passa a ser contraposta a
contra ideais republicanos de mulheres desonestas, a exemplo das prostitutasxxii, infanticidas e das
que se envolviam com os abortosxxii. Como mostra Segato (1998) e Flax (1991) os dimorfismos
macho-fêmea agregam significados instituídos e distribuídos através da matriz binária masculinofeminino, gerando dualidades de gênero onde as relações de gênero são pensadas a partir de uma
barreira natural em que as diferenças anatômicas entre “macho” e “fêmea” são ligadas à classe do
natural.
“Em nome” dessa barreira natural, a mulher é reduzida ao assujeitamento e a submissão
através de discursos que a constroem enquanto um gênero inteligível, do qual se espera que se
adeque a todas as mulheres. Logo, o feminino pensado a partir da sensibilidade burguesa foi
inserido em regimes de saberes que o delimita, o constrói, o controla, estabelecendo fronteiras
simbólicas para a circulação da mulher em espaços de sociabilidade como o cinema, a praça, os
bailes e os sambas. Segundo Mott e Maluf (2001) a mulher que transcendesse o espaço privado para
ao público deveria fazê-lo sempre acompanhada, demonstrando recato e boas condutas. Essa
287
insistência no feminino em constante vigilância foi recorrente na fala de todos os entrevistados, os
quais acrescentaram que as moças “direitas” e honradas “nunca” andavam sozinhas, mas sempre na
companhia dos pais ou de alguém responsável – casado. João Pedro, 82 anos, retrata suas memórias
sobre as lembranças que tem do cinema enquanto local principalmente de sociabilidade, mas
também de moralidade, insistindo no corpo vigiado, no feminino acompanhando:
Lá na Praça da Liberdade, acho que ainda tem o prédio (...) era o de Clóvis. Era um
a rapaz velho. Passava era um negócio de cowboys, de briga, não era imoral não,
todo mundo assistia. E passava umas séries, nós ficava “viciados”, não perdia de
jeito nenhum. Era uma história, sabe? No cinema entrava homem e mulher, não
tinha problema não. As mulheres iam sempre acompanhadas. As casadas iam com
o marido, as solteiras iam com a família. Era coisa séria!
Chegava, sentava ali na cadeira e ficava conversando. Começava, nós ia prestar
atenção à história que ia passar. Agora quando saía, saía tudo pra praça. Na Praça
da Liberdade o povo ficava andando até umas dez horas. Umas ficavam sentadas,
umas casadas e as outras ficavam rodando, conversando, namorando, ai era o povo
tudo misturado, não tinha separação não. (...) Era bom, era o divertimento que
tinha. Ou ia para o cinema ou ficava na praça.
Na fala de João, o cinema e a praça interligavam-se enquanto locais de sociabilidade e
divertimento convergindo na formação do tecido da modernidade em que as classes populares
também se inseriam. O Cinema e a Praça da Liberdade, em Caicó/ RN, sedimentavam-se enquanto
signos do moderno entre as décadas de 1900 a 1945. Mas nem todas as “moças” se “misturavam”.
Nos espaços de sociabilidades as fronteiras simbólicas também eram nítidas entre uma moça
honrada e uma moça desonrada. Benedita, 90 anos, nos demonstra isso através de sua memória ao
nos contar que,
uma mulher falada não tinha os mesmo direitos de uma mulher honrada não. Eu me
lembro de Preta no casamento de Severino, ela dançou uma parte, quando o dono
da casa viu, a chamou e disse: Você aqui não dança não, porque você não é direita,
você aqui não dança não. Ela só fez sentar e não dançou mais não.
Tornavam-se “nítidas” as fronteiras simbólicas em que o feminino inseria-se através da
disciplinarização de seu corpo e das técnicas corporaisxxii que lhe eram transmitidas. Essas
fronteiras sócio-historicamente estabelecidas por redes capilares de saberes e poder controlavam a
produção e proliferação dos discursos e a circulação feminina pela esfera pública – bailes, cinemas,
sambas, feiras – legitimado pelos discursos moralistas, também difundido pelos jornalistas. Como
coloca Barth (2000), essas fronteiras simbólicas permanecem apesar do fluxo de pessoas que
transitam entre elas e são elas que criam o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo
social. A distinção entre quem freqüenta este espaço é estabelecida através dos processos de
exclusão e incorporação, o qual depende de traços culturais particulares, seja por meio de sinais ou
288
signos manifestos - característica como língua, forma das casas ou estilo de vida - ou através de
orientações valorativas básicas como os padrões de moralidadexxii.
Percebemos que a sensibilidade burguesa perpassava pelos espaços de sociabilidade
fundamentando condutas, moralidade, comportamentos, tendo como “pilar” o amor romântico para
pensar as relações sociais e a “delimitação” de espaços de circulação do corpo feminino. No mesmo
viés, observamos que o feminino é construído nessa relação entre espaços de sociabilidade e
sensibilidade, emergindo enquanto construto sócio-cultural que se expande através dos jornais, mas
principalmente através da oralidade. Todavia, alertamos que ser mulher expande-se além dos
estereótipos culturais que são difundidos na sociedade, pois adentra pelo campo da subjetividade,
das representações de corpo e da identidade, convidando-nos a olhar além dos papéis inelegíveis de
gênero, o que nos proporemos fazer em um próximo artigo, pois essa pesquisa ainda está a
caminhar!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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289
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SEGATO, Rita Laura. Os percursos do gênero na antropologia e para além dela. Série
Antropologia: UNB, 1998;
290
REVELAÇÕES FOTOGRÁFICAS DAS MULTIFACES CRUZETENSES
Jeyson Ferreira Silva de Lima
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]
Dr.ª Eugênia Maria Dantas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]
Introdução
Imbricada na sociedade, a abordagem da cidade remete-nos a um discurso sobre seu
cotidiano como meio que possibilita a sua contextualização no espaço. Diante dessa possibilidade,
nos questionamos como será possível fazer essa interface entre o cotidiano e o espaço urbano? O
uso da fotografia como fonte ou documento histórico, pode nos auxiliar a compreender esse
cenário, pois em sua composição estão aglutinados elementos passiveis de observação e análise. Ela
traz informações acerca dos componentes espaciais, dando luz a uma abordagem sobre esses
componentes. As fotografias produzidas pelo fotógrafo Inácio Rodrigues Viana, da cidade de
Cruzeta/RN, nos propicia um leque de informações sobre o espaço no contexto das décadas de
60/70 do século passado. Seguindo pelos caminhos que as fotografias revelam desbravamos as
multifaces que delineiam os espaços das cidades colocando em diálogo o real e o imaginário, a
partir de seus movimentos, permanências e transformações.
O olhar do fotógrafo ao olhar a cidade.
A realização da vida urbana se dá pelas veias que irrigam um campo vivo denominado de
cidade. Para Michel de Certeau a cidade é o “lugar de transformações e apropriações, objeto de
intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo a
maquinaria e o herói da modernidade” (CERTEAU, 2001). Em outras palavras, o teórico ressalta a
idéia do espaço transformado, modificado em função dos interesses sociais.
Possuindo características que são moldadas pelas atitudes e gestos humanos, podemos falar
que a pequena cidade, de um modo geral, congrega um arsenal cultural de extrema importância,
principalmente quando se é pretendido estudar sua comunidade. Nela estão dispostos elementos que
dão forma a um cotidiano ainda apegado as características do meio bucólico, sendo assim é possível
tecer análise sobre a cultura de uma sociedade a partir do estudo do espaço urbano das pequenas
cidades.
291
Para compreender como se configurava este espaço é necessário utilizar fontes que
permitam legitimar sua leitura. Assim, a fotografia é uma fonte que concentra informações espaciais
visuais que podem ser (re)interpretadas a luz de quem as observa a posteriori, como se fosse uma
segunda realidade, que segundo KOSSOY (1989) diz respeito à possibilidade de leitura da
fotografia após a sua captura.
Assim como a fotografia revela, sob forma de informação o espaço, e este por sua vez é
revelado por meio da fotografia, isso não se dá de forma esporádica, mas sim a partir da premissa
do fotógrafo, pois sem esse não haveria a fotografia como produto final.
“O produto final, a fotografia, é, portanto resultante da ação do homem, o
fotógrafo que em determinado espaço e tempo optou por um assunto
especial e que, para seu devido registro, empregou os recursos oferecidos
pela tecnologia em cada época” (KOSSOY, 1989).
Por isso, podemos falar do fotógrafo como sendo um filtro cultural, e essa afirmação pode
ser explicada pela premissa de que, toda fotografia é um objeto da vida social, pois ela apreende no
papel fotográfico apenas o desejado pelos seus criadores, e estes são por conseqüência de seus atos
personagens da sociedade. O assunto apreendido pelo fotógrafo está disposto no espaço, sob forma
de características mais eminentes deste, são elas que o projetam.
A fotografia revelando as multifaces da cidade.
A vida social ganha mais volume, contorno e cor quando atrelada à cidade. Essa parece ser a
impressão Ronilk, quando afirma “imbricada, portanto como natureza mesma da cidade está à
organização da vida social e consequentemente a necessidade da gestão da produção coletiva...”
(ROLNIK 1994). Como pontuou a autora a cidade sempre permitiu um leque de tramas sócioespaciais. Sendo assim, circunscrita por uma vida social considerada dinâmica para a época, a
cidade de Cruzeta se configurava como um espaço caracterizado por multifaces.
A cidade de Cruzeta (Fig. 1) está Localizada na Região do Seridó Potiguar no estado do Rio
Grande do Norte. Com uma população superior a 8.000 habitantes (IBGE, 2007), é uma cidade
caracterizada pela presença de indústrias de ceramistas, que hoje dão vida econômica a cidade. Em
seu território, também se localiza um dos maiores reservatórios de água da região Seridó: o Açude
Cruzeta, Criado pelo DNOCS no ano de 1929.
No limiar da história, mais precisamente no inicio do Século XX, Cruzeta era apenas um
pequeno povoado do município de Acari. A fundação desse povoado inicia-se com a doação de uma
292
porção de terras, por parte do senhor Joaquim José Medeiros à Igreja Católica para construção da
Capela em homenagem a nossa senhora dos Remédios. A partir de então se pode falar da fundação
de um povoado, que foi se desenvolvendo no entorno das águas do açude Cruzeta. No dia 18 de
agosto de 1937 a pequena localidade torna-se distrito do município de Acari, tornando-se
emancipado pela lei nº. 915 no dia 24 de novembro de 1953xxii.
Figura 1.
Vista panorâmica do açude de Cruzeta com a cidade ao fundo.
Fonte: banco de dados “Fotografia e Complexidade”.
A notoriedade da representação do espaço urbano cruzetense deve ser dada ao fotógrafo
Inácio Rodrigues Viana, este veio ao mundo no dia 4 de março de 1933, na cidade de Goianinha
(que hoje é a cidade de Condado), no Estado da Paraíba. Começou a fotografar na cidade de
Campina Grande/PB, onde residiu durante dez anos, incentivado pelo irmão Adelino Rodrigues
Teixeira, que também era fotógrafo. Fixou residência na cidade de Cruzeta-RN em 1961, logo que
casou, pois ganhou de seu irmão um material fotográfico bem vasto, composto por máquina,
ampliador, dobras, papel e filmes, e então decidiu efetuar a profissão de fotógrafo, embora tenha
continuado a trabalhar no comércio com seus sogros. Com os materiais na mão, o senhor Inácio
começou a fotografar os espaços e as pessoas da cidade, ele a fotografou em diversos momentos,
sendo sua produção mais relevante nas cerimônias de formaturas, casamentos, desfiles, construções,
etc. xxii
E assim, o acervo fotográfico de Inácio Rodrigues nos possibilita ler a as cartografias de
Cruzetenses, tomando suas fotografias como ponto inicial de nosso debate. As imagens fotográficas
fornecidas pelo ele, nos ensejam colocar a cidade em um quadro particular, nos levando abordar o
seu espaço sob diferentes aspectos, pois conseguimos perceber nesta, momentos da vida social que
293
se projetam no espaço com veemência: conseguimos problematizar através da fotografia a cidade
das construções, da fé, dos casamentos, dos esportes e a cidade dos eventos.
A cidade das construções está representada pelas grandes obras (Fig. 2) que marcam o
cenário urbano daquela época, como a construção da ponte sobre o rio que deságua no açude
público municipal, e de diversas construções espalhadas pela urbe, que interferiram na paisagem da
cidade e conseqüentemente na vida de seus moradores.
Figura 2.
Obras espalhadas pela cidade de Cruzeta
Fonte: banco de dados “Fotografia e Complexidade”.
Vários aspectos da vida cotidiana podem ser ressaltados pela fotografia. Por meio dela
podemos ver a dinâmica do tempo em suas vertentes passadas e presentes. Nesse sentido, caminhar
pela urbe, tendo por guia um conjunto de imagens produzidas daquele lugar, nos faz enxergar uma
cidade que bricola os limites dos relatos de seus moradores aos acontecimentos e transformações
sócio-espaciais visíveis nas fotografias. Assim, podemos ver o cotidiano sendo registrado na
cerimônia de casamento de um casal cruzetense, na formação do time de futebol da cidade, nas
passeatas comemorativas em homenagem aos dias especiais para a cidade (Fig.3).
Estes registros fotográficos revelam ainda uma série de características da cidade que não são
perceptíveis quando se está inserido no dentro de seu movimento. Desta forma, a fotografia mostra
a materialização da sociedade no espaço, e essa materialização se manifesta nos elementos que
caracterizam a paisagem, e ai está a informação contida na imagem fotográfica, ela é resultante da
captura destes elementos. Seguindo esta direção acerca das interpretações fotográficas, podemos
discorrer que, a informação contida na fotografia pode nos auxiliar a compreender o cenário que se
deu em um determinado tempo e lugar.
294
E assim, a pequena cidade interiorana de Cruzeta, pode ser compreendida como um espaço
de experiências cotidianas mútuas, pois os eventos que se sucedem nesta provocam interferências
na vida de seus habitantes. E nesse sentido, pensar na cidade pequena é reinventar o espaço da
comunidade. E sobre o cotidiano, sobretudo das cidades Seridoenses, Morais assinalava “Todavia, a
vivência citadina tinha seu ritmo ditado pelos momentos de celebração religiosa, de eleições, de
realização de feiras, nos quais a população do campo vinha para as cidades...” (MORAIS, 2005).
Figura 3.
Mosaico de imagens revelando multifaces urbanas
(esportes, casamentos, religiosidade e eventos comemorativos).
Fonte: Fonte: banco de dados “Fotografia e Complexidade”.
Rumo à conclusão
A fotografia, então, costuma revelar-se como um relato do silencioso, pois, “os relatos
efetuam, portanto um trabalho que incessantemente, transforma lugares em espaço ou espaço em
lugares”. (CERTEAU, 2001). E assim, quando vemos Cruzeta a partir das imagens, percebemos
aquele lugar como um espaço em movimento, movimento da sociedade responsável por projetar
aquelas cartografias urbanas, e a fotografia então torna-se responsável por propiciar interpretações
futuras . Essas interpretações vão sendo desveladas e ampliadas com a fotografia se transformando
em fonte de reflexão e sistematização da vida e do cotidiano das cidades do sertão do Seridó.
295
BIBLIOGRAFIA
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2001.
CLAVAL, Paul. A geografia Cultural. 3ª Ed. Florianópolis/SC: Ed. da UFSC, 2007.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo/SP: Atica, 1989.
MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó Norte-rio-grandense: uma geografia da resistência.
Caicó/RN: Ed. do Autor, 2005.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo/SP: Hucitec, 1988.
xxiii
Roger Chartier define representações como “as representações do mundo social [...] sempre determinadas pelos
interesses de grupos que as forjam”. Acrescenta ainda que “as lutas de representações tem tanta importância como as
lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do
mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.”xxiii
CHARTIER, Roger. História cultural entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Rio de
Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990. p.17.
xxiv
João Brígido, fazia parte do partido liberal, exercendo grande influência no Crato, vindo morar na capital em 1865,
sendo este um dos fatores que marcou o fim da publicação do jornal.
xxv
“De acordo com o livro quarto das Ordenações Filipinas, a ingratidão do liberto estava configurada se este ferisse ou
tentasse ferir o ex-senhor, se o prejudicasse na sua fazenda, se o deixasse de socorrer em casos de fome ou necessidade,
ou se proferisse injúrias verbais contra o patrono mesmo na sua ausência”. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade.
Uma História das Últimas décadas da Escravidão na Corte. Companhia das Letras, São Paulo – SP, 2003. p.137.
xxvi
João Brígido foi um dos intelectuais da cidade do Crato que “propugnava e conduzia o projeto civilizador” daquela
cidade no século XIX.
xxvii
O historiador, Pedro Alberto de O. Silva, comenta que “A presença do trabalho escravo em certas regiões,
certamente criou preconceitos contra os trabalhos pesados, principalmente aqueles ligados à lavoura; mesmo entre as
classes populares, que viviam um nível de vida tão baixo quanto ao dos escravos”. SILVA. Pedro Alberto de Oliveira.
História da Escravidão no Ceará. Das Origens á Extinção. Imprensa Universitária, Fortaleza, 2002. p.p.63-64. Essa
situação é refletida nos dias de hoje na nossa sociedade. Ainda na atualidade, percebemos o preconceito relacionado ao
negro e a dificuldade que este encontra para a inserção no meio social.
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VIII Semana de Estudos Históricos do CERES