Maria Clara Ribeiro da Costa
A AMÉRICA DE
WOLFGANG KOEPPEN:
AS VIAGENS DE UM OBSERVADOR
Dissertação de Mestrado em
Estudos Alemães apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Porto
1998
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Maria Marques
de Almeida pelo interesse, empenho e dedicação
prestados na concretização deste trabalho.
Ao Professor Doutor Gonçalo VilasBoas por me ter motivado para a descoberta
da obra de Wolfgang Koeppen e pelo apoio
bibliográfico dispensado.
Aos meus familiares e amigos pelo
carinho, compreensão e paciência ao longo desta
tarefa.
A um amigo muito especial pelo incentivo
e ânimo que me deu durante a elaboração desta
tese.
2
ÍNDICE GERAL
PREFÁCIO .............................................................................................................. 5
I - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-LITERÁRIA ..................................... 8
A. Os relatos viagísticos no contexto da obra koeppeniana ..................................... 9
B. O relato viagístico koeppeniano no contexto da literatura de viagens .................11
C. Os EUA como objecto de estudo por parte de outros autores alemães ...............16
D. Recepção da obra viagística koeppeniana ..........................................................21
II - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS SOBRE A LITERATURA DE VIAGENS ....26
A. Problemática da designação “literatura de viagens” ............................................27
B. Lugar dos textos viagísticos na literatura ...........................................................31
C. Literatura viagística e autobiografia ..................................................................34
D. As instâncias de comunicação na literatura viagística .........................................39
E. O conceito das Fremde vs. das Eigene ..............................................................46
III - AMERIKAFAHRT ............................................................................................49
A. A viagem ..........................................................................................................50
1. As circunstâncias da escrita de Amerikafahrt ...............................................50
2. O percurso pelos Estados Unidos da América ...............................................53
3. Elementos pessoais em Amerikafahrt ...........................................................60
3
B. Linhas temáticas dominantes .............................................................................66
1. Turismo vs. anti-turismo ...............................................................................66
2. Confronto entre das Eigene e das Fremde ....................................................70
3. Visão crítica da América ...............................................................................74
4. Alguns motivos recorrentes ..........................................................................77
4.1. Alojamento e alimentação ......................................................................77
4.2. Bibliotecas e universidades ....................................................................81
4.3. Vastidão do continente americano .........................................................83
4.4. Questão racial ........................................................................................84
5. Simbolismo da viagem ..................................................................................87
5.1. Viagem “literária” ..................................................................................88
5.2. Viagem “histórico-política” ....................................................................92
5.3. Viagem “artística” .................................................................................94
5.4. Viagem “filosófica” ...............................................................................95
5.5. Viagem “religiosa” .................................................................................98
C. Análise estrutural e estilística .......................................................................... 100
1. Estrutura e situação narrativa .................................................................... 100
2. Elementos linguísticos recorrentes e recursos estilísticos ............................ 105
CONCLUSÃO ....................................................................................................... 108
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 111
4
PREFÁCIO
5
Viver! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim.
E a ânsia de o conseguir.
Fernando Pessoa
O presente trabalho pretende, como o próprio título sugere, explorar a obra
viagística de Wolfgang Koeppen intitulada Amerikafahrt. Não coube no âmbito desta
dissertação o estudo das outras duas narrativas de viagens koeppenianas, Nach Ru? land
und anderswohin e Reisen nach Frankreich, pois tal exigiria uma abordagem mais ampla
que não se esgotaria com certeza numa dissertação de mestrado. No entanto, também me
referirei a essas obras ao longo do trabalho, esperando aguçar o apetite e a curiosidade
de todo o leitor apaixonado pela escrita de Koeppen. Também farei por vezes referências
à sua obra romanesca, não pretendendo de modo algum apresentar uma análise da
mesma, mas apenas na medida em que se impuser um confronto entre os dois tipos de
escrita do autor.
O relato Amerikafahrt foi, entre todos, o que mais me fascinou, por se ocupar de
problemas tão actuais como a situação de minorias étnicas, o sonho americano e as suas
anomalias, mas não só. A viagem que Koeppen empreende pela América não parece
poder resumir-se a uma viagem só, concretizada entre Abril e Junho de 1958, transmitida
pela rádio em Dezembro do mesmo ano e editada em forma de livro em 1959. São várias
as viagens de Koeppen, fazendo lembrar as palavras de Almeida Garrett, no capítulo II
das Viagens na minha terra:
Estas minhas interessantes viagens hão-de ser uma obra-prima, erudita,
brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer
ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas
rabiscaduras da moda, que, com o título “Impressões de Viagem”, ou outro que
tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da ciência e do
adiantamento da espécie.
As viagens que Koeppen realiza não são só deslocações a nível físico, mas são
também deambulações e reflexões a nível histórico, filosófico e principalmente literário.
Não são, pois, como afirma Garrett, “impressões de viagem”, objectivas, morosas e
6
enfadonhas, mas são “literatura de viagem”, reunindo todas as condições para serem
apelidadas de obras literárias.
No capítulo I pretendo contextualizar a obra viagística de Koeppen, não só na
produção literária do autor mas também na literatura de viagens, apresentando ainda
outras visões da América por parte de diferentes autores alemães. Koeppen é
essencialmente conhecido pela sua trilogia do pós-guerra e a dissertação de
doutoramento do Professor Doutor Vilas-Boas, que constitui sem dúvida um estudo
aprofundado da mesma - A Trilogia de Wolfgang Koeppen. Um Discurso de Resistência
-, é certamente uma leitura obrigatória na germanística portuguesa. Todavia, não
podemos descurar o talento de Koeppen como escritor de relatos viagísticos, se bem que
os motivos que o levaram a tal tarefa tenham sido bastante peculiares, como explicitarei
no capítulo III.
No capítulo II apresentarei os pressupostos teóricos sobre a literatura de viagens,
problematizando em primeiro lugar esta designação de modo a encontrar o seu devido
lugar no contexto literário e relacionando-a com aspectos tão essenciais como a escrita
autobiográfica e as instâncias de comunicação na obra literária.
Passarei à análise propriamente dita da obra Amerikafahrt, no capítulo III,
referindo primeiramente a viagem que Koeppen realizou, ligando-a aos motivos que o
levaram a escrever esse relato viagístico. Traçarei também o percurso feito através dos
Estados Unidos e salientarei os elementos autobiográficos presentes na obra. Também
dedicarei a minha atenção ao estudo das linhas temáticas dominantes e da linguagem e
estilo.
Hermann Schlösser afirmava: «Wenn die Welt ein Buch ist, dann ist das Reisen
ihre Lektüre» (Schlösser, 1987: 190). Eu diria que o inverso também é verdade: se o
livro contém em si um mundo inteiro, lê-lo será como viajar... Viajar não só no sentido
de conhecer ou reconhecer locais mais ou menos longínquos, mas viajar também no
sentido do sonho, da libertação. Podemos tentar “ser outro constantemente”, como
afirma Fernando Pessoa, um pouco na linha da atitude de Koeppen como observador,
estranho e estrangeiro. Espero, assim, proporcionar também ao leitor viagens
interessantes e variadas, além de oferecer uma visão geral da obra viagística koeppeniana
que possa fomentar o interesse pela leitura da produção deste autor.
7
I - CONTEXTUALIZAÇÃO
HISTÓRICO-LITERÁRIA
8
A. OS RELATOS VIAGÍSTICOS NO CONTEXTO DA OBRA KOEPPENIANA
Wolfgang Arthur Reinhold Koeppen, um dos escritores alemães mais ilustres do
nosso século, nascido a 23 de Junho de 1906, é talvez mais conhecido pela sua trilogia
do pós-guerra, que inclui Tauben im Gras (1951), Das Treibhaus (1953) e Der Tod in
Rom (1954). Em Tauben im Gras, a acção situa-se num só dia na cidade de Munique do
pós-guerra, onde as diversas personagens se encontram e desencontram em trajectos
carregados de alienação, isolamento, medo, agressão. Das Treibhaus conta a história de
um deputado exilado que, perante o mundo corrupto da política, opta pelo suicídio. Der
Tod in Rom narra a história de um grupo de homens que se encontram em Roma e cujo
passado de guerra se impõe sobre as suas memórias, pondo a nu as incongruências e
atrocidades da guerra.
A julgar pela recepção da crítica, podemos afirmar que estes romances
“incomodavam”, pois Koeppen, não se integrando nas práticas literárias do seu tempo,
mostrou uma Alemanha dos anos 50 através de uma luz negativa, envolta em resignação
e pessimismo.
Autor marginalizado e incompreendido, essencialmente pela crítica dos anos 50,
Koeppen volta-se, a partir de 1958, para outro tipo de escrita, os relatos de viagens.
Inicialmente, estes relatos eram destinados à difusão por rádio, tarefa de que Koeppen
fora incumbido por Alfred Andersch em 1955, quando este o mandou para Espanha,
seguindo-se depois viagens para Roma em 1956, para a União Soviética, Varsóvia, Haia
e Londres em 1957, para uma viagem de oito semanas aos EUA em 1958, para França
em 1959 e finalmente para a Grécia em 1961. Assim, surge em 1958 a primeira
colectânea de viagens sob o título Nach Ru? land und anderswohin, em 1959
Amerikafahrt e em 1961 Reisen nach Frankreich. Segundo Reich-Ranicki, um dos
maiores críticos da obra koeppeniana, estes relatos são obras secundárias face aos
romances, são “Seitensprünge des Romanciers” (Reich-Ranicki, 1976: 106). Aliás, o
próprio autor se refere aos livros de viagens como “Umwege zum Roman”, “Ansätze zu
Erzählungen”, “Studien, Vorstudien zu anderen Produkten”, “Kulissenbeschreibungen”
ou ainda “Wegstrecken zum Roman” (apud Buchholz, 1987: 143).
Para muitos críticos esta viragem de Koeppen para a literatura viagística
representa um corte radical com os romances, indiciando um posicionamento mais
9
comedido e resignado por parte do autor. Karl Korn afirma, por exemplo, no
Frankfurter Allgemeinen Zeitung:
Geistig und politisch bedeutet es für den Autor und vielleicht für die Lage der
Intelligenz überhaupt eine symptomatische Wendung. Der Koeppen, der das
Treibhaus schrieb... ist in dem Reisebuch kaum noch wiederzuerkennen. Er ist
mild geworden und scheint sich, was den politischen Anspruch des
Intellektuellen angeht, zu den Entsagenden geschlagen zu haben. (apud Uhlig,
1972: 60)
Também Marcel Reich-Ranicki constata uma mudança de posição de Wolfgang
Koeppen. Os seus romances, todos dos anos 50, teriam apresentado uma crítica
contundente à Alemanha da época, sendo preteridos e rejeitados por círculos mais
conservadores. As obras viagísticas, continua Reich-Ranicki, pouparam a Alemanha, o
que levou os críticos a afirmar aliviados:
Endlich ist der Koeppen vernünftig geworden! Er beschäftigt sich nicht mehr
mit dieser widerlichen deutschen Misere. Er nörgelt nicht an Deutschland rum,
sondern zeigt uns, wie gut der Wein in Frankreich ist und wie schön die Weite
Ru? lands. (in Hermann, 1994: 169)
Koeppen parece não se ocupar mais com a realidade alemã, com a miséria
reinante na Alemanha do pós-guerra e com as atitudes do povo alemão. Os seus temas
são menos incisivos em termos de crítica social, mostrando o autor também as belezas e
os costumes gastronómicos dos países que visita.
Depois dos relatos de viagens, Koeppen parece ter escolhido o silêncio, não
tendo escrito grandes obras, como o público teria esperado.
Na análise de Amerikafahrt destacarei as características peculiares da literatura
de viagens, restituindo-lhe um valor próprio e contrariando as concepções da obra
viagística como obra secundária ou produto derivado do romance.
10
B.
O
RELATO
VIAGÍSTICO
KOEPPENIANO
NO
CONTEXTO
DA
LITERATURA DE VIAGENS
Den Zusammenhang zwischen Roman und
Reisebericht, zwischen Fiktion und Faktum,
Erzählung und Reportage hat der Autor selbst
immer wieder betont, indem er die Reisebücher als
»Umwege
zum
Roman«,
»Ansätze
zu
Erzählungen«, »Studien, Vorstudien zu anderen
Produkten«,
»Kulissenbeschreibungen«
oder
»Wegstrecken zum Roman« apostrophierte.
Hartmut Buchholz (1987: 143)
Sendo ainda hoje polémica a designação “literatura de viagens”, dada a sua
especificidade, abrangendo simultaneamente a realidade e a ficção, o foro objectivo e o
subjectivo, importa analisar o surgimento e evolução do relato viagístico, de modo a
enquadrar a obra viagística de Koeppen.
Assim, na Idade Média, pode-se falar já em “Reisekultur” a propósito dos
movimentos e flutuações dos peregrinos que viajavam essencialmente por motivos
religiosos, tratando-se na maior parte das vezes de viagens de penitência. As condições
em que tais viagens se realizavam foram melhorando, com o apoio das próprias igrejas e
conventos que albergavam os peregrinos para Jerusalém, Santiago de Compostela e
Roma.
No século XVI, com a época dos descobrimentos e exploração do Novo Mundo,
as viagens revestem uma função mais informativa. Deste modo, com as viagens ao Novo
Mundo, pretendia-se recolher informações geográficas e etnográficas para a Europa,
surgindo um grande interesse pelos relatos de viagens. Aumenta, assim, o interesse
comercial e pré-científico. Há nestes relatos uma grande dose de subjectividade, aliada
ao facto de não haver informações concretas. O problema da autenticidade não se punha
e os relatos baseavam-se essencialmente na fantasia e no dogma bíblico, uma vez que um
dos intuitos principais seria a propagação da fé. Nota-se, mais tarde, uma posição mais
secularizada, tornando possível uma abordagem mais ligada à natureza, à fauna e à flora.
Verifica-se uma preocupação em listar vocabulário dos países visitados, pertencentes
essencialmente à Europa do Sul e ao Oriente, como prova de presença nesses lugares,
11
pondo-se em confronto as diferentes culturas. O exotismo é um factor sempre presente.
Assiste-se também a uma dessacralização ou secularização da viagem em si, havendo
uma dualidade de factualidade e posição subjectiva, e uma maior preocupação com o uso
estético da linguagem.
No século XVIII nota-se nos relatos um carácter híbrido de guia turístico e
divagação lírica. Como reflexo da sociedade sob influência da Aufklärung, predomina
uma mentalidade burguesa e dá-se um enfoque especial às viagens exploratórias de
James Cook, por exemplo, conferindo-se-lhes um carácter mais científico, de grande
importância para os domínios da cartologia, zoologia, geografia, antropologia,
sociologia, entre outros. Era importante educar o homem; daí a viagem ter uma função
formativa. A viagem tem também parcialmente um carácter recreativo, associado ao
espírito de aventura e um dos objectivos subjacentes prende-se com a destruição dos
preconceitos interrácicos.
Com as expedições do século XIX surge a preocupação em fazer o levantamento
topográfico do mundo. Os pressupostos históricos, metódicos e literários dos relatos
viagísticos científicos assentam depois do século XVIII em dois extremos: por um lado,
sernte-se a influência dos Reisebilder de Heinrich Heine que se baseiam em tradições
críticas da Aufklärung, mas também em tradições subjectivas da Empfindsamkeit e do
Romantismo; por outro lado a descrição viagística científica, que durante a Aufklärung
se transformara em género, surge como forma institucionalizada, sistemática e planeada,
contribuindo em muito para o alargamento do saber empírico. A relação entre a realidade
da viagem e a literatura de viagem é bilateral, uma vez que o relato viagístico não é só
produto da viagem mas opera também (como “elemento imaginativo”) sobre os
preparativos, a realização e a exploração das próprias viagens, preparando um conjunto
de preconceitos pelos quais os viajantes se deixam influenciar consciente ou
inconscientemente. As investigações nunca são, assim, resultado de uma só viagem, mas
sim de um complexo de iniciativas individuais motivadas pela curiosidade e pelo espírito
aventureiro. Gerhard Schulz analisou a transição da história da viagem da Aufklärung
para o século XIX com base no exemplo de três investigadores-exploradores - Forster,
Humboldt e Chamisso -, mostrando que a história viagística deste tempo pode ser
entendida como fase de mudança radical, não se tratando somente de um fenómeno
histórico-viagístico mas pressentindo-se uma nova orientação teórico-filosófica nas
experiências do mundo e da história.
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No século XIX assiste-se também a uma viragem para o continente americano,
acompanhada por massas migratórias, atraídas pelo conceito do “bom selvagem”
corporizado no índio, e pela ideia de a América representar o país do futuro, a
civilização. O motivo para as viagens deixa de ser exclusivamente religioso.
Nos inícios do século XX é marcante a presença do exotismo, como por exemplo
nas obras de Robert Louis Stevenson, Rudyard Kipling e Joseph Conrad, ou ainda
Gauguin no domínio da pintura. Palavras-chave desta época são, por exemplo, Jugendund Wandervogelbewegung, Freikörperkultur, Naturschutzbewegung, Okkultismus.
Aparecem obras como por exemplo Notizen über Mexico (1898) de H. G. Kessler,
Augenblicke in Griechenland (1908) de Hugo von Hofmannsthal, Fahrten ins Blaue
(1912) de Oscar A. H. Schmitz, ou ainda Das unruhige Asien (1926) de Arthur
Holitscher, obras essas que remetem para o improviso e para uma predilecção pela forma
de diário ou carta.
A partir dos anos 20 do mesmo século, verifica-se uma nova forma de viajar
ligada ao fenómeno do turismo em massa, cujas origens se podem aliás encontrar já nos
inícios do século anterior, como nas viagens de Thomas Cook, por exemplo. Esta nova
forma de viajar vai reflectir-se no próprio relato viagístico e assiste-se igualmente ao
aparecimento de variantes da literatura de viagens mais ligadas propriamente ao turismo,
a saber: guias turísticos, artigos de revista ou programas televisivos. Hans-Werner Prahl
e Albrecht Steinecke estudaram as diversas facetas da viagem turística sob o ponto de
vista sociológico e outros estudiosos dedicaram-se à investigação desta temática da
viagem, a saber: Heinz Rico Scherrieb, Margit Berwing, Hans Magnus Enzensberger,
Konrad Köstlin, Horst W. Opaschowski, Hermann Schlösser, Peter Baumgarten e KlausPeter Klein, para citar apenas alguns.
Paralelamente ao aparecimento de formas consideradas pouco ou não literárias,
surgem subgéneros que se baseiam não tanto na viagem em si mas mais em motivações
do foro da literatura interior, de causas políticas e desenvolvimentos sociais, dando
origem à prosa viagística expressionista, entre cujos autores podemos citar Norbert
Jacques, Alfons Paquet, Karl Otten, Waldener Bonsels, Hermann Bahr, Arthur
Holitscher e René Schickele, por exemplo. Com a Primeira Guerra Mundial dá-se um
corte na literatura viagística expressionista e aparecem novos tipos de viagem e de relato
viagístico, como por exemplo viagens na frente de batalha, de espionagem, de transporte
de tropas, prisioneiros ou feridos, e os motivos são marcadamente políticos e
13
relacionados com a guerra. Com a Revolução de Outubro de 1917, surge um interesse
crescente pela União Soviética. Autores como Alfons Goldschmidt, Wilhelm Herzog e
Max Barthel deixam transparecer nos seus escritos a euforia pela União Soviética, com
traços dominados pelo cunho político. Os Estados Unidos da América, destino escolhido
por milhares de emigrantes, com apogeu no século XIX, são também o destino de
escritores alemães da década de 20, não tanto na qualidade de emigrantes mas antes de
visitantes. A destacar, neste campo, os estudos de Theresa Mayer Hammond, Sara
Markham e Erhard Schütz de obras tão variadas como, por exemplo, Paradies Amerika
(1929) de Egon Erwin Kisch, Atlantis de Gerhart Hauptmann, Yankee-Land (1925) e
New York und London (1923) de Alfred Kerr, Amerikana (1906) de Karl Lamprecht,
Kultur im Werden (1924) de Alice Salomon, Ein Frühling in Amerika (1924) de Roda
Roda, Rundherum (1929) de Erika e Klaus Mann, Amerika ist anders (1926) de Arthur
Rundt, Amerika-Europa (1926) de Arthur Feiler, Eine Frau reist durch Amerika (1928)
de Martha Karlweis, Die dritte Eroberung Amerikas (1929) de Alfons Goldschmidt,
Wiedersehen mit Amerika (1930) de Arthur Holitscher, Amerikanische Reisebilder
(1930) de Ernst Toller, Eine Frau reist durch die Welt (1932) de Maria Leitner,
Auslandsrätsel (1922) de Friedrich Dessauer, Feldwege nach Chicago de Heinrich
Hauser.
No próximo capítulo aflorarei resumidamente as perspectivas apresentadas por
algumas destas e outras obras sobre a América, de modo a apresentar a imagem da
América por parte de alguns escritores alemães, que depois poderá ser comparada com a
imagem do mesmo país apresentada por Koeppen em Amerikafahrt.
Comum às obras anteriormente citadas é uma imagem bipolar da América: por
um lado positiva, atendendo ao aspecto económico, dado o desenvolvimento da
tecnologia e progresso presentes; e, por outro lado, negativa, essencialmente em termos
culturais, de corrupção dos valores e degradação nas relações humanas, de discriminação
e preconceitos relativamente a minorias rácicas.
Com o “Terceiro Reich”, acaba abruptamente o interesse pelo relato viagístico,
embora se calcule ter havido alguns relatos com uma função e forma específicas. O
conceito de Kraft durch Freude da época tinha como objectivo tornar a viagem acessível
às classes trabalhadoras, de forma a proporcionar-lhes não só o descanso mas
principalmente de forma a fortalecer o sentimento de comunidade e a ligação às
organizações nacional-socialistas.
14
Depois da Segunda Guerra Mundial não surgem influências novas no
desenvolvimento do relato viagístico. Com a divisão da Alemanha e surgimento das duas
Alemanhas em 1949, verifica-se uma predilecção por parte dos autores da República
Democrática Alemã pela União Soviética e outros países socialistas, e por parte dos
autores da República Federal Alemã pelos Estados Unidos da América. Os
acontecimentos históricos parecem desempenhar um papel marcante, aparecendo a
viagem muitas vezes como sinónimo de viagem ao passado recente, como podemos
verificar, por exemplo, no diário de guerra de Curt Hohoff ou nas passagens viagísticas
do relato autobiográfico de Gottfried Benn, Doppelleben. A literatura de reportagem
desenvolve-se a partir das necessidades do tempo do pós-guerra, sendo um dos assuntos
recorrentes os processos de Nuremberga. Pretende-se não somente descrever a situação
do pós-guerra, mas muito mais fazer realçar e mesmo criticar os aspectos morais,
políticos, históricos ou sociais. Podemos neste âmbito mencionar a obra Reisebilder aus
Deutschland (1947) de Erich Kästner e as reportagens de Alfred Andersch e Hans
Werner Richter. Estas tendências de interiorização, de busca do mundo interior, partindo
da realidade empírica, tornam-se mais acentuadas nos anos 50 e, mais especificamente,
em autores como Wolfgang Koeppen, Heinrich Böll e Alfred Andersch. Existem
elementos do domínio subjectivo e elementos não ficcionais, havendo uma fricção entre
ficcionalidade e autenticidade, uma relação diferente do Eu com o mundo, uma nova
concepção do Eu e do alheio (das Fremde). Embora a escolha dos países visitados e
subsequentes relatos viagísticos sejam fortemente influenciados por interesses políticos,
encontram-se simultaneamente outros textos em que os destinos de viagem seguem a
tradição clássica - como por exemplo Roma -, ou as influências exóticas da viragem do
século - como por exemplo a Índia. Na opinião do crítico Hermann Schlösser, a
literatura de viagens fica votada ao esquecimento depois de Koeppen e de Rolf Dieter
Brinkmann. De facto, o livro de Brinkmann, Rom. Blicke. (1979), foi o último relato
viagístico que despertou atenção e provocou grande celeuma na Alemanha. Se Schlösser
apontava já para sinais de crise da literatura de viagens, Peter Brenner não preconiza
grande futuro para este subgénero literário, considerando que ele permanece à margem
no mercado livreiro e só é representado numa das suas formas, o guia turístico (vd.
1990: 660-666).
15
C. OS EUA COMO OBJECTO DE ESTUDO POR PARTE DE OUTROS
AUTORES ALEMÃES
Sem pretender ser exaustiva na listagem ou na análise de obras, viagísticas ou
não, que versem a temática dos EUA, penso ser pertinente referir o facto de a América
ter sido sempre motivo de fascínio e alvo de escrita por parte de inúmeros autores
alemães, que tanto destacam aspectos mais positivos da América, como enfatizam as
anomalias do sobejamente conhecido “sonho americano”, em facetas diferenciadas.
Baseando-me nos estudos de Peter Brenner (1990: 596-627; 648-660), vou
deter-me apenas em algumas obras produzidas no período de Weimar (1918-1933) e nos
anos 60 e 70.
Obras escritas no período de Weimar
Como primeiro exemplo, podemos referir o relato viagístico de Friedrich
Dessauer, Auslandsrätsel, publicado em livro em 1922, onde é visível o louvor da
América como país da tecnologia e do sucesso, que Dessauer atribui a factores como a
reconciliação de classes e o liberalismo económico. Também Heinrich Hauser tece um
louvor à América na obra Feldwege nach Chicago. Hauser vê a técnica como um
substituto de Deus, e parece conseguir rehumanizar metaforicamente a desumanização
da realidade dominada pela técnica que se sente violentamente nos Estados Unidos da
América.
Como contraste desta visão eufórica do capitalismo americano, podemos
mencionar Paradies Amerika (1929) de Egon Erwin Kisch que, segundo o crítico Rudolf
Geissler, peca pela sua tendência linear anti-americana, faltando-lhe a capacidade de
colocar sob uma perspectiva dialéctica e histórica as suas conjecturas sobre as condições
de vida e de trabalho do proletariado americano. Este pessimismo presente na obra de
Kisch é reiterado pela crítica Sara Markham, que o vê como paradigma do cepticismo
relativamente aos EUA. É a imagem sombria de uma sociedade dominada pela
mecanização do trabalho, pela divisão de raças e exploração dos negros, especialmente
nos estados do Sul, pela discrepância entre a imagem da mulher e a realidade por ela
16
vivida que Kisch nos transmite, ressaltando como únicas figuras positivas as de Charlie
Chaplin e de Upton Sinclair.
No seu relato viagístico Yankee-Land (1925), Alfred Kerr apresenta uma imagem
da América sob um cunho pessoal e eufórico. Vê a América não apenas como exemplo
de tecnologia e maravilha da economia, mas essencialmente como uma natureza
orgânica, com uma vitalidade sem limites que lhe concede um lugar de destaque e de
excepção. Também na sua obra New York und London (1923), Kerr apresenta uma
imagem optimista e positiva da América, o que coloca este autor numa posição à
margem nas discussões da época, uma vez que a maior parte dos autores realçavam
aspectos como a variedade de nacionalidades e grupos étnicos nas cidades americanas, a
decadência dos valores e costumes, a violência e a corrupção, a desumanização como
resultado da mecanização do trabalho.
Como exemplos de autores que reflectem sobre grupos marginalizados e minorias
étnicas, são de referir Karl Lamprecht, que apresenta fortes coloridos rácicos na sua obra
Amerikana (1906), Arthur Holitscher e Fritz Kummer, que tratam a problemática dos
judeus americanos. Por exemplo, em Wiedersehen mit Amerika (1930), Holitscher critica
fortemente as relações humanas injustas, o racismo e a pretensão dos americanos em
assumirem a liderança do mundo.
A visão veiculada pelo escritor Sándor Friedrich Rosenfeld, que publicou Ein
Frühling in Amerika em 1924 sob o pseudónimo Roda Roda, é bastante interessante,
pois oscila entre os extremos, apresentando a América tanto como o país do capitalismo
dominador, como o país do progresso democrático.
No relato de viagens pelo mundo inteiro, Rundherum (1929), metade do qual é
dedicado ao continente americano, os irmãos Erika e Klaus Mann têm uma visão
bastante positiva da América, apresentando-a como uma sociedade jovem, virada para o
futuro, sedenta de cultura e praticamente sem problemas sociais.
Arthur Rundt, em Amerika ist anders (1926), e Arthur Feiler, em AmerikaEuropa (1926), focam os problemas das “massas”. Arthur Rundt aponta para o
surgimento de uma “massa”, referindo-se a fenómenos como a indústria radiofónica, o
Ku Klux Klan e o fascismo, e criticando a sociedade, ainda que ao de leve, por uma certa
passividade. De um modo geral, a visão da América que apresenta é positiva,
visionando-a como terra do bom-senso. Arthur Feiler, tal como o título da sua obra
indica, procede a uma comparação da realidade americana com a realidade europeia,
17
pretendendo demonstrar desigualdades na evolução dos dois continentes. De realçar
seria uma certa crítica à situação dos negros e uma referência, ainda que esporádica, à
submissão da mulher americana.
O tema da situação e papel da mulher na sociedade americana é o enfoque dado
por escritoras como Martha Karlweis e Adele Schreiber. O relato de Karlweis, Eine
Frau reist durch Amerika (1928), procura dar, numa mescla de imaginação e relato, um
panorama geral da vida da mulher americana, tomando como exemplo a descrição de
sete mulheres. O artigo de Schreiber faz parte integrante de uma colectânea que visa
retratar a vida da mulher em todo o mundo nos campos social e público. O relato
viagístico de Maria Leitner, Eine Frau reist durch die Welt (1932), também se centra na
visão da mulher americana, baseando-se, neste caso, em vivências e experiências directas
com o mundo do trabalho das mulheres americanas. Particular realce é dado às
condições de trabalho nos EUA e à cultura, especialmente à religião dos negros e às suas
condições de vida nos estados do Sul. A imagem que Leitner tem dos EUA é fortemente
influenciada pelas consequências da Grande Depressão, mas Leitner antevê também um
futuro melhor para o país, no que diz respeito à tolerância entre as classes sociais de
diferentes raças, nacionalidades e etnias, e à situação da mulher.
Com a Grande Depressão dos anos 30, a imagem da América torna-se, portanto,
mais sombria. A crise iminente do país é, por exemplo, descrita no relato de Alfons
Goldschmidt, Die dritte Eroberung Amerikas (1929), onde Goldschmidt tece uma forte
crítica ao capitalismo, reportando-se essencialmente às condições de vida e de trabalho
das classes mais baixas. Ernst Toller, na obra Amerikanische Reisebilder (1930),
publicada em 1930 na colectânea Quer durch, também critica fortemente as relações
humanas americanas, dando particular ênfase a aspectos como a discriminação, a
brutalidade, a manipulação de massas e a injustiça legalizada. Os trabalhadores são, na
sua opinião, as vítimas do poder ilegítimo e do capitalismo; a situação dos negros é
objecto de análise bastante profunda na relação destes com as igrejas e na sua
representação nos filmes; a visão da mulher é ambivalente: se por um lado Toller critica a
imagem da mulher prostituída apresentada nos filmes, por outro lado desaprova a
posição dominante que a mulher detém na sociedade americana.
Parece-me pertinente notar um aspecto comum a estes autores: em todos
transparece uma comparação entre a sociedade americana e a sociedade alemã.
18
Salientam ainda nos EUA características que esperam não se infiltrem na sua própria
sociedade. Assim, mostram-se, na generalidade dos casos, impressionados pela técnica
americana, cujo elevado nível de desenvolvimento é entendido como sinal da mobilidade
americana e, acrescentando este aspecto à igualdade de oportunidades, vêem os EUA
como símbolo máximo da prosperidade. De um modo geral, os aspectos negativos e o
cepticismo dos autores surgem fundamentalmente depois da crise económica de 1929.
Obras escritas nos anos 60 e 70
Durante a República de Weimar (1918-1933), verificava-se uma polarização
entre os EUA e a então União Soviética como destinos de viagens preferidos. Depois da
Segunda Guerra Mundial, e com a divisão da Alemanha em 1949 em República Federal
Alemã e República Democrática Alemã, sente-se uma divisão mais marcada entre estes
dois destinos: a União Soviética aparece como domínio exclusivo dos escritores da RDA
e os EUA como destino dos escritores da RFA. Wolfgang Koeppen foi, aliás, um dos
poucos escritores da RFA a viajar pela União Soviética a convite da Associação dos
Escritores Soviéticos.
A imagem da América por parte dos autores dos anos 60 e 70 é também, como já
concluímos em parágrafos anteriores, bipolar, oscilando entre a euforia e a disforia.
Como exemplos de visões disfóricas, podemos referir Horst Krüger na sua obra OstWest-Passagen (1975), Günter Kunert em Andere Planeten (1975), Jürgen Federspiel
em Museen des Hasses (1969) e Jürgen Lodemann em Phantastisches Plastikbild und
rollendes Familienhaus (1977), os quais apresentam uma imagem da América sob traços
caricaturais, na qual eles vêem reflectido o futuro apocalíptico da Europa. Por seu lado,
Hans Egon Holthausen remete para perspectivas optimistas do futuro americano no seu
relato Indiana Campus (1969).
Podemos também ver os EUA retratados em romances contemporâneos. Peter
Handke, por exemplo, em Kurzer Brief zum langen Abschied (1972), preso a
idealizacões utópicas na linha de Kafka e Wedekind, apresenta uma América sob um
prisma mais pessoal, partindo de clichés tradicionais, o que o torna uma excepção entre
os autores alemães que tomaram os EUA como objecto temático das suas obras. Era
mais comum os autores deixarem transparecer ou mesmo tecerem uma crítica à
19
sociedade americana, afirmando ser esta uma nação definida pelo capitalismo e pela falta
de cultura, ou, pelo menos, exprimindo a sua desilusão relativamente ao grande
continente americano. Pertencem a este grupo autores como Herbert Heckmann,
Joachim Seyppel, Ulrich Pothast ou Gerhard Roth. Uwe Johnson, segundo o crítico
Manfred Durzak, apresenta em Jahrestage uma imagem diferenciada e reflectida da
América (vd. Brenner, 1990: 652).
Muitos outros autores contemporâneos abordaram a temática dos EUA ou de
traços da sociedade americana, como são exemplos os dramas de Bertolt Brecht, desde
Dickicht der Städte a Mahagonny, romances e dramas de Thomas Mann e Carl
Zuckmayer ou ainda o Tagebuch 1966-1971 de Max Frisch.
Vimos, assim, as diferentes imagens da América apresentadas por vários autores
alemães. Tomando por base as ideias aqui tratadas, poderemos, aquando da análise de
Amerikafahrt de Koeppen, tomar uma posição crítica relativamente à América que ele
nos apresenta.
20
D. RECEPÇÃO DA OBRA VIAGÍSTICA KOEPPENIANA
Os livros de viagens de Koeppen que, relativamente à trilogia do pós-guerra,
representaram uma grande viragem na escrita deste autor, obtiveram uma aceitação geral
por parte do público alemão. De notar, no entanto, que estes textos foram inicialmente
escritos para programas radiofónicos, tendo sido encomendados por Alfred Andersch
para o Süddeutscher Rundfunk. Koeppen explica em entrevista a Marcel Reich-Ranicki
que encontrara Andersch por acaso numa rua de Hamburgo. Andersch, que passara da
Norddeutscher Rundfunk para o Süddeutscher Rundfunk, era responsável pelos ensaios
radiofónicos. Pediu então a Koeppen que viajasse e escrevesse relatos viagísticos para a
rádio, ao que Koeppen responde entusiasmado:
„Ja!” Denn ich wollte immer reisen, hatte aber gar nicht die Mittel dazu. Wenn
sich hinter Andersch der Süddeutsche Rundfunk bereit erklärte, die Reise zu
bezahlen, so war ich begeistert, es zu tun. So bin ich auf Reisen gegangen. Die
erste Reise ging nach Spanien. (in Hermann, 1994: 165)
O seu desejo ou sonho de viajar, que não pudera realizar por falta de meios
financeiros, podia então ser concretizado. Parte em primeiro lugar para Espanha, mas
depois visita também Roma, a União Soviética, Varsóvia, Londres, os Estados Unidos
da América, França e Grécia, entre Setembro de 1955 e Setembro de 1961.
Assim, à medida que ia viajando, nasciam as três obras viagísticas de Koeppen:
Nach Ru? land und anderswohin (1958), Amerikafahrt (1959) e Reisen nach Frankreich
(1961). Koeppen deveria ainda ter ido para a Índia, China e Japão, mas não o quis por
dois motivos: por um motivo pessoal (não podia partir devido a uma pessoa que lhe era
muito próxima) e porque receava que viajar se tornasse rotina:
Ich hätte ein Land nach dem anderen bereisen können. Wenn ich gesagt hätte,
ich möchte nach Japan, ich möchte nach Australien, ich möchte zum Nordpol
fahren - irgendein Sender hätte sich gefunden und gesagt: „Es freut mich,
fahren Sie hin!” Und da fürchtete ich: Das wird dir zur Routine. (in Hermann,
1994: 166)
Conhecendo nós Koeppen como observador exímio que quer “absorver” tudo
como se fosse a primeira vez e que se opõe ao turismo de massas, criticando-o
severamente, podemos entender a sua preocupação e receio de as suas viagens e relatos
se tornarem rotina. Perder-se-ia toda a beleza e riqueza dos escritos, como geralmente
21
acontece quando, por exemplo, uma experiência se repete muitas vezes e de modo
semelhante.
A obra viagística de Koeppen foi vista pela crítica como simpática e em parte
entusiástica («freundlich, zum Teil enthusiastisch», in Hermann, 1994: 169), atingindo
um eco enorme («ungeheuren Echo», in Hermann, 1994: 165). Para muitos, porém, que
a viam como «sehr interessant und (...) sehr bedeutsam» (Krüger, in Treichel, 1995: 37),
não seria senão «Umwege des Romanautors» (Krüger, in Treichel, 1995: 37). O próprio
Koeppen diz, em entrevista a Horst Bienek:
Ich will vorläufig keine neuen Reisebücher, ich will Romane schreiben, und die
Reisebücher waren für mich Umwege zum Roman, Kulissenbeschreibungen. (in
Treichel, 1995: 26)
Os relatos serviriam, deste modo, de apontamentos para produtos futuros, para
romances que o escritor pretenderia escrever. No entanto, a verdade é que não surgiram
romances resultantes das suas viagens, embora a sua produção romanesca inclua também
muitas viagens. As suas narrativas têm, pois, um lugar privilegiado na literatura alemã,
neste caso na literatura viagística e não devem ser vistas, como Koeppen afirma a
Mechthild Curtius, como pretextos para escrever romances - «Ja, das hoffte ich damals.
Zum Teil stimmt es auch. Aber nicht ganz! Es sind Ausreden vor dem Roman. Ja!»
(entrevista in Treichel, 1995: 235) -, mas, na minha opinião, valem por si próprias.
A opinião do autor deixa-nos perplexos, dando azo a interpretações tão diversas
sobre a mudança na sua escrita como as apresentadas, por exemplo, por Walter Jens e
Marcel Reich-Ranicki. Enquanto o primeiro vê a passagem de Koeppen de romancista a
autor de livros de viagens como um progresso, Reich-Ranicki é mais crítico, falando de
retrocesso e de emudecimento. De um modo geral, e para alívio de muitos, chegara-se à
conclusão de que Koeppen se tornara menos crítico, interpretando-se a sua reacção
como amadurecimento literário, por oposição ao tumulto e celeuma que havia acendido
com a sua trilogia do pós-guerra. Os livros de viagens, em comparação com os romances
do pós-guerra - Tauben im Gras (1951), Das Treibhaus (1953) e Der Tod in Rom
(1954) - obtiveram, então, um maior sucesso editorial inicial e os prémios literários
atribuídos a Koeppen deveram-se, na sua grande maioria, às obras viagísticas.
22
Quanto a trabalhos académicos sobre Koeppen e a sua obra, são bem conhecidos
críticos e estudiosos como, por exemplo, Dietrich Erlach, Manfred Koch, Hartmut
Buchholz, Bernhard Uske ou Marcel Reich-Ranicki. O enfoque destes, no entanto, situase essencialmente na obra romanesca de Koeppen e não nos relatos viagísticos.
Estudiosos que se debruçaram directamente sobre a obra viagística koeppeniana são, por
exemplo, Hermann Schlösser em Reiseformen des Geschriebenen, de 1987 e Almut
Todorow, num artigo intitulado Publizistische Reiseprosa als Kunstform: Wolfgang
Koeppen, inserido na colectânea Wolfgang Koeppen do editor Eckart Oehlenschläger.
Depois da morte do autor, a 15 de Março de 1996, e com o desenvolvimento das
novas tecnologias como, por exemplo, a Internet, muito se tem feito no sentido de
recolha de material e maior acesso a demais obras e escritos do e sobre o autor. O
espólio de Koeppen, que se encontra de momento ainda em Francoforte, onde será
ordenado e catalogado pela editora Suhrkamp, passará brevemente para a cidade natal
do autor, Greifswald, em Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. Já no Outono de 1996, a
Universidade de Greifswald recebeu a biblioteca e os móveis da casa de Koeppen em
Munique. Nas imagens seguintes podemos ver um exemplo da (des)organização da
biblioteca de Koeppen, antes de ser levada para Greifswald, e o esboço da reconstrução
da casa natal do autor, atrás da qual se planeia a construção do arquivo de Koeppen.
Eine von über 100 Detailaufnahmen der
Bibliothek von Wolfgang Koeppen. Diese Fotos
wurden aufgenommen, bevor die Bücher und
der gesamte vorhandene Hausrat zum Transport
nach Greifswald vorbereitet wurden (Oktober
1996). (Internet: Koeppenarchiv)
23
Skizze zur geplanten Rekonstruktion des Geburtshauses
von Wolfgang Koeppen in der Bahnhofstra? e 4 in
Greifswald (das niedrige Hause an der Stra? e). Dahinter
das ebenfalls geplante Koeppenarchiv, das neben
Fördermitteln durch eine zu gründende Koeppen-Stiftung
finanziert werden soll. (Aus: Ostsee-Zeitung /
Greifswalder Zeitung, 23.10.97, S. 14, in Internet:
Koeppenarchiv)
Actualmente são muitos os investigadores e colaboradores da obra koeppeniana,
que preparam, a partir da Universidade de Greifswald, Universidade Ernst-Moritz Arndt,
um arquivo de Koeppen na Internet: Professor Dr. Gunnar Müller-Waldeck, Dr. Roland
Ulrich, Dr. Michael Gratz, Anja Sieger, Dagmar Baumann, Bert Lingman e Anne
Siebörger, por exemplo. Fazem já parte do arquivo: o espólio manuscrito de Koeppen,
que inclui manuscritos, fragmentos, cartas, cerca de três mil folhas de correspondência,
documentos, fotografias, notas, recepção da imprensa, recensões críticas; a biblioteca de
cerca de dez mil volumes; e ainda objectos pessoais de Koeppen como, por exemplo, os
móveis (principalmente do seu escritório) e quadros. Prevê-se ainda reunir material para
a criação de um arquivo de filmes, de cassetes, de notícias de imprensa, de recensões, de
literatura secundária, de imagens e de traduções. É também lançado um apelo a todos os
“net-users” que se interessem pela obra koeppeniana para contribuírem para a construção
deste arquivo:
Zur Zeit ist die Situation so, daß die zur Verfügung gestellten Landesmitteln
ausreichen, den Nachlaß von der Suhrkampstiftung zu kaufen ,der Universität
Greifswald zur Verfügung zu stellen und den Start der Archivarbeit zu
ermöglichen (freilich ohne jede Raum-und Sachmittelzuweisung ).
(...)In diesem Sinne sei an all jene appelliert, denen das Werk des Autors , die
Erinnerung an den Menschen Wolfgang Koeppen und die Förderung der alten
vorpommerschen und ältesten preußischen Universität in Greifswald und des
Fallada-Vereins am Herzen liegt, ihre Möglichkeiten zu prüfen, den Aufbau des
Koeppen-Archivs und der Koeppenforschungsstelle zu unterstützen.
24
(...) Wir Initiatoren des im Aufbau begriffenen Koeppenarchivs/ der Koeppenforschungsstelle Greifswald sind für jede Hilfe, Unterstützung,
Weiterempfehlung und Anregung dankbar.
An Leben und Werk Koeppens interessierten Forschern wird - nach den
Möglichkeiten während des Archiv-Aufbaus - Einsicht in aufgefundenes
Material ermöglicht.
Prof. Gunnar Müller - Waldeck
Archiv-Beauftragter (Internet: Koeppenarchiv)
Até à conclusão desta dissertação surgirão com certeza mais informações e
iniciativas no sentido não só da constituição do espólio de Koeppen mas também em
termos de novos estudos sobre a obra koeppeniana, a que teremos talvez um acesso mais
rápido através da Internet. Não queria ainda terminar este capítulo referente à obra de
Koeppen sem mostrar uma das últimas fotografias que lhe foram tiradas, a partir da qual
o leitor poderá também especular sobre o tipo de homem que se nos apresenta, o olhar
profundo e quase desiludido e o cansaço talvez não só físico mas que parece indiciar
também um cansaço e desencanto da própria vida.
Foto: Hans-Joachim Dieme (Greifswald)
25
II - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS SOBRE A
LITERATURA DE VIAGENS
26
A. PROBLEMÁTICA DA DESIGNAÇÃO “LITERATURA DE VIAGENS”
Alles, was der Schriftsteller herausbringt, kommt
aus seinem Leben (...) aus Enttäuschung,
Rücksto? ung und Schmerz entsteht dann das Werk
und wird vielleicht zu einer Spiegelung des
Lebens.
Wolfgang Koeppen
(in Treichel, 1995: 136)
Irgend jemand, ein Schriftsteller (...) hat einmal
gestanden, die Romane eines Schriftstellers sind
eine Autobiographie in Fortsetzung. Mag sein.
Wie lesen wir’s später?
Wolfgang Koeppen
(in Treichel, 1995: 196)
Dada a sua especificidade, a “literatura de viagens” tem sido um termo tão
problemático quanto polémico. Se por um lado a “literatura de viagens” toma como
referencial o mundo exterior e se baseia na narração e descrição mais ou menos morosa,
mais ou menos pormenorizada de factos, acontecimentos, objectos, pessoas e paisagens assemelhando-se a um guia turístico -, por outro lado apresenta marcas de
“literariedade”, marcas da subjectividade e elementos que a afastam de um simples relato
ou enumeração e descrição exaustiva.
Atentemos, pois, na palavra “literariedade”, vocábulo criado por Roman
Jakobson para designar a especificidade da literatura: «Assim, o objectivo da ciência da
literatura não é a literatura, mas a literariedade, isto é, o que faz de uma determinada
obra uma obra literária» (apud Aguiar e Silva, 1988: 15).
Podemos também afirmar com Mário Carmo e M. Carlos Dias que o texto
literário é «todo o texto em que podemos registar uma linguagem essencialmente
conotativa e, em maior ou menor grau, a ausência do referente, o fechamento e a
criatividade» (Carmo e Dias: 67). Relativamente ao primeiro elemento, a ausência do
referente, os autores esclarecem-no ao dizer que o texto literário tem um referente
fictício ou imaginário que muitos linguistas designam por “simulacro de referente” e, se
muitos textos literários têm “aparentemente” um referente real, isso só prova que o signo
27
linguístico, como afirma Ferdinand Saussure, une não um objecto (referente) a um nome,
mas um conceito a uma imagem acústica ou visual. Daí que os signos do texto literário
não possam identificar, na opinião dos autores, o referente, real ou fictício. É aliás ainda
a possibilidade da existência de vários referentes pertinentes a melhor prova da ausência
dum referente propriamente dito, pois a existência de um referente real reduziria o texto
a uma função meramente informativa. Quanto ao fechamento ou delimitação, os autores
afirmam não ser o índice mais importante da literariedade de um texto, apresentando-se
até como característica bastante equívoca, uma vez que os textos literários tanto podem
ser abertos como fechados. A linguagem conotativa é das características mais
importantes de um texto literário, pois é através da conotação que os termos se revestem
de um outro significado, diferente, impregnado de um estilo próprio, desviando-se da
norma na realização da língua. Assim, conotação é «uma realização peculiar do sistema
em que os significantes adquirem um significado particular, inerente a um indivíduo ou a
um determinado grupo da comunidade linguística» (Carmo e Dias: 56). Opõe-se à
denotação como «realização do sistema com recurso a significantes cujo significado tem
o consenso da comunidade linguística» (Carmo e Dias: 56). A criatividade, que constitui
outra das características do texto literário, refere-se às múltiplas realizações individuais
de um escritor que, na busca incessante da linguagem de conotação textual e expressiva,
altera constantemente as regras da própria criatividade literária. O texto literário
apresenta-se então como desvio ou transgressão à norma, transgressão essa que acaba
por se generalizar e produzir novas regras. Ao desviar-se da norma, procurando sons,
palavras e construções que tornem bela a forma da mensagem e aumentem o seu
conteúdo emocional ou valor expressivo, o escritor recorre a variadíssimos artifícios,
como sejam as figuras de retórica. De entre estas, podemos destacar as seguintes:
repetição ou reiteração (anáfora, aliteração, onomatopeia, paralelismo, pleonasmo),
comparação, metáfora, alegoria, metonímia, sinédoque, sinestesia, ironia, eufemismo,
personificação (prosopopeia ou animismo), hipérbole, perífrase, supressão, assíndeto,
polissíndeto, inversão (anástrofe, hipérbato, sínquise), anacoluto, antítese ou contraste,
paradoxo, invocação ou apóstrofe, gradação, interrogação.
Importante seria ainda notar que a “comunidade literária” é indissociável de um
contexto histórico e social, assistindo-se frequentemente a alterações do sistema de
normas aceites por essa mesma comunidade. No entanto, Vitor Aguiar e Silva sublinha
28
que, «quando se redescobre e se reavalia como literário um texto até então assim não
considerado, se desocultam, se iluminam, se fazem avultar elementos, propriedades ou
valores que o próprio texto comporta e que não resultam de uma mera projecção da
capacidade criativa dos seus leitores» (Aguiar e Silva, 1988: 38). Por isso, Vitor Aguiar
e Silva admite uma espécie de escala de literariedade, variável de um para outro contexto
histórico e sociocultural. Como exemplo refere que, de acordo com o código literário do
romantismo, seriam centrais nessa escala textos como poemas líricos, romances, novelas,
dramas, e como tendencialmente periféricos textos como memórias, biografias, ensaios,
crónicas de viagem, discursos parlamentares, etc. (vd. Aguiar e Silva, 1988: 38) Será,
pois, um dos objectivos deste trabalho mostrar marcas de literariedade presentes no texto
Amerikafahrt de Koeppen, podendo falar-se clara e seguramente
de literatura de
viagens. A literatura é, de facto, a expressão verbal artística de uma experiência humana,
é a arte que cria, pela palavra, uma imitação da realidade.
Atentemos na afirmação seguinte de Bernardo Santareno:
Arte é o mundo visto de um certo ângulo, organizado de uma certa maneira.
Maneira e ângulo específicos de um certo artista. No complexo fenómeno da
criação artística intervêm motivações conscientes e outras inconscientes. (...) O
artista é - tem de ser - um homem em conflito social, um homem que protesta.
Um homem cuja solidão é mais viva que a dos seus semelhantes. Um homem
mais amante que os outros. Mais frustrado no amor que os outros. Para um
artista autêntico, criar é viver. (apud Carmo e Dias: 204)
Como veremos, Koeppen também organiza o seu mundo, o que vê e experiencia
nas suas viagens, de um modo muito próprio, e parece ser um homem em conflito social,
que protesta. Os seus relatos são produto de vivências pessoais, singulares, nascendo
uma obra literária pautada por elementos estéticos e recursos estilísticos que emprestam
à obra uma beleza e significados singulares. É que a arte literária, como afirma Fidelino
de Figueiredo, é uma forma de compreensão do mundo e baseia-se fundamentalmente na
intuição do artista, nos seus meios do conhecimento artístico:
A literatura seria, assim, uma forma de conhecimento ou, melhor, de
compreensão, aplicada ao homem e às suas relações com o universo, à sua luta
pela assimilação desse universo (...).
Todos os meios do conhecimento científico se multiplicam, progridem e
aperfeiçoam; só os meios do conhecimento artístico são inalteravelmente os
mesmos desde o primeiro dia: as armas rudimentares da intuição. A
29
profundidade dessa intuição é que tem aumentado, como se têm complicado os
meios da expressão artística. Os sentidos não ganharam agudezas novas; as
técnicas da expressão musical, escultórica ou linguística é que se enriqueceram
prodigiosamente.
Deste conceito rapidamente apontado, extraem-se vários corolários: arte
literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade com os
dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista; a sensação da
beleza ou a emoção estética provém da harmonia entre a originalidade do fundo
ou conjunto de dados intuitivos novos e o relevo expressivo da forma. (apud
Carmo e Dias: 205)
Além disso, Koeppen é, segundo W. M. Lüdke, o “anarquista calado” (1981:
211)1, “o escritor miserável”, cuja escrita, incompreendida na sua generalidade na época,
é prenúncio da literatura moderna:
Was bleibt: ein „elender Skribent”, nicht am Erfolg, noch immer an der
Wahrheit orientiert, kein „Astlochgucker”, sondern ganz anachronistisch ein
Dichter, ohne Tonband und Kamera. (Lüdke, 1981: 215)
1
O adjectivo “calado” ou “reservado” refere-se claramente ao tão falado “Caso Koeppen”: depois dos
romances do pós-guerra e das narrativas viagísticas, Koeppen ter-se-ia votado ao silêncio absoluto, não
escrevendo mais nenhuma obra. E o substantivo “anarquista” remete para a vertente de intervenção
social, de crítica social pungente que Koeppen tece essencialmente na sua produção romanesca, mas que
deixa também transparecer em qualquer escrito ou entrevista. O termo “anarquista” pode ainda apontar
para uma certa marginalidade, para uma fuga à indústria literária.
30
B. LUGAR DOS TEXTOS VIAGÍSTICOS NA LITERATURA
Die Reisebeschreibung ist eine der subtilsten
literarischen Künste. (...) Die Kunst der
Reisebeschreibung besteht in der subjektiven
Darstellung von objektiven Vorkommnissen, kurz:
Literatur und Reportage. Nur wenige vermögen
diese beiden Formen zu einer neuen, eben der
Reisebeschreibung zu verschmelzen. Zu ihnen
gehört Wolfgang Koeppen.
Rheinischer Merkur, I.IV.1966
(apud Uhlig, 1972: 54)
Depois de uma breve incursão aos termos “literariedade” e “texto literário”,
resta-nos discutir qual o lugar que os textos viagísticos ocupam na literatura, se
constituem um género em si ou não. Hermann Schlösser (vd. 1987: 9-17) defende que
não existe nem pode existir o género “literatura de viagens”, preferindo a expressão
“literatura do viajante”. Baseando-se na divisão apresentada por Joseph Strelka, conclui
que os quatro tipos sugeridos nunca poderão ser incluídos num género, dado o aspecto
de ficcionalidade presente em cada um dos tipos. Os quatro grupos ou tipos
apresentados por Joseph Strelka são: 1. guias turísticos; 2. publicações informativas
científico-populares; 3. diários de viagens, relatos, descrições, cuja organização obedece
a princípios literários mas que na realidade descrevem apenas viagens realizadas; 4.
novelas e romances de viagens como géneros ficcionais puros (apud Schlösser, 1987: 9).
Alguns autores e críticos opõem-se à divisão tradicional da literatura em lírica,
narrativa e drama, concedendo uma grande importância e valor aos escritos viagísticos
como literatura. Jost Hermand, por exemplo, escreve:
Was könnte nicht alles zur Literatur gehören, wenn wir endlich mit jenem
Ästhetizismus brechen wollten, der nur das Gattungserfüllte, nur das Lyrische,
Epische, Dramatische und Artistische als ‘literaturhaft’ anerkennt?
Reiseberichte, Memoiren, Tagebücher, Biographien, Aphorismen, Briefe,
Chansons, Essays, ja alle Arten der Zweck- und Gebrauchsliteratur würden
damit endlich aus ihrer babylonischen Verbannung erlöst und zu ebenso
wichtigen Dokumenten des menschlichen Geistes erhoben wie eine
epigonenhafte Ode oder ein halbgelungener Roman. (apud Schlösser, 1987: 12)
Os relatos viagísticos, as memórias, os diários, as biografias, os aforismos, as
cartas, os ensaios deveriam encontrar o seu justo lugar na literatura, como expressão
31
estética do espírito humano, como produto da experiência humana. Nessa mesma linha
de valorização da descrição viagística, o polaco Zlatko Klátik afirma:
die Reisebeschreibung eines begabten Künstlers bedeutet ein tieferes Eindringen
in das Wesen als der Roman eines schlechten Autors. (apud Schlösser, 1987:
12)
E ainda Egon Erwin Kisch, grande escritor viagístico, escreve em 1928 numa
recensão dos relatos viagísticos de Alfons Paquet:
Das ahnen ja die Herren Akademiker nicht, da? es die grö? te Dichtung ist, aus
Monaten des Erlebens im Eisenbahnzug, auf dem Schiff, auf der Hotelsuche,
der zufälligen Bekanntschaften, der ma? losen Einsamkeit, einen scharfen Satz
der Unumstö? lichkeit niederzuschreiben. (apud Schlösser, 1987: 13)
Rejeitando a filiação da literatura de viagens num género literário, Thomas
Bleicher enumera uma série de aspectos que podem servir de base para o estudo e análise
dos textos viagísticos. São eles: a viagem como elemento estrutural, como tema, como
problema de género, o estilo dos textos viagísticos, a figura do escritor como viajante, e
os conteúdos da percepção da viagem (vd. Schlösser, 1987: 14).
Hans-Joachim Possin também não pretende descobrir ou criar um género
viagístico, mas fala de “literatura do viajar”, o que sugere que neste tipo de literatura se
fala em “viajar” (vd. Schlösser, 1987: 14-15). O relato viagístico é, assim, uma forma
artística, a expressão de um viajante escritor, que também é uma figura artística, que o
escritor cria através da sua viagem e da sua escrita. Assim, «“Literatur des Reisens” wird
so zum Ausdruck eines Erfahrungs- und Gestaltungsprozesses, in dem Reisen und
Schreiben einander bedingen» (Schlösser, 1987: 15). Este complexo, ou antes, esta
unidade viagem-escrita-leitura representa para Michel Butor quase uma constante
antropológica:
je voyage pour écrire, et ceci non seulement pour trouver des sujets, matières ou
matériaux, comme ceux qui vont du Pérou ou en Chine pour en rapporter
conférences et articles de journaux (je le fais aussi; pas encore en ce qui
concerne précisément ces deux pays, malheureusement; cela viendra), mais
parce que pour moi voyager, au moins voyager d’une certaine façon, c’est
écrire (et d’abord parce que c’est lire), et qu’écrire c’est voyager. (apud
Schlösser, 1987: 16)
32
Há assim uma forte ligação entre a viagem, a escrita e a leitura: se por um lado,
viajar é de certo modo escrever e em primeiro lugar ler, isso significa que ao viajar faz-se
uma leitura do mundo, uma interpretação do que se vê, registando-se todas as sensações,
novidades e experiências da viagem; por outro lado, escrever é viajar, pois através da
escrita não só se apresentam viagens várias efectuadas de facto ou no imaginário, mas
também se parte para uma nova aventura, para uma nova viagem que será
posteriormente “oferecida” ao público leitor.
Esta relação entre a viagem, a escrita e a leitura vem levantar ainda outra questão
fundamental, a saber: o horizonte de expectativas do leitor e a fusão dos horizontes do
autor e do leitor, conceitos fundamentais da chamada “estética da recepção”. Assim , o
receptor de um texto viagístico ou leitor encontra-se normalmente sob a acção de um
determinado “horizonte de expectativas”, que pode representar um poderoso factor
condicionante da estratégia e da dinâmica da leitura (vd. Aguiar e Silva, 1988: 322). O
conceito de “horizonte de expectativas” (Erwartungshorizont) foi introduzido e
difundido na teoria da literatura contemporânea por Hans Robert Jauss, mas as fontes
desse conceito foram Mannheim e Karl Popper. Este define o termo do modo seguinte:
Com esta expressão, aludo à soma total das nossas expectativas conscientes,
subconscientes ou, inclusive, enunciadas explicitamente numa linguagem. (...)
Os diversos horizontes de expectativas diferem, evidentemente, não só pelo seu
maior ou menor grau de consciência, mas também pelo seu conteúdo. Em todos
estes casos, porém, o horizonte de expectativas desempenha a função de um
quadro de referência: as nossas experiências, acções e observações só adquirem
significado pela sua posição neste quadro. (apud Aguiar e Silva, 1988: 111,
nota 154)
Assim, o leitor, ao ler um texto viagístico, já sabe que lhe vão ser apresentadas
descrições e percepções ou vivências de viagens realizadas, com tudo o que elas
implicam, com um grau maior ou menor de ficcionalidade. E o acto de leitura de um
texto literário realiza-se precisamente quando ocorre a fusão de dois horizontes: o
horizonte implícito no texto e o horizonte representado pelo leitor no acto de leitura
desse texto (vd. Aguiar e Silva, 1988: 314).
Veremos adiante o que um texto viagístico encerra, ou seja, as linhas temáticas
dominantes - que não se confinam de modo algum à descrição de uma viagem física real,
mas abordam outros campos, como por exemplo a viagem pela literatura, pela história, a
viagem simbólica, as reflexões filosóficas.
33
C. LITERATURA VIAGÍSTICA E AUTOBIOGRAFIA
Das Autobiographische ist bei gewissen
Schreibenden immer irgendwie vorhanden, der
Schreibende kann sich ja gar nicht völlig von
seinem Text lösen.
Wolfgang Koeppen
(in Treichel, 1995: 151)
Falar-se de literatura viagística implica de certa forma falar-se de escrita
autobiográfica, quando o Eu viajante se identifica com o autor, como é o caso das obras
viagísticas de Koeppen. Não só sabemos que Koeppen de facto realizou as diversas
viagens, como também encontramos nas suas obras inúmeras marcas autobiográficas,
portanto do autor real, e até da sua companheira Marion, na viagem a Espanha, por
exemplo. Através de Almut Todorow, sabemos que Koeppen esteve em Espanha vinte
dias em Setembro de 1955, em Roma em Dezembro de 1956, na União Soviética e em
Varsóvia entre Junho e Julho de 1957, em Londres em Setembro de 1957, nos Estados
Unidos entre Abril e Junho de 1958, em França entre Abril e Maio de 1959 e na Grécia
em Setembro de 1961(vd. Todorow, 1987: 163). Quanto às marcas autobiográficas nos
relatos viagísticos e em especial em Amerikafahrt, apresentá-las-ei e discuti-las-ei
posteriormente, quando tratar da problemática da identificação entre o narrador, o autor
abstracto e o autor real. Para já, interessa-me discutir alguns pressupostos que
fundamentem a minha afirmação inicial de que as narrativas viagísticas são geralmente
escritos autobiográficos.
A autobiografia é, como podemos deduzir da etimologia da própria palavra, a
escrita ou o relato da vida da própria pessoa (auto-bio-grafia). Embora não se tratando
do relato da vida completa do Eu, da pessoa que escreve, a narrativa viagística relata
partes da vida desse sujeito, ou seja, as viagens por ele empreendidas e as experiências
vividas. Mas aqui levantam-se questões tão críticas como, por exemplo, os problemas
estruturais da escrita autobiográfica, a saber: a identidade do eu, a questão da verdade e
sinceridade, a função da memória, as noções de tempo e espaço e o uso dos pronomes
pessoais.
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Quanto às questões da identidade do eu e da verdade e sinceridade, que me
parecem as mais relevantes no âmbito deste trabalho, é interessante notar que geralmente
o escritor autobiográfico tem a preocupação de se afirmar como tal, de assegurar ao
leitor a sua identidade e a verdade dos factos que irá narrar. Por exemplo, Max Frisch,
no prefácio à obra Montauk, afirma: «Denn ich bin es, den ich darstelle. Meine Fehler
wird man hier finden, sowie sie sind. (...) So bin ich selber» (Frisch, 1975: 5). O leitor
fica logo avisado de que se trata da narrativa de um episódio da vida do próprio autor, o
que não chega, todavia, para tornar a obra uma obra autobiográfica, uma vez que podia
tratar-se de um artifício do escritor. Ou seja, o facto de o escritor afirmar que irá falar
sobre si próprio terá de ser confirmado por estudos sobre a biografia do autor ou, se não
houver elementos que a atestem, caberá simplesmente ao leitor a decisão de acreditar ou
não no escritor. Aliás, como afirma Barrett John Mandel, é precisamente a fusão dos
horizontes do autobiógrafo e do leitor que concede a aura de veracidade ao texto: «But
it is this very overlapping of the autobiographer’s and the reader’s horizons that adds to
the undeniable aura of truthfulness surrounding the text» (Mandel, 1980: 68). Também
são conhecidas as palavras de Jean-Jacques Rousseau, no início das suas “confissões”:
«Voici le seul portrait d’un homme, peint exactement d’après nature et dans toute sa
vérité» (Rousseau, 1963/65: 16). Ou ainda Michel de Montaigne, em Essais: «Je veux
qu’on m’y voie en ma façon simple, naturelle et ordinaire, sans contention et artifice: car
c’est moi que je peins» (Montaigne, 1964: 3). A preocupação de todos estes
autobiógrafos é, sem dúvida, a questão da verdade e da sinceridade, querendo esclarecer
o receptor dos seus escritos sobre o objecto da sua produção. Outros há no entanto que
se ocultam por detrás do disfarce de uma terceira pessoa. É o caso, por exemplo, de
Alfred Andersch na obra Der Vater eines Mörders, como é afirmado no posfácio:
Warum berichte ich von mir in der dritten Person, nicht in der ersten? (...)
warum zum Teufel halte ich mir dann eine Maske vors Gesicht, diesen Kien,
einen Namen, nichts weiter? Eine Antwort darauf wei? ich nicht. (Andersch,
1982: 129)
O próprio autor não sabe a razão pela qual não escreveu na primeira pessoa, mas
vem também asseverar tratar-se de um escrito autobiográfico que, neste caso, abrange
apenas uma curta fase da sua vida.
No caso de Koeppen, só o acesso a outras fontes de informação referentes às
circunstâncias da produção das suas obras nos mostra tratar-se de uma escrita
autobiográfica, pois o próprio texto não nos diz directamente, à maneira de prefácio ou
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posfácio, de que tipo de escrita se trata. No entanto, por toda a obra domina a figura de
um Eu que, através de descrições factuais, se revela também subjectivamente.
Tratando-se geralmente de um contexto espacial e temporal diferente e
normalmente muito distante relativamente aos factos que serão narrados, a memória tem
uma função importante enquanto responsável pela selecção de determinados factos em
detrimento de outros, pela mistura propositada ou não de acontecimentos diversos, pela
maior ênfase dada a certos aspectos. Reportando-se, de um modo geral, a um
acontecimento passado, muitas vezes de grande importância para o presente e com
grandes potencialidades de influenciar o futuro do sujeito, é natural que algumas datas se
apresentem difusas, e que os relatos tendam para um tratamento exagerado, dependendo
do impacte que tiveram, principalmente a nível psicológico, no sujeito da enunciação e
ainda do facto de se apoiarem ou não em anotações (quanto às informações factuais).
Relativamente a Koeppen, e atendendo ao propósito das suas viagens, seria de
esperar que ele tomasse notas a fim de redigir os relatos radiofónicos. Além disso a
distância temporal entre a vivência e o seu registo escrito não é tão grande como é usual
em escritos autobiográficos, uma vez que as datas das transmissões radiofónicas, assim
como o aparecimento das narrativas em forma de livro, estão muito próximas das
viagens que lhes deram origem. As transmissões na rádio dos relatos de Nach Ru? land
und anderswohin foram efectuadas nas seguintes datas: Ein Fetzen von der Stierhaut a
13 de Abril de 1956, Neuer römischer Cicerone a 28 de Maio de 1957, Herr Polevoi
und sein Gast a 12 de Novembro de 1957, Zauberwald der roten Autobusse a 5 de
Setembro de 1958. Amerikafahrt, então intitulada Amerikafahrt: Die Früchte Europas,
foi transmitida nos dias 29 e 30 de Dezembro de 1958. De Reisen nach Frankreich, o
relato intitulado Reise in die französische Provinz foi transmitido nos dias 20 e 27 de
Outubro de 1959 e o relato Bonjour Paris a 16 de Maio de 1961. O relato Die Erben
von Salamis ou Die ernsten Griechen, respeitante à sua viagem à Grécia (e do qual não
surgiu nenhum livro) foi transmitido a 13 de Fevereiro de 1962 (vd. Basker, 1995: 587,
nota 2). Enquanto o tempo da escrita é relativamente próximo do tempo da viagem,
variando entre quatro meses e dois anos, o espaço é completamente diferente, ou antes,
o local da escrita parece invariável - a Alemanha -, enquanto o objecto da escrita é muito
diversificado. Num outro nível podemos também afirmar que estas obras não se prendem
ao tempo e ao espaço em que surgiram, dada a sua dimensão literária e o seu carácter
36
universal. Refiro-me aqui às deambulações de cunho literário, político e histórico
referentes a diversas épocas e lugares.
Quanto ao uso de pronomes pessoais, já referi que, embora seja mais usual o uso
do pronome pessoal na primeira pessoa do singular, e muitas vezes o pronome pessoal
da segunda pessoa como interlocutor ao qual o Eu se dirige directamente como que para
credibilizar o seu texto autobiográfico, esse facto não justifica necessariamente o carácter
autobiográfico da obra. Obras há que são narradas na primeira pessoa, mas que estão
longe de serem autobiográficas, como por exemplo refere Alfred Andersch na sua última
obra (vd. 1982: 131) relativamente ao seu romance Efraim. Mas, de um modo geral,
podemos afirmar ser mais frequente o uso da primeira pessoa e o uso ainda de deícticos.
Em Amerikafahrt, a primeira pessoa do singular está bem presente desde o início até ao
fim, assim como os possessivos na primeira pessoa: «Ich fühlte mich hier zu Hause. Ich
hatte gelesen (...) hier war ich Europäer, und ich wollte es bleiben» (A: 8), «Das gro? e
Amerika vertraute mir. (...) Es erwartete, da? ich mit meinen Augen die Staaten als
Gottes eigenes Land erkennen würde» (A: 13). Em Amerikafahrt, quando Koeppen usa
o pronome pessoal da primeira pessoa do plural, não o faz para incluir companheiros de
viagem, uma vez que viaja sozinho, mas antes ou porque se sente um entre os outros, nas
mesmas situações que eles, ou porque se reporta à humanidade em geral, aos potenciais
visitantes do continente americano e até aos receptores dos seus textos. Quando está por
exemplo numa igreja em Nova Iorque, sente-se parte da comunidade que louva Deus:
«Wir standen dann alle auf und lobten Gott, und es war ein sehr wohlklingender, sehr
inniger Chor» (A: 36). Também no comboio expresso se funde na multidão e é “parte da
massa” («Ich war Teil eines Teiges geworden», A: 40): «Wir standen und schwitzten (...)
erreichten wir Central Station, die Stadtmitte und eine andere Welt» (A: 40). Ao chegar a
Washington, atravessam uma tempestade, o que o transporta para questões quase
metafísicas, referindo-se o pronome pessoal “nós” em primeiro lugar aos passsageiros do
comboio mas sendo passível também de se referir a todos nós, à humanidade: «Was
begriffen wir von der Erde, über die unsere Fahrt ging, von der Atmosphäre aus
Finsternis, Nässe, Elektrizität und bangendem Leben (...)?» (A: 46). Também muitas
vezes se refere a “nós” para incluir o motorista do táxi que o transporta, como por
exemplo: «Wir fuhren über die Bowery, zwei graue Häuserfronten siechten wie von
Buffet gemalt» (A: 29). O pronome pessoal da segunda pessoa do singular reporta-se a
37
um sujeito indefinido e generalizado, como se o leitor estivesse a pensar fazer as mesmas
viagens. Koeppen acaba por nos dar conselhos ou avisos sobre o que nos espera no lugar
em questão: «du bist schon angekommen, bevor du abgeflogen, so vieler Verführung ist
nicht zu widerstehen» (A: 8), «Welche Sprache du auch sprichst, und sei es keine, der
Dollar reiht dich ein, macht dich gleich. (...) Du bist Konsument (...)» (A: 27).
Outra questão polémica no âmbito da autobiografia e que tem sido discutida por
críticos é o seu carácter de ficcionalidade ou não ficcionalidade, uma vez que tem um
carácter referencial e grande parte das autobiografias se limitam a memórias ou registos
factuais e por vezes enfadonhos da vida daquele que escreve. A questão de se poder falar
de “literatura” autobiográfica aproxima-se da questão da designação de “literatura de
viagens”, que já discuti anteriormente. Há, pois, que analisar o artefacto que é a obra
literária, todas as suas características inerentes e não compartimentar textos e etiquetálos de modo estanque. A meu ver, Amerikafahrt integra-se na “literatura de viagens” e
na “literatura autobiográfica”. Como referia o próprio Koeppen em diversas entrevistas,
toda a escrita é basicamente autobiográfica, os romances de um escritor são uma
autobiografia em processo.
38
D. AS INSTÂNCIAS DE COMUNICAÇÃO NA LITERATURA VIAGÍSTICA
Abordei já a problemática da designação “literatura de viagens”, apontando para
a sua especificidade e para aspectos que asseguram essa especificidade, remetendo para
conceitos como “literariedade” e para as suas marcas no texto.
Baseando-me nos estudos do Prof. Doutor Vilas-Boas (vd. 1987: 60-109),
apresentarei de seguida pressupostos teóricos e metodológicos que me permitirão
posteriormente fazer a análise de Amerikafahrt, sobretudo no que diz respeito à questão
da identidade ou fusão do narrador e autor real.
Toda a obra literária participa num processo complexo de comunicação, em que
o autor e o destinatário ou leitor (no caso de Amerikafahrt, numa primeira fase, o
destinatário era o ouvinte da rádio) não estão presentes nem espacial nem temporalmente
e os seus contextos também diferem. O texto escrito tem a sua origem no autor, mas só
se concretiza como obra literária através da sua publicação e posterior leitura, pelo que
se torna premente estudar as duas instâncias autor / leitor para entendermos o texto
como objecto e factor de comunicação.
Assim, é necessário ter em conta não só o momento da escrita ou o nível da
produção mas também o nível da recepção. O autor, no momento da produção, é
condicionado pelo autor real, pelo ser social e individual que é, influenciado por factores
tão diversos como os factores individuais (o processo de sociabilização, a situação
social, a psicologia individual, as vivências, o nível cultural, a sua experiência como
leitor, a consciência individual e opções ideológicas) e factores colectivos, ou seja, a
consciência colectiva, a realidade histórica, cultural e social do seu tempo e a literatura
como instituição. O seu projecto para uma obra pode partir de uma ideia, vivência ou
leitura. No momento da produção, o autor é ainda condicionado por factores como a sua
intenção, a imagem de leitor que tem, o domínio das técnicas e a capacidade de selecção
de materiais e a sua reorganização. Encontra-se sob determinadas influências literárias e
reage sempre de modo mais ou menos directo à crítica, além de estar consciente das
condições do mercado literário. O trajecto da escrita faz-se com maior ou menor desvio
face ao projecto inicial, surgindo finalmente o texto literário que será publicado e
chegará ao leitor através do mercado e instituições, de escolas e será objecto de críticas e
recensões literárias ou poderá ainda granjear prémios. É no momento da leitura que o
39
leitor concretiza o texto, atribuindo-lhe um certo sentido, constituindo um determinado
mundo. Esta concretização do texto, embora parta de uma reconstrução do texto ou
artefacto, implica também a projecção dos horizontes do próprio leitor como sujeito
social (tal como o é o autor), atribuindo um sentido mais ou menos pessoal ao texto,
dependendo da margem de manobra dada pelo texto e da capacidade de interpretação e
de envolvimento ou projecção do próprio leitor no texto literário. Pode portanto haver,
deste modo, comunicação não só entre o texto e o leitor mas também entre o próprio
autor e o leitor, num processo que se realiza em dois tempos, através da mediatização
pelo texto. Os campos referenciais do autor, do texto e do leitor participam no mesmo
processo comunicativo e encontram-se relacionados havendo intersecções entre eles.
A nível do texto narrativo, há vários níveis de comunicação, os quais permitem
entender a relação entre as várias instâncias narrativas. Apresento de seguida o esquema
proposto por Vilas-Boas para explicitar o processo comunicativo e que se baseia nos
modelos de Dieter Janik e Aleksandra Okapién-Slawiñska (vd. Vilas-Boas, 1987: 74):
Níveis
Intratextuais
Nível 1
EMISSOR - PERSONAGEM
RECEPTOR - PERSONAGEM
Nível 2
EMISSOR - NARRADOR
RECEPTOR - NARRATÁRIO
Nível 3
EMISSOR - AUTOR ABSTRACTO
LEITOR IMPLICITO
Nível 4
AUTOR NO ACTO
DA ESCRITA
LEITOR NO ACTO
DA LEITURA
Nível 5
AUTOR COMO
SUJEITO SOCIAL
LEITOR COMO
SUJEITO SOCIAL
Níveis
Extratextuais
Este esquema distingue claramente os dois domínios da comunicação narrativa: o
domínio externo e o domínio interno, relativo ao texto. Vejamos sucintamente cada um
dos níveis.
No nível 1, a comunicação é realizada entre as personagens, desempenhando
estas na maior parte das vezes o papel simultâneo de emissores e receptores, quer
explicita quer implicitamente, num tempo e espaço delimitados no mundo narrado.
No nível 2, o objecto da comunicação entre o narrador e o narratário é o mundo
narrado. De notar que o narrador é uma “peça” da estratégia narrativa do autor real,
40
estando hierarquicamente subordinado a este. Não se deverá confundir, neste contexto,
“narrador” com “autor”, sendo o primeiro uma instância narradora textual e o último
uma instância extratextual. No entanto, muitas vezes há uma grande semelhança e quase
identificação entre os dois. O narrador é frequentemente o porta-voz textual do autor e
no caso da obra viagística de Koeppen podemos afirmar que há uma identificação entre o
narrador, o viajante, o observador das viagens empreendidas e o próprio Koeppen como
autor real e sujeito individual e colectivo, dado o cariz autobiográfico da literatura
viagística.
É importante neste contexto analisar os tipos de narrador e modos de narração.
Gérard Genette, em Discurso da Narrativa estabelece a sua tipologia a partir da posição
do narrador face ao narrado, distinguindo assim os narradores intradiegéticos e
extradiegéticos, consoante fazem parte ou não do mundo narrado e os narradores
homodiegéticos e heterodiegéticos (e ainda autodiegéticos se se tratar da personagem
principal), consoante eles são ou não objecto de narração. Tendo em conta ao mesmo
tempo os dados de modo (respondendo à pergunta quem vê?) e voz (quem fala?),
Genette estabelece uma tipologia de três termos ou três “situações narrativas” que a
seguir esquematizo (Genette: 187):
“Situações narrativas”
Narrador > Personagem - Focalização omnisciente - visão por trás
-?
Narrador = Personagem - Focalização interna
- visão “com”
-?
Narrador < Personagem - Focalização externa
- visão de fora
-?
? diz mais do que aquilo que qualquer personagem sabe.
? apenas diz aquilo que certa personagem sabe.
? diz menos do que sabe a personagem.
Uma vez que não encontramos as narrativas viagísticas povoadas de personagens,
mas vemos e lemos aquilo que o Eu viajante nos relata, poderemos concluir tratar-se,
baseando-nos na tipologia de Genette, de um narrador intradiegético quanto ao seu nível
narrativo, e homodiegético - ou antes, autodiegético, uma vez que é a personagem
principal - pela sua relação à história ou diegese. Quanto à ciência ou perspectiva, uma
41
vez que o narrador narra as suas próprias experiências de viagem, contendo um forte
cunho autobiográfico, poderíamos afirmar tratar-se de uma “visão com”, na terminologia
de Pouillon ou de Narrador = Personagem, na fórmula de Todorov. No entanto,
debruçar-me-ei sobre esta questão mais tarde quando me ocupar da análise de elementos
autobiográficos em Amerikafahrt.
Franz K. Stanzel distingue três tipos de “situações narrativas” romanescas:
auktoriale Erzählsituation, que é a do autor “omnisciente”, estando numa posição de
transcendência relativamente ao universo diegético; Ich-Erzählsituation, em que o
narrador é uma das personagens; e personale Erzählsituation, narrativa conduzida na
terceira pessoa mas sendo a visão a de uma personagem. A partir desta distinção, Stanzel
estabelece um sistema de situações narrativas baseadas em três oposições. Uma das
oposições refere-se à identidade ou não identidade entre o narrador e personagens, entre
a primeira e terceira pessoas (Ich / Er Grenze). Uma segunda oposição tem a ver com a
perspectiva interna ou externa, ou seja, segundo a sua origem (Innen- /
Au? enperspektive Grenze). E por último Stanzel distingue entre Erzählerfigur e
Reflektorfigur, baseando-se na oposição telling / showing. O primeiro caracteriza-se por
um grande grau de presença do narrador omnisciente, que manipula a história, enquanto
no segundo o narrador esconde-se atrás da perspectiva de uma personagem, surgindo a
realidade reflectida através dessa perspectiva ainda que a voz não seja a da personagem
(vd. Stanzel, 1989: 70-89).
Do que foi dito, é fácil concluir que o narrador tem importantes funções como a
de narrar, de comentar e de reger ou orientar a diegese. Jaap Lintvelt refere sete funções
do narrador, as quais podem aparecer de forma muito variada e ter uma presença mais
ou menos marcada. São elas as funções comunicativa, metanarrativa, explicativa,
analisadora, generalizante, emotiva e modalizante (apud Vilas-Boas, 1987: 81).
Quanto ao narratário, o alocutário abstracto do discurso do narrador, ele é uma
figura sem discurso próprio explícito, é uma entidade fictícia ou, como diz Roland
Barthes, um “ser de papel” (apud Carlos Reis e Ana Lopes, 1990: 259) com existência
meramente textual e dependendo directamente de outro “ser de papel”, ou seja, do
narrador que se lhe dirige de forma expressa ou tácita.
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Na literatura viagística de Koeppen é clara a presença do narratário, quando o
sujeito da enunciação convoca por exemplo expressamente a atenção de um destinatário
intratextual, usando até pronomes pessoais na segunda pessoa (vd. A: 27) ou expressões
como «wie man wei? » (A: 26). E, tal como defendo uma grande aproximação ou
identificação do narrador de Amerikafahrt com o autor Koeppen, também penso haver a
mesma identificação entre o ouvinte e posteriormente leitor do discurso viagístico, dadas
as circunstâncias em que estas obras viagísticas foram escritas e a sua especificidade.
Voltando aos níveis do processo comunicativo, o nível 3 é um nível
intermediário, abstracto, não sendo nem um nível discursivo (como o são os níveis 1 e
2), nem um nível extratextual (como os níveis 4 e 5). O autor abstracto é a instância
emissora, a consciência estruturante do texto, mas não tem marcas discursivas próprias,
sendo a sua presença detectável apenas através das estratégias textuais. Neste nível não
há um receptor propriamente dito, pois ele só existe na mente do autor abstracto. Tratase, pois, de um receptor “ideal”, uma ideia de receptor, daí a seta a tracejado a ligar o
emissor-autor abstracto ao leitor implícito no esquema anteriormente apresentado.
Relativamente aos níveis extratextuais, é importante analisar por um lado a interrelação entre as instâncias emissoras dos vários níveis e, por outro lado, as inter-relações
entre o leitor real e o leitor fictício. Assim, podemos constatar que o autor real tem
grande importância como origem do texto literário e, se não há identificação, como
defende Vilas-Boas entre, por exemplo, o autor real e o autor abstracto por se tratarem
de níveis ontologicamente distintos (vd. 1987: 92-93), há, no entanto, traços no nível 3
que apontam para dimensões do emissor extratextual. De igual modo, o autor real
também se pode projectar na figura do narrador ou de uma ou mais figuras do mundo
narrado, uma vez que nos níveis 1 e 2 encontramos sempre traços do autor real,
escolhidos conscientemente ou projectados inconscientemente. Por sua vez, a actividade
do autor no acto da escrita ou nível 4 é condicionada por um determinado número e tipo
de experiências e vivências do autor como sujeito social (nível 5), como podemos ver no
seguinte esquema (vd. Vilas-Boas, 1987: 93):
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PESSOA REAL (EMISSOR 5)
AUTOR REAL (EMISSOR 4)
SELEÇÃO
DODO
MATERIAL
SELECÇÃO
MATERIAL
CONSTRUÇÃO DOS MUNDOS
LITERÁRIOS FICTÍCIOS
TEXTO (CONSCIÊNCIA GERAL)
(NÍVEL 3)
PROJECÇÃO DO AUTOR REAL
NARRADOR (NÍVEL 2)
EM
e/ou
FIGURAS FICTÍCIAS DO
MUNDO NARRADO (NÍVEL 1)
Assim, a pessoa real (nível 5) é o sujeito individual e social com todas as suas
condicionantes, características e personalidade, modelado pela cultura e sociedade em
que está inserido. No momento da escrita ou da produção, o autor real (nível 4)
selecciona o material e cria mundos literários fictícios, que o autor abstracto irá
organizar como consciência geral (nível 3), projectando-se deste modo o autor real nos
níveis discursivos intertextuais, a nível do narrador (nível 2) e/ou das figuras fictícias do
mundo narrado (nível 1).
A nível das instâncias receptoras dos diferentes níveis não podemos detectar
equivalências e influências visto não haver uma relação directa entre os receptores
extratextuais e o leitor implícito, que é uma instância forçosamente anterior à leitura. No
entanto, como defende Vilas-Boas (1987: 94-95), é possível o leitor real influenciar o
leitor implícito através do autor, influência essa que não se repercute na obra lida mas na
produção subsequente do autor, como pretende o esquema seguinte esclarecer (vd.
Vilas-Boas, 1987: 95):
E5 - E4
E3
TEXTO 1
R4/R5
Recepção crítica expressa em público
(jornais, revistas, etc.)
E = Emissor
R = Receptor
E5 - o autor real lê a recepção crítica
relativa ao texto 1
E4
E3 de texto 2
44
No acto da leitura, o leitor não tem um papel totalmente passivo ou reprodutivo
do discurso narrativo; tem também um papel activo ou produtivo, pois projecta-se no
discurso que recria. E na leitura de um texto, ou na “concretização”2 de um texto,
intervêm factores intertextuais, como por exemplo os hábitos de leitura, o ambiente
cultural e literário, os contextos políticos, etc. Aliás, como define Aguiar e Silva:
o receptor (...) é uma entidade semiótica que se constitui ao longo do tempo,
modelada e replasmada no decurso de múltiplas leituras, estruturada pela
aquisição de diversificados conhecimentos e pela fruição ou pelo sofrimento de
multímodas experiências vitais. O leitor não é o efeito da leitura de um único
texto, nem se configura ex nouo e de raiz em virtude da leitura de cada texto,
embora se modifique como entidade semiótica, em grau variável, em cada
leitura que perfaz. (Aguiar e Silva, 1988: 314-315)
Não devemos, todavia, descurar o propósito das emissões radiofónicas sobre as
viagens de Koeppen e também o seu primeiro público: surgiram em primeiro lugar como
relatos transmitidos por via radiofónica aos ouvintes de uma rádio alemã onde trabalhava
o escritor Alfred Andersch. Koeppen, como autor e sujeito real, partiu para as suas
viagens com a clara intenção de escrever sobre elas para o público alemão. Neste
sentido, podemos ver uma identificação entre o leitor implícito, o narratário e o leitor
real. A partir do momento em que os relatos foram compilados sob a forma de três
livros, o receptor torna-se uma instância extratextual mais difícil de definir com precisão,
enquadrada num outro contexto histórico-social e com outros condicionalismos mas, se
estiver informado sobre estas obras em particular, criará por certo um horizonte de
expectativas e aproximar-se-á (ou talvez ainda não) do leitor implícito ou do leitor
pretendido por Koeppen.
2
O conceito de “concretização”, proposto por Roman Ingarden, designa «o modo como um leitor,
através de múltiplos actos cognitivos, através de complexas operações subjectivas e vivências, realiza a
apreensão da obra literária» (in Aguiar e Silva, 1988: 318-319). Daí um texto literário permanecer
imutável como “artefacto” mas “concretizado” em diversos “objectos estéticos”.
45
E. O CONCEITO DAS FREMDE VS. DAS EIGENE
Antes de nos atermos à definição destes dois conceitos opostos, parece-me
interessante acompanhar a evolução do termo das Fremde ao longo dos tempos e em
várias perspectivas.
Assim, perspectivando o termo das Fremde em várias dimensões, Dietrich
Krusche, na obra Literatur und Fremde, traça a própria história da “cultura alheia”
(Fremdkultur) desde a Antiguidade, passando pela Época dos Descobrimentos, à qual
confere grande importância, até aos séculos XVIII, XIX e XX. A sua abordagem é uma
abordagem antropológica e etnológica, assistindo-se a um confronto entre culturas
diferentes, formas de apreensão do real diversificadas e nem sempre aceites pela cultura
alheia. Nas grandes viagens marítimas, por exemplo, assistia-se a duas tendências de
aproximação do alheio: por um lado, a conquista, a exploração económica e a tarefa dos
missionários de “salvar” os pagãos e de lhes mostrar o caminho da fé cristã; por outro
lado, a tendência de aceitar a experiência empírica, seguindo o princípio esclarecido de
Francis Bacon de que “o saber é poder”. No século XVIII começa-se a reconhecer a
cultura alheia como cultura autónoma e tão válida quanto a europeia, ou seja, não mais
se confrontam a cultura e natureza europeias com a cultura e natureza não europeias apontando-se para um predomínio daquelas sobre estas -, mas dá-se valor a tradições
culturais diferenciadas e autónomas. O início do século XX está pautado por aquilo a
que Krusche chama “dúvidas da Europa sobre si mesma”. Nas duas primeiras décadas do
nosso século, a literatura de viagens e de emigrantes retrata o mal-estar resultante de
uma organização da sociedade industrializada, burocratizada e capitalista. A partir dos
anos 60, o motivo da glorificação da natureza na lírica é substituído pelo motivo da
destruição da natureza, o que se prende com a ideia de que o sucesso da Europa no
mundo não pára. O progresso da Europa em relação ao resto do mundo, principalmente
às regiões mais pobres, surge como um desejo ou ilusão a ser imposto. A função utópica
parece, assim, estar posta em causa. Como refere D. Krusche:
Resignation vor der Fremde? Resignation vor sich selbst? Das Bewu? tsein des
Europäers, keine Alternative zu sich selbst zu finden in dieser Welt, lä? t die
Verzweiflung an sich selbst, auch wenn sie selbstironisch kontrolliert ist, nur
um so unerträglicher erscheinen. So deutet sich in der Geschichte des Motivs
der Fremde europäische Tragik an: Der Zwang alles verstehen zu müssen, der
weltgeschichtlich einmalige Erfolg europäischer Wissenschaft und Technologie
(die Unvermeidlichkeit, sich überall selbst zu begegnen), die Zweifel daran, ob
46
die Folgen eigener Weltbearbeitung (Umweltschäden, Bedrohung durch
atomaren Holocaust), noch kontrollierbar sind, haben nicht nur die Möglichkeit
der Utopiebildung in Frage gestellt, sondern auch die Allotopie an ihre Grenze
gebracht. (Krusche, 1985: 38)
Voltemos agora à questão da definição dos conceitos das/die Fremde e das
Eigene que, aliás, não é tão linear como parece. De um modo geral, podemos afirmar
que o “alheio” se opõe ao “próprio”, referindo-se a ou incluindo tudo aquilo que o
sujeito não conhece ou não reconhece como fazendo parte da sua cultura, das suas
vivências. A apropriação do “alheio” leva geralmente a uma confrontação com o
“próprio”, mas uma vez apropriado, torna-se difícil uma divisão nítida do que é
conhecido, do que já fazia parte do sujeito e do que lhe era desconhecido ou alheio.
Assim, Dietrich Krusche afirma:
Fremde ist keine Eigenschaft, die ein Objekt für ein betrachtendes Subjekt hat:
sie ist ein Verhältnis, in dem ein Subjekt zu dem Gegenstand seiner Erfahrung
und Erkenntnis steht. (Krusche, 1985: 13)
O alheio surge, portanto, da sua relação com o sujeito, e as fronteiras entre o
novo e o conhecido diluem-se a pouco e pouco.
Uma das circunstâncias mais propícias para este confronto Fremde / Eigene é
sem dúvida a viagem. Viajando, visitando outros países, conhecendo outras pessoas,
hábitos e costumes, outro idioma e maneiras de pensar ou de apreender o real, somos
levados a comparar o que se nos depara com todo o nosso repertório de experiências, o
nosso ser, moldado pelas influências contínuas, mais ou menos marcantes, a que somos
expostos. Mas é também verdade que quanto mais estamos expostos a outras influências
ou estímulos, menos nítida é esta confrontação entre o que conhecíamos e possuíamos e
o que conhecemos e apreendemos.
No caso de Koeppen, esses sentimentos de estar em casa, rodeado pelo que lhe é
“próprio”, e de estar no estrangeiro, em confronto com o alheio, são ainda mais difíceis
de destrinçar, uma vez que o escritor afirma sentir-se bem e estranho tanto no
estrangeiro como em casa:
47
Ich war in Amerika angekommen. Ich stand in New York. Ich hatte dies oft
geträumt, und es war nun wie ein Traum. Der Traum, hier zu sein, hatte sich
erfüllt, und wie ein Traum gab es keine Fremde. Ich war auch hier zu Hause,
und Amerika lag vor mir wie ein fester Besitz. (A:3 14)
No sonho não há estranheza, tudo é familiar e por isso o sentimento é de
conforto, de segurança. Koeppen sonhara já, como afirma, com a América, talvez através
da leitura de um dos seus escritores favoritos e que mais o influenciou: Kafka e o seu
romance Amerika.
Além do mais, para viajar e melhor apreender o estranho, Koeppen adoptava a
postura do observador, do estrangeiro que viaja sempre pela primeira vez, estando assim
habituado a encontrar-se em situações novas mas nem por isso constrangedoras ou
difíceis de ultrapassar. Para um viajante como Koeppen, que viaja não só para as
diferentes regiões do mundo mas também pelos romances e obras de autores diversos
que sempre o acompanharam desde a sua infância, não parece haver fronteiras rígidas
entre a viagem e o sentir-se em casa. A sua própria vida, como muitas vezes afirmou em
entrevistas, é um romance, e ele é a figura que povoa esse romance, tendo a literatura a
função de tornar o mundo desconhecido e conhecido ao mesmo tempo, como afirma
Schlösser:
Es besteht also keine strenge Grenze zwischen Reisen und Zuhausesein, wenn
man sich zu Hause fremd und auf Reisen daheim fühlt. (...) Da Koeppen nicht
nur Bücher, sondern auch sein Leben nach Ma? gabe der Kunst entwirft, ist
beides, reisen wie dableiben, der Welt fremd wie ihr vertraut sein, Funktion des
Literarischen. (Schlösser, 1987: 23)
Outro aspecto pertinente é a acepção de “viagem” como metáfora. Dito de outro
modo, a viagem não se refere apenas a uma viagem física empreendida numa dada altura
e sob determinadas condições, mas engloba muitas outras acepções, como por exemplo a
viagem na literatura, na história, na filosofia, a viagem simbólica e incursões variadas,
que são abundantes na obra koeppeniana.
3
Sigla utilizada neste trabalho para referir a obra de Wolfgang Koeppen, Amerikafahrt, Frankfurt/Main,
Suhrkamp, 1992.
48
III - AMERIKAFAHRT
49
A. A VIAGEM
1. AS CIRCUNSTÂNCIAS DA ESCRITA
Ich wünsche mir ein Flugbillet, das mich für
immer berechtigt, jederzeit überallhin zu fliegen,
von New York nach Moskau, von Ru? land nach
Dakar, zu einer Karusselfahrt zum Hamburger
Dom vor dem Abflug nach Peking, zum Start nach
Paris.
Wolfgang Koeppen
(apud Hielscher, 1988: 117)
O que levou Wolfgang Koeppen a escrever relatos viagísticos? Por que motivo se
virou para este tipo de escrita? Pouco depois dos romances do pós-guerra - Tauben im
Gras (1951), Das Treibhaus (1953) e Der Tod in Rom (1954) -, que o tornaram
conhecido no mundo literário alemão e internacional, Koeppen inicia outra série de três
livros, escritos numa óptica totalmente diferente. Assim surgem Nach Ru? land und
anderswohin (1958), Amerikafahrt (1959) e Reisen nach Frankreich (1961). E é o
próprio Koeppen que em entrevista a Ekkehart Rudolph nos dá a resposta à pergunta
sobre as circunstâncias da escrita dos relatos viagísticos:
Und so kam ich darauf, nein, das ist falsch, ich kam nicht darauf, Reisebücher
zu schreiben, weil ich mir von ihnen einen besseren materiellen Gewinn
versprochen hätte, aber es war so, da? die Reisebücher mir die Möglichkeit
gaben, mir einen Wunsch zu erfüllen, nämlich den, zu reisen. Und die ersten
Reisemanuskripte erschienen auf Anregung von Alfred Andersch, der damals
Leiter des Radioessays am Süddeutschen Rundfunk war und der mich dazu
anregte und mir diese ersten Reisen finanzierte. Ich wollte die Welt sehen, habe
sie gesehen, es hat mich beschäftigt, ich habe darüber geschrieben, und ich habe
manchmal diese Reisen als eine Materialsammlung für spätere Romane auch
empfunden, als ein Notizbuch. (in Treichel, 1995: 50-51)
O único motivo que o levou a escrever estes relatos de viagens não teria sido,
assim, o facto de ter encontrado um material melhor sobre o qual pudesse escrever, mas
tão somente a possibilidade de realizar um sonho tão querido como o de viajar pelo
mundo inteiro, sonho esse que não tinha ainda podido realizar por falta de meios
financeiros. Via os relatos como possível material a ser usado no futuro para a produção
de romances o que, no entanto, não aconteceu. Não foi todavia apenas a viagem e o
50
contacto com novos países que o fascinou. Também essa nova forma de escrita parece
ter agradado a Koeppen, como afirma em entrevista a Heinz Ludwig Arnold:
Nicht nur das Reisen, das Kennenlernen anderer Länder, auch das Schreiben
über die Reise, der Versuch, eine neue Form des Berichts zu finden, das
Experiment machten mir Spa? . (in Treichel, 1995: 108)
Koeppen começa então a escrever relatos viagísticos para a rádio. Daí talvez a
necessidade de incluir tantos detalhes sobre os lugares visitados, de tal modo que leva as
pessoas a viajar com ele, a experienciar tudo de um modo mais próximo da realidade
possível. As descrições são vivas, o confronto com a realidade é marcante e surge
também muitas vezes o apelo ao público, ao interlocutor.
Helmut Hei? enbüttel procura, em Hörtext und Lesetext Amerika (vd. 1976: 9598) , responder a uma pergunta resultante do facto de Amerikafahrt ter sido em primeiro
lugar escrito com a finalidade de ser transmitido pela rádio: deverá um texto destinado a
emissões pela rádio ter características específicas e quais? Ou, dito de outro modo,
haverá características que distinguem os textos radiofónicos dos textos para leitura?
Analisando a obra, Hei? enbüttel afirma que Amerikafahrt é essencialmente um texto
radiofónico e a sua apresentação e capacidade de despertar e manter a atenção do
ouvinte dependem em grande parte do modo como foi escrito, ou seja, de uma
enumeração e série de impressões, factos, observações e afirmações. Nesta obra são
fundamentais as palavras-chave e as ideias que apelam à capacidade de imaginação do
próprio ouvinte ao serem apresentadas, misturadas, registadas, criando o que
Hei? enbüttel chama um sonho colectivo artificial.
Os motivos pelos quais Koeppen deixa em certo momento de viajar e também de
escrever literatura de viagens são-nos explicados também pelo próprio escritor e já os
referi anteriormente. Tratava-se de um motivo pessoal, pois não poderia viajar devido a
uma pessoa que lhe era chegada, e um motivo diria profissional: não queria que se
tornasse rotina (vd. Hermann, 1994: 166).
A sua viragem para a prosa viagística foi considerada por muitos um
amadurecimento literário, uma deposição das armas com as quais causara tanto tumulto
51
anos atrás, ou, como resumiu Karl Korn, «Koeppen ist sanft geworden». No entanto, e
apesar de estar contente por não ter de se ocupar com acontecimentos da Alemanha,
Koeppen não concorda com a frase de Karl Korn, isto é, não considera ter-se tornado
mais calmo e menos crítico:
Es hat über eines dieser Bücher in Ihrer Zeitung eine Rezension von Karl Korn
gegeben, der ungefähr das Schlüsselwort brachte: »Koeppen ist sanft
geworden.« Ja, das stand wörtlich da. Darüber habe ich mich etwas geärgert,
weil ich nicht das Gefühl hatte, sanft geworden zu sein. Ich wollte auch nicht
sanft werden. Aber man hat es verschiedentlich so aufgefa? t. (in Hermann,
1994: 170-171)
Relativamente à trilogia do pós-guerra podemos, de facto, afirmar tratar-se de um
Koeppen mais calmo mas nem por isso menos crítico. As suas incursões pela literatura,
pela política, pela história, pela filosofia, a sua escrita pujante e o seu olhar observador,
que nada deixa escapar, acusam, de um modo mais ou menos claro e directo, marcas do
seu espírito crítico, atento e por vezes sarcástico. Mas vejamos em primeiro lugar o
percurso de Koeppen através da América.
52
2. O PERCURSO PELOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
(Microsoft® Encarta® 98 Encyclopedia)
Amerikafahrt começa com a descrição da travessia transatlântica do continente
europeu para o continente americano, momento esse que é descrito de um só fôlego,
ocupando um parágrafo de quase duas páginas. São feitas alusões a autores como
Faulkner, Sartre, Mauriac, Zola, Hermann Melville ou ainda Franz Kafka, e Koeppen
convida-nos a desembarcar também na América, avistando a ilha de Manhattan com os
seus famosos arranha-céus e a Estátua da Liberdade, representando os ideais tão
celebrados mas nem sempre respeitados de liberdade, de igualdade de direitos e respeito
pelos outros. Logo desde as primeiras páginas vemos dois pólos opostos em confronto:
o pólo eufórico, representando toda a grandiosidade e vastidão do continente, a
imponência dos seus edifícios, o predomínio do “American way of life” sobre o mundo;
por outro lado, o pólo disfórico que retrata as anomalias do sonho americano, a pobreza,
a miséria, a luta constante pela sobrevivência e o desprezo por minorias étnicas.
53
Koeppen sente a cidade de Nova Iorque através do olfacto. Nova Iorque cheira a
mar, a navios, mas também a relva e a pradarias. Em Nova Iorque, tal como em Paris,
Londres ou Berlim, é notório o provincialismo e o orgulho dos habitantes pelo seu
quarteirão e, contrariamente à ideia que os europeus têm da América, não havia pressa:
«keine Eile, nichts von amerikanischem Tempo» (A: 15). Nesta metrópole do mundo,
Koeppen encontra os famosos teatros da Broadway, perto do Times Square, o
Rockefeller Center, as lojas da Quinta Avenida, Madison Square, Washington Square,
Greenwich Village, Washington Arch, a bolsa de valores de Wall Street, Harlem,
Columbus Circle, o centro de exposições New Yorks Coliseum, a Rua 86 que aloja o
bairro alemão, Pennsylvannia Station. Mas mais do que a cidade e os seus lugarescomuns, Koeppen descreve as suas contradições e contrastes. Uma rua no meio de um
quarteirão elegante é assim descrita: «Diese Stra? e inmitten des eleganten Ladenviertels
von New York war eine schwarze, zumindest graue Börse, über die Ostwind wehte» (A:
19-20). Nova Iorque é a cidade da liberdade, onde se espera porém a cada momento uma
catástrofe: «Wieder empfand ich, da? man in Amerika in jedem Augenblick eine
Katastrophe erwartet» (A: 17). Em Madison Square pululam os desempregados e a
miséria nos bancos de jardim:
Madison Square war wie eine künstlich befruchtete Wüste, Armut auf den
Bänken, erschöpft Schlafende, traurige Arbeitslose und die fröhlichen freien
Arbeitsverneiner, und ringsherum die Stra? en billiger Läden. (A: 27)
A miséria reinante torna as pessoas cinzentas, assemelhando-se a pó, e a cidade
está povoada de fantasmas:
Leute, denen es nicht gut ging in New York, die sehr grau aussahen, wie zu
Staub geworden, suchten in den öffentlichen Papierkörben Nahrung oder
Verdienst im Abfall; sie glichen Schemen, und man konnte sich die gro? e
gigantische Metropole von allen Menschen verlassen und nur noch von
Gespenstern bewohnt vorstellen (A: 42)
O dólar tem um poder quase mágico: «Welche Sprache du auch sprichst, und sei
es keine, der Dollar reiht dich ein, macht dich gleich» (A: 27). A vontade de se tornar
americano leva a um desprezo pelas raízes até por parte dos próprios descendentes:
Egal deine Hautfarbe, gleichgültig dein Bekenntnis. Dein Vaterland vergi? t du,
bald verlernst du den Mutterlaut. Du möchtest Amerikaner sein. Deine Kinder
sind es, stolze Kinder, die dich verachten, der du aus Rostock, aus Lodz, aus
Messina, Nagasaki, aus irgendeiner Ferne kamst (A: 27)
54
O racismo está sempre presente, afectando principalmente as pessoas de raça
negra: «die Neger sind hier nur Türsteher und Stiefelputzer und Abwäscher und bringen
das Eis für die Zinkwannen der Bars» (A: 34), «Warum hatte man keine schwarzen
Puppen in die Schaufenster gestellt?» (A: 37). Também a mulher é discriminada,
especialmente se for de raça negra:
Die Frau war die typische ältere amerikanische Bürgerin, sehr eifrig, sehr
gutwillig, sehr freundlich und sehr, sehr moralisch. Sie war von Amerika
geprägt, nur war sie die schwarze Seite der Münze. (A: 36)
Este “lado negro da moeda”, embora se refira aqui directamente à cor da mulher
que Koeppen encontra na igreja, pode também remeter para outros sentidos, ou seja,
para um sentido mais geral, incluindo todas as contradições do sonho americano ou as
injustiças praticadas. Assim, o lado negro da moeda teria como reverso toda a exaltação
da tecnologia e do progresso representado pelos Estados Unidos.
As minorias étnicas residindo em Nova Iorque parecem também perder o
contacto com as suas raízes, não se encaixando em nenhum dos sistemas sociais, no seu
sistema de origem ou no sistema social americano:
Die deutsche Literatur, die deutsche Kunst, unsere Gegenwart, unser Leben, die
deutschen geistigen Bemühungen, selbst der deutsche Kulturattaché in
Washington existierten für die Bewohner der deutschen Stra? e in New York
nicht. (...) Die Sechsundachtzigste Stra? e war ein deutscher Alptraum. (A: 3940)
Em seguida, Koeppen parte para a cidade de Washington num comboio que
parece uma série de latas de conserva, mas que oferece todo o conforto para viajar,
assemelhando-se os seus assentos a mesas de operação - «und wirklich, man wurde
operiert, wenn man zum erstenmal durch Amerika fuhr - das Land saugte einen aus» (A:
43). O fascínio e o poder de sedução da América é tal que as pessoas parecem ser
operadas e sugadas, passando por uma lavagem cerebral, so sentido de criar um homem
novo, de um “renascimento” do homem, esquecendo as suas origens e deixando-se
influenciar pelo novo país que o acolhe. No percurso Nova Iorque - Washington começa
o Sul e sente-se a divisão entre as raças - «Schwarze Siedlungen, wei? e Siedlungen, sie
bildeten eine helle und dunkle Kette, sie lagen umeinander wie die Igelstellungen, wie die
in Bewegung geratenen Fronten eines schrecklichen Krieges» (A: 45). Na capital mais
famosa e mais cara do mundo ocidental, é imperativa uma visita ao Capitólio, ao
55
Congresso, à Casa Branca, ao Lincoln Memorial, ao Pentágono, ao Arlington National
Cemetery. Sobre o seu relato referente à capital americana paira uma aura de mistério e
uma imagem de imponência, corroborada pelo predomínio de adjectivos no grau
superlativo, como por exemplo: «in der berühmtesten und teuersten Herberge der
Hauptstadt der westlichen Welt» (A: 48), «Der Kongre? , das vielleicht mächtigste
Parlament der Welt» (A: 53), «liegt einer der immensesten, der nobelsten Friedhöfe der
Welt, der Arlington National Cemetery» (A: 59). Está também subjacente a esta
descrição e apresentação de pormenores - como a rotina diária, o preço exorbitante de
um simples quarto, os hábitos alimentares e as horas de ponta - uma crítica à pretensão
americana de dominar o mundo, de ser o exemplo e também o polícia para o mundo,
uma crítica ao consumismo e aos ideais americanos:
Die alltägliche Verführung war ungeheuer: Angebote, Angebote, Angebote.
Komischerweise fingen die meisten Anpreisungen mit dem Satz an: Du kannst
Geld sparen. Vor lauter Sparen wurde dem armen Geldverdiener die
Brieftasche leer. (A: 61)
Die Zimmer zeigten keinen protzigen Reichtum, sondern bezeugten die
natürliche Vornehmheit, die gute Menschenart und die auf Unabhängigkeit,
Freiheit, Bürgerrechten, Revolutionsidealen ruhende Tradition des besten
Amerikanertums (...) nicht nur die amerikanische Nation, sondern eine bessere
Menschheit zu schaffen. (A: 63)
Wieder war hier stark die Einsamkeit zu spüren, die besondere amerikanische
Einsamkeit, vor der sich Amerikaner fürchten und die sie hassen. (A: 65-66)
No trajecto para Nova Orleães passa pelos estados da Carolina, Georgia,
Alabama e Mississipi e a divisão entre a raça branca e a raça negra torna-se ainda mais
acentuada. Os negros são como uma mercadoria - «um sie zu besitzen wie eine tote
Sache, sie zu peitschen wie einen geha? ten, bezwungenen Feind» (A: 68-69) -, sem
dignidade nem direitos - «Wartesäle, Speiseräume für diese oder jene Haut,
Pervertierungen der menschlichen Würde» (A: 69), «Sie waren ein Teil des Staubes» (A:
69). E aqui é ainda mais mordaz a crítica social que Koeppen tece:
Vollkommene Trennung herrschte, wei? e Taxifahrer für wei? e Leute, schwarze
für schwarze. Wer mochte von Unterdrückung sprechen? Es herrschte
Gerechtigkeit und Gott wohlgefällige Sitte. (A: 73)
Onde está então a tão aclamada justiça americana? Que exemplos havia de
respeito pelos direitos do Homem? A própria cidade reflecte essa injustiça, essa tristeza,
56
essa podridão: «In New Orleans war etwas verdorben worden, in New Orleans stimmte
die Stra? e traurig» (A: 74). Já nem se encontrava o jazz que aí nascera:«Ich suchte den
New Orleans Jazz. Es gab ihn nicht, es gab ihn nicht mehr» (A: 76). Os brancos sentamse à frente e os negros atrás, segundo a lei vigente (cf. A: 72); a rua principal da cidade
chama-se Canal Street; a prostituição pulula na rua do striptease (cf. A: 75); o Garden
District é o velho quarteirão dos ricos (cf. A: 80). E embora Nova Orleães tenha também
os seus arranha-céus e auto-estradas, as suas pontes de aço e betão e portos, as suas
fábricas, a sua actividade e futuro (cf. A: 80), é o período marcante da guerra civil
americana que ocupa páginas e páginas da literatura.
Novamente o viajante utiliza o comboio como meio de deslocação, mas agora
sob um calor intenso e insuportável. Koeppen imagina-se morto e enterrado em Baton
Rouge, a capital do estado de Louisiana, que pertencera aos índios mas era agora um
repositório e fonte de petróleo. Em Houston, no estado do Texas, muda de comboio e
apanha o expresso da Santa Fé, rumo ao oeste selvagem, passando pelo rio Grande e
pelo rio Colorado, pelos estados do Texas, Novo México e Arizona. O comboio pára à
noite durante duas horas na cidade de Winslow e chega finalmente a Los Angeles, no
estado da Califórnia, um paraíso americano, a terra prometida, o sonho de todos os
americanos, asiáticos ou mexicanos:
Los Angeles ist ein amerikanisches Paradies, es ist der Garten Eden in letzter
Perfektion. (...) ist die amerikanische Zukunft, ist eine Stätte der Verhei? ung.
(...) Los Angeles ist der Platz, zu dem alle in den Vereinigten Staaten, die
Völker aus Asien, und die Leute aus Mexiko streben. (A: 90)
Koeppen tece um grande elogio a esta cidade que tanto o fascina, em que as
pessoas se destacam das de todos os estados americanos: «von Menschen, die sich
Amerikaner nannten und doch anders waren als die Amerikaner der übrigen Vereinigten
Staaten» (A: 97). A fusão de raças é aqui completa, surgindo um novo povo, uma nova
raça, imperando o bem, a reconciliação, a tolerância, a amizade (cf. A: 93-94). Compara
ainda a Broadway de Nova Iorque com a rua das lojas de Los Angeles, não como
domínio exclusivo dos ricos, mas antes acessível e pertença do povo: «Der Broadway
von Los Angeles war keine Stra? e für Vorurteile, die Menge bot keinen Raum für den
Hochmut, der Himmel schenkte Freude» (A: 94). Em Venice, encontra o que não
encontrara em Nova Orleães: o jazz e a revolta dos escravos através da música. Só
57
quando fala de Hollywood Boulevard, Sunset Boulevard, Wilshire Boulevard e Beverly
Hills é que o seu encanto parece esmorecer, e a grande e famosa Hollywood, capital
mundial do cinema, é para ele «der langweiligste (...) der anstrengendste Teil des
schönen Los Angeles» (A: 101). E depois de deixar a “cidade das sombras”, como ele
apelida Hollywood, visita o “reino dos mortos”, ou seja, o cemitério de Forest Lawn e
ainda o reino da Disneylândia, que faz esquecer todos os problemas e nos transporta para
o maravilhoso mundo da fantasia.
A próxima estação é São Francisco, a “rainha do Oceano Pacífico”, como se
autoproclama. Aqui se encontra não só Chinatown, mas também o local onde nasceu a
“beat generation”, um café de homens de letras, a universidade, a Baía e a ilha de
Alcatraz (que albergava a mais terrível penitenciária de sempre), os quarteirões dos
pobres, o jazz ao estilo de São Francisco. O viajante gostaria de ficar e viver a sensação
da vida nocturna e do turismo - «Ich schied ungern von San Francisco; es war ein Ort,
um zu bleiben» (A: 122) -, mas tem de partir para a cidade portuária de Oakland, de onde
seguirá em direcção a Chicago.
Novamente vive grandes experiências na linha do expresso São FranciscoChicago, que demora quarenta e oito horas a atravessar o continente da costa do Oceano
Pacífico ao Lago Michigan. Pára em Salt Lake City, capital do Utah e a cidade da Igreja
Mórmon, onde se encontra ainda o parque nacional de Zion. Para seu espanto, e apesar
das temperaturas altíssimas, dizem-lhe que se está no Inverno (cf. A: 126) e que para se
beber álcool tem de passar-se por um processo um tanto moroso e invulgar (cf. A: 127).
Um general, que fizera questão em mostrar-lhe a cidade, diz-lhe orgulhoso: «Salt Lake
City sei eine feine Stadt, eine Gemeinde ohne Slums und mit nur siebenundfünfzig
Negern» (A: 129). Pelo contrário, a impressão que colhe da cidade de Denver, no estado
do Colorado, numa paragem do comboio, não é muito favorável:
Die Stadt, soweit sie vom Bahnhof aus zu sehen war, wirkte an diesem Abend
wie der Schauplatz eines grausamen Kriminalromans. Die Häuser waren
hä? lich und schienen einander feind zu sein. (A: 131)
Finalmente chega a Chicago, no estado do Illinois, na margem sudoeste do Lago
Michigan. A imagem da cidade lembra a ilha de Manhattan pelos seus arranha-céus,
rivalizando com a linha do horizonte de Nova Iorque. Chicago é uma cidade repleta de
58
parques mas existem também slums, que a população procura eliminar, segundo um
cidadão de Chicago, que Koeppen considera “idealista”. Chicago «ist eine wei? e und
eine schwarze Stadt» (A: 132), onde as diferenças rácicas estão claramente demarcadas.
A herança de Al Capone ainda pesa, o que leva o “idealista” a afirmar: «wir sind nicht die
Stadt Al Capones, wir sind nicht das Feld der Spekulation, wir haben nicht nur
Schlachthöfe» (A: 133). No dia seguinte à sua chegada comemorava-se o Memorial Day,
em memória de todos os que morreram nas guerras. No Maxwell Street Market
dominava a miséria, a necessidade, o que o distingue de mercados como o de Londres ou
Paris, os quais primam pela sua arte pictórica, pela sua beleza arquitectónica (cf. A: 139).
Koeppen visita também a editora da revista Ebony, cujo chefe de redacção parece um
grande senhor mas um pouco limitado, pois não se interessa por outra parte do mundo a
não ser a América (cf. A: 145). Koeppen segue ainda a Michigan Avenue, atravessa a
ponte do rio Chicago e vê o Wrigley Building, que lhe parece um castelo do rei Luís II
da Baviera.
A viagem segue em direcção à costa leste, ponto de chegada ao continente
americano e de partida no regresso à Europa. Passa por Massachussetts, na Nova
Inglaterra, terra dos “Pilgrim Fathers” e do “Mayflower”. Pára, por fim, na capital de
Massachussetts, Boston (cf. A: 150-158), a cidade da tradição e da grande revolução
americana. Os heróis de Boston, Benjamim Franklin e Paul Revere, eram dois artesãos,
«aber der Geist dieser Männer hatte einen König besiegt und über all seine Ratgeber und
Feldherren triumphiert» (A: 151). Comparativamente ao resto da América, em Boston
havia mais ardinas e menos solidão, menos tristeza e menos medo de que algo de mau
acontecesse. Boston é a sede da Universidade de Harvard (a mais antiga dos Estados
Unidos da América), o que leva Koeppen a afirmar que, ao contrário de cidades
europeias como Heidelberga, Göttingen e Jena, que são cidades com uma universidade,
«Cambridge, Massachussetts, aber ist eine Universität, der eine kleine Stadt gehört» (A:
155). A igreja de Boston parece-se com a Basílica de São Pedro em Roma, conquanto
esta esteja num mundo morto (cf. A: 156).
Finalmente, Koeppen regressa a Nova Iorque, onde revisita alguns lugares para
se despedir da cidade que nunca dorme, da noite mágica nova-iorquina e da América e
americanos em geral, e parte para a Europa.
59
3. ELEMENTOS PESSOAIS EM AMERIKAFAHRT
Jeder Schriftsteller (...) arbeitet mit allem, was er
schreibt, auch an seiner Biographie. Alles, was der
Schriftsteller hervorbringt, kommt aus seinem
Leben.
Wolfgang Koeppen
(in Treichel, 1995: 136)
Partindo dos pressupostos teóricos apresentados no capítulo II sobre as
instâncias de comunicação na literatura viagística, pretendo agora analisar os papéis das
instâncias emissoras do discurso narrativo nos vários níveis para defender a minha
proposta de identificação muito próxima, se não total, entre o narrador do texto
viagístico, o autor abstracto e o autor real4.
O autor real desempenha um papel fundamental enquanto criador da obra
literária, sendo ele o sujeito do discurso e responsável por todos os níveis comunicativos
textuais. Através das várias entrevistas dadas por Wolfgang Koeppen, dos seus escritos
autobiográficos ou até de textos críticos sobre a sua produção literária, podemos não só
encontrar traços autobiográficos na sua obra viagística, mas também constatar que estes
textos nasceram do pedido expresso de Alfred Andersch para que Koeppen escrevesse
manuscritos de viagem para o programa radiofónico. Koeppen não precisa, assim, de
inventar histórias ou figuras narrativas. É lógico que se pode pôr aqui a questão da
verdade ou veracidade dos factos que relata, mas penso que não é tão fundamental
saber-se se o percurso real foi exactamente o que nos apresenta. Não há dúvida de que
Koeppen fez essas viagens e terá feito esta viagem em particular de Abril a Junho de
1958, como refere Todorow (vd. 1987: 193, nota 31). Também se sabe que o relato foi
transmitido pelo Süddeutscher Rundfunk sob o título de Amerikafahrt: die Früchte
Europas, a 29 e 30 de Dezembro do mesmo ano (vd. Basker, 1995: 587, nota 2). A
questão da memória também se poderia colocar, mas o espaço de tempo que dista entre
a realização da viagem e a sua apresentação escrita não é tão grande como o que
geralmente existe nos escritos de cunho exclusivamente autobiográfico. Além do mais,
Amerikafahrt é acima de tudo, como alguns afirmam, uma “viagem literária”. O próprio
Koeppen afirma, por exemplo, em entrevista a Monika Ammermann-Estermann e Alfred
4
Veja-se também esta temática em Uske, 1984, onde se debate a identidade literária entre o
protagonista e o narrador (vd. 53-59) e, em específico, o narrador dos relatos viagíticos (vd. 102-113).
60
Estermann: «Ich bin auf der Suche nach einer Romanfigur, die ich selbst bin» (in
Treichel, 1995: 151). Ou ainda, em entrevista a Horst Krüger:
Ich glaube, ich reise etwa wie eine Romanfigur, wenn ich das sagen darf. Und
statt einer Romanfigur, bin dann ich es, der das erlebt und reflektiert, über den
berichtet wird. (in Treichel, 1995: 37-38)
Koeppen identifica-se assim claramente com o narrador e de certo modo até com
o receptor, havendo quase uma simultaneidade entre aquilo que é vivido, o momento da
escrita e a reflexão sobre a própria escrita, um pouco na linha do que H. James afirma
num prefácio a The American: «The teller of a story is primarily, none the less, the
listener to it, the reader of it, too» (apud Stanzel, 1989: 190). Koeppen é quem viaja
pelos Estados Unidos da América e é quem escreve as suas experiências e as lê,
dependendo o resto da sua escrita da sua reacção como leitor e “ouvinte”, num processo
dinâmico emissor / receptor.
Numa outra entrevista, a Karl Prümm e Erhard Schütz, reitera a sua ideia de
figura romanesca: «Ich komme mir selber sehr oft als eine Romanfigur vor» (in Treichel,
1995: 164). Esta ideia repete-se nas entrevistas. A Linder, afirma :«Ich lebe literarisch
(...) Und dann lebe ich etwas wie eine Romanfigur» (in Treichel, 1995: 61); ou ainda
«Ich lebe in einem Roman, und das mindert meinen Willen, ihn zu schreiben, zehrt auch
an meiner Kraft» (in Treichel, 1995: 63). A Prümm e Schütz diz: «Ich komme mir selber
sehr oft als eine Romanfigur» (in Treichel, 1995: 164), ou a Kulessa: «Aber Schriftsteller
hin, Schriftsteller her, ich halte mich manchmal für eine Romanfigur» (in Treichel, 1995:
196). A ideia de a sua própria vida ser um romance está ancorada na sua juventude e
infância, altura em que já nutria uma paixão avassaladora pela literatura e também pelas
viagens (a todos os níveis):
Als Kind wollte ich in meinem Zimmer und immer woanders sein. Obwohl ich
in China, auf Samoa, zu den Quellen des Nils, im Wilden Westen Amerikas,
auf hoher See in grandiosen Stürmen reiste und Schiffbruch litt, geno? ich
Abenteuer, Gefahren und Sindbads Freundschaft im Bett... Was ich, Bücher
verschlingend, empfand, war grenzenlos. Was ich mir, den Atlas studierend,
vorstellte, war das Herz der Fremde, die Seele des Windes, der Geist des
Meeres und der Leib der Küsten, war die Wahrheit der Länder und Klimate, der
wei? en, schwarzen, roten und gelben Menschen, japanischer als Japan selbst...
ich ahnte bald, da? man nicht in Indien gewesen sein mu? te, um von Indien zu
erzählen. (apud Hielscher, 1988: 109-110)
61
Deste modo, como afirma o próprio Koeppen, não é necessário sair do quarto
para se viajar, para se viver aventuras e emoções. De facto, Koeppen parece ter
começado a ler muito cedo, com sete ou oito anos (vd. Hermann, 1994: 23-24) e lia
todos os jornais que o tio assinava mas também contos de fadas e literatura juvenil, como
por exemplo Cooper. A sua ocupação favorita era deitar-se na cama e ler. A leitura era
para ele mais importante do que as aulas e lia de tudo. Durante a puberdade admirava os
poetas do expressionismo e lia Kafka, Trakl, Heym, Brecht e Toller. Durante o curso leu
as grandes “descobertas”: Marcel Proust, James Joyce, toda a obra de Kafka, Döblin,
Musil, Thomas Mann, Heinrich Mann. Mais tarde voltou-se para Faulkner e para os
americanos em geral (vd. Treichel, 1995: 144-145). Não admira, pois, o jogo que faz nas
suas obras com as figuras literárias e escritores. Os seus modelos são tão variados como
Franz Kafka, James Joyce, Marcel Proust, John Dos Pasos, Ernest Hemingway, William
Faulkner, Gertrude Stein, Alfred Döblin. Eram tantos que, à questão de Arnold sobre as
suas preferências literárias, Koeppen responde: «Da gab es viele. Ich mochte alle. Ich
verirrte mich im Wald. Keine Bibliothek in der Stadt war vor mir sicher» (in Treichel,
1995: 90). Em Amerikafahrt também fala do seu deslumbramento pela biblioteca do
Congresso (vd. A: 54-55). Também não admira que num inquérito (vd. Treichel, 1995:
132) afirme ser Karl no romance Amerika de Kafka o seu herói romanesco favorito.
Aliás o mundo de Kafka parece assombrar Koeppen, que a ele se refere várias vezes. Em
Amerikafahrt, por exemplo:
Und Franz Kafka, der Amerika nie erreichte, doch von Amerika den wahrsten
Traum hatte. (A: 11)
Die Halle war Amerika und war doch wie von Kafka aus Prag, ein Raum so
schwingenden Daches, so weitgestreckter Ma? losigkeit. (A: 13)
All dies beunruhigte mich alten Kafkaleser nicht wenig. (A: 49)
und ich hatte das nur von Kafka zu beschreibende Empfinden, in Salt Lake City
bleiben zu müssen. (A: 125)
Ich hatte es geahnt, ich war der K aus dem “Proze? ”, ich war der
Landvermesser aus dem “Schlo? ”. (A: 128)
und alles glich einem Kapitel aus dem Amerika-Roman von Kafka. (A: 141)
Além da literatura, também a história e a mitologia gregas o influenciaram muito:
«Dagegen hat mich die alte griechische Geschichte sehr beeindruckt» (in Hermann, 1994:
62
24). Todas estas marcas estão presentes em Amerikafahrt, como já demonstrei no
capítulo anterior.
Outro aspecto que ressalta da biografia de Koeppen é a marginalidade, a vontade
e necessidade de estar só, a incapacidade de se integrar na sociedade, situação que o
marcou desde muito cedo, desde os tempos da escola: «Nein. Ich galt nicht als
Besserwisser. Aber ich galt als Au? enseiter» (in Hermann, 1994: 25). Nunca foi um
homem sociável, como afirma em entrevista a Heinz Ludwig Arnold: «Ich war kein
Gemeinschaftsmensch, ich war kein Team-Arbeiter; ich war immer ein Au? enseiter, und
zwar ganz bewu? t» (in Treichel, 1995: 96). Aliás essa sua marginalidade está
intimamente ligada com a sua necessidade de estar só para escrever e ainda com o seu
papel de observador. Antes de escrever ou começar a escrever um livro, gostava de
andar sozinho pela cidade e, sem participar na vida da cidade, vagueava pelas ruas,
sentava-se nos cafés e observava as pessoas (cf. entrevista a Anne Andresen e Hans
Georg Brenner, in Treichel, 1995: 17). Goza nas cidades a alegria de estar só na
multidão, como Poe ou Baudelaire (vd. entrevista a Müller-Waldeck, in Treichel, 1995:
262) ou, segundo um axioma de Victor Hugo que Koeppen gostava de citar, «die
Einsamkeit in der Menge» (entrevista a Mauranges, in Treichel, 1995: 120). Essa sua
marginalidade contribuíu portanto também para se tornar escritor, como confessa a
Heinz Ludwig Arnold: «Ich bin menschenscheu. Das trug dazu bei, da? ich Schriftsteller
wurde, ein Mensch allein vor einem Blatt Papier (in Treichel, 1995: 111). Koeppen viaja
assim essencialmente sozinho: «Allein wieder» (A: 119). A presença de sua esposa
Marion é clara por exemplo no relato sobre Espanha em Nach Ru? land und
anderswohin: «Marion ist jung; sie glaubt noch, da? Amtspersonen lachen können»
(NR:5 15). Em Amerikafahrt encontra poucas pessoas ou, quando as encontra, pouco
conversa com elas.
5
Sigla utilizada neste trabalho para referir a obra de Wolfgang Koeppen, Nach Ru? land und
anderswohin, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1995.
63
Outro aspecto marcante da biografia de Koeppen é a vontade de viajar, a paixão
de conhecer outros mundos, de se sentir estrangeiro: «Ich reise gern, bin gern in fremden
Ländern, sehr gern Ausländer. Das entspricht meinem Wesen, der Haltung des
Beobachters» (Koeppen em entrevista a Krüger, in Treichel, 1995: 31). Vimos já
anteriormente que Koeppen aceitou de bom grado viajar em trabalho, ou seja para
escrever relatos para a rádio onde trabalhava Andersch. Ele confessa também, em
entrevista a Monika A.-Estermann e Alfred Estermann, que a primeira razão pela qual
escreveu os relatos viagísticos foi o gosto pela viagem ou, mais ainda, a possibilidade de
viajar, uma vez que, de outro modo, não o poderia fazer por dificuldades económicas
(vd. Treichel, 1995: 150). A intenção dele, ao viajar e cumprir a tarefa encomendada,
não foi confirmar informações de livros técnicos, mas dar largas à sua fantasia, como diz
o próprio em entrevista a Müller-Waldeck: «Ich versuchte nicht, die Sachbücher zu
bestätigen. Ich finde die Wahrheit in meiner angeregten Phantasie, wenn ich dort bin» (in
Treichel, 1995: 267). Aliás, as suas obras viagísticas não são guias turísticos: «Das sind
ja auch keine Reiseführer» (em entrevista a Arnold, in Treichel, 1995: 105), o que vem
comprovar também o cariz literário de tais obras.
Uma última característica do autor, também visível em Amerikafahrt, que
gostaria de abordar é a sua dificuldade em tomar decisões, visível no facto de estar
sempre a relativizar as suas afirmações concedendo-lhes um carácter vago, impreciso, ahistórico. São abundantes as questões que coloca, as comparações nem sempre são
claras ou rigorosas, o que confere também uma maior veracidade aos relatos, uma certa
verosimilhança. Embora esteja bem informado e seja uma pessoa altamente instruída, as
suas dúvidas e perguntas emprestam aos seus relatos um cunho mais próximo da
realidade. Na opinião de Vilas-Boas, esta característica koeppeniana, por certo mais
presente nos romances do pós-guerra, está ligada com a sua vivência literária do mundo;
dito de outro modo, a tensão entre os mundos real e ficcional dificulta a sua integração e
a sua capacidade de agir (vd. 1987: 522). Como afirma Koeppen a Le Rider: «La seule
solution pour moi consistait en construire un autre monde, à vivre dans l’imaginaire»
(apud Vilas-Boas, 1987: 522). Por vezes assume até posições pouco claras como, por
exemplo, quando, por um lado, parece arrepender-se ter escrito tais obras viagísticas:
«ich wei? auch heute noch nicht recht, ob ich sie hätte schreiben sollen oder nicht» (em
entrevista a Mauranges, in Treichel, 1995: 119), mas por outro lado reconhece valor,
64
quase diria terapêutico, da viagem: «Später lernte ich, da? ein Aufenthalt irgendwo in
der Welt, es leichter machte, von sich zu sprechen» (apud Hielscher, 1988: 110). Parece
haver, assim, uma relação entre a viagem e a autodescoberta ou revelação de si mesmo.
Viajar, estar em confronto com outras culturas e relacionar-se com outras pessoas faznos pensar sobre nós próprios, as nossas próprias convicções, os nossos hábitos e vícios,
a nossa cultura. Além disso, conhecer outros lugares e pessoas implica também
conhecer-se melhor a si próprio e falar, talvez mais abertamente, de si próprio.
Em Amerikafahrt, como já salientei, também Koeppen se dá a conhecer, assim
como em Nach Ru? land und anderswohin e em Reisen nach Frankreich. Koeppen
marcou profundamente os seus textos, sendo possível encontrar neles traços do autor
real. Ele próprio afirma em entrevista a Kulessa: «Kein Buch von mir ist
autobiographisch und keines ist es nicht. Ich nehme mir ja jede Freiheit» (in Treichel,
1995: 197), ou ainda em entrevista a Linder: «bis zu einem gewissen Grade tut das ja
jeder Schriftsteller, seine Werke sind eine Art fortlaufender Biographie» (in Treichel,
1995: 61). O elemento autobiográfico é, assim, na opinião de Koeppen, uma constante
em cada escritor, mas é ao próprio autor que cabe decidir a quantidade de informação
autobiográfica que irá incluir, implícita ou explicitamente. No caso particular de
Amerikafahrt e das obras viagísticas koeppenianas, tal como elas surgiram, é inevitável
falarmos de uma forte presença autobiográfica, com as variações conscientes do próprio
autor no que diz respeito à organização ou sequência das visitas efectuadas, o que
corrobora a minha afirmação anterior de identificação entre as instâncias emissoras dos
vários níveis de comunicação que expus anteriormente: o autor real, o autor abstracto e
o narrador e personagem.
65
B. LINHAS TEMÁTICAS DOMINANTES
Já vimos nos subcapítulos anteriores em que situação e porquê Koeppen começa
a escrever relatos viagísticos. Também foi traçado o roteiro da viagem física
empreendida pelos Estados Unidos e foram explorados elementos pessoais na obra
Amerikafahrt, tendo sido proposta uma ligação entre o narrador das viagens e o autor
real. Pretendo neste capítulo apresentar as linhas temáticas dominantes que fazem destes
escritos viagísticos obras de verdadeiro valor literário, e não uma mera descrição de
lugares e impressões, à semelhança de um simples guia turístico.
Assim, e depois de vermos que tipo de turista - ou devo antes dizer viajante? Koeppen é, e de sublinhar o seu papel de observador atento que se baseia nas suas
impressões e sentidos, tentarei entrar no domínio do simbolismo da viagem, a que já tive
oportunidade de aludir anteriormente.
1. TURISMO VS. ANTI-TURISMO
Neste contexto de literatura de viagem, será talvez mais apropriado falar-se de
“viajante” do que de “turista”. Segundo Vicente Jorge Silva, a diferença entre um turista
e um viajante reside no seguinte: um turista desloca-se em bando e um viajante aprecia a
solidão. O primeiro contenta-se em seguir rotas estereotipadas e programas prontos a
consumir, enquanto o segundo procura os acasos originais de um trajecto solitário. O
turista não dispensa, em princípio, o conforto do “previsível” e do “conhecido” - mesmo
daquele “conhecido” que é suposto não o ser - ao passo que o viajante se expõe aos
acidentes do desconforto em troca das revelações do imprevisto (vd. 1996: 1). Ora é
precisamente o viajante que vemos em Koeppen, que não segue as rotas prescritas nem
se prende a clichés culturais, mas prefere explorar ele próprio outros lugares, cultivando
uma espécie de anti-turismo (se bem que em certa altura admita que há sítios que
obrigam a uma visita, como por exemplo o Kremlin em Moscovo, afirmando que não o
ver seria como ir ao Egipto e não ver as pirâmides - cf. NR: 195). Demonstra ainda uma
predilecção pelos rejeitados da sociedade, pelos incompreendidos, por relações e
objectos inferiores e “não dignos de serem vistos”:
66
Doch neben den Stra? en des Handels und des Wandels gab es überall
Hintergassen, merkwürdig vernachlässigte Notausgänge des Geschäftslebens.
Die Fassaden waren dort schwarz, die Feuerleitern strebten begräbnisschwarz
oder angstrot, und auf dem Pflaster lag Abfall. (A: 133)
Os relatos viagísticos reúnem observações sem ordem ou segundo uma ordem
anti-hierárquica, pois para Koeppen não interessam tanto os museus e as construções
mas antes os sonhos e os medos do homem (vd. Todorow, 1987: 182). Koeppen vive os
locais onde pára através da fantasia, de experiências de leitura, associações e alusões,
criando assim um mundo a partir do ponto de vista de um erudito muito instruído. A sua
posição de observador nato, que baseia as suas percepções nos sentidos, tornam-no um
escritor “sentimental” e “impressionista”. Como afirma Karl Heinz Kramberg:
So genau sieht Koeppen hin. Seine Netzhaut, seine Nase und sein Sensorium
für flüchtig wahrgenommene erotische Reize lassen nichts aus. (apud Uhlig,
1972: 55)
Também Walter Jens se refere à plasticidade da linguagem de Koeppen e à sua
capacidade apurada de observação:
Ein Bild, ein plastisches Eigenschaftswort, und schon ist der Eindruck fixiert!
Koeppen beobachtet scharf, er wartet und drängt sich nicht auf, seine Diktion
verrät Bedachtsamkeit, das Schwergewicht liegt auf den Nomina, die Verben
sind leicht, eher konventionell als barock. (apud Uhlig, 1972: 19)
Veste o papel de observador, de testemunha, torna-se estranho para melhor
entender e apreender o real:
In dieser Spannung, fremd werden, um besser zu begreifen, zeigt sich also nicht
allein Distanz zur Welt, die sich Koeppen schreibend verschafft, sondern auch
die Vertrautheit, durch die ihm Phänomene der Welt zugänglich werden. Lesend
wird angeeignet, schreibend wird geäu? ert, was an Literatur im Schriftsteller
ist. In der Reisebewegung vermischt sich beides, und in beides mischt die
Reisebewegung sich ein. (Schlösser, 1987: 23-24)
A leitura e a escrita estão intimamente ligadas no processo de apropriação da
realidade, daí a oposição desconhecido / conhecido, a capacidade de se distanciar do
mundo e ao mesmo tempo de o tornar comum.
Christian Linder afirma em entrevista com Koeppen que o olhar deste é como o
olhar puro de uma criança que, precisamente por ser inocente e transparente, serve ainda
67
para denunciar os maiores horrores: «Der Blick des Kindes macht vieles transparent,
auch die unsichtbaren Ungeheuer» (in Treichel, 1995: 31).
Koeppen nutre de certa forma um desprezo pelos turistas enquanto consumidores
passivos da história e cultura “vendidas” por guias turísticos insípidos. Talvez, como
afirma David Basker, o único crime destes turistas seja o facto de não serem tão cultos
como Koeppen (vd. Basker, 1995: 597). O autor também acaba, no fundo, por seguir
algumas rotas turísticas e até vai, a dada altura, a uma agência de viagens - «Ich wollte
eine Rundfahrt durch Gottes Stadt machen und ging zum Reisebüro» (A: 126). No
entanto, a atitude dele é substancialmente diferente: vê, observa, visita alguns lugares
turísticos, procura outros lugares para fora da rota definida e é a descrição que faz
desses lugares, a teia de alusões que tece e que nos transporta para outros domínios
como pela literatura e história, além da quantidade de pormenores e do colorido que dá,
que o tornam mais um viajante do que um turista, no sentido que expus anteriormente.
Critica, assim, abertamente as escolas de todo o país, que parecem estar sempre a
viajar - «Schulklassen von überallher und die Bewohner des weiten Landes, von einer
riesigen Flotte von Autobussen herangebracht, stürmten die Sehenswürdigkeiten, die
Tempel, die Stätten der Geschichte» (A: 52); «Die Schulen Amerikas schienen immer auf
Reisen zu sein» (A: 63). Critica o negócio do turismo em massa, que não pára de
proliferar - «Das Getriebe der Massengesellschaft funktionierte reibungslos» (A: 33),
«Die wenigen schwarzen Musikanten, die den Reisegesellschaften aus Texas, aus
Washington, aus New York oder Chicago aufspielten, arbeiteten lustlos, sie verdienten
sich ihr Brot» (A: 76); «Natürlich gab es auch Lokale für Amerikaner und
Besichtigungsgruppen» (A: 110). Assim, Koeppen prefere viajar sozinho e explorar tudo
aquilo que não conheceria através de livros ou guias, e entregar-se aos seus sonhos e às
suas fantasias - «Allein wieder besuchte ich die Quartiere der Armen, lange graue
Stra? en, in denen man trotz des Sonnenscheins fror» (A: 119). De facto, Koeppen parece
um sonhador, quando devaneia pela literatura e pela história, quando afirma ter sonhado
com locais, ter realizado os seus sonhos:
Ich war in Amerika angekommen. Ich stand in New York. Ich hatte dies oft
geträumt, und es war nun wie ein Traum. Der Traum, hier zu sein, hatte sich
erfüllt, und wie im Traum gab es keine Fremde. Ich war auch hier zu Hause,
und Amerika lag vor mir wie ein fester Besitz. Ich spürte Freiheit. Ich empfand
Freiheit. (A: 14)
68
É talvez esta ideia, esta impressão do relato viagístico que leva Martin Hielscher
a afirmar que os livros viagísticos não são meramente algo de novo e de diferente
relativamente aos romances nem apontamentos ou base para outros produtos, mas antes
a realização das fantasias de viagem que Koeppen nutria desde pequeno, com tudo o que
isso implicasse de vontade de conhecer o mundo e de medo dele próprio (vd. Hielscher,
1988: 109). Daí Helmut Hei? enbüttel afirmar:
Koeppens Amerika (soviel faktische Wahrheit, soviel Beobachtung von
Wirklichkeit darin auch eingeflossen sein mag) ist in jedem Satz ein Amerika
der Imagination. Koeppens Rede ist die Rede eines Träumers, der ein Stück der
gegenwärtigen Welt uns vor- und wahrträumt. Nicht umsonst beruft er sich auf
Melville, Kafka und Waugh. (Hei? enbüttel, 1976: 37)
Koeppen é um viajante culto, um pensador, que acredita no poder da palavra, que
não pretende descrever pura e simplesmente mas antes projectar ou recriar a realidade
através do mundo da palavra. O seu dom de observar cuidadosa mas penetrante e
ironicamente torna a sua prosa brilhante e viva, dando ainda lugar ao leitor para
interpretar e julgar as percepções e impressões que apresenta. Como afirma Karl Heinz
Kramberg:
Koeppen selbst genie? t die fremde Wirklichkeit durchaus wie ein Theater, als
Schauspiel und als Pantomime. Er wahrt die Rolle des Voyeurs, bleibt
Zaungast, unbeteiligt teilnahmsvoll den Impressionen hingegeben, die er zu
sammeln, doch niemals vorschnell zu rubrizieren wünscht. (...) Dem
aufmerksamen Leser bleibt es überlassen, Koeppens Abenteuer auszuwerten
und sich sein Teil zu denken. Unkonventionell sind nicht die Bahnen, in denen
sich der Reisende Wolfgang Koeppen bewegt, wohl aber seine Optik und seine
Sprache. Der Leser wird in Atem gehalten, weniger durch die Fülle des Stoffes
als durch die eigensinnigen Reaktionen des empfindsamen Globetrotters. (apud
Uhlig, 1972: 72)
Cabe, pois, ao leitor a tarefa árdua de interpretar as reacções do viajante
sentimental. A “viagem” que o leitor também empreende ao ler a obra não se baseia
tanto naquilo que é contado, naquilo que é visitado, mas mais nas percepções do
narrador, no modo como filtra as suas observações e as (re)produz.
69
2. CONFRONTO ENTRE DAS EIGENE E DAS FREMDE
Uma das primeiras ideias que sobressaem de uma narrativa viagística é sem
dúvida o confronto entre o próprio e o alheio, ou seja o confronto entre os conceitos das
Eigene e das Fremde, questão a que já me referi no capítulo II, no subcapítulo teórico
respeitante a uma discussão teórica entre estes dois conceitos. Inverti agora a ordem
destes dois conceitos, referindo em primeiro lugar o conceito de “próprio”, por pensar
que o ponto de partida é o indivíduo e as suas experiências, que serão postas em questão
ao deparararem com realidades novas, como acontece em Amerikafahrt. Falei no
capítulo II primeiramente do conceito de “alheio”, por ser um conceito fulcral e
predominante na discussão da literatura de viagens.
É inegável que a visita a qualquer país ou o contacto com uma experiência nova
nos coloca sempre em confronto com o que já conhecemos e sabemos; será, pois,
interessante analisar aqui algumas passagens em que são postos a nu e discutidos
estereótipos, em que Koeppen compara o que se lhe apresenta com o que supõe que o
leitor já saiba, tanto por fazer parte de uma determinada herança cultural comum como
por ter sido referido anteriormente no relato. Aliás, como refere David Basker, os
estereótipos contribuem para a estrutura-base das suas observações (vd. Basker, 1995:
592). Koeppen desfaz, assim, algumas ideias que os europeus têm dos americanos no
que diz respeito, por exemplo, à pressão do tempo ou aos serviços públicos:
auch in new York gab es den Provinzialismus und den Stolz des Quartiers, wie
in Paris, wie in London, wie im alten Berlin Nachbarschaftsgeschwätz, keine
Eile, nichts von amerikanischem Tempo, das überhaupt eine gänzlich falsche
Vortellung Europas von Amerika ist. (A: 15)
Wieder überraschte mich ein in Amerika nicht erwarteter, plötzlich auftretender
Mangel an Dienstleistungen, wie ihn der Europäer aus Kriegszeiten gewohnt
ist. (A: 46-47)
Refere a imensidão do país e os exageros dos americanos, a que os europeus não
estão habituados: «Lesesäle, Arbeitsräume, immer viel, viel, für europäische Augen
erstaunlich viel Platz» (A: 114), «Die Mauselöcher waren riesig. Das Haus war ein
drittklassiges Hotel, aber selbst in ihm waren, wie überall in Amerika, die Zimmer
dreimal so gro? wie in den besten europäischen Herbergen.» (A: 156). Dá exemplos de
diferenças culturais a nível de experiências tão vulgares como o aluguer de um quarto ou
a temperatura que se faz sentir:
70
las ich, da? mein Zimmer drei? ig Dollar am Tag kosten sollte. Ich erschrak
sehr, ich schämte mich, kämpfte mit mir, raffte mich schlie? lich auf,
telefonierte mit der Hotelleitung und sprach von einem Mi? verständnis, ich sei
kein Minister und kein Bankdirektor. (A: 48)
Ich wollte eine Rundfahrt durch Gottes Stadt machen und ging zum
Reisebüro. Ein wortkarger Mann sagte mir: “Im Sommer.” Ich fragte: “Und
was haben wir jetzt?” “Winter”, sagte der Mann. Die Sonne brannte. Das
Thermometer näherte sich hundert Grad Fahrenheit. (A: 126)
Sublinha o facto de as ruas americanas estarem despojadas de presença humana:
«Wie oft in amerikanischen Städten, befand ich mich plötzlich in einer kleinen, stillen,
vollkommen menschenleeren Stra? e» (A: 137).
A um nível mais restrito, mais direccionado para o público alemão, também
encontramos referências à história e a hábitos alemães. É, por exemplo, o tamanho dos
jornais diários americanos que eram tão grossos como os jornais alemães na sua edição
de domingo (cf. A: 61), ou, ao contrário, as “vilas dos eleitos” de Hollywood que eram
mais pequenas do que as casas de um dono de fábrica médio, um director ou um homem
de estado alemão (cf. A: 103). Quanto às referências históricas, reportam-se geralmente
ao tempo de Hitler, dando azo a expressões tão antagónicas como por exemplo: «der
Fahrer (...) sagte (...) mir, da? er Hitler für die bedeutendste Erscheinung des
Jahrhunderts halte» (A: 66), «Nichts mehr von Hitler, Hysterie und Demagogie» (A:
115). A descrição do bairro alemão, ou da rua 86 de Nova Iorque (cf. A: 38-40) deixa o
narrador decepcionado, pois a língua falada é uma mistura de um inglês ainda não
totalmente dominado e de um alemão já meio esquecido, e os habitantes da rua alemã
nada conheciam da literatura, arte ou filosofia alemãs, da própria vida alemã, resumindose a Alemanha a um filme sobre a pátria, a um museu de qualidade inferior, a um livro de
estudantes ou a um jogo de futebol. Numa palavra: «Die Sechsundachtzigste Stra? e war
ein deutscher Alptraum» (A: 40). De notar ainda que as comparações com a Alemanha
também se referem a cidades do bloco leste, quando o narrador diz, por exemplo, que se
encontrava «in einer seltsamen Welt mit mittelhohen Häusern aus den Gründerjahren
Stettins oder Chemnitz’» (A: 38-39). A afirmação de que «Deutschland war nicht der
Nabel allen Geschehens» (A: 50), e outras alusões menos directas mas nem por isso
menos carregadas de crítica e ironia até, parecem querer relativizar o peso da Segunda
Guerra Mundial e do período nacional socialista. O narrador mostra que, apesar das
diferenças, há muitas semelhanças entre os países que visita e a tendência é para uma
71
internacionalização nos vários campos da vida do cidadão, ou seja, a história mundial
repousa numa herança cultural com muitos pontos em comum, o que mostra que o que
aconteceu na Alemanha poderia ter acontecido noutro país qualquer ou, pelo menos, ter
correspondentes em todos os países a nível de atrocidades ou injustiças praticadas.
Retira-se deste modo um pouco de peso ao sentimento de culpa alemão referente à
Segunda Grande Guerra. O leitor alemão, lendo esta obra viagística e constatando a
existência de desrespeito pelos direitos humanos mesmo num país tão venerado e
desenvolvido como os Estados Unidos da América, projectam aí os seus sentimentos e
ficam como que aliviados e menos responsáveis e culpados por aquilo que aconteceu no
seu país durante o período histórico entre 1939 e 1945. O final desta obra viagística tem
um pequeno véu de esperança - «fuhr unter der Hoffnung der Nationen» (A: 168) - e a
última coisa que Koeppen vê e descreve é o cemitério judaico de Queen, com certeza
não tão “casualmente” como ele quer fazer crer. Já anteriormente Koeppen tinha
chamado a atenção para a importância de se visitar cemitérios: «Nie soll man auf Reisen
vergessen, die Friedhöfe fremder Länder zu besuchen. Die Gräber berichten viel von
einer Stadt» (A: 79). Eu acrescentaria, as campas dizem muito sobre o mundo inteiro.
Assim, a imagem positiva que nos apresenta do cemitério pode apontar para um certo
optimismo no sentido de respeito pelas raças e dignidade do homem:
zufällig war es ein jüdischer Friedhof, an dem ich verweilte, und seine
Grabsteine standen so dicht und so hoch auf dem Hügel, da? sie meinen Augen
wie ein getreues Spiegelbild der schönen und geliebten, der gro? en und
mächtigen, der erhabenen und freundlichen, der völkervermischenden und
urgemütlichen Wolkenkratzerstadt erschienen. (A: 168)6
Ainda relacionados com esta temática próprio / estranho ou alheio e com a
concepção da obra como sonho ou resultado do imaginário de Koeppen (de que já falei
anteriormente), estão os sentimentos contraditórios de Koeppen quando, por exemplo,
afirma: «New York war nicht fremd, New York war vertraut, es war noch in all seiner
Fremdheit vertraut» (A: 22), «Menschen wie du und ich (...) kein ungewöhnlicher Ort
und doch ein fremder Platz» (A: 35). Esta aparente contradição pode ser explicada pela
6
Manfred Koch relaciona estas palavras com o passo da obra referente ao bairro alemão em Nova
Iorque, para mostrar que a frase final de Amerikafahrt fica desde logo relativizada, apontando antes para
uma visão disfórica da América: «Mit diesen Worten wird die Äu? erung von der “völkervermischenden
und urgemütlichen Wolkenkratzerstadt”, die im Schlu? satz der “Amerikafahrt” steht, im voraus
zurückgenommen oder relativiert» (Koch, 1977: 506-7).
72
necessidade que Koeppen sente de procurar ser um estranho, um estrangeiro, para poder
registar as impressões como se fosse pela primeira vez, ao mesmo tempo que sente que,
no seu mundo de fantasia, no seu mundo cultural, já esteve perante tais situações. O
próprio Koeppen afirma, em entrevista a Christian Linder, sentir-se bem no estrangeiro,
sentir uma distância entre ele e o resto, marcada não só pela língua mas por todo um
conjunto de condicionalismos, numa palavra, é um estranho ele próprio:
Weil ich wahrscheinlich nirgendwo zu Hause sein möchte; (...) Ich bin zum
Beispiel leidenschaftlich gern Ausländer, ich fühle mich sehr wohl im Ausland,
weil zwischen mir und allem eine Distanz ist, eine Barriere, und zwar nicht nur
eine der Sprache... Es ist ein schöner Zustand. (...) Weil ich das sowieso bin:
fremd ganz und kra? . (in Treichel, 1995: 67)
Como refere Todorow, a procura do estranho é mais uma atitude daquele que
quer estar sozinho e não ser incomodado. Mas tornou-se difícil ser-se estranho, não só
porque tudo se repete mas também porque tudo está já marcado literariamente, ou seja,
já tudo foi reproduzido e transmitido, através de imagens, postais, fotos, ou através de
clichés e ideias estereotipadas (vd. Todorow, 1987: 174-175). Deste modo, Koeppen
prefere ser o “observador”, a “testemunha” (termos que ele próprio usa frequentemente),
correspondendo assim ao “modelo abstracto” das suas histórias:
Ich reise, ich bringe mich mit, ich bin mit mir beladen oder durch mich frei; ich
bin es, der in der Wüste steht, das Meer liegt vor meinen Augen und ist nur
durch meinen Blick. Ich bin überall zu Hause und fremd auch in meiner Stra? e,
auf dem Markt, wo ich mein Brot kaufe.
Was ich auf Reisen suche, ist das Fremdsein ganz und kra? , der Schein der
Vertrautheit ist gewichen, die Welt ist neu, sie ist mir nicht Freund und nicht
Feind, ich wohne nicht, ich bin nicht eingestuft, man erwartet mich nicht, ich
habe keine Geschäfte in der Stadt, ich verstehe nichts, und das bedeutet die
Möglichkeit des Begreifens. (apud Schlösser, 1987: 22-23)
Koeppen viaja, portanto, sozinho e absorve tudo o que o rodeia. Sente-se em
casa e simultaneamente um estranho tanto na sua rua como no estrangeiro, pois é essa
procura a partir do nada ou esse (re)começar que lhe vai abrir as portas ao conhecimento
do mundo e à compreensão do que observa, um pouco na linha do filósofo que ele
próprio tanto admira, Sócrates, e da sua grande verdade: «só sei que nada sei».
73
3. VISÃO CRÍTICA DA AMÉRICA
Do que foi dito anteriormente, já é possível fazer um juízo de valor sobre a visão
da América que Koeppen nos veicula: apresentando aspectos negativos e positivos do
grande país que são os Estados Unidos da América, Koeppen parece a cada passo tecer
louvores e conceder glórias aos feitos e obras dos americanos para, logo de seguida,
deitar por terra esses castelos, que afinal parecem ser feitos de areia. No entanto, penso
que Koeppen dá também espaço à interpretação pessoal de cada leitor. A obra está
estruturada de tal modo que, juntamente com as experiências, expectativas e ideias já
delineadas de cada leitor, possa surgir uma interpretação única e diferente de leitor para
leitor.
Senão vejamos exemplos da presença, muitas vezes em simultâneo, de ambos os
pólos - o eufórico e o disfórico. Logo no início da obra, ao fascínio da linha do horizonte
de Nova Iorque é contraposta a ideia de ausência de paraíso, indicada pela oração
adversativa «aber das Paradies war hier sowenig wie anderswo zu schauen» (A: 12). Na
descrição do Times Square, as expectativas dos viajantes também saem (pelo menos
durante o dia) goradas:
Die Erinnerung an viele Filmbilder, an den flimmernden Waffenstillstandstag,
an eine ameisenwimmelnde Neujahrsnacht, an den Konfettiregen des
Lindberghtriumphes, an den Rausch des Prohibitionendes trieb mich
unverzüglich hin, und wie oft, enttäuschte zunächst die Wirklichkeit den
Traum. Am Mittag sah die berühmte Ecke Broadway / Zweiundvierzigste
Stra? e schäbig aus. (A: 18)
O papel da mulher americana parece enaltecido, encarnando todas as virtudes
imagináveis, mas o facto de ser negra retira-lhe essas características (cf. A: 36). Também
a rua 86 de Nova Iorque, onde se encontra o bairro alemão, é antes «ein deutscher
Alptraum» (A: 40). A perfeita fusão de raças em Nova Iorque, criando uma América
verdadeiramente livre e bela (cf. A: 21), contrasta com a divisão rácica dos estados do
Sul (cf. A: 69 e 74). A Geração Perdida (beat generation) parece uma mancha na
idealização da cidade de Los Angeles, ao deitar por terra as ilusões optimistas relativas
ao futuro de Hollywood (cf. A: 99).
Além destas imagens contraditórias, ressalta também, na apresentação dos
Estados Unidos da América, a repetição em toda a obra de palavras conotadas
74
negativamente. São elas, por exemplo, a solidão, a miséria, o medo, a melancolia,
geralmente associadas aos marginais, aos velhos, aos pobres e às minorias rácicas. Deste
modo, a casa do americano é «doch ein düsteres Tableau von Einsamkeit und nahendem
Tod, von jenem Verloren, Verloren, das Thomas Wolfe so sehr empfunden hat» (A: 44).
Por todo o lado se sente e pressente a solidão tipicamente americana, «die besondere
amerikanische Einsamkeit, vor der sich Amerikaner fürchten und die sie hassen» (A: 66).
O peso da solidão oprime (cf. A: 97) e nas ruas do comércio encontram-se:
alte Leute, Männer und Frauen, auf eine besondere amerikanische Art arm, in
einer kalten Einsamkeit arm (...) das Groteske sollte die Isolierung, die
Aussto? ung, die Stiefkindschaft deutlich machen. (A: 133-134)
Há miséria nos bancos de jardim (cf. A: 27) e por todo o lado: «das Elend würde
in alle Ewigkeit mit seinen abertausend uralten Beinen über einen hinwegschreiten» (A:
139). É curioso notar que muitas vezes esses sentimentos ou qualidades são atribuídos a
coisas ou objectos, tendo estas personificações uma impacte ainda maior sobre o leitor.
Por exemplo, os prédios “crescem” em direcção ao céu, que era uma linha longínqua,
muito fina mas “simpática”, e a rua torna-se uma garganta:
Bald aber wuchsen die Gebäude (...) die Stra? e wurde zur Schlucht (...) und
der Himmel oben war ein unendlich ferner, sehr schmaler, doch freundlicher
blauer Strich. (A: 16)
A cidade “luta” desesperadamente contra um sentimento que percorre toda a
obra e afecta os americanos, a solidão: «Die Stadt focht ihren verzweifelten Kampf
gegen die Einsamkeit» (A: 24-5). O sinal luminoso à volta de uma redacção revelava “o
medo, a loucura e infelicidade” da terra: «Um das Redaktionshaus trug die Leuchtschrift
die Furcht, die Torheit und das Unglück der Erde» (A: 41). Em Nova Orleães, a estrada
parece “triste”:«in New Orleans stimmte die Stra? e traurig» (A: 74). As casas estão
também “tristes” e os reclames sobre os telhados das baracas são “optimistas”: «Häuser
von
unsagbarer
Traurigkeit.
Kleine,
schon
wieder
aufgegebene
Werkstätten.
Schmutzbaracken und auf ihren Dächern optimistische Reklamen» (A: 138-139).
Karl Heinz Kramberg não crê haver uma exposição clara da visão que Koeppen
tem da América. Segundo este crítico, Koeppen não diz directamente que tem medo da
América, mas a sua arte de repórter deixa pressentir esse medo e uma certa visão
75
apocalíptica do mundo, um pânico escondido mas presente. Vivendo a realidade estranha
como um teatro ou peça, Koeppen, na opinião de Kramberg, leva o leitor a interpretar e
a valorizar a sua experiência, emitindo juízos de valor e tirando as suas próprias ilações
(in Uhlig, 1972: 73).
R. Thomas e W. Will, por seu lado, não vêem qualquer intenção crítica nas
palavras de Koeppen, mas pura e simplesmente uma descrição factual e um jogo de
observações próprios de um viajante simpático, sem azedume ou maldade o que, no seu
ponto de vista, contrasta com o estilo e intenções presentes na trilogia do pós-guerra (vd.
Thomas e Will, 1969: 54).
Na minha opinião, a interpretação mais completa da visão da América
apresentada por Koeppen é a de Manfred Koch, resumida no parágrafo seguinte:
Dagegen sprechen die vielen Enttäuschungen, die ironischen Zurücknahmen
von begeisterten Äu? erungen und die düsteren Visionen, die die “Amerikafahrt”
durchziehen. Dagegen sprechen auch die melancholischen Töne des Buches mit
ihren Anspielungen auf existenzialistische “Grundbefindlichkeiten” wie Angst,
Ekel, Einsamkeit, Langeweile und Tod. Und schlie? lich gibt es eine Fülle von
Querverweisen auf die Unterwelt der griechischen Mythologie (Hades, Styx,
Labyrinth etc.) und die finsteren oder grotesken Szenen der Weltliteratur. Diese
Schreibweise hat zur Folge, da? die freundlichen Amerikabilder ständig
widerlegt, in Frage gestellt oder eingeschränkt werden können. (Koch, 1977:
505)
A visão da América apresentada por Koeppen não é de facto tão linear e fácil de
definir, havendo muitos elementos que contradizem a interpretação optimista de imagem
presente em Amerikafahrt.
76
4. ALGUNS MOTIVOS RECORRENTES
Em subcapítulos anteriores, abordei e analisei já alguns dos motivos recorrentes
em Amerikafahrt, como por exemplo: o poder do dinheiro e a sociedade consumista; a
religião; o sentimento de solidão que atravessa a obra; a ideia do sonho americano; a
crítica ao turismo de massas; o confronto com a mentalidade europeia e, mais
especificamente, com a realidade alemã, especialmente a realidade da época nacional
socialista. Também já referi que as viagens simbólicas presentes também nesta obra
viagística abrangem vários domínios como o da literatura, da história, da política, das
artes plásticas, do cinema, da filosofia. Pretendo agora salientar outros aspectos
pertinentes para a exploração e compreensão de Amerikafahrt e da exposição da visão
da América koeppeniana. Falarei, assim, em primeiro lugar, de um aspecto tão comum e
banal quanto é a questão do alojamento e da alimentação, aspecto que aqui parece passar
para um plano inferior ao plano que ocupa nas outras duas obras viagísticas,
principalmente no capítulo que diz respeito ao relato sobre Espanha (Ein Fetzen von der
Stierhaut), integrado no livro Nach Ru? land und anderswohin. Também abordarei o
aspecto cultural, a ânsia de saber, a presença de universidades e bibliotecas para
satisfazer a sede de conhecimento de todos. Outro ponto a realçar é a sensação de
grandeza do continente americano e do papel da natureza. Finalmente, discutirei a
questão racial, indissociável dos ideais americanos de liberdade e igualdade e das
contradições existentes no quotidiano.
4.1. ALOJAMENTO E ALIMENTAÇÃO
Tal como afirmei anteriormente, as impressões gustativas, o saborear das iguarias
típicas de um país, a etiqueta à mesa, a descrição viva do cheiro e sabor a comida e
bebida parecem estar mais presentes nas outras duas obras viagísticas de Koeppen. No
relato Nach Ru? land und anderswohin, por exemplo, Koeppen apresenta, em especial no
relato dedicado a Espanha, autênticos tratados de culinária. A curiosidade fá-lo registar
os mais pequenos pormenores do ritual da refeição em Espanha:
77
Ich bin neugierig. Die erste Mahlzeit in einem fremden Land entscheidet, ob die
Gegend einem gefallen wird. (...) da? dieses Hinwerfen des Besteckes spanische
Sitte ist. (...) Man kann nicht nach der Karte essen. Es gibt das Gedeck. Das
Gedeck besteht aus fünf Gängen, und jeden Gang darf man aus vier
verschiedenen Gerichten wählen. Die Speisekarte ist handgeschrieben. Die
Schrift ist kunstvoll verschnörkelt, so da? man sie nicht lesen kann. Wir ahnen
nicht, was uns geboten wird, und der Kellner ist ein Schnellsprecher. Er schie? t
die Namen der Speisen wie mit einem Maschinengewehr in unser Ohr. Wir
wissen nicht, was wir essen, aber es schmeckt uns gut. (NR: 20)
Koeppen experimenta também os pratos típicos, como por exemplo a paella, que
tem a preocupação de descrever, demonstrando não só o seu lado curioso e de
apreciador de comida mas também fazendo com que o destinatário da sua obra conheça
os pratos e costumes espanhóis:
Es gibt Spezialitäten aus Valencia, als Hausgericht die berühmte Paella, ein
Reisessen, das auf einer glühend hei? en Pfanne direkt aus dem Ofen
aufgetragen wird. In den Reis eingebacken sind gro? e und kleine Muscheln,
Krebse, Krabben, kleine Langusten, - die Muscheln und Krebse in der Schale.
Unter den Meertieren liegt ein Hühnerschenkel. Der Reis ist mit Safran gefärbt,
mit Curry und Paprika gewürzt. (NR: 42)
Também fala da bebida tipicamente espanhola, a sangria - «die rote Sangria aus
Wein, Zitronen und Eis in funkelnden Karaffen» (NR: 32) -, e do costume de os
espanhóis coleccionarem bebidas alcóolicas - «Wir gingen zu Chicote, dem Mann, der
die grö? te Sammlung alkoholischer Getränke besitzen soll» (NR: 61).
Na obra Reisen nach Frankreich também é notória a sensibilidade de Koeppen
para apreciar os queijos franceses - «Hundert Sorten Käse gab es wohl, die meist vom
Hausherrn mit Kennerschaft für das Mahl ausgesucht wurden» (RF:7 63) -, os croissants
- «Nirgendwo scheinen die Croissants so knusprig zu sein wie beim Frühstück auf dem
Boulevard Saint-Michel» (RF: 132) -, ou o vinho e o conhaque - «Cognac,
berauschendes Fest zwischen Weinfeldern, Weinozeanen unter der hei? esten Sonne»
(RF: 104). Dá-nos pormenores sobre a ementa e até o preço (vd., por exemplo, RF: 39)
e ainda sobre a etiqueta francesa de se estar à mesa: «Man i? t nicht schnell, man speist
mit Bedacht» (RF: 134).
7
Sigla utilizada neste trabalho para referir a obra de Wolfgang Koeppen, Reisen nach Frankreich,
Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1979.
78
Podíamos esperar que Koeppen nos mostrasse também em Amerikafahrt a sua
experiência a nível de pratos saboreados. As suas experiências neste campo nos Estados
Unidos não me parecem tão ricas, variadas ou excitantes. Pelo contrário, nem sempre
Koeppen pode saciar a sua sede de álcool, pois os hotéis de Washington, por exemplo,
não estavam autorizados a vender álcool aos domingos, pelo que as pessoas geralmente
levavam as suas próprias garrafas num saco e depois só teriam de encomendar gelo e
soda:
Am Sonntag wurde in den Hotels von Washington kein Alkohol ausgeschenkt,
und an einer Bar wird in der Hauptstadt überhaupt kein Durst gestillt. Das war
das Gesetz. (...) Schlie? lich tröstete man mich und sagte mir, ich könne im
Restaurant zum Essen ein Bier bekommen. (A: 49)
Também em Salt Lake City depara-se com dificuldades em encontrar álcool, pois
o vendedor faz-lhe primeiro um “exame” minucioso, perguntando-lhe por exemplo a cor
dos olhos e só depois lhe dá um documento que o autoriza a receber durante um ano
uma garrafa de aguardente por semana:
Der Mann hinter dem Schalter fragte mich inquisatorisch nach meiner
Augenfarbe, er zählte meine Haare, er wog mich auf einer Waage, und dann
gab er mir einen Ausweis, der mich berechtigte, ein Jahr lang im neuen Zion
wöchentlich eine Flasche Schnaps zu beziehen. (A: 127)
Quando se refere à cuisine americana, Koeppen salienta o internacionalismo e a
variedade de pratos, não tipicamente americanos mas sim de cada nação representada:
«Auch in Washington a? man italienisch, japanisch, armenisch. Die Lokale waren ein
Stück Italien, ein Fleck China, sie waren Kleinasien in vier Wänden» (A: 64).
Koeppen descreve também, a dada altura, o seu pequeno almoço numa drugstore
fora do hotel, para melhor conhecer o quotidiano americano e as próprias pessoas:
Zu den Spiegeleiern gab es hier schon am Morgen geröstete Kartoffeln, der
Toast schmeckte pappig, er war durch zerlassene Butter gezogen und klebte an
den Händen. Aber frische Säfte, fette Milch, vorzüglicher Kaffee. Hier
frühstückten die untersten Ränge der Bürokratie und des Geschäftslebens,
Boten, Fahrer, die kleinen Employers, Studenten, junge Anwälte, junge
Politiker, beginnende Journalisten. (A: 60-61)
Talvez as camadas sociais mais elevadas tomassem o pequeno almoço no hotel
(servido por negros de uniforme branco: «von schwarzen Kellnern serviert, die in ihren
wei? en Anzügen an geschulte Irrenwärter erinnerten» A: 50), fora da confusão e mistura
de classes ou raças, preferindo por exemplo esperar pacientemente para almoçar ou
79
jantar num restaurante de ostras: «Vor einem nahen Austernrestaurant warteten die
Gäste geduldig in langer Reihe, und ein schärpenloser Polizist rief, wenn ein Platz frei
geworden war, die nächsten Liebhaber auf» (A: 154).
Relativamente a hotéis, não é de admirar a reacção de Koeppen ao saber o preço
exorbitante de um quarto em Washington, dizendo haver um equívoco qualquer, uma
vez que ele não era nenhum ministro ou gerente bancário (cf. A: 48). Os hotéis eram
muitas vezes arranha-céus - «Das Hotel war natürlich ein Wolkenkratzer» (A: 16) - e a
qualquer hora chegavam grupos de turistas e ouvia-se barulho toda a noite (cf. A: 24).
Koeppen aprende alguns truques observando outros clientes de hotéis e aluga num outro
hotel um quarto barato e confortável com acesso a uma cozinha equipada com
frigorífico, fogão e louça, permitindo-lhe preparar as suas refeições ou trazer para casa
refeições baratas:
Im neuen Hotel hatte ich zum angenehmen, preiswerten Zimmer eine kleine
Küche bekommen mit Eisschrank und Herd, mit Töpfen und Geschirr, und ich
konnte wie die anderen Gäste, Offiziere und Beamte, zur Unterweisung oder
zum Bericht in die Hauptstadt gerufen, im nahen Drugstore oder im
Selbstbedienungsladen einkaufen, und was ich brauchte, sehr praktisch in gro? e
Tüten gepackt, nach Hause tragen. (A: 59-60)
Em Boston, Koeppen prefere ficar hospedado no hotel cujo Coffeeshop é
frequentado por estudantes da Universidade de Boston (cf. A: 156). Compara estes
estudantes com os estudantes da Universidade de Harvard, evidenciando uma maior
simpatia pelos primeiros. Os estudantes de Boston são mais convencionais e parecem
fazer por merecer o seu curso, que financiavam através de trabalho árduo. Nesse hotel
ficavam também hospedadas muitas senhoras de idade, que fugiam para os seus quartos
como ratos para o seu buraco. E uma vez mais os quartos do hotel, apesar de se tratar de
um hotel de três estrelas, tal como em toda a parte na América, eram enormes, eram o
triplo do tamanho dos quartos das melhores pousadas e albergues europeus (cf. A: 156).
A ideia com que ficamos dos hotéis e dos restaurantes não é tanto de conforto e
prazer em relaxar ou apreciar a gastronomia, mas mais da imponência, dos grandes
custos e, consequentemente, da impossibilidade de estar ao alcance de todos os cidadãos
americanos e visitantes estrangeiros.
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4.2. BIBLIOTECAS E UNIVERSIDADES
São abundantes as marcas de presença cultural em Amerikafahrt, não só ao nível
de referências a obras ou figuras da literatura, política ou história mundiais, mas também
a nível da existência de universidades e bibliotecas que Koeppen visita e de observações
que faz quanto à ânsia de saber do americano. Ligada ao “Sonho Americano” de que
todos têm a possibilidade de se tornarem homens novos e de serem recompensados pelo
seu trabalho, empenho e dedicação, está a ideia do acesso livre a diferentes áreas de
actuação, como por exemplo à cultura. Estas ideias fazem-me lembrar a resposta de
Michel Guillaume de Crèvecoeur à questão “What is an American?”, em Letters from an
American Farmer de 1782:
Here individuals of all nations are melted into a new race of men, whose
labours and posterity will one day cause great change in the world. (...) Here
the rewards of his industry follow with equal steps the progress of his labour.
(...) The American is a new man, who acts upon new principles; he must
therefore entertain new ideas, and form new opinions. From involuntary
idleness, servile dependence, penury, and useless labour, he has passed to toils
of a very different nature, rewarded by ample subsistence. - This is an
American...
Certamente que as novas ideias e as novas opiniões, a participação na vida activa
e o contributo para o futuro dos Estados Unidos não deveriam estar, como já tive
oportunidade de referir, nas mãos de todos, um vez que “um Americano” referia-se tão
somente, como afirmam Peter Carroll e David Noble em The Free and the Unfree, aos
“WASP” (White Anglo-Saxon Protestant), delimitando desde já o americano não só a
nível da cor ou da raça mas também a nível da religião e do sexo: «For the Founding
Fathers, the American was a white Anglo-Saxon Protestant male» (Carroll e Noble,
1985: 134). Mas o sonho americano existia e persistia, assim como a Declaração da
Independência e os seus ideais, o que levava torrentes de pessoas a afluir a este país
pelas mais diversas razões e a lutar por aquilo que acreditavam e estava consagrado na
Constituição e Emendas. Destas devemos relembrar as Emendas treze, catorze e quinze,
que dizem respeito aos direitos civis: a 13ª Emenda refere-se à abolição da escravatura,
resultante da Proclamação da Emancipação de Abraham Lincoln, em 1863, a 14ª
Emenda assegura os direitos civis a qualquer pessoa que tenha nascido ou tenha sido
naturalizada americana e esteja sujeita às leis do país e a 15ª Emenda deveria assegurar o
direito ao voto dos negros. Ora, esta questão era geralmente contornada de modo a que
81
os negros não votassem na prática, não lhes permitindo o acesso à educação, à cultura.
Não sabendo ler nem escrever, era difícil votar ou até formar uma opinião sobre qualquer
assunto, político ou não. O acesso à cultura é, de facto, na minha opinião, uma grande
arma. Não é por acaso que as ditaduras e regimes totalitários assentam na demagogia, no
controlo do povo iletrado que, quanto mais ignorante, mais fácil é de manobrar. Como se
sabe, a luta dos afro-americanos pelo acesso à educação também foi árdua, mas os
resultados foram animadores: muitos escritores surgiram, versando principalmente temas
da vida quotidiana dos americanos negros, denunciando as atitudes dos brancos e os
conflitos existentes. Também surgiram importantes e influentes políticos negros,
pastores, advogados, actores, por exemplo.
Em Washington D.C., Koeppen admira os grupos de jovens negros, chineses e
filipinos que visitam o “Lincoln Memorial” (cf. A: 42) e chama particularmente a sua
atenção o grande número de “pessoas de cor”, principalmente negros mas não só, que
correm ávidas para a bilioteca do Congresso, para as “fontes do saber”:
und wieder fiel mir unter ihnen, die sich zu den Wissensquellen drängten, der
hohe Anteil der Farbigen auf, vor allem natürlich der Neger, doch sah ich auch
Inder, Chinesen, Vertreter der grö? ten und der kleinsten Völker an den Pulten
sitzen, aufnehmen, wägen und schreiben. (A: 55)
É interessante notar o advérbio “naturalmente” («natürlich der Neger»), uma vez
que é tão evidente a abundância de pessoas de raça negra nos Estados Unidos
relativamente a outras raças “não brancas”. Os negros são frequentadores assíduos da
biblioteca pública, por trás da qual começa o seu bairro. Percorrem as prateleiras de
livros e alguns até lêem à luz da lanterna: «Das Wohnviertel der Neger begann hinter der
öffentlichen Bibliothek, die Amerikas dunkle Bürger auch in Washington flei? ig
benutzten» (A: 65).
A América é, assim, a grande nação dos alfabetizados - «Männer jeder Hautfarbe,
eifrig Lesende, finster Studierende, Amerika ist eine Nation von Alphabeten» (A: 28);
«Die Vereinigten Staaten waren und blieben in allen Himmelsrichtungen die Heimat der
Alphabeten» (A: 109). Todas as raças anseiam pelo saber, realizando o sonho dos
enciclopedistas no outro lado do mar - «Alle Rassen der Welt strebten zum Buch, zum
Wissen, zur Erkenntnis, der schönste Traum des Enzyklopädisten erfüllte sich
überseeisch» (A: 21). O próprio Koeppen via o seu sonho realizado perante o castelo de
82
livros que encontra na biblioteca do Congresso, sonho esse que tinha já enterrado, mas
que volta a surgir com toda a sua força:
In der Bibliothek des Kongresses stand ich in dem Hohen Tempel des
Alphabetentums. Als junger Mensch hatte ich von einem solchen Bürgerschlo?
geträumt, allmählich hatte ich den Traum begraben; doch hier in Amerika, in
Washington erfüllte er sich: ich weilte in der idealen Bücherei. (A: 54-55)
E uma vez mais as grandes dimensões americanas parecem sobrepor-se às
europeias: «der Reichtum der Universität lä? t den Europäer sich arm fühlen» (A: 114). A
Universidade de Harvard, em Massachussets, é de proporções tais que leva Koeppen a
afirmar que Massachussets «ist eine Universität, der eine kleine Stadt gehört» (A: 155).
A relva bem cuidada, onde jovens recebiam os seus diplomas embora parecendo não o
ter merecido, as igrejas, as bibliotecas, os auditórios e as residências universitárias davam
um ar de prosperidade, simbolizando a transformação, sempre possível na América, do
dinheiro em espírito (cf. A: 155).
4.3. VASTIDÃO DO CONTINENTE AMERICANO
A impressão que Koeppen nos dá dos Estados Unidos é a de um país de enormes
proporções e de grandes contrastes. É principalmente durante as suas viagens de
comboio de um lugar para outro que Koeppen sente a vastidão do continente americano
e admira as grandes planícies desertas e os pequenos povoados:
selbst vom sicheren Gemach des Zuges aus schien es mir in seiner Grö? e,
seiner Leere, seiner Einsamkeit, seiner Gegensätzlichkeit und Schroffheit, seiner
unmenschlichen Erhabenheit und natürlichen Ma? losigkeit unüberwindlich zu
sein. (A: 85)
Der Zug durchquerte (...) die Wüste. (...) Wie eine Fata Morgana erschien auf
einmal eine backsteinummauerte Oase. (A: 89)
E nesta imensidade havia ainda muito para explorar; daí Koeppen afirmar que a
América não é um país de massas mas um país da solidão (cf. A: 89). Interessante será
notar que à vastidão do continente americano parece corresponder a solidão, não só no
deserto e nas travessias mais ou menos longas pelas cidades americanas, mas talvez
também dentro da própria cidade. Tudo parece ter proporções exageradas: os prédios, as
casas, os monumentos são enormes e os povos que habitam as cidades são de diversas
83
etnias, culturas e religiões. Porém, o ser humano parece estar só ou, melhor, “seul dans
la foule”. A solidão não será aqui entendida como ausência de pessoas à sua volta, mas
como sentimento de abandono, de falta de amparo, de negligência e esquecimento por
parte da sociedade, de carências afectivas e de ausência de relações de amizade. Até a
natureza parece ingrata neste quadro pessimista. A natureza prega partidas aos homens,
revolta-se, faz frente e torna-se por vezes inóspita, quando por exemplo os homens têm
de suportar temperaturas elevadíssimas ou são de repente confrontados com furacões,
terramotos ou tempestades:
und die freundliche Natur, mit der man sich eins wähnte, hebt bald grausam
ihre furchtbare Pranke, kommt mit entsetzlichen Unwettern, mit glühender
Sonne, brennendem Gras und Baum, mit Hurrikanen im Sommer und Blizzards
im Winter und immer gigantisch. (A: 44)
Às catástrofes humanas, provocadas por meios de transporte tão úteis quanto
mortíferos como o avião e o automóvel, juntam-se as catástrofes naturais, como se fosse
o flagelo de Deus sobre a terra: «Und die Natur, dir gro? e ungezähmte Natur Amerikas
brach mit Stürmen, Feuer und Wasser immer wieder wie Gottes Gei? el über Gottes
eigenes Land» (A: 55).
A imponência das cidades americanas e dos seus arranha-céus, crescendo em
direcção ao céu em busca de mais espaço e ordem, parece anular-se perante a mãenatureza, que todos acabam por temer mas que nem por isso impede o Homem de
prosseguir na sua conquista e controlo quase absoluto dos bens da terra.
4.4. QUESTÃO RACIAL
A contemplação das grandes obras norte-americanas (por exemplo os arranhacéus e os edifícios sumptuosos) e o estudo da história norte-americana e de figuras tão
importantes para o nascimento dos Estados Unidos e para a sua independência
relativamente à Inglaterra com o lançamento de bases visando os direitos inalienáveis do
homem, de que Benjamim Franklin e Thomas Jefferson falavam na Declaração da
Independência de 4 de Julho de 1776, fazem-nos acreditar no surgimento de um novo
homem, de uma nova raça, de um paraíso terreno onde todos os sonhos são realizados.
Já por isso quando se fala na América pensa-se geralmente no conceito de melting-pot e
84
no “Sonho Americano”. Também Koeppen, ao ver a América como país escolhido por
emigrantes oriundos dos mais diversos pontos do globo, parece acreditar nessa nova raça
e num novo ideal de homem, nessas verdades e direitos de que fala a Constituição
Americana:
We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they
are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these
are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. (Microsoft® Encarta® 98
Encyclopedia)
Koeppen fala, na linha da ideologia do melting-pot ou país cadinho, nas perfeitas
misturas de sangue da cidade («all die herrlichen Blutvermischungen der Stadt», A: 21;
«alle Völker aller Erdteile [waren] stolz, Amerikaner zu sein», A: 52), de uma vontade
forte de se ser americano («Du möchtest Amerikaner sein», A: 27), de um novo mundo,
de um novo povo ou raça («sie waren die Neue Welt», A: 29; «ein neues Volk, das
schön, stolz, unbefangen, frei wirkte und aufrecht schritt», A: 93); «hatten eine neue
Rasse hervorgebracht», A: 93), da presença de todas as nações e seus idiomas («Jede
Nation, jede Sprache war vertreten», A: 40) e das capacidades ilimitadas oferecidas pela
América («bewies wieder einmal die unbegrenzten Möglichkeiten Amerikas», A: 158).
No entanto, esses ideais tão aclamados não são sempre respeitados e as
contradições e anomalias do sonho americano são postos a descoberto. Talvez fosse
então mais apropriado falar-se, como sugere Marc Ferro, em Falsificações da História,
utilizando a expressão de Fitzgerald, numa transição da ideologia do melting-pot para a
do salad-bowl, de uma salada em que cada ingrediente mantém as suas características e
qualidades, as suas idiossincrasias, distinguindo-se de todos os outros (vd. Ferro, 1981:
246). Há assim na América numerosos povos, muitas vezes agrupados em quarteirões,
bairros ou guettos tão variados como os chineses, italianos, espanhóis, gregos (cf. A:
162), indianos, russos, tibetanos (cf. A: 40). Mas a raça mais discriminada, que mais tem
sofrido e ainda sofre de segregação racial nos Estados Unidos é, sem dúvida, a raça
negra. São inúmeras as referências a injustiças cometidas contra este povo e, embora se
note uma diferença entre a nova geração de negros e os seus antepassados (cf. A: 142),
os conceitos opostos branco / preto ainda persistem e é muito difícil erradicar o racismo
até do país que se aclama como o país da igualdade de direitos e da liberdade. Assim, os
negros são apenas, como em Central Park South, em Nova Iorque, porteiros e
engraxadores (cf. A: 34); nas vitrinas não há bonecas negras (cf. A: 37) e, embora
85
trabalhem juntamente com os brancos e partilhem a mesma cantina e os mesmos
escritórios, depois do trabalho os negros partem para outro mundo, não podem alugar
certas casas e com certeza um colega branco nunca os apresentaria à sua irmã (cf. A:
132-133). É nos estados do Sul que a segregação negra é ainda mais forte. Nova Orleães
é uma cidade branca e preta: há restaurantes, cafés, sanitários públicos para brancos e
outros para pretos. No eléctrico, a lei obrigava a que os negros se sentassem atrás (cf. A:
72), o que me faz lembrar o boicote dos autocarros de Montgomery, no Alabama, em
1955, despoletado pela passageira negra Rosa Parks e que durou mais de um ano (381
dias), mas que conseguiu o anulamento das leis de segregação nos autocarros. Nesta luta
também é importante recordarmos o papel de Martin Luther King Jr. como presidente da
organização norte-americana para os direitos civis, a Conferência de Líderes Cristãos
Sulistas e o seu sonho de liberdade para todos (o famoso discurso “I have a dream” de
28 de Agosto de 1963). Também é vasta a literatura sobre este tema e que pode
completar as ideias de Koeppen quanto à segregação e injustiça racial. São conhecidos
escritores como Nathaniel Hawthorne (autor de The Scarlet Letter, de 1850, por
exemplo), Harriet Beecher Stowe (autora de Uncle Tom’s Cabin, de 1852), Ralph
Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Henry Wadsworth Longfellow, Langston
Hughes, Carl Sandburg, Ralph Waldo Ellison (autor de Invisible Man, de 1952), Harper
Lee (autora de To Kill a Mockingbird, de 1960), ou ainda Richard Wright (um dos
primeiros a descrever as condições de vida dos negros na sociedade norte-americana do
século XX no seu romance trágico Native Son, de 1940 e na autobiografia Black Boy, de
1945), James Baldwin, Imamu Amiri Baraka (com peças sobre o separatismo negro
como Dutchman e The Slave, ambas de 1964), Frederick Douglass (com Narrative of
the Life of Frederick Douglass, de 1845) e muitos outros, sem esquecer os nomes da
literatura versando o Sul americano que Koeppen cita, como William Faulkner e Mark
Twain.
Ainda em Nova Orleães, Koeppen encontra dois bares, um para brancos e outro
para negros. E, embora Koeppen opte por entrar no bar negro, os negros indicam-lhe o
outro bar, não por descortesia mas para evitarem problemas:
Ich trat an die schwarze Bar, und man wies mich hinüber zur wei? en. Man tat
es nicht unfreundlich, aber man wollte meinetwegen keine Schwierigkeiten.
Arme Wei? e aus der Nachbarschaft und arme Neger aus der Gegend tranken
den gleichen billigen Schnaps, das Bier derselben Marke, aber die Gosse, die
86
ihre Ausschänke voneinander trennte, schien unüberbrückbar zu sein. (A: 7778)
Também aqui está presente a preferência de Koeppen pelas minorias étnicas,
pelas vítimas de injustiças, cuja situação entende e com os quais se sente solidário.
Chicago é também uma cidade branca e preta (cf. A: 132) e esta polaridade
branco / preto percorre toda a obra, enfatizando o conflito racial bem vivo no país dos
sonhos. Os negros, ou “afro-americanos” - designação preferida pelos negros norteamericanos - lutam pois pelo seu “orgulho” ou pelo “poder negro”, cuja primeira
manifestação podemos ver em Harlem, chamada a “cidade negra” (cf. A: 34-35) por ter
sido o lugar onde, a partir do início do século XX, aspectos da cultura afro-americana,
incluindo o jazz, floresceram e atraíram um novo público branco. A sua autoconfiança
afirma-se cada vez mais, os negros tentam pôr fim à escravatura secular a que foram
submetidos e que a Proclamação da Emancipação do Presidente Abraham Lincoln, em
1863, pareceu não resolver na prática: «Überall (...) wurde offenbar, da? die Farbigen,
die lange unterdrückten Völker das grö? ere Zutrauen zu der einigen Welt hatten» (A:
167).
Outro grupo que parece ter chamado a atenção de Koeppen como vítima de
injustiças sociais e práticas discriminatórias é o dos judeus, os quais também trouxeram
as suas crenças religiosas e cultura própria e se instalaram nos Estados Unidos em
bairros (cf. A: 29), fugindo de vários pontos da Europa numa época de perseguições
horrendas: «Es waren Juden aus Europa, die sich zur Zeit des rasenden Ungeheuers so
weit nach Westen gerettet hatten» (A: 100). Também no bairro judaico de Nova Iorque
os judeus mantêm vivas as suas tradições, tal como eram praticadas na Europa de Leste:
«sie gingen, wie sie in Osteuropa zu ihrem Gott gegangen waren, schwarz, bärtig, ernst»
(A: 162). E a última visão de Koeppen antes de deixar o continente americano é um
cemitério judaico, denunciando subtilmente, na minha opinião, as mortes de milhares de
judeus durante o holocausto nazi, os campos de concentração e as atrocidades cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial.
5. SIMBOLISMO DA VIAGEM
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Na apresentação do “roteiro” da viagem física empreendida por Koeppen através
dos Estados Unidos da América, aflorei já alguns aspectos respeitantes a uma outra
dimensão da viagem, aquilo a que poderemos chamar a “dimensão simbólica” ou, ainda,
“viagens simbólicas”, incursões e devaneios, referências e alusões a campos tão diversos
como a literatura, a pintura, a história, a filosofia ou a política. É um sem-número de
nomes que Koeppen menciona e por vezes até cita aquando das suas observações.
Segundo um crítico:
Allein in der “Amerikafahrt” werden in Vergleichen, Assoziationsketten,
wörtlichen Zitaten und Slogans einige Dutzend Werke der Weltliteratur genannt
und ihre Gestalten, Schauplätze und Handlungen zum Leben erweckt: Figuren, die
den Werken O’Neills, Tennessee Williams, Mark Twains, Jack Londons oder
Carson McCullers entstammen könnten, betreten die amerikanische
Gegenwartsszenerie; Gebäude erinnern an Franz Kafka, Herman Melville oder
Evelyn Waugh; Landschaften wie aus den Büchern von Bret Harte, Thomas Mann,
William Faulkner und Upton Sinclair ziehen vorbei; Gerstäcker, Karl May, Cooper
und Sealsfield scheinen den Reisenden zu begleiten. Ebenso gehört zur
“Amerikafahrt” ein buntes Arsenal historischer Gestalten, das von Nero bis zur
Herzogin von Windsor reicht. Und immer wieder wird auf die griechische
Mythologie verwiesen, die vor allem als Szenarium für düstere Schilderungen
herhalten mu? , was Vokabeln wie “Labyrinth”, “Hades” und “Styx” verraten, wenn
der ironische Unterton auch nicht zu verkennen ist. (Koch, 1977: 518)
Estas deambulações pela literatura e história mundiais atestam o alto nível
cultural de Wolfgang Koeppen, a que já aludi anteriormente, e confirmam a afirmação de
Helmut Hei? enbüttel de que nesta obra de Koeppen se trata de uma América da
imaginação, do sonho, da fantasia (vd. Hei? enbüttel, 1976: 37).
Vejamos, pois, alguns exemplos dessas “viagens” por outros domínios que não o
domínio da deslocação física.
5.1. VIAGEM “LITERÁRIA”
Logo na primeira frase, que contém mais de 470 palavras, Koeppen descreve a
sensação da partida de navio desde o porto de Le Havre em França em direcção aos
Estados Unidos da América. Numa cadeia de associações, Koeppen mistura lugares reais
e fictícios, figuras históricas e literárias, expressões inventadas e partes de citações. Fala,
a propósito do Plano Marshall, do poder do dólar, a que ele chama “cheque para a
liberdade e contra a fome”; fala ainda da guerra do oeste selvagem e da grande batalha
nas “selvas das cidades”, de edifícios conhecidos como o Pentágono e a Casa Branca, da
88
experiência única que é atravessar o Oceano Atlântico por via marítima, como o fez
Cristóvão Colombo, sensação que não tem comparação com uma travessia por via aérea.
Koeppen lembra, nesta primeira frase, o nome de André Maginot - «Maginots
wierdererstandene Illusionen» (A: 7) -, o Ministro da Guerra francês que pensava evitar a
invasão da França pela Alemanha através da construção de uma fortificação ao longo da
fronteira entre estes dois países, mas que viu o seu plano malogrado, pois a Alemanha
pôde calmamente invadir a França em 1940 através da fronteira franco-belga. Lembra
também «die irren Lichter O’Neills, die Durchleuchtungen Tennessee Williams’,
Faulkners Genie» (A: 8), três grandes nomes da literatura americana. Eugene Gladstone
O’Neill é considerado o escritor mais importante do teatro americano e ganhou quatro
prémios Pulitzer e foi o único dramaturgo americano a receber o Prémio Nobel da
Literatura (em 1936); Tennessee Williams foi também um dramaturgo americano e
vencedor de um Prémio Pulitzer e as suas obras têm como pano de fundo o Sul
americano, apropriado para a mescla notável de decadência, nostalgia e sensualidade; e
William Faulkner, um dos maiores escritores da América, Prémio Nobel da Literatura em
1949, conhecido pelo retrato épico do conflito trágico entre o novo e o velho Sul e por
ter experimentado novas técnicas literárias, incluindo a “stream of consciousness”.
Umas linhas depois, Koeppen ignora os condicionalismos cronológicos e torna
figuras como Sartre, Mauriac e Zola personagens: imagina o intelectual francês
existencialista Jean-Paul Sartre e o romancista católico François Mauriac a gritar a
famosa frase de Émile Zola, “J’accuse”, de uma carta de 1898 respeitante ao chamado
“caso Dreyfus”, em que Zola acusa as autoridades civis e militares francesas de mentirem
no controverso processo de acusação de traição contra o oficial de artilharia judeu
Alfred Dreyfus. Também menciona Georges Simenon, conhecido pelas histórias de
detectives sobre o inspector Maigret, que solucionava os crimes através da intuição
psicológica e da compreensão dos motivos do criminoso - «Man schenkte den herben
Wei? wein aus, den nach Georges Simenon die Kommissare der französischen
Kriminalpolizei lieben» (A: 9). Uma imagem de propaganda ostentando uma loura
vestida à marinheiro lembra o pintor francês impressionista Pierre Auguste Renoir: «Auf
einem Leuchtbild warb eine üppige Blondine aus dem Samen Renoirs und als Matrose
gekleidet für ein schäumendes Bier» (A: 9).
89
Sucedem-se outros nomes conhecidos internacionalmente, que surgem a
propósito de um objecto, de um edifício, de uma visão ou de um reparo. Tentarei
agrupar grande parte desses nomes segundo o domínio ao qual se referem.
Assim, alguns dos nomes mais marcantes da literatura mundial mencionados são:
Samuel Beckett, Gottfried Benn, Bertolt Brecht, Albert Camus, Theodore Dreiser,
William Faulkner, Jean Genet, Wolfgang von Goethe, Heinrich Heine, Paul J. Ludwig
von Heyse, Ernest Hemingway, James Joyce, Jack Kerouac, Egon Erwin Kisch, Jack
London, Thomas Mann, Guy de Maupassant, François Mauriac, Carson McCullers,
Herman Melville, Michel de Montaigne, Eugene Gladstone O’Neill, Max Reinhardt,
Georges Simenon, Upton Sinclair, Robert Louis Stevenson, Mark Twain, Paul Verlaine,
Evelyn Waugh.
É ao aproximar-se da América que cita uma passagem da obra máxima de
Herman Melville, Moby Dick, em que descreve a cidade de Nova Iorque (cf. A: 11), e da
obra Amerika de Franz Kafka, descrevendo a impressão causada pela Estátua da
Liberdade (cf. A: 11). A América das suas próprias expectativas faz lembrar Mark Twain
e Walt Whitman (cf. A: 13), o mundo à volta do rio Mississipi e os dias dos poetas.
Segundo Gottfried Benn, as grandes cidades aguardam à noite as modificações dos
bastidores (cf. A: 22), e o público mais encantado do mundo é também o público de
Reinhardt, Jessner, Charell e Brecht (cf. A: 22). Ao ver as tavernas baratas de álcool da
Sexta Avenida, Koeppen pensa no Eismann de O’Neill (cf. A: 24), referindo-se
claramente à obra deste autor The Iceman Cometh (1946), que retrata um grupo de
desadaptados sociais incapazes de viver sem ilusões. No bairro alemão “vê” a Lorelei de
Heine (cf. A: 38) e no bairro dos negros, onde começa a biblioteca pública de
Washington, vê pessoas a ler Robinson, Hemingway, Camus e Oppenheimer (cf. A: 65).
Nas ruas desertas de Nova Orleães passeia-se o carro “Desire” de Tennessee Williams
com um único passageiro, um velho negro (cf. A: 72), remetendo para a peça A Streetcar
Named Desire (1947). O edifício do Instituto Bíblico é exactamente igual ao hotel
Excelsior no Lido, na obra Tod in Venedig de Thomas Mann (cf. A: 91). A expressão
“beat generation” obriga à menção de Jack Kerouac (cf. A: 99), pois foi este autor o
primeiro a usá-la no romance On the Road (1957), um relato espontâneo e solto, em
grande parte autobiográfico, da experiência dessa geração na América. Os expoentes do
teatro do absurdo, Samuel Beckett e Jean Genet, também são mencionados quando
90
Koeppen fala de Hollywood e da emigração interna da cidade do cinema (cf. A: 104).
Ainda em Los Angeles, Koeppen sente-se tentado a visitar o cemitério de Hollywood, o
cemitério de Forest Lawn, cujas sepulturas Evelyn Waugh tornou célebres no seu
romance The Loved One, de 1948 (com a tradução em alemão Tod in Hollywood), onde
descreve as práticas funerárias para as pessoas e os seus animais de estimação com
fantasia grotesca e irónica (cf. A: 104-105). Koeppen acrescenta ainda concordar com
esta visão de Waugh: «mu? ich (...) bekennen, da? Evelyn Waugh nichts erfunden, nichts
hinzugefügt hat - es ist unmöglich, über Forest Lawn keine Satire zu schreiben» (cf. A:
105). Também revela os seus gostos e preferências, quando diz que não gostaria de
aceder ao pedido do professor que conhecera na Universidade de Berkeley de o levar a
ver as sepulturas de Geibel e Heyse (cf. A: 117). Nos quarteirões dos pobres em São
Francisco, é um vagabundo com um só braço e “com o crânio comovedor de Verlaine”
que o guia para uma taverna e é aí que encontra um pedinte vestido como um pirata e
que lembra a Treasure Island (1883) de Robert Louis Stevenson. Ainda em São
Francisco, num “Jazz-Workshop”, uma jovem de rosto bonito e não maquilhado exprime
a amargura da flor da amarílis, como o poeta alemão Friedrich Rückert descreve num
poema famoso e lembra também as raparigas amargas da escritora Carson McCullers:
Eine junge Dame drückte in ihrem schönen, ungeschminkten Gesicht die
Bitternis der Amaryllis aus, wie sie Rückert in seinem berühmten Gedicht
beschreibt. (...) Sie erinnerte mich auch an die bitteren Mädchen der Carson
McCullers. (A: 121)
A travessia de comboio de São Francisco a Chicago fá-lo sentir como os
aventureiros de Jack London (cf. A: 123). A cidade de Chicago é para Koeppen o palco
dos romances de Theodore Dreiser (cf. A: 133), o poeta de An American Tragedy
(1925), um romance baseado num caso real de assassínio e que retrata os esforços de um
jovem fraco para subir da sua pobreza para a alta sociedade. Em visita às “Stock Yards”
de Chicago, Koeppen relembra Upton Sinclair (cf. A: 140), que descreve e denuncia no
seu romance The Jungle (1906) as condições das cercas onde os animais esperavam para
serem vendidos, e os abusos da indústria de embalagem de carne: «sie rochen auch heute
noch nach Blut, sie rochen nach Dung und Notdurft, nach Angst und Überlebenwollen»
(cf. A: 140). De novo em Nova Iorque fica deslumbrado com uma encenação baseada na
obra Ulysses de James Joyce:
Was ich bezweifelt, was ich nicht für möglich gehalten hatte, gelang ihm [einem
bekannten Komiker]; die ununterbrochenen Eruptionen des Unterbewu? tseins
91
wurden sichtbar gemacht, die Gedankenspiele, der innere Monolog, die sich
jagenden Abenteuer, Spekulationen, Täuschungen des Geistes wurden zur Szene,
gingen über die Bühne, und es offenbarte sich mir, wie verwandt dieses Spukstück
aus dem »Ulysses« Partien aus dem zweiten Teil des »Faust« ist, und Joyce war so
klassisch, wie Goethe modern bleibt. Die Nacht von New York war magisch. (A:
162)
5.2. VIAGEM “HISTÓRICO-POLÍTICA”
No campo histórico-político, os nomes que encontramos são, por exemplo,
grandes nomes ligados à Revolução Americana da Independência contra o jugo britânico
- Benjamim Franklin, Thomas Jefferson, George Washington, Paul Revere e o Marquês
de Lafayette, um militar e homem de estado francês que também se pôs ao lado dos
colonos americanos na sua luta pela independência; são citados também Abraham
Lincoln, o décimo sexto presidente dos Estados Unidos que levou os estados do Norte à
vitória na guerra civil (1861-65) entre Norte e Sul, conseguindo a reunificação dos
Estados Unidos e a emancipação dos escravos negros; o presidente Dwight D.
Eisenhower e o seu secretário de estado John Foster Dulles; o presidente Richard Nixon;
e ainda Robert Fulton, inventor e engenheiro americano que desenhou o primeiro barco a
vapor eficiente, inaugurando a nova era de navegação de accionamento mecânico.
Também se fala de Al Capone, gangster célebre na Chicago da década de 20, durante a
Lei Seca, e de John Dillinger, criminoso americano, que atraiu a atenção por uma série
de crimes cometidos durante um período de treze meses de 1933 a 1934 e que era
considerado “inimigo público número um”.
No panorama político alemão, aparecem os nomes de Otto Bismarck, responsável
pela unificação da Alemanha e pela formação de Segundo Reich e Adolf Hitler, o
“Führer” do Terceiro Reich, responsável pelas atrocidades cometidas contra a
humanidade durante a Segunda Guerra Mundial.
A propósito dos estados que atravessa desde Washington a Nova Orleães (cf. A:
68), Koeppen fala da rainha Isabel I de Inglaterra, que deu o nome ao estado de Virgínia,
pois era chamada “The Virgin Queen”; do rei Carlos II, que outorgou as Carolinas aos
principais apoiantes da causa realista durante a rebelião que teve lugar no seu reinado; e
do rei Jorge II, que deu o nome ao estado de Georgia.
92
Outras figuras da cena política e histórica dignas de menção são os imperadores
romanos Calígula e Nero; o imperador Barbarossa; o imperador de França e
megalómano Napoleão Bonaparte; o explorador italiano Cristóvão Colombo, que
descobriu a América em 1492; o revolucionário da imprensa Johannes Gutenberg; e
ainda Simão Bolívar, conhecido como “O Libertador” ou o “George Washington da
América do Sul”, por ter sido o líder principal na luta da independência da América do
Sul sob o domínio espanhol.
Neste contexto, Koeppen encontra um epitáfio na Igreja Trinidad em memória de
Robert Fulton, «der das Unterseeboot erfand und als erster mit einem Dampfschiff über
den Hudson fuhr» (A: 31), e perto da igreja, na Wallstreet, está um monumento a
Washington e a seus pés flores frescas (cf. A: 31). Na rua 86 de Nova Iorque, parece ver
o Imperador Barbarossa, com a barba “crescida através da mesa” (cf. A: 38), e Otto
Bismarck com o chapéu mole de aba caída (cf. A: 38). Na Estação Pensilvânia, algumas
mulheres, de rosto bem maquilhado e olhar rígido e bondoso ao mesmo tempo,
apresentam a boca rígida e puritana de John Foster Dulles (cf. A: 43). Comove Koeppen
ver crianças negras e brancas a olharem para o libertador de escravos Lincoln (cf. A: 52)
no Lincoln Memorial. Gutenberg aparece como irmão gémeo de Colombo (cf. A: 55); o
monumento a Thomas Jefferson era um pequeno panteão, uma homenagem também a
Paris e Roma, onde se encontram inscritas as famosas palavras do terceiro presidente dos
Estados Unidos: «Am Altar Gottes habe ich in jeder Form der Tyrannei über die
Menschen ewige Feindschaft geschworen» (A: 57). Napoleão deveria ter encontrado
asilo numa casa luxuosa das ruas de Nova Orleães, cujos nomes honravam os Bourbons
(cf. A: 72), e o seu porte numa estatueta mostra-o como um vencido numa batalha (cf. A:
76). Na varanda de um salão de bailes, as freiras negras passeiam-se de um lado para o
outro, numa tentativa de repetir a grande festa dada outrora em honra do Marquês de
Lafayette (cf. A: 77). As rolas-das-índias de Nova Orleães pairam no ar aveludado de
Luisiana à volta do monumento a Simão Bolívar (cf. A: 78). Os poetas que frequentam a
taberna de intelectuais de São Francisco têm a cara de Calígula (cf. A: 112) ou a cabeça
do jovem Nero (cf. A: 113). Perto de uma pintura estão pendurados recortes de jornais
com títulos como «Nixon in Peru gesteinigt» (A: 113). Os gestos hécticos e a voz
histérica do pregador Billy Graham assustam Koeppen, que crê ver nele o futuro Hitler
americano (cf. A: 115), que aliás um motorista negro tinha já considerado «die
bedeutendste Erscheinung des Jahrhunderts» (A: 66), mas que, para Koeppen, tem lugar
93
ao lado do criminoso John Dillinger (cf. A: 165). Al Capone é uma memória que os
habitantes de Chicago parecem querer esquecer (cf. A: 133), ao contrário de Paul Revere
e Benjamim Franklin, cujos actos heróicos em prol da causa americana contra os ingleses
serão sempre lembrados (cf. A: 151). Lincoln, Washington e Eisenhower aparecem numa
pequena bandeira em postais (cf. A: 152) e Lincoln até pisca o olho a Cino Cinotti, sem
ninguém reparar (cf. A: 152).
5.3. VIAGEM “ARTÍSTICA”
Quanto à viagem “artística”, os nomes referidos abrangem campos como a
pintura, a música ou o cinema. Temos, assim, no domínio da pintura: Georges Braque,
Leonardo da Vinci, Lucas Cranach, Pablo Picasso, Pierre Auguste Renoir e Rubens. No
domínio da música clássica, encontramos nomes como George Frideric Händel, Joseph
Haydn, Wolfgang Amadeus Mozart, Richard Wagner e Robert Schumann, e no da
música jazz o saxofonista Charlie Parker e o Duke Ellington. No campo do cinema, são
mencionados os nomes de Charlie Chaplin, James Dean, Jayne Mansfield, Marilyn
Monroe e Sarah Bernhardt.
Em Amerikafahrt, vemos os quadros de Renoir, Braque, Picasso e Leonardo da
Vinci pendurados em exposições de arte (cf. A: 149), em casas elegantes (cf. A: 62) ou
igrejas (cf. A: 106), ou encontramos ainda figuras cujo semblante lembra Cranach (cf. A:
37) ou Renoir (cf. A: 9) ou cuja maneira de vestir lembra Rubens (cf. A: 112). Ouve-se
baixinho música romântica de Mozart e Haydn num cemitério para os mais abastados,
em Los Angeles. O organista de um templo em Salt Lake City toca o “Phopheten
Geburt” de Robert Schumann (cf. A: 126), e o edifício Palmolive assemelha-se ao castelo
do Graal de Richard Wagner (cf. A: 148), remetendo para a obra Parsifal sobre a lenda
do rei Artur e a demanda do Santo Graal. Em Nova Iorque, vai ao longo do parque em
direcção ao «Duke Ellingtons Negro Heaven» (A: 35). Charlie Parker, que morreu de
morfina, é um dos dois deuses da boémia da Califórnia ou da chamada “geração perdida”
(cf. A: 99). O outro deus é James Dean, que morreu num acidente de viação (cf. A: 98).
A imagem da actriz Jayne Mansfield serve para fazer publicidade numa vitrina de nova
Iorque (cf. A: 18), e num bar Koeppen come ao lado de uma Marilyn Monroe, «die es
unsagbar komisch fand, da? ich nach europäischer Weise das Messer benutzte. Marilyn
94
Monroe lachte schallend, doch nicht böse, und sie versprach mehr als ihre Hamburger
hielten» (cf. A: 64). A necessidade de tocar em botões num mecanismo que fizesse surgir
uma cama no comboio para Nova Orleães faz Koeppen sentir-se tão desajeitado como
Chaplin (cf. A: 66-67), que, porém, é o único génio que o filme jamais criou, mas que
não tem as suas marcas ou pegadas no passeio da fama de Hollywood, não vendo, deste
modo, reconhecido o seu valor (cf. A: 102). As senhoras mais velhas da metrópole do
cinema parecem-se com grã-duquesas russas ou com actrizes que ainda entraram em
cena com Sarah Bernhardt (cf. A: 101).
5.4. VIAGEM “FILOSÓFICA”
A nível da digressão pela filosofia e das reflexões filosóficas surgem, por
exemplo, nomes como Jean-Jacques Rousseau, Johann Gottfried Herder, Kierkegaard,
Friedrich Wilhelm Nietzsche, Jean-Paul Sartre e Sócrates. Na obra Amerikafahrt, o
filósofo existencialista francês Sartre junta-se ao escritor François Mauriac no grito
“J’accuse”, de Zola (A: 9); os índios condenados à morte pela colonização representam o
bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau (cf. A: 56); o trompetista de jazz que Koeppen
encontra em Venice é um Kierkegaard que fora atirado para um inferno existencial
sartriano e que gritava de lá (cf. A: 99); na academia de Berkeley, Koeppen crê ver os
alunos e o político ateniense Alcibíades, mas não encontra Sócrates (cf. A: 114). Ainda
em Berkeley, mostram-lhe uma obra de dois volumes sobre o filósofo alemão Johann
Gottfried Herder, obra que, na sua opinião, não teria encontrado uma editora na
Alemanha para ser publicada (cf. A: 117-118), mas, acrescenta, aqui até teriam chamado
Nietzsche e publicado as suas obras se ele vivesse ainda nos nossos dias e fosse
expatriado (cf. A: 118).
Interessantes são ainda as reflexões que Koeppen faz sobre a morte e a sua
filosofia sobre os cemitérios, afirmando que as sepulturas dizem muito sobre uma cidade
e os seus habitantes, pelo que nunca deveríamos esquecer-nos de visitar os cemitérios
dos países estrangeiros (cf. A: 79). Por isso, Koeppen visita-os e não só descreve o
cemitério e as flores e campas que lá encontra, mas lê também as inscrições, conhecendo
assim, de facto, mais sobre as personalidades que habitaram a cidade onde se encontram
agora em eterno repouso. Critica também os textos pomposos e as figurinhas de gesso
95
que enfeitam as campas de Forest Lawn (cf. A: 105). Para ele, estas figuras lembram os
parques russos, sendo esse o único sinal de bolchevismo no cemitério (cf. A: 105-106).
Muitas vezes, Koeppen faz ainda perguntas retóricas ou do foro especulativo.
Por exemplo, ainda em Paris, interroga-se por quanto tempo o fogo-fátuo do Iluminismo
e a lâmpada mágica da literatura brilharão (cf. A: 8).
Ao falar dos emigrantes que partem para a terra prometida, em busca não só de
melhores condições de vida mas também de liberdade de pensamento e de religião,
pergunta até onde vão as exigências desses emigrantes: «verlangten sie allein nach Brot
oder schon nach dem Traumauto der Illustrierten?» (A: 9). Isto leva-nos a concluir que
se nos primórdios da colonização americana, os motivos se prendiam essencialmente a
questões de liberdade a nível político ou religioso e a questões económicas, agora as
aspirações das pessoas vão mais longe, numa linha de consumismo, pretendendo
enriquecer e não sobreviver apenas.
Quando vê o epitáfio a Robert Fulton, o inventor do submarino e o primeiro a
atravessar o rio Hudson num navio a vapor, interroga-se se Fulton saberia para onde
seguia a viagem (cf. A: 31), reportando-se talvez não só à viagem pelo rio mas
principalmente ao decorrer dos acontecimentos num futuro mais ou menos próximo.
A hora de ponta, coincidindo com o fecho dos escritórios, provocava
engarrafamentos nas ruas das cidades, mas depois era impressionante onde ficava essa
gente toda (cf. A: 64). As estradas ficavam, como Koeppen muitas vezes refere, vazias,
sem vida ou presença humana, pois os americanos parecem preferir o conforto dos seus
lares depois de um dia de trabalho e do frenesim da vida citadina.
Ao atravessar a vastidão do continente americano no expresso de Santa Fé,
Koeppen fica espantado com o aparecimento repentino do que ele chama uma “cidade de
caravanas cheia de mistérios” («eine rätselvolle Wohnwagenstadt», A: 83) no vasto
deserto e inquire-se sobre essa mesma cidade e o modo como as pessoas se teriam aí
juntando, perguntas essas que permanecem sem resposta (A: 85).
Koeppen pergunta também por que razão as pessoas odiariam Nixon (A: 113), se
Schumann e Joe Smith já se conheciam (A: 126) e o que fazia na realidade a hospedeira
do comboio da Califórnia para Chicago, tão bem vestida e maquilhada (cf. A: 130),
parecendo preocupar-se mais com a sua aparência física do que com o trabalho a
desempenhar.
96
Em Chicago, observa um grupo de estudantes negros, que enchem o autocarro
no qual Koeppen viajava e que representavam uma nova geração, diferente, activa e
crente no futuro (cf. A: 142). O orgulho e o sonho estavam-lhes estampados no rosto e
não lhes parecia faltar nada. Irónico será confrontarmos esta imagem com a intenção dos
“idealistas” de Chicago e do seu plano para erradicar os slums da cidade. Ao colocar
negros e pobres lado a lado na afirmação «Alle Neger und alle Armen strebten ihm [dem
Geschäftsviertel] zu» (A: 143), a crítica de Koeppen torna-se ainda mais mordaz,
enquanto
denúncia
das
contradições
americanas.
O
centro
comercial
onde
desembocavam as escadas do metro é um paraíso da oferta e da abundância, da tentação
e do desperdício de dinheiro. O nome da firma é, por erro do néon, não Sgott & Co. mas
“Gott & Co.”, concedendo uma conotação quase divina ao dinheiro e à abundância
reinantes na América. Nesta linha de exaltação do país, podemos entender o ar
desconcertado de Koeppen perante a gerente da editora Ebony, uma editora onde
trabalhavam exclusivamente negros, que estavam, como afirma, domesticados e
adaptados aos costumes brancos: «Ja, was hatte ich nur zu finden gehofft? Eine bessere
Welt? Den besseren Menschen?» (A: 145). A gerente esperava que Koeppen se
mostrasse maravilhado pela organização, pela limpeza, pelo estado de relativa evolução a
que os negros chegaram. Esperava, talvez, que o seu visitante reconhecesse ter
encontrado um mundo melhor, um homem novo, diferente dos seus semelhantes dos
outros continentes, pois na América tudo parece transformar-se e tomar o rumo do
progresso e da perfeição.
No final da obra, Koeppen coloca uma pergunta existencial sobre o futuro da
própria terra: «War die Kugel die Erde? Und wohin schwang das Pendel? Und was
prophezeite sein Schlag?» (A: 167). Apesar de todas as promessas de liberdade, de
felicidade e de paz, as aparências enganam e por detrás de todo o encanto e beleza,
continua a haver discriminação racial, inveja, guerras. Por isso, Koeppen afirma: «Auch
die Besucher hatten für eine Weile zukunftsfrohe Gesichter» (A: 168). A alegria e a
crença num futuro melhor são, pois, efémeras, porque a realidade é bem diferente, a
realidade nua e crua é bem difícil de enfrentar e aceitar. O optimismo e felicidade
estampados no rosto dos visitantes que trazem consigo expectativas relativamente aos
Estados Unidos da América só duram um momento, pois logo se lhes opõem exemplos
de injustiça e miséria social.
5.5. VIAGEM “RELIGIOSA”
97
Koeppen refere figuras importantes a nível de movimentos religiosos, a saber:
Billy Graham, Joe Smith, Brigham Young e Mary Baker Eddy. Billy Graham representa,
para Koeppen, um exemplo de fanatismo religioso, sugerindo-lhe a ideia assustadora de
um Hitler americano (cf. A: 115), pela enorme influência que tem sobre as massas e pela
sua atitude, apelidando-se a si próprio de “evangelista”. Quanto a Joe Smith (ou Joseph
Smith) e Brigham Young, o próprio Koeppen nos conta a sua saga (cf. A: 124-127). Joe
Smith fora o fundador da seita religiosa mórmon e afirmava ter recebido a revelação do
Livro de Mórmon (um antigo profeta norte-americano) inscrita em tábuas de ouro
escondidas, mil anos antes, numa montanha perto de Palmira. Quando Smith foi morto
por uma multidão enraivecida no Illinois, Brigham Young sucedeu-lhe e liderou a
migração mórmon para o Grande Lago Salgado no Utá, por volta de 1846, fundando
Salt Lake City. Young chefiou a colónia até à sua morte. Mary Baker Eddy, como
também nos informa Koeppen, estabeleceu a Igreja de Cristo, Cientista, e na sua igreja
em Boston e na Associação Cristã de Ciência podia ler-se as suas doutrinas e ver-se uma
imagem sua (cf. A: 157). O surgimento desta igreja mundial e da poderosa associação
eram mais uma prova das capacidades ilimitadas da América, como alega Koeppen (cf.
A: 158).
Ainda neste domínio, podemos incluir as visitas feitas às igrejas e cemitérios. Já
falei destes anteriormente, quando me referi às reflexões que Koeppen faz sobre a morte
e as sepulturas. Quanto às igrejas, Koeppen visita algumas e a dada altura até participa
no serviço religioso. É o caso de uma igreja em Nova Iorque, dirigida e frequentada por
pessoas de raça negra, que o recebem como o filho pródigo e lhe entregam um livro de
orações para poder acompanhar o serviço religioso. No final, convidam-no até a entrar
para a comunidade, convite que Koeppen tem de recusar um pouco embaraçado e
envergonhado, dizendo que não era de Nova Iorque e que vivia na Europa (cf. A: 3667). Ao apelidar as crianças que ajudam à missa de “anjos” e o pregador de “verdadeiro
profeta”, Koeppen deixa transparecer uma crítica a esta organização, cujo saco de
esmolas mais parece um saco de salário de uma grande empresa organizada. O pregador
da “Igreja de porta aberta” («Kirche zur offenen Tür», A: 91) também parece o gerente
de uma grande empresa, um director geral bem sucedido ou o que Koeppen chama de
“Public-relations-Fuchs” que, pela escolha cuidadosa das palavras e pelos seus gestos
bem estudados e ensaiados, parecia representar uma força imensa ou o próprio céu. Os
98
visitantes dessa igrejas que estavam sentados nos bancos de trás vêm pôr a ridículo as
celebrações e intenções deste pregador, uma vez que estavam a conversar, em voz baixa
mas sem grande respeito, e comiam bananas. O barulho do órgão e o negócio de
comprimidos com poderes de cura também se contrapõem ao significado espiritual e ao
sentido que seria suposto ter todo o serviço religioso. De igual modo, na Igreja “zum
letzten Abendmahl” (A: 106), há uma exploração do negócio feita pela Igreja. Daí os
cadeirões de couro confortáveis, a sala enorme parecida com uma sala de cinema, os
quadros de Leonardo da Vinci, o “David” de Miguel Ângelo e uma representação
dramática da crucificação, desde as onze da manhã às cinco da tarde, ao estilo dos
realizadores dos filmes “Ben-Hur” ou “Quo Vadis”. Na verdade, as igrejas parecem
proliferar nos Estados Unidos, embora nem sempre estejam à vista: «Man hörte die
Glocken von Kirchen, die man nicht sah, vielleicht lebten sie in den Wolkenkratzern
versteckt» (A: 135). Aliás, a memória dos “Pilgrim Fathers” e dos puritanos constituem
um grande peso na história americana, não fosse um dos grandes motivos de emigração
para esse país a busca de liberdade de religião: «Hier landeten sie, hier kamen sie an, alle
Völker, die Protestanten jeden Glaubens» (A: 29).
Podemos concluir das ideias expostas neste capítulo que são diversas as viagens
simbólicas que Koeppen empreende aquando da sua viagem através dos Estados Unidos.
Muitos outros domínios e nomes poderia eu ainda ter referido e explorado, tal a
abundância de alusões e referências que Koeppen faz a nomes da cultura internacional. A
um ouvinte / leitor menos atento, esta “superabundância” de figuras poderia tornar a
audição / leitura da obra um tanto enfadonha e cansativa. Ao receptor mais atento,
porém, esta “povoação de figuras” enriquece muito a narrativa viagística, abrindo-lhe
novos horizontes que ele poderá explorar ainda mais pintando um quadro ainda mais
vivo e muito mais cativante. Os nomes nunca aparecem por acaso e abrangem diversos
domínios e épocas, infiltrando-se na própria narrativa como se fossem companheiros de
viagem de Koeppen, que oferecem um colorido especial à obra literária viagística que é
Amerikafahrt.
C. ANÁLISE ESTRUTURAL E ESTILÍSTICA
99
1. ESTRUTURA E SITUAÇÃO NARRATIVA
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras, orvalho apenas.
Eugénio de Andrade
Ao iniciar a leitura de Amerikafahrt, o leitor é “bombardeado” por uma série de
enumerações, de associações, de imagens relativas tanto à Europa como à América,
numa longa frase de cerca de 470 palavras, que irá marcar toda a narrativa até ao seu
término. Esse entrecruzar de figuras e locais reais e fictícios, envoltas numa linguagem
corrida, rítmica e “plástica” lembra, pelas imagens que despoleta na mente do receptor, a
corrente de consciência de um dos autores que mais influenciou Koeppen: James Joyce.
Não é apenas uma descrição factual, objectiva que nos é apresentada, mas a realidade
aparece filtrada pela sensibilidade estética de Koeppen que, como ele próprio afirma e
como já referi noutro lugar, “vive literariamente” e se sente como uma “figura
romanesca”. O narrador de Amerikafahrt comporta-se esteticamente, transformando a
realidade social em realidades literárias e artísticas com as quais se relaciona (vd. Uske,
1984: 113). É interessante, no entanto, notar que apesar dessas associações, imagens,
metáforas ou “viagens” pelos vários domínios, o leitor não se perde, pois não se perde a
sequência do roteiro da viagem, encontrando o leitor sempre orientações de leitura, ou
seja, o narrador vai guiando a narrativa de tal modo que, no meio das teias de relações e
alusões que fogem à narração da viagem real, vai recordando os lugares em que se
encontra e o seu percurso, situando sempre o leitor que, entretanto, poderia ter-se
perdido.
A primeira característica que ressalta do estilo de Koeppen é o que Basker chama
Lokalkolorit (Basker, 1995: 589). É um quadro vivo impressionista que Koeppen nos
pinta, um género de mosaico, em que as cores se vão misturando e as descrições e
impressões surgem como parte de um todo que o leitor terá de interpretar à sua maneira
com base em algumas orientações de leitura. Não são só detalhes de cidades e paisagens
que nos são apresentados mas também detalhes sobre a gastronomia e outros motivos
100
dos países ou lugares por onde passa. Esse dom de observação serve não só o propósito
de colher e fornecer o máximo de informações possível mas também de expor e ironizar
certas situações, como por exemplo o valor e poder do dólar sobre o indivíduo e a
realidade da discriminação racial. É como se a América tivesse uma cabeça de Jano,
podendo as duas faces simbolizar o lado positivo e o lado negativo da América:
«Koeppens
vorsichtige
und
kühle,
zugleich
aber
scharfe
und
ironisierende
Beobachtungsgabe enthüllt das Janusgesicht Amerikas» (Thomas Terry in Uhlig, 1972:
68). As comparações entre os países e os sistemas sociais também estão presentes: à
uniformização generalizada na União Soviética corresponde uma forte individualização
americana; a chegada à América e facilidade em obter autorização para permanecer no
país contrasta com as regras e burocracias de um estado então socialista como a União
Soviética. Por outro lado, o autor afirma que só nestes países é que encontrou tantos
idealistas: «Nur noch in Ru? land habe ich so viele Idealisten getroffen wie in Amerika;
ich sage das ohne jeden Spott» (A: 132). Apesar de afirmar não querer criticar, Koeppen
acaba por fazê-lo, pois chama a atenção do leitor para as ideologias socialistas soviéticas
contraditórias e para os ideais e práticas americanos também contraditórios. Na União
Soviética pregava-se a ideia de uma sociedade igual para todos, em que todos teriam
acesso às mesmas condições de vida, mas todavia notava-se uma incongruência entre
esse ideal e a prepotência e pompa do aparelho do Estado. Também nos Estados Unidos
se aclamavam os direitos de liberdade, vida e igualdade mas, na prática, as minorias
étnicas eram vítimas de discriminação e nem todos viam o seu “sonho” realizado.
Koeppen apresenta deste modo não só o que é alvo de admiração por parte dos
turistas, como os monumentos, os museus e as obras que perpetuam a grandiosidade
americana, mas também, ou especialmente, o que aos turistas sempre escapa: os pobres,
os rejeitados pela sociedade, as condições de vida degradantes, os podres da sociedade:
Koeppen schildert nicht nur das Schöne, sondern auch das Hä? liche, und das
Bild jeder Stadt wird auf diese Weise vollständiger. (Basker, 1995: 590)
Koeppen não deixa de estar influenciado por preconceitos da sua herança cultural
europeia, como podemos ver nos títulos dos relatos constantes de Nach Ru? land und
anderswohin. A Espanha é o país das touradas sangrentas, que tanto o impressionam a
ele e à esposa - daí o título Ein Fetzen von der Stierhaut. O título Im Spiegel der
Grachten lembra a paisagem holandesa e em Londres Koeppen encontra-se na floresta
101
mágica dos autocarros vermelhos - Zauberwald der roten Autobusse -, retratando a
capital londrina como um lugar cheio de táxis pretos e autocarros vermelhos, que andam
do lado errado da rua, e com pubs agradáveis, uma cidade envolta numa neblina
misteriosa. Também em Reisen nach Frankreich Koeppen se refere às suas expectativas
antes de partir em viagem: «Ich träumte von Frankreich, von einem lieblichen Garten von
Daseinsheiterkeit, von Lebenssü? e und etwas freundlicher Frivolität» (RF: 7). É a joie de
vivre francesa que espera encontrar nesse país. Também traz para os Estados Unidos
ideias pré-concebidas comuns aos europeus, como as ideias que tem dos pioneiros, dos
cowboys e dos índios, quando atravessa o Oeste selvagem, ou as ideias do poder do
dinheiro e da liberdade. Outro aspecto ligado à concepção dos Estados Unidos é o facto
de este ser considerado um país de emigrantes, como o comprova o subtítulo dos relatos
radiofónicos: Amerikafahrt: Die Früchte Europas, o que deixa transparecer a ideia de os
Estados Unidos serem um produto derivado da Europa, tendo ainda muitas raízes
europeias. É o caso, por exemplo, das pessoas que fizeram a nação americana «Männer, die die Nation Amerika geschaffen haben» (A: 31) - enterradas num cemitério
de Nova Iorque, que tinham exclusivamente nomes europeus. De um modo geral estes
estereótipos vão ser confirmados nas suas viagens, o que não quer dizer que Koeppen os
aceite sem questionar. Pelo contrário, por vezes até tenta destruir esses preconceitos.
Por exemplo, quando viaja para a União Soviética questiona a visão que os seus
conterrâneos têm da Europa de Leste e, embora não seja apologista da política soviética
da guerra fria, acaba por tomar uma posição clara ao aceitar o convite da Associação de
Escritores Soviéticos:
Es gibt Leute, die mich schelten werden. Aber hat Dante nicht die Einladung in
die Hölle angenommen? Und die Hölle auf Erden? Ist sie ein geographisch zu
erfassender Ort, ein begrenztes Territorium? Gibt es irgendwo ein Schild: Hier
beginnt die Hölle, hier endet das Paradies? Und wenn es dieses Schild geben
sollte, - wer hat es aufgestellt? Darf man ihm trauen? Ich halte nichts von
Schildern. Ich reiste in die Sowjetunion. (NR: 99)
Na América também compara as expectativas dos europeus com o que de facto
existe nesse país: não há pressa na América (A: 15); em Nova Orleães, a cidade do jazz,
não se encontram já músicos (A: 76) e em Times Square, Nova Iorque, a famosa
intersecção Broadway / Rua 42 tinha um aspecto sórdido e mesquinho (A: 18).
102
É interessante notar que, apesar de ser constante na obra a perspectiva do
narrador, encarnando o papel da personagem que empreende as viagens, tratando-se
assim, na tipologia de Genette, de um narrador intradiegético e autodiegético ou, na
tipologia de Stanzel, de uma Ich-Erzählsituation, podemos dizer que o narrador também
assume o papel de narrador omnisciente ou narrador autoral (auktorialer Erzähler), na
medida em que se encontra também numa posição de transcendência face ao universo
diegético. O narrador como personagem assume assim à partida uma focalização interna,
descrevendo o que vê e as suas experiências, as suas emoções, reacções e frustrações.
Mas também apresenta uma focalização externa, aliás intimamente articulada com a
focalização interna, como defendem Carlos Reis e Ana Lopes:
O que quer dizer que a análise da focalização externa permite detectar muitas
vezes uma espécie de dialéctica entre o ver e o visto, o interior de quem
contempla e o exterior contemplado; que o mesmo é dizer: assim se evidencia o
percurso acidentado do conhecimento, a partir de uma subjectividade em
confronto com o mundo que nela suscita perplexidade, estranheza, curiosidade,
emoção, etc. (C. Reis e A. Lopes, 1990: 163-164)
O narrador de Amerikafahrt, enquanto observa o que qualquer outra pessoa
poderia observar - sem esquecermos todavia o dom apuradíssimo de observação de
Koeppen -, tratando-se de uma focalização externa, não deixa de manifestar juízos
subjectivos acerca do que vê, apresentando, deste modo, também uma focalização
interna. A focalização de omnisciência pode notar-se quando, por exemplo, o narrador
parece entrar na consciência e interioridade de outras personagens, daquelas que observa
ou que encontra. É o caso do chinês que sofre uma crise de nervos porque o televisor do
bar estava avariado e ele não poderia ver o seu programa (A: 22) ou ainda o da família
negra que se “adaptava” (A: 42), estando este termo carregado de conotações rácicas.
Refira-se também o pastor que mais parecia o gerente de uma grande empresa e que
julgava ser um bom rapaz e representar uma enorme força ou talvez o céu (A: 91). O
exemplo mais marcante desta incorporação do papel de outra personagem é a descrição
da rotina da vida de um homem que Koeppen chama apenas de “o homem” (cf. A: 146147). É interessante como Koeppen entra nessa personagem que parece retratar o
americano típico; esse homem vê outro homem que se parece exactamente com ele: «Er
sah einen Mann, der so aussah wie er» (A: 147). O narrador pensa como ele: «Einen
Moment schien es dem Mann die Lösung aller Probleme zu sein (...) Er dachte, da? ...»
(A: 147).
103
As personagens que Koeppen encontra ou descreve são geralmente personagenstipo, normalmente representantes de minorias étnicas, mas também dá exemplos do
americano médio. Outras personagens surgem, ainda que indirecta ou subtilmente. São
todos os nomes da literatura que ele evoca e à volta das quais cria um verdadeiro mundo
literário e histórico, como já referi noutra parte deste trabalho. Também cita textos
desses escritores ou personagens históricas. Fá-lo por exemplo quando chega a Nova
Iorque e transcreve um excerto do livro Moby Dick, de Hermann Melville e do livro
Amerika, de Kafka, apresentando uma exaltação da cidade e do país (cf. A: 11). Também
cita as famosas palavras do terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson,
apelando para a luta pelo fim da tirania inglesa e pelo respeito pelos direitos humanos (cf.
A: 57), comprovando deste modo a historicidade dos factos relativos, neste caso, à
colonização americana e à Guerra da Independência, cujos valores são por diversas vezes
pervertidos na prática. Transcreve também as últimas palavras de uma inscrição no
cemitério de Forest Lawn: «This is the Builder’s Dream, this is the Builder’s Creed» (cf.
A: 105), mostrando mais uma vez a forte ligação entre o credo, a religião e o sonho de
construção da América.
104
2. ELEMENTOS LINGUÍSTICOS RECORRENTES E RECURSOS ESTILÍSTICOS
Já referi as alusões que Koeppen faz a nomes e obras da literatura e história
internacionais. É interessante notar que geralmente esses nomes surgem a propósito de
uma analogia que sugere a Koeppen uma simples frase, um edifício ou uma figura. As
comparações e associações são, de facto, inúmeras. Daí a recorrência de verbos como
ähneln, gleichen ou erinnern:
sie [die blauroten Lichtsignale] ähnelten dem blitzenden wachsamen Auge der
Polizei. (A: 14)
Der Verkehr in den Stra? en (...) ähnelte der pulsierende Blutbahn im Schaubild
eines Menschen auf einer hygienischen Ausstellung. (A: 26)
Im Tageslicht glich der Broadway hier der Hamburger Reeperbahn. (A: 18)
In ihren dunklen Panzern glichen sie von Dürer gezeichneten Rittern. (A: 24)
Das Gotteshaus glich von au? en, ziegelgotisch, den Garnisonskirchen Wilhelms
II. (A: 36)
weil es [das Bibelinstitut] auf ein Haar dem von Thomas Mann beschriebenen
Excelsior-Hotel am Lido von Venedig glich. (A: 91)
und alles glich einem Kapitel aus dem Amerika-Roman von Kafka. (A: 141)
Aus dieser Ferne glich die Kirche, da der Himmel gerade blau war, wirklich St.
Peter in Rom. (A: 156)
So erinnerte die Gegend sehr an das vernichtete Berliner Scheunenviertel. (A:
20)
Parkwege, die mich an die Riviera des Mittelmeers und an die
Schwarzmeerküste von Sotschi erinnerten. (A: 100)
Koeppen torna assim as suas imagens e descrições muito mais vivas, provando
ainda ser um cidadão do mundo, que conhece não só os lugares físicos de diferentes
países mas também a imagem dos mesmos apresentada em obras da literatura mundial,
tornando também a sua obra numa obra de alcance mundial, pois nela se discute sobre
tudo e todos ao mesmo tempo, não se cingindo a um espaço ou tempo delimitados.
Mais abundantes do que estes verbos são, sem dúvida, os termos de comparação
introduzidos pela conjunção “como” (wie), emprestando uma maior riqueza estilística
105
aos relatos viagísticos. Por exemplo, o táxi era grande como uma locomotiva e pintado
de amarelo vivo como um marco postal alemão (cf. A: 14); as portas do Rockefeller
Center eram como a boca de um aspirador gigante (cf. A: 20) seduzindo todos os que
por ali passavam; alguns arranha-céus pareciam árvores de Natal enquanto outros eram
como rochedos sem vida num luar difuso (cf. A: 24); os homens sentavam-se nas
cadeiras no barbeiro como se de uma operação se tratasse (cf. A: 26); algumas pessoas
em Nova Iorque pareciam tão cinzentas como se se tivessem transformado em pó (cf. A:
42); quando o comboio pára em Washington, o ar bate-lhes como a pancada de uma
toalha embebida em vapor (cf. A: 46); as damas que frequentam as lojas de Hollywood
pareciam grã-duquesas russas que tinham sido expulsas ou actrizes que tinham
trabalhado com Sarah Bernhardt (cf. A: 101); quem encontrasse o narrador no caminho
para o Temple Hotel em Salt Lake City parecia um habitante do reino dos mortos (cf. A:
128); em direcção ao Maxwell Street Market em Chicago, o narrador é empurrado por
uma torrente de pessoas de cor, entre crianças que eram como fumo sujo (cf. A: 139); no
autocarro dos trabalhadores do matadouro de Chicago, dormia uma preta com a cabeça
pousada na mão como se fosse uma medusa em Roma (cf. A: 141).
Podemos encontrar ainda outros recursos estilísticos em Amerikafahrt, como por
exemplo repetições anafóricas, antíteses, personificações ou prosopopeias e hipérboles,
que contribuem para comprovar o valor estético e a literariedade de que já falei
anteriormente, distinguindo as obras viagísticas koeppenianas de meros relatos ou guias
turísticos. Como exemplos de repetições anafóricas podemos citar a seguinte frase:
«Amerika verjüngt, Amerika schenkt dir jeden Tag ein neues Gesicht» (A: 27), em que o
assíndeto ou eliminação de conjunção a ligar as duas orações simples realça o poder
regenerador da América, apelando directamente ao narratário-leitor, através do pronome
pessoal dir. Também a repetição do deítico “aqui” - «Hier landeten sie, hier kamen sie
an» (A: 29) - vem corroborar a ideia de chegada a um novo mundo cheio de
oportunidades, o mundo criado pelos colonizadores, o país da Declaração da
Independência americana. A chegada ao novo continente, porém, não é de todo eufórica:
«Die Neue Welt grü? te mit kaltem Wind und grauer Luft» (A: 12). Não será por certo a
melhor maneira de se dar as boas-vindas ou de acolher os visitantes ou emigrantes
“recebendo-os” com vento frio e ar cinzento ou sombrio, tendo esta contradição mais
impacte no leitor e chamando desde logo a atenção para as contradições da realidade
106
americana de que tenho vindo a falar ao longo deste trabalho. Também é contraditório o
facto de homens e mulheres estarem “exaustos” do dia de trabalho mas “não cansados” à
noite (cf. A: 22), sentando-se à mesa de bares, iniciando como que uma nova vida na
“cidade que nunca dorme”. Na rua do “burlesco”, os porteiros de boca “bruta” tecem
“elogios” às mulheres (cf. A: 23), como se se tratasse de uma sensibilidade verdadeira ou
pura. As prosopopeias ou personificações são também abundantes. Os edifícios
“crescem” como vemos nos filmes, livros ilustrados ou sonhos (cf. A: 16), as letras
luminosas “escrevem” no céu as suas diversões (cf. A: 22), a cidade de Nova Iorque
“luta” desesperadamente contra a solidão (cf. A: 24-25), as colinas despedem-se do
narrador “acenando”, assim como as casas (cf. A: 122), em Denver as casas eram frias e
pareciam ser “inimigas” umas das outras (cf. A: 131).
Como afirma Paul Hühnerfeld, Koeppen acredita no poder da palavra
(vd.
Hühnerfeld, 1976: 93). Acredita assim poder não só descrever as cidades mas também
apresentá-las diante dos nossos olhos numa imagem viva e dinâmica. As repetições, as
citações, as associações e alusões irónicas contribuem para a construção de uma imagem
própria por parte do leitor, o qual deverá ainda julgar a visão da América apresentada.
Não são só objectos que povoam as narrativas viagísticas de Koeppen, mas também
personagens, figuras reais ou não, da época ou de outras épocas, apelando também para
o universo cultural do receptor. Tudo isto através do filtro estético de que já falei e com
um cunho fortemente autobiográfico, o que concede a estas obras um grande valor
literário tornando-as certamente “literatura de viagens”.
107
CONCLUSÃO
108
No prefácio a este trabalho apresentei os objectivos e a estrutura da dissertação,
delimitando o meu objecto de estudo. Esforcei-me no sentido de atingir os objectivos
propostos, embora reconheça não ter de modo algum esgotado a matéria de estudo, e
espero ter contribuído para o estudo da obra viagística koeppeniana e para fomentar o
gosto pela leitura e descoberta deste autor. Resta-me pois sumariar os aspectos que me
pareceram mais pertinentes no desenrolar deste trabalho.
A contextualização histórico-literária da obra viagística de Koeppen, que tratei no
capítulo I, salientou a importância e valor desta comparativamente à obra romanesca,
mais conhecida, mais polémica e que mais tem ocupado os críticos e teóricos. A
referência a outros autores alemães, que escreveram sobre os Estados Unidos da
América, apresentando uma visão, por vezes discutível, outras demasiado maniqueísta,
serviu para preparar a visão que nos é apresentada por Koeppen e para formar a nossa
própria opinião face à mesma. Vimos assim, no capítulo dedicado à análise de
Amerikafahrt, que esta não é uma obra de todo inocente no sentido de não tecer críticas
sociais. Muito pelo contrário, concluímos que nessa narrativa viagística estão presentes
elementos de crítica mordaz tanto à sociedade americana, enquanto defensora mas não
cumpridora dos ideais humanitários que proclama, como à sociedade europeia,
especificamente à alemã, pelas referências subtis a aspectos como a situação dos judeus
durante a Segunda Guerra Mundial e outras atrocidades cometidas pelos alemães e, em
última instância, por qualquer país do mundo, pela humanidade.
No capítulo II, a apresentação de pressupostos teóricos sobre a literatura de
viagens salientou a complexidade e especificidade desta expressão, que tem provocado
polémica nos círculos literários. Chegámos, no entanto, à conclusão de se tratar de facto
de literatura pelas suas características estético-literárias, embora reconhecendo a
presença de um mundo referencial, a ligação ao mundo concreto. Também verificámos
haver uma relação entre a literatura viagística e a literatura autobiográfica enquanto
relato de uma viagem que foi de facto realizada pelo autor-narrador, como é o caso de
Amerikafahrt. Os elementos autobiográficos presentes em Amerikafahrt fundamentam a
identificação das várias instâncias emissoras de comunicação, a identificação entre
narrador, autor abstracto e autor real.
109
A apresentação do percurso de Koeppen através dos Estados Unidos e dos
elementos autobiográficos em Amerikafahrt, que ocupou o início do capítulo III,
corrobora a afirmação anterior de identificação entre as instâncias emissoras de
comunicação, afirmação essa que também é apoiada pela análise das circunstâncias da
produção desse tipo de forma literária. Ao tratar das linhas temáticas dominantes, falei
nas oposições turismo / anti-turismo, das Eigene / das Fremde, na visão crítica da
América, em alguns motivos recorrentes e no simbolismo da viagem. Um dos propósitos
do estudo destas linhas temáticas foi defender a atitude de Koeppen enquanto “viajante”
e não “turista” passivo, isto é, enquanto opositor do turismo em massa e defensor da
exploração solitária de cantos nunca visitados. Também vimos que Koeppen nutre uma
preferência por grupos e locais normalmente desfavorecidos e votados ao esquecimento.
Na descrição das viagens que realiza, verificámos que Koeppen é resultado e portador de
uma cultura europeia acabando por, inevitavelmente, estabelecer comparações entre a
Europa e a América, entre a sua experiência como indivíduo social e “literário” e as suas
novas vivências, deixando entrever a sua visão crítica da América. Digo indivíduo
“literário” porque, como pudemos verificar, a viagem de Koeppen não é só uma
deslocação física mas é também uma viagem a nível de outros domínios, como
(principalmente) a literatura, a história, a política, a arte e a filosofia. A lista de nomes
que Koeppen cita ou a que alude é infindável, abrangendo épocas e culturas diversas, o
que atesta o interesse ávido pela literatura que Koeppen nutria desde criança. Os motivos
recorrentes tratados deixam transparecer a intenção crítica de Koeppen, de que já falei
anteriormente, assim como relevam outros aspectos como o seu dom de observação e o
seu interesse pela gastronomia, bibliotecas e universidades. A breve abordagem
estrutural e linguística da obra contribuiu para exemplificar a presença de elementos
literários e estéticos, atestando a qualidade literária da obra, a literariedade nela presente.
Em 1961, Reich-Ranicki afirmava: «Man hat den Eindruck, da? Koeppen nicht
nur dafür gelobt wurde, was er geschrieben hatte, sondern auch dafür, was er zu
schreiben unterlie? » (apud Koch, 1977: 497). Não espero ser “elogiada” por aquilo que
escrevi ou deixei por escrever, espero sim ter dado algum contributo para o estudo da
obra koeppeniana e ter lançado pistas para interpretações e discussões de vária ordem.
110
BIBLIOGRAFIA
111
(* Edição usada)
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1085 der Bibliothek Suhrkamp, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991*.
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112
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Selbstanzeige. Schrifsteller im Gespräch: Wolfgang Koeppen und Horst Krüger.
Herausgegeben von Werner Koch. Frankfurt am Main 1971, 57-66.
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Zur Resignation neige ich sehr. Autoren im Studio: Wolfgang Koeppen.
Vorgestellt von Ekkehart Rudolph. Süddeutscher Rundfunk, Stuttgart, Sendung
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Der Schrifsteller arbeitet ohne Netz. Angelika Mechtel: Alte Schriftsteller in der
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Schreiben als Zustand. Christian Linder im Gespräch mit Wolfgang Koeppen.
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Mein Tag ist mein gro? er Roman. Wolfgang Koeppen im Gespräch mit
Christian Linder. In: Jemand der schreibt. 57 Aussagen. Herausgegeben von
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Der Weltgeist ist Literat. Heinz Ludwig Arnold: Gespräch mit Wolfgang
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Ich habe nichts gegen Babylon. Jean-Paul Mauranges: Interview de Wolfgang
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Warum nicht in den Rhein? Ein Gespräch mit Wolfgang Koeppen von Claus
Hebell. In: Süddeutsche Zeitung, München, 11./12. Oktober 1980.
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Ich bin ein Mensch ohne Lebensplan. Monika Ammermann-Estermann und
Alfred Estermann: Gespräch mit Wolfgang Koeppen, München, 17. September
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der Stadt- und Universitätsbibliothek Frankfurt am Main, 13-19.
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?
Die Situation war schizophren. »Schreibheft«-Gespräch mit Wolfgang Koeppen
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In: Schreibheft. Zeitschrift für Literatur, Heft 21, 1983, 7-11.
?
Zeit des Steppenwolfs. Junge Schriftsteller im Dritten Reich - Ein Gespräch mit
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Koeppen
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Günter
Jurczyk
(zum
50.
Jahrestag
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Bücherverbrennung). In: Süddeutsche Zeitung, München, 10. Mai 1983.
?
Überleben im Dritten Reich. Gespräch mit Wolfgang Koeppen von Manfred
Durzak. In: Neue Rundschau, 95, 1984, Heft 4, 88-98.
?
Die Kultur hat versagt. Über die Rolle von Schriftstellern und Künstlern heute
diskutieren in einem »Stern«-Gespräch die Autoren Günter Kunert und
Wolfgang Koeppen. In: Stern, Nr. 43, 30. Oktober 1985.
?
Einsam durch die Jahre. Der Schriftsteller Wolfgang Koeppen im Gespräch mit
Asta Scheib. In: Süddeutsche Zeitung, München, 21./22. Juni 1986.
?
Warum sind Sie so unglücklich, Herr Koeppen? Ein Interview von Hanne
Kulessa. In: Frankfurter Allgemeine Magazin vom 28. August 1987.
?
Wie in einem antiken Drama. Der »Stern« sprach mit dem Münchner
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über den Fall Barschel, politische Moral und schmutzige Tricks. In: Stern, Nr.
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Bericht aus Bonn. Gespräch mit Wolfgang Koeppen von Christian Döring und
Katja Ziegler. In: Tip, München, Heft 9, April 1988, 73-75.
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Die Last der verlorenen Jahre. Ein Gespräch mit Wolfgang Koeppen von
Volker
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In:
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Anfänge
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Nachkriegsliteratur. Aufsätze, Interviews, Materialien. Aachen 1989, 142-156.
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Die entlegenen Orte der Erinnerung. Gespräch mit Wolfgang Koeppen von
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Ich bin gegen alle Grenzen. Wolfgang Koeppen zum neuen Deutschland.
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120
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Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht.
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HÄRTLING, Peter (1980), Nachgetragene Liebe, SL 357, Darmstadt: Luchterhand
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KAFKA, Franz (1954), Tagebücher 1910-1923, Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag.
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