Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM RENATA BELMONTE
Lílian Almeida de Oliveira Lima (UNEB/ PUC-RS)
Resumo: Na escrita contemporânea de Renata Belmonte o universo
feminino é marcante desde seu livro de estréia, Femininamente (2003). Pretendemos investigar as personagens femininas presentes na contística de
Belmonte, observando que as inquietações que as envolvem são marcadas
pelas ingerências da modernidade e pós-modernidade. Elas estão envoltas
em angústias que apontam para as reverberações pós redefinição de paradigmas. Seguiremos o caminho teórico dos estudos de gênero com nomes
como Rita Terezinha Schmidt, Maria Lúcia Rocha-Coutinho, entre outros,
a fim de investigar contos presentes em Femininamente (2003), O que não
pode ser (2006) e Vestígios da Senhorita B (2009).
Palavras-chave: representação feminina; gênero; literatura brasileira
Escritora com três livros publicados até então — Femininamente
(2003), O que não pode ser (2006) e Vestígios da senhorita B (2009) —, os
dois primeiros resultantes respectivamente dos prêmios Brasken de Cultura
e Arte (Fundação Casa de Jorge Amado) e Banco Capital; nascida em Salvador (BA), Renata Belmonte apresenta em suas narrativas personagens
que vivenciam angústias, dilemas e insatisfações da existência humana.
Avultam em seus contos personagens femininas mergulhadas em dramas
existenciais vinculados, às vezes, ao universo feminino, como ocorre com
Tatiana de Sandálias vermelha, com Virgínia de Femininamente branca e
com a protagonista de (Intervalo) Apenas mais uma história no meio de tantas outras.
A presença marcante de personagens femininas e de um modo feminino de enxergar os fragmentos de vida presentes nos contos se estabelece com o primeiro livro, já explícito no título. Neste e nos outros livros notase um vazio existencial impregnado na grande maioria das personagens.
Há nelas uma falta que dispara o gatilho da trama narrativa e na qual estão
enredadas de tal modo que lhes impossibilita, em alguns momentos, a percepção de que a ausência é gerada por um vazio que está nelas e não na
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situação vivenciada ou no outro, coadjuvante da ação disparada.
As personagens aqui destacadas estão sob o signo da modernidade
ou pós-modernidade, sob uma nova cultura que desestabiliza os solos outrora estáveis e seguros e que indefine novos paradigmas; a ausência de solidez é o que marca a fisionomia da modernidade. Envoltos no transitório, na
liquidez das situações, as identidades dos indivíduos estão fragmentadas,
estão em curso, garantindo-lhes o desconforto do constante vir a ser, o que
lhes assegura, por um lado uma certa liberdade, e por outro a lacuna frente ao espelho cujo reflexo não equivale ao objeto refletido. Perdidos de si
mesmos e sem referenciais que lhes auxiliem, os sujeitos tendem a ocupar
tal lacuna com produtos da modernidade tão provisórios quanto a própria
fluidez destes tempos de “modernidade líquida” (BAUMAN, 2001).
Isto pode ser observado em Sandálias vermelhas com a protagonista
Tatiana, acostumada a uma vida calcada no consumismo e esvaziada de
existencialidade:
Tatiana é uma mulher ordinária. Poderia ter sido batizada
de Shirley ou Kelly, porém quis o destino que tivesse um
nome comum. Era tão vulgar quanto o travesti do nightclub
da esquina. Ninguém duvidaria que fosse fruto de alguma
peça rodriguiana. Era a personificação de todos os clichês
baratos (F, p. 27).
A narrativa se inicia exatamente com o salto da sandália cara prendendo-se a uma vala de esgoto. A partir daí a vida da personagem vem em
flashes num zigue-zague entre tempo presente e passado. A “aviltante” tarefa de colocar as mãos no esgoto e desprender o sapato proporciona a
Tatiana avaliar a vida levada até aquele instante, porém é o momento epifânico do encontro com o mendigo — “tinha sorriso de canto de boca e a
insultava com o olhar. Parecia sentir pena dela” (F, p. 31) — que lhe sinaliza
a lacuna interior preenchida pelo esvaziamento da vida que levava: “o fato é
que ela estava sozinha naquela noite e em toda sua vida” (F, 29).
Vivendo uma vida oca de significação, Tatina preenche seus dias
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com o luxo e a riqueza proveniente do resto da fortuna de sua família, nutrindo uma imagem envolta nas marcas de bolsas, sapatos e acessórios, e nas
transitórias relações reproduzidas com cada novo parceiro; uma imagem
que, todavia, desidentifica-se com o humano. A presença do mendigo no
alto de sua superior humanidade a coloca em contato com o seu esvaziado
terreno existencial:
Como um homem daquele tipo poderia se achar superior?
Mesmo sendo vítima da sociedade, ele sorria. Era um
pobre diabo feliz. (...) Ele e um batalhão de gente que ela
desconhecia lhe eram superiores. (...) Ninguém esperava
nada dele. Ela cresceu para casar e ser rica. Como é cruel
a necessidade de amar! Todas as vezes em que fez sexo,
ela queria era amor. Amor de mãe quando o filho nasce.
Amor platônico do cara da escola”. (F, p.31)
Perdida entre as griffes e o dinheiro que ainda lhe resta, presa a uma
identidade vinculada à riqueza, Tatiana enxerga o lugar deslocado em que
se encontra e vislumbrará a possibilidade de uma outra identificação. Conforme salienta Stuart Hall (2000), um indivíduo vivencia distintas identidades ao longo de diferentes momentos. Acreditar numa identidade unificada
é crer numa fantasia, visto que “à medida que os sistemas de significação
e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”
(2000, p. 13).
O excerto acima denuncia um lugar de falta, de carência afetiva
da protagonista, e de busca incansável pelo amor. Falta-lhe o aconchego
da mãe (“cansada do almoço com as amigas”, p. 29) e a presença do pai
(“Não podia ligar para o pai, porque esqueceu o número do telefone”. p.
29). Ela procura em sua lista de sapos os príncipes que a transformarão
em Cinderela, mas “Todas as noites são carentes. Durante as manhãs, somem as fantasias e se arca com o preço da realidade.” (F, p. 29-30). Tatiana,
como inúmeros indivíduos imersos na contemporaneidade fluida, vêem-se
“desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e
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sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio
e pela mão amiga com que possam contar num momento de aflição, desesperados por “relacionar-se” (BAUMAN, 2004, p. 08).
O encontro de Tatiana com o mendigo e seu gesto grandioso de
libertá-la da sandália e das amarras sociais por ela representada, trouxe
para a personagem a revelação da liberdade. Poderia optar por manter as
sandálias, sua mais recente aquisição, manter sua pseudo posição social,
seu julgamento desqualificante sobre o mendigo. No entanto ela opta por
abandonar as sandálias vermelhas, por colocar os pés no chão e experimentar a felicidade, por reconhecer a dimensão humana existente no maltrapilho homem, sopro vital que lhe invade os sentidos, possibilitando uma
existência mais plena.
Os pés, elemento de insatisfação e martírio para a personagem,
tolerável apenas como artifício de sedução, antes mascarados com sapatos
caros e indiscretos, eram, agora, símbolo de uma libertação emocional, proveniente do gesto grandioso e desinteressado contraposto ao frívolo poder
de compra de Tati. “Mendigo e mulher rica se fundem no premido episódio
do conto pelo que a vida lhes proporciona: a identificação pelo humano”
(SILVA FILHO, 2008, p. 275). Não mais havia motivo para ter vergonha dos
pés. Eles, e Tatiana também, estavam livres para experimentar uma outra
sensação.
Em Femininamente branca percebe-se antes uma frustração pessoal com um relacionamento heterossexual e o desejo de um parceiro(a)
afetuoso(a) e compreensivo do que a opção por relacionamentos homossexuais. Virgínia dispõe-se a viver um relacionamento homossexual depois de
perceber a indisposição de seu último namorado para um relacionamento
mais sério: “os homens sempre sumiam no momento mais intenso da relação” (p. 53), “Marcelo a tinha abandonado porque estava ficando sério demais” (p. 55). A intensificação de um relacionamento parece ser perigoso,
segundo Bauman, em tempos de “relacionamentos de bolso” – ao alcance
da mão quando necessário, “são a encarnação da instantaneidade de da
disponibilidade”(BAUMAN, 2004, p. 36) “o compromisso, e em particular o
compromisso a longo prazo, é a maior armadilha a ser evitada no esforço
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por “relacionar-se” (2004, p. 10), uma vez que tal escolha implica em abdicar
de outras possibilidades.
Sozinha, Virgínia lança mão de um “relacionamento de bolso” na
tentativa de encontrar o compromisso desejado, unido à cumplicidade e afinidade que, acredita ela, só encontraria em uma mulher. É a carência afetiva que a conduz à suposta paixão por Betty:
sempre quis ser correspondida. Achava que uma mulher
saberia bem o que é amar loucamente. Sua paixão por
Betty tinha sido inventada por suas carências emocionais.
Antes, nunca tinha pensado em nenhuma vagina alheia.
(...) Um dia, no bar, Betty sorriu, e foi o suficiente (p. 55).
Com a mesma velocidade que a relação com Betty começa, desfazse. Em tempos de vertiginosa rapidez, de multiplicidades e simultaneidades,
os encontros aceleram-se em relacionamentos fugazmente desfeitos, tão
logo as portas dos inúmeros desejos sejam fechadas ou abertas. Virgínia
abriu a passagem do desejo de compromisso e cumplicidade, logo fechada
por Betty. O anseio de Virgínia foi o portal para o fim do relacionamento:
Disse que sentiu saudade, mas queria que ficassem
apenas naquilo, uns beijos e mais nada, que se amassem
gratuitamente, sem maiores obrigações. Era como se
fosse Marcelo, só que usando palavras sutis. (...) “Vá à
merda.” Percebeu que Betty estava sendo, femininamente,
branca. Bateu a porta e saiu com seu coração quebrado.
(p. 55-56)
Na tessitura narrativa algumas cores e elementos paratextuais enredam-se às sensações das personagens. Como salienta Osmar da Silva
Filho (2008, p. 275) “a sinestesia [é] visitada não só como recurso lingüístico, mas como tentativa de alcance do que não se explica facilmente.” O
azul é relacionado à intensidade e à calma, o amor da mãe por ela era azul
como o mar, o vermelho está associado à paixão e o branco à indiferença,
ao desprezo e ao masculino. O amor do pai era branco tal como o sentimen-
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to de Betty: “Betty agiu como se fosse um homem. Betty agiu de uma forma
branca. O branco é o oposto do vermelho. Não existe paixão indiferente e
racional” (p. 54-55).
A música Every breath you take, da banda The Police, a imagem de
um outdoor e o poema musicado, Soneto de separação, de Vinicius de Moraes são aludidos no texto e somam-se à atmosfera do conto. A caminho do
encontro com Betty a rádio toca a música Every breath you take. A canção
sinaliza a manutenção de um sentimento: embora o ser amado tenha ido,
o sujeito da música vive a ausência dele acompanhando seus passos. Essa
é a trilha sonora do romance com Betty. Em meio ao caminho um outdoor
“estampava uma foto de um beijo ardente e parecia querer lhe avisar que
tudo iria correr bem” (p. 52), todavia ao chegar e estacionar o carro começa a tocar o Soneto de separação. “Seria um sinal? Quem era mais forte,
Vinicius ou o outdoor?”(p. 53). Considerando as mensagens de cada um
dos elementos acima, nota-se que predomina a atmosfera de afastamento,
como os versos do soneto sentenciam: “De repente não mais que de repente/
Fez-se de triste o que se fez amante/ E de sozinho o que se fez contente// (...)
Fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente”.
Num piscar de olhos o relacionamento desfez-se.
O diálogo com distintas linguagens (outdoor, música, poema), presente neste e em outros contos de Renata Belmonte, é um recurso caro à
produção ficcional da contemporaneidade, incorporando ao texto literário a
multiplicidade que envolve o sujeito da atualidade.
É válido notar que no percurso até o apartamento de Betty uma chuva fina cai sobre o pára-brisa do carro e depois sobre os cabelos de Virgínia. Em distintas cenas presentes na literatura brasileira a chuva sinaliza
mudança, recomeço. Assim também será para Virgínia. A falência do relacionamento revela o vazio que habita a protagonista, o deserto afetivo que
mascarou a suposta paixão por Betty.
No livro O que não pode ser as personagens encontram-se sob o
signo da impossibilidade, seja de um amor que tinha tudo para ser perfeito, mas, “abandonar, às vezes, é a melhor forma de preservar um amor”
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(OQNPS, p. 34), seja pela inadequação aos modelos estabelecidos culturalmente e incorporados pela protagonista de. É esta impossibilidade que gera
o vazio que as personagens trazem em seu âmago.
Ao longo do livro observa-se que há fragmentos de uma narrativa
sempre com o mesmo titulo (Intervalo) e subtítulo: Apenas mais uma história
no meio de tantas outras. Como o subtítulo aponta, o conto vem entre outros
contos possibilitando uma dupla leitura do título e da posição dentro do volume: como três narrativas distintas, flashes do cotidiano, marcadas pela
brevidade e posição intervalar em relação aos demais contos, assumindo
então a característica demarcada no título; ou como uma narrativa entrecortada por dois pares de contos, de modo que estes assumiriam o caráter
intervalar e não aquela. Em decorrência de marcas na narrativa que sinalizam uma continuidade, tal como o mesmo título e subtítulo, opta-se aqui
pela segunda opção de leitura e estabelece-se que cada uma das partes do
conto será denominada de momento, conforme a ordem em que aparece no
livro.
No primeiro momento a protagonista prepara-se para sair com colegas e, no delimitado tempo para arrumar-se, um flasback da vida dela é
passado ao leitor pela voz do narrador onisciente. Trata-se de uma mulher
que “fez tudo direitinho, se formou, comprou um carro, um apartamento,
apenas para poder dividir” (OQNPS, p. 46), todavia não há o companheiro
almejado para compartilhar as conquistas. A falta da protagonista consiste na ausência desse outro, na necessidade de corresponder aos modelos
sociais que estabelecem que a mulher deve casar e ter filhos, na necessidade de não ser diferente das que seguem o padrão: “porque cansou de ser
diferente, quer ser igual a todo mundo, quer poder falar sobre filhos, sobre
o trabalho do marido, sobre os planos de férias da família” (OQNPS, p. 46).
O vazio proveniente daí gera a fuga de si mesma na tentativa de ocultar o
incômodo de não ser igual. Discutindo acerca da submissão feminina à Ordem do Pai, Antonio de Pádua da Silva (2004, p. 45) assinala que “pertencer
à Ordem é motivo de existência, de aparente felicidade, de acomodação ao
ritmo da vida que toca uma mesma sinfonia para todos, satisfazendo de forma equilibrada as utopias construídas e alimentadas nos/ pelos imaginários
coletivos das culturas”, como ratifica o desfecho desse primeiro (Intervalo):
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“porque quer um Natal com árvore, Papai Noel, presentes embalados. Porque precisa se doar, se entregar. Porque, se ela deixa de acreditar no amor,
é melhor morrer, se jogar na frente de um carro. Ouve a buzina, o interfone,
as colegas chegaram, hora de descer” (OQNPS, p. 46-47).
O segundo momento é iniciado com a ida, de carona com algumas
colegas, a uma boite. O estranhamento da proximidade dos corpos no carro,
as falas clichês, o silêncio sufocante, a rapidez ao entrar na casa noturna,
tudo denuncia uma superficialidade, “mas fingem que não percebem, que
não se incomodam, a necessidade de ter uma companhia fala mais alto”
(OQNPS, p. 67). Elas querem esconder a artificialidade das vidas vazias e
encontram-se na mútua tarefa do preenchimento, preencher os espaços
deixados pela inexistência de filhos, do marido, da juventude. A consciência da inexorável passagem do tempo associada à sua condição de solteira
atormenta essa mulher:
“e enquanto tenta abrir caminhos para se locomover, é
tomada por aquela sensação que prefere esquecer: não
conheço ninguém, sou velha demais para estar só, só, só.
Dentro dela, já não existe mais lembrança de qualquer
coisa que esteja acontecendo (onde está, com quem está,
o que está tocando), apenas este pensamento incômodo
flutua no vazio de sua mente. Eis que, então, alguém pega
sua mão (OQNPS, p. 68).
Enquanto o segundo momento termina com alguém segurando a
mão da personagem, o terceiro começa com a volta para casa, não com as
amigas, mas com um parceiro conhecido naquela noite. A inexistência de
intimidade depois de uma noite de sexo é explícita. O que a protagonista vive
assemelha-se à “ilusão de união” (FROMM apud BAUMAN, 2004). Desejando
unir-se para não vivenciar a solidão os indivíduos realizam o ato sexual, no
entanto a união alcançada durante o orgasmo é fugaz, visto que distancia
mais os estranhos aparentemente íntimos. Como afirma Eric Fromm (apud
BAUMAN, 2004, p. 62), “a união é ilusória e, no final, a experiência tende a ser
frustrante (...) por ser separada do amor”, por não tratar-se de compromisso
intencionalmente duradouro e que almeja o bem-estar do companheiro.
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A persistente idéia de envelhecimento e de solidão não permite à
personagem desfrutar do prazer oriundo daquele encontro casual: “quase
sente prazer, mas é arrebatada por aquele pensamento insistente, que gostaria de esquecer: sou velha demais para estar só, só, só. Mal percebe que
já acabou, que ele está deitado, ao seu lado. Sou velha demais para estar
só, só, só” (OQNPS, p. 90). Sua angústia, suas opiniões, são contidas para
não se responsabilizar pela descontinuidade da relação, ela “não quer se
opor a nada, não quer ter nenhum motivo para acreditar que a culpa foi sua”
(OQNPS, p. 89). Responsabilizada por não ter conquistado um companheiro, essa mulher submete-se a uma relação sem maior atração pelo parceiro
exatamente para mostrar que está tentando mudar sua realidade de mulher
solteiras, de modo a eximir-se da “culpa” por estar só: “ela, que já não acredita em nada, tenta idealizar uma pequena luz, mais uma esperança. Ela,
que já não acredita em nada e não vê tanta graça nele, prefere apostar, se
arriscar, o máximo que pode acontecer é não dar certo” (OQNPS, p. 89).
Ao longo dos três momentos vê-se que a lacuna oriunda da falta
do companheiro permanece instalada na personagem, em nenhum deles
o vazio é preenchido, mesmo quando se está ao lado do homem, o que se
quer não é um eventual parceiro sexual, mas a realização do modelo padrão
de família. Nos três momentos da narrativa é perceptível a recorrência de
elementos que ratificam a noção de que se trata de uma narrativa entrecortada, como: preocupação com a perda da juventude, a reiteração “sou
velha demais para estar só, só, só”, a seqüência entre o término de uma e o
início de outra parte da narrativa, além da imagem do espelho no início e no
final do conto, estabelecendo um fio condutor que alude à verdade refletida
no vidro, companheiro deflagrador das inquietações: “... mais uma vez está
diante daquele espelho, o mesmo que se olha há anos. Nele, pode demonstrar toda sua fragilidade, ser ela mesma. Não está só. Sempre terão um ao
outro” (OQNPS, p. 90).
A fragmentação do conto reflete a fragmentação da protagonista,
des-identificada com a realidade que a envolve (mulher independente financeiramente) e presa à imagem de mulher casada, de mãe. A personagem inominada ilustra bem a fragmentação dos sujeitos contemporâneos,
a ausência de um nome parece sinalizar para essa identificação enevoada,
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ao tempo que também pode remeter a um esvaziamento que possibilita a
qualquer sujeito usar as vestes desse universo ficcional.
O esfacelamento dos modelos rígidos provoca nos sujeitos o atordoamento perante as novas demandas e realidades. Como aponta Bauman
em seu livro Modernidade líquida (2001, p. 13), com o “derretimento” de
instituições e modelos os indivíduos passaram a ser confrontados por padrões e figurações que, ainda que ‘novas e aperfeiçoadas’, eram tão duras
e indomáveis como sempre.
Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído
por outro; (...) A tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade
para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo
fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e
apropriados.
Descontente com sua realidade, perseguindo o amor universalmente buscado pelos seres humanos, a personagem deseja voltar a um solo já
conhecido: o casamento e a manutenção da família.
Segundo Osmar da Silva Filho (2008, 272),
O discurso do eu ficcional dos contos de Belmonte é
a fala do humano violentado pelo todo que o vê mais
como objeto que como sujeito; é a tessitura da risível
busca pelas utopias, pela completude, num admirável
ambiente povoado pela loucura coletiva, isso ao mesmo
tempo em que a iniciativa pela ação positiva é valorizada.
Os discursos de Belmonte são a constatação de que o
sentimento de mundo, antigo já, fora esquecido quando
deixamos de observar o Outro e devastamos a natureza,
abandonando-se o homem à instauração de sufocantes
hierarquias de poder.
As personagens de Renata Belmonte trazem consigo um vazio deflagrado pelas ingerências de estar no mundo que, por diversos caminhos,
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levam aos entraves das relações entre os seres humanos, sejam eles transfigurados no marido e na constituição de uma família, na impossibilidade de
vivenciar a cumplicidade amorosa, ou na inesperada solidariedade humana. Elas estão prenhes de ausência de si, pois, “o que não pode ser” é o mar
aberto onde navegam e, algumas vezes, naufragam.
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Bibliografia
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MEDEIROS, Carlos Alberto (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Ed., 2004.
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Maria Goretti (orgs.). Mulheres de Helena — trilhamentos do feminino na obra de
Parente Cunha. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2004.
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